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O caso Marbury v. Madison.

A doutrina Marshall1

A Suprema Corte nasceu como órgão judiciário de última instância. O passar do tempo, na verdade uma
evolução secular, é que lhe permitiu concentrar, quase que exclusivamente, em questões constitucionais.

Foram necessários poucos anos para que a Suprema Corte desse o primeiro passo, fundamental para

a instituição de um modelo de justiça constitucional que se tornou célebre e influenciou vários sistemas

no mundo. Isso ocorreu em 1803, quando a Suprema Corte, presidida pelo Juiz John Marshall, deparou-

se com o famoso caso Marbury v. Madison, no qual se apreciou questão em que determinada lei foi

contraposta à Constituição. Neste contexto, foi desenvolvido raciocínio que deu origem à tese – que

passou a ser conhecida como Doutrina Marshall – de que todo juiz tem poder e dever de negar validade

a lei que, mostrando-se indispensável para a solução do litígio, afrontar a Constituição.

Em 1800, no cenário político do governo americano, os federalistas perderam poder por várias razões

e os republicanos ganharam as eleições. Ao final de 1800, o Presidente John Adams estava em vias de ser

substituído por Thomas Jefferson e os federalistas queriam conservar uma parcela do seu poder

político. No início de 1801, o Congresso americano, cuja maioria era federalista, aprovou lei autorizando a

nomeação de 42 juízes de paz para os Distritos de Columbia e Alexandria. No dia 3 de março de 1801 – um

dia antes da posse de Jeferson –, o Senado confirmou os 42 nomes – todos eles federalistas –, e, no último

dia de seu governo, Adams assinou os atos de investidura, que ficaram de ser entregues aos novos juízes

pelo Secretário de Estado John Marshall, relevante figura do partido federalista. Neste momento, Marshall

já tinha sido indicado por Adams para Presidente da Suprema Corte e prestado compromisso em 4 de

fevereiro de 1801, embora tenha permanecido como Secretário de Estado, por solicitação do Presidente

Adams, até o fim do seu mandato.

Marshall não teve tempo para entregar os atos de investidura a todos os juízes de paz. Entre eles estava

William Marbury. Porém, James Madison, Secretário de Estado do recém-empossado Thomas Jefferson,

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Direito Constitucional II. Prof. Gassen Zaki Gebara.
negou-se a entregar os atos de investidura àqueles que foram excluídos pela falta de tempo. Foi por isso

que Marbury, ao final de 1801, propôs ação originária perante a Suprema Corte, requerendo ordem de

mandamus para compelir Madison a lhe entregar o ato de investidura. A ação foi proposta com base no

§ 13 do Judiciary Act de 1789, uma das primeiras leis que o Congresso, recém-criado pela nova

Constituição, havia editado.

O caso só veio a ser julgado pela Suprema Corte em 1803. Marshall entendeu que Marbury tinha direito

à investidura no cargo. Baseado no ato do Congresso que autorizou a nomeação dos juízes de paz para

o Distrito de Columbia, afirmou que a investidura constituía um “vested legal right”, aproveitando, assim,

para criticar a nova administração do Presidente Jefferson. Na sequência consignou que, diante do direito

de Marbury, necessariamente deveria haver um instrumento processual para tutelá-lo. Raciocinou nos

termos de que todo direito deve ter à sua disposição um instrumento processual para protegê-lo. Desde

logo advertiu que isto só não aconteceria se a questão a ser decidida tivesse natureza política ou fosse

daquelas deixadas à discricionariedade do Executivo. Por fim, passou a tratar da questão de se, no caso

concreto, o writ of mandamus poderia ser utilizado e a Suprema Corte possuía competência para apreciá-

lo e concedê-lo. Como o writ of mandamus constitui ordem para uma autoridade praticar ação específica,

Marshall indagou se ele poderia ser utilizado contra autoridades que fizessem parte do Executivo. Marshall

afirmou existirem duas classes de atos do Executivo não sujeitos à revisão judicial: aqueles que, em sua

essência, têm natureza política e os que a Constituição ou a lei colocam sob a exclusiva discricionariedade

do Executivo. Situação diversa existiria na hipótese em que a Constituição ou a lei lhe impõe determinado

dever. Neste caso, afigurando-se legítima a atuação do Judiciário em face de ilegalidade específica, não

haveria intromissão no Poder.

Ao analisar o “poder” – a competência – da Suprema Corte para apreciar e conceder o mandamus,

Marbury viu conflito entre o § 13 do Judiciary Act de 1789 e o art. 3.º da Constituição. O § 13 da Lei de

1789 alterou a competência originária da Suprema Corte, atribuindo-lhe poder para apreciar e julgar
outras ações originárias, como a proposta por Marbury. Marshall interpretou o art. 3.º da Constituição

como norma que fixou e limitou a competência originária da Suprema Corte, concluindo que o Congresso

poderia alterar apenas a sua competência recursal. Diante do claro conflito entre o § 13 do Judiciary Act

de 1789 e o art. 3.º da Constituição, Marshall enfim chega à questão cuja solução outorgaria imprevisível

valor ao precedente: o problema passou a ser o de se a lei que conflita com a Constituição é válida e a

Suprema Corte possui poder para invalidá-la ou, ao menos, deixar de aplicá-la.

O raciocínio empregado por Marshall apresenta duas proposições alternativas: ou a Constituição é a lei

suprema, incapaz de ser modificada mediante os meios ordinários, e dessa forma a lei que lhe é contrária

não é uma lei, ou a Constituição está no mesmo nível das leis ordinárias, e, como estas, pode ser modificada

quando desejar o legislador. Observa que, se fosse verdadeira a segunda proposição, as Constituições

escritas não passariam de uma absurda tentativa de limitar um poder – o Legislativo – por sua natureza

ilimitável. Mas, como a Constituição é a lei fundamental e suprema da nação, a conclusão só

pode ser a de que o ato do Legislativo que contraria a Constituição é nulo.

Porém, se a lei que contraria a Constituição é nula, restava saber o que o Judiciário deve fazer diante

dela. Ora, como a Constituição constitui a lei fundamental e suprema, e incumbe ao Judiciário interpretar

as leis para julgar os casos, cabe-lhe, quando a lei afronta a Constituição, deixar de aplicá-la ao caso

concreto. Admitiu-se, assim, que o Judiciário é o intérprete último da Constituição.

Em resumo, o precedente firmado em Marbury v. Madison afirmou a superioridade da Constituição,

outorgando-lhe caráter de lei que subordina todas as outras. A partir daí, demonstrou que o Judiciário, ao

se deparar com lei que contraria a Constituição, deve deixar de aplicá-la, simplesmente pela circunstância

de lhe incumbir interpretar as leis e eliminar os conflitos entre elas.

Em Marbury v. Madison, a Suprema Corte, pela primeira vez, afirmou o seu poder de controlar a

constitucionalidade das leis, consagrando o controle difuso de constitucionalidade. É certo que, muito tempo

antes disso, houve mostras da necessidade de controle judicial da legitimidade das leis.
Entretanto, é inegável que o precedente devido a Marshall teve o grande mérito de demonstrar a

supremacia da Constituição sobre as leis, atribuindo-lhe caráter de rigidez. Com a noção de Constituição

rígida desperta o sistema contemporâneo de controle judicial da constitucionalidade das leis, umas das

expressões mais importantes do moderno constitucionalismo.

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