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Roberto DaMatta O que faz o brasil, Brasil? Rocco Rio de Janeiro — 1986 3 A ilusao das relagGes raciais No século XVIII, Antonil percebeu algo interessante numa sociedade dividida entre senhores e escravos, e escreveu : “O Brasil é um inferno para os negros, um purgatério para os brancos ¢ um paraiso para os mulatos”. A frase foi, como sempre acontece com as coisas profundas que sio faladas com simplicidade, mal entendida. E que quase todos os seus intérpretes viram nela uma afirmativa ao pé da letra, algo que se referia exclusivamente a um fenémeno bioldgico ¢ racial, quando de fato ela diz muito mais de fatos socioligicos basicos. Na verdade, penso que, caso se queita ter uma compreensio mais profunda e original das relagdes raciais que existem no Brasil, sera necessirio tomar essa expresso nos seus sentidos velados, considerando todas as suas implicagdes morais e politicas. E elas, conforme 24 veremos a seguir, nos levam muito longe de uma mera questio fisiolégica de ragas. Digo que a frase de Antonil tem um sentido sociolégico e simbélico profundo porque, no contexto das teorias raciais do momento, ela é no minimo contraditéria. Realmente, nao custa relembrar que as teorias racistas européias ¢ norte americanas ndo cram tanto contra 0 negro ou o amarelo (0 indio, genericamente falando, também discriminado como inferior), que eram nitida ¢ injustamente inferiorizados relativamente ao branco, mas que também eram vistos como donos de poucas qualidades positivas enquanto “raga”. O problema maior dessas doutrinas, © horror que declaravam, era, isso sim, contra a mistura ou miscigenago das “racas”. E certo diziam elas, que havia uma nitida ordem natural que graduava, escalonava e hierarquizava as “ragas humanas”, conforme ocorria com as espécies de animais e as plantas; é certo também, afirmavam tais teorias, que o branco se situava no alto da escala, com © branco da Europa Ocidental assumindo indiscutivel posigdo de lideranga na criagdo animal e humana do planeta. Mas era também seguro que amarelos e negros tinham qualidades que a mistura denegria e levava ao exterminio. Saber por que tais teorias tinham esse horror 4 miscigenago é conduzir a curiosidade intelectual para um dos pontos-chaves que distinguem e esclarecem 0 “racismo européia” ou “i americana” ¢ 0 nosso conhecido, dissimulado ¢ disseminado “racismo a brasileira”. Tome-se 0 exemplo mais famoso dessas idéias, 0 Conde de Gobineau, que, inclusive, residiu no Rio de Janeiro como cénsul da Franca e se tornou amigo ¢ interlocutor intelectual de nosso Imperador, D. Pedro II. Ele diz claramente, num livro célebre pelas idéias racistas ¢ pelos erros no que diz respeito a Antropologia das diferenciagées humanas, que é possivel dividir as “ragas” de acordo com trés critérios fandamentas: o intelecto, as propensdes animais ¢ as manifestagdes morais. No curso dessa obra, significativamente intitulada A diversidade moral e intelectual das ragas (publicada em 1856), Gobineau, entretanto, nao realiza um exercicio simplista, no sentido de dizer que a “raga” branca era superior em tudo. Ha muita inteligéncia nos preconceitos e nos autoritarismos. Muito ao contrério, ao comparar, por exemplo, brancos e amarelos no que diz respeito as suas “propensées animais”, cle situa os ptimeiros abaixo dos segundos. Quem nio se salva, porém, como infelizmente acontece até hoje na nossa sociedade, sio os negros, sempre e em tudo situados abaixo de brancos e amarelos. 25

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