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TRATADO BREVE
D A
ORAÇAÒ MENTAL,
No quai por perguntas , e resposta» á
semelhança de conferencia espiritual
se instruem os principiantes no
modo práctico de a exeicitar ,
CO MPOSTO
PELO PADRE
MANOEL BERNARDES
Da Congregaçaó do Orato
rio de Lisboa.
Com humas Meditâmes do nlesmo Authif
soíi c cs tjuatro NoviJJìmos do Homenu
Sexta impressaó.
L I S B O A
NA REGÍA OFFTCINA ÏYVOGRAFICA.
M.DCC.LXXV.
Com LUeiìfU ia Rrai Meia Censtrio,
I \w I
'I f
+ V
INTRODUCÇAÔ,
TRA-
ORAÇAÕ MENTAL.
ih
il E cousa he
Oracaó Men
tal ?
He huma ele
vaçaô , ou subida da alnva a
Decs , em que falia , e trata
com este Senhor familiarmen
te. Chama-se Mental para dif-
ferença da outra Oraçaó Vo
cal , que se faz naó só com o
coração , senai) tambem com
aboca, pronunciando palavras
A iii ' ex
2 Tratado breve
exteriores , e senííveis : e esta ^
de que tratamos , se faz somente
com o còraçaõ , espirito , ou
mente, segundo aquillo de. Da-
'vid : Meditatio cordis mei in
conspeEïu tuo semper ; ( Ps. 1 8.
15'.) e aquillo de S. Paulo:
Orabt> /piritu , orabo &• mente.
( i. Cor. 14. 15'.)
P. Que proveitos se tira6
de exercitar eíte modo de O-
raçaõ ?
R. Saõ tantos , e raá im
portantes , que para os decla
rar seriaõ neceísarios muitos li
vros. Nós neste lugar , para
tocarmos alguma parte de seus
louvores, íomente comparare
mos a Oraçao á Arvore da vi
da , que S.Joaõ vio noParaifo
celestial ; e da qual diz , que
produzia doze generos de fru
tos. Porque verdadeiramente a
Ora-
da Oraça5 Mental, g
Oraçaó Mental he huma arvo-
re plantada pela mao de Deos
no Paraiso da Igreja para sus-
tento da vida elbiritual : sua
§. III.
§. IV. '' i, i;
P. Ual he o tempo
\ / mais conveniente
para orar ? . -
R. O melhor be de noite,
quando tudo está em silencio :
Meditatus sam noëie cum corde
meo , ^ exercitabar feepe-
bam spiritum meum. ( Ps. y 6.
7.) Tambem he bom o da ma
nhã : Mane ora tio mea prœve-
niet te, (Ps. 87. i4.) levan
tando- se cedo , como fazia o
Povo de Deos no deserto para
colher o Manna.
Neste particular advirtamos
tres cousas. I. Que todas as
vezes, que o espirito se sentir
cha-
da OraçaS Mental. 41
chamado de Deos com algum
recolhimento , seja a hora que
for , deve acceitar a visita , e
lograr a maré. II. Que se á ho
ra costumada naó podemos ter
Oraçao por algum incidente >
queoccorreo, devemos dar-lhe
outra hora , que nos ficar livre.
III. Que o tempo de orar sem
pre se ha de pôr longe da hora
cie comer ; supposto que , quem
tem espirito de devoçaó , e naõ
se carrega muito de manjares,
estes lhenaó fazem grande im
pedimento.
P. Qual he o lugar mais a
propofito para a Oraçaó ?
R. O mais proprio he a
Igreja, que por isso se chama
casa de Oraçao : especialmente
onde ha Sacrario he certo, que
se aviva mais a Fé , e se lo
grai) muitos favores da preferi
42 Tratado breve
ça do Rei Christo Jesus : e
por esta razao he tambem lugar
menos exposto aos acometi
mentos do inimigo. Com tudo,
porque a modestia , silencio,
e singeleza Christã dos mais ,
que assistem nos Templos, naõ
está no ponto que devêra : e
por outra parte o nosso cpraçaõ
he facil de esvaecer- se , e difi
cultoso de se recolher : o mais
accommodado lugar para a Ora
çao Mental he o nosso aposento,
conforme o conselho do Se
nhor : Cum oraveris , intra in
cubiculum tuum , clausooíiio
ora Patrem tuum in abscondito.
( Matth. 6. 6.)
Sobre este ponto advirtamos
outras tres cousas. I. Que do
solitario do lugar naõ tomemos
licença para estar com menos
respeito , e compostura. II. Qye
naõ
da OraçaÔ Mental. 43
naõ demos por excluído , e to
talmente incapaz para a Ora
çao qualquer ourro lugar ; por
que na meza , nos caminhos,
no campo , &c. se pôde ter mui
ta , e boa Oraçaõ. III. Que,
se por algum titulo temos obri
gação , ou costume de assistir
nos Oratorios , ou Igrejas , naó
convem faltar em razaõ do
bom exemplo , que damos , e
os outros nos daõ ; e porque
naõ pastemos daqui a naõ ter
Oraçaõ nem na Igreja > nem
em casa.
P. Que postura de corpo
he mais conveniente para a Ora
çaõ ?
R. Fallando geralmente ,
a melhor he com ambos os joe
lhos em terra , o corpo direito ,
a cabeça descuberta , e sem tor
cer, os olhos baixos, as maõs
jun-
44 Tratado breve
juntas ante o peito. Deste mo
do , até de fora se está vendo ,
que a pessoa faz o officio de
çreatura , que he buscar , e
adorar a seu Creador. Se ha
infermidade , ou fraqueza , me
lhor he pôr-se em pé , do que
assentar- se ; e melhor he assen-
tar-se em algum lugar humilde
(pedindo primeiro licença ao
Senhor ) , do que encostar-se ,
ou debruçar-se.
Sobre este ponto , outros tres
avisos. I. Que em público se
deve evitar toda a singularida
de , todo o fazer gestos com a
cara , ou acçoés com as maós ,
ou dar suspiros , porque íe ha
de estar com huma serenidade
igual , assim nos affectos de go
zo , como nos de compunçao.
II. Que o estar bem quieto
(ainda que por isso se padeça
PA OraçacJ Mental. 45s
alguma molestia no principio)
ajuda muito assim o espirito , co
mo o mesmo corpo , a persistir na
Oraçao. III. Que as vezes a
força do affecto , que a alma
exercita , pedirá outro differen
te sitio do corpo ; como, se está
atribulada com algum traba
lho , o postrar-se ; se suspira com
jaculatorias, o levantar o ros
to ao Ceo , &c. Havendo po
rém respeito ao que diziamos
no primeiro aviso.
§. vii.
P. Ue actos saó , os
r/i ' ( que diziamos di£-
.. . jjunhaó a alma pa-
ía entrar na meditaçaó ?
.R. Podem fer os seguintes ,
ou outros íemel hantes. I» De
Fé , crendo vivamente , que a
Mageítade Divina está naquel-
le lugar , como em toda a par
te , por sua eiïencia , presença ,
e potencia. II. De adoraçaó,
o que sepódefazer, dizendo o
Gloria Patri , & Filio, & Spi
da ORA.q\Ò Mental. 5*3
ritui Sanfto , &c. com a maior
sumiíTao , e rendimento que pu
der. 111. Benzer- se , armando-
se com o final da Cruz contra
seus inimigos , e intentando afu-*
gentar com elle todas as tenta
ções , e fazer aquella obra em
nome das tres Divinas Pefíbas.
IV. De reflexaõ sobre si mes
mo , considerando sua vileza , e
aniquilando-se diante do infini
to ser de Deos. V. De agrade
cimento , por se dignar este Se
nhor de o admittir em sua pre
sença , e de o chamar para exer
cido taõ alto , e que he proprio
dos Anjos. VI. De recta inten
çao, naõ levando nesta obra fins
avessos , e torcidos , que perten
cem á propria commodidade
espiritual , ou temporal. VII. -
De invocaçao do auxilio de
Deos , para que o ensine , e lhe
C y il-
5*4 Tratado breve
illustre o entendimento, e mo
va a vontade. VIII. De conrri-
çaõ , dizendo : Senhor , peza-
me de vos ter offendido por ser
des vós hum Deos infinitamen
te bom : e proponho firmemen
te com voila graça de nunca
mais vos oftender. Este ultimo
acto ferve de pôr a alma em
graça de Deos , se acaso o naõ
estava , por causa de alguns pec-
cados occultos.
P. Parece que estes oito
actos para se fazerem , como
he bem , levaráõ a maior parte
do tempo dá Oraçaõ.
R, A alma, que anda já dés
ira , em muito breve tempo os
faz. Mas se a vontade se sentir
movida com qualquer delies ,
detvnha-se quanto quizer , que
isso mesmo he Oraçaõ. Como
agora > se quando adora a San-»
v tis.
da OraçaS Mental. 55
tiííìma Trindade , se sentir mui
entrada do respeito a Deos* e
desfeita no conhecimento de sua
propria vileza , pare nefle senti-
mento em quanto Ihe durar.
P. Acerca do sexto acto ,
que acima referimos , pergunto ,
que intençao hei de lcvar áOrar
çad , ou quai ha de fer o alvo
aonde atire ,. e o fim que perten-
da?
R. O ultimo fim devé' fer
dar a Deos gloria , e honra ,
santificar feu Nome, esgradar
a feus olhos , que tudo he o mes-
inòv A este fim uhimo sedevem
encaminhar outros fins secunda-
ries , os quaes podem fer estes c
Vou á Oraçaó por imitai-' à
Christo, por conheceroieu bte*>
neplacito com maior luz , por
segurar mais minha salvaçaô,
por fbmlecer-me contra as teu-
ta-
f6 Tratado breve
taçoés , e cobrar odio ao pec-
cado : Vou á Oraçao por desar-
reigar tal , ou tal vicio , que em
mim predomina ; para pedir a
Deos nosso Senhor tal, ou tal
mercê, de que necessito ; para ser
perfeito, e ir pelo caminho por
onde vaõ os que o procuraõ ler.
§. IX.
§. X.
P. Ue hei de fazer no
caso , em que me
Q elqueceo o. ponto ,
que levava preparado para me
ditar ? /
R. Pedir a nosso Senhor,
que se sirva de mo trazer á me
moria : e se com tudo naó lem
bra , pegar de algum outro , em
que já meditei com mais affei-
çaó :. 011 rumiar segunda vez o
ponto da Oraçao antecedente.
P. E de que remedios usa
rei para recolher a imaginaçao ,
que anda vagueando por varias
cousas alheas daquelle exerci
do ?
R. Contra as distracçoens ,
aproveitaó os seguintes reme
dios. I. Trazer no discurso do
dia
6$ Tratado breve
dia os sentidos recolhidos , e
mortificados. II. Naõ dar lu
gar aos negocios do seculo , e
trato com ascreaturasS primei
ro que a este negocio da alma ,
e trato com Deos : por isso he
bom arrecadar logo a Oraçao
pela manha. III. Naõ levar o
estômago carregado de manja
res : Bona est oratio cumjeju-
nio. IV. Naõ desprezar a pre
paraçao1 proxima, ainda que a
vontade se ache dura em fazer
os actos , de que consta. V. Ap-
plicar bem o espirito no princi
pio da Oraçaõ , para que as po
tencias comecem a tomar cami
nho direito. VI. Renovar com
viveza a Fé da presença de
Deos , e invocar seu auxilio ,
para que me ajude a recolher.
VII. Entregar nas maõs do
meu Anjo todos os meus cuida
da OraçaS MentAi» 6?
dos , pedindo-lhe , que se me sa<5
necessarios , mos guarde para
seu tempo. VIII. Irçíistir na re
sistencia das distracçoens , en
tendendo que , ainda que niflb
gaste todo o tempo , tive Ora
çao muito proveitosa : e que se
me deixar levar delias , ficarei
com a imaginaçao de cada vez
mais indomavel.
P. E se nada disto basta,
que resta para fazer ?
R. Ter paciencia comsigo ,
conhecer sua milèria , entender
que tambem este trabalho pasta
pelos outros , e esperar a graça
de Deos.
Mas he de advertir , que este
resistir ás distracçoens huma , e
mil vezes , naô ha de ser cora
modo impaciente exasperando-
se ; senaõ com coraçao largo , e
socegado , como quem está cer
66 Tratado breve
tificado do nada para que pres
ta , se Deos o naõ ajuda.
. P. De que remcdlos usarei
contra a perleguiçaõ do sono?
jR. Se nasce de falta delle,;
conceda- se á natureza em outra
hora o que justamente pede : se'
de negligencia, e froxidao , ap-
plique-se a alma com vérás, e
naõ accommode o corpo em
postura , que esteja chamando
pelo sono : se he tentaçaõ dp ini
migo (como de alguns exem
plos consta , que o costuma fa
zer ) recorrer a Deos , e ao nos
so Anjo: se he enfermidade pro
cedida de algum humor , que
occupa o cerebro , consulte-se
a medicina.
- E geralmente fallando saõ
muito efficazes os tres remedios
seguintes. I. Tomar huma dis
ciplina antes de entrar á Ora-
çaõ,
da OraçaÔ Mental. 67
çaõ , co:no fazia o Santo Bispo
D.Joaó Palafox, e outros ser
vos de Deos. II. Sahir fora a
outro lugar , divertindo ainda
que íeja por brevifljmo tempo ,
e tomar logo a atar o fio. III.
Levar este negocio de mais lon
ge , procurando ler cuidadoso ,
e diligente em todas as obras dò
serviço de De'os , e grande esti
mador do trato familiar com
sua Divina Magestade.
P. Se vierem pensamentos
de blasfemia , de que modo se
rebatem ?
R. Nao fazendo caso delies
por feios que fejaó. E quanto
mais pena me causaõ , tanto he
mais certo sinal de que os naó
consinto. Ruffiao conta que a
hum achacado deste mal ensi
nou oSantoAbbade Pimenio o
seguinte remédio : Ne contris
68 TrATADO BREVE
teris ,filì. Quando bac cogita-
tio ad te venit , die : Ego cau-
sam nonhabeo: blasphemia tua
super tefit , Satanas. (Lib. 3.
Fit. PP. ». 5-7.) Naó te entrií-
teças , filho. Quando te vier esse
pensamento , dize : Eu naó te-
nho culpa : a tua blasfemia fi-
que íòbre ti , Satanás. Quando
a tentaçaó insista muito , impoi>
ta nao exasperar-me , nem ima
ginas de mim , que Dëos me
deiampara : senaó levar a Cruz
com resignaçaó por todo o tem
po, que o Senhor for lervido.
Santo Hugo Bispo Gracìanopo-
litano , varaó de eminente santi-
dade , padeceo este trabalho
muitos annos , e se nao vio li
vre delie, senaó pouco antes da
sua morte.
P. Como devo haver-me ,
quando na Oracaó nem poflo
- -. - ex-
da OfuqAÔ Mental. 69
exercitar os diícursos do enten
dimento , nem os affectos da
vontade ; e estaó estas duas po
tencias como atadas , huma com
trévas , outra com securas ?
R. He necessario averiguas
a causa dcnde este trabalho pro
cede, e conforme a isso appli-
car-lhe o remedio. Pôde nascer
de peccados : e entaõ o reme
dio he chorar a culpa , e aceitar
a pena. De peccados , digo,
naõ só commettidos de proxi
mo, senaõ ainda da vida passa
da ; porque he justo castigo , que
a alma , a cujas portas esteve o
Senhor esperando annos, ean-
nos, que lhe abrisse, e nao lhe
abria, agora esteja batendo ás
portas de Deos, e elle a deixe
estar de fora ; para que deste
modo purgue seus peccados , e
se faça mais digna de entrar. .
70 - Tratado breve
Pode nascer de fastio, queo
espirito tem cobrado a discor
rer muitas vezes sobre a mesma
verdade , da qual está já bem
certificado. E entaó será con
veniente pegar de outra mate
ria , ou entrar em outro modo
de Oraçao , precedendo neste
caso conselho de pessoa experi
mentada, e havendo respeito à
se este trabalho dura já ha mui
to tempo.
Se feitas as diligencias da
nossa parte , naó aproveitas) ,
póde-se entender , que Deos
poem a alma neste estado, para
purgalla com estas trévas , e se
curas , dos muitos actos de satis
faças) , que tem feito de si mes
ma , pelo que conhecia , e goza
va de Deos : e para lhe quebrar
os brios , e demaziada activida
de das potencias^ Nisto se mos
tra
N da OraçaÔ Mental. 71
tra este piedoso Senhor como
huma mãi , que enfaxa os braci-
nhos do menino, para quenaõ
bula muito com elles quando
tem pouca força , e se naõ cos
tume a acçoens muito rijas , e
desgovernadas. Por onde > affirri
como q menino faria mal em
forcejar contra as ataduras : as
íim a alma neste estado naõ faz
bem em querer trabalhar com
as potencias , e só lhe convem
aquieta r-ie , e receber da maõ
de Deos os bocadinhos , com
que a sor alimentando.
He também de advertir , que
muitas vezes neste estado a al
ma entende , mas naõ íabe que
intende ; ama , porém naõ sabe
}ue„au\a : porque ainda que
Deó&a naõ privou dos actos ,
}ue chamamos direitos , de co
nhecer, e amar; privou-a dos
D ii actos,
Y% Tratado BREVÊ f
actos , que chamamos reflexos;
pelos quaes havia de conhecer ,
e gozar-se de que conhecia , e
amava : e alîìm fica a tal aima
com o merecimento davirtude,
porque este consiste nos aétos
<lireitos ; e sem ogozo, e pra-
zer da meíma virtude ^porque
este- consiste nos actos reflexos.
Eisto hegrande bem da alma,
porque entaõ naõ se vira para si ,
para comprazer-se de si mesma ;
fenaõ para Deos , a quem só de-
-ve agradar : Revertere , rever-
tere , ut intueamur te^
'P. Por onde conhecerei ,
tjue as securas saõ prova t que
Deos me fez , e naô effeito d«
peccados ?--''; f- ,' -.
R, Qyando saõ: prova'-- d«
Deos , costuma bavera os» fe-
-guintes sinaes. I. Ainda' que s
aima tenha hum temor habituai,
ii CI de
da OfiAqAÔ Mental. 7$»
de que aquella secura seja pena
de feus peccados , nao Jhe re-
morde a consciencia , nem Ihe
vem á memória defeito algum
em particular. II. Da secura ti
ra humildade , e nao desmaio >
nem impaciencia. III. Fora da
Oraçaõ sente em si bom animq-,
e promptidaõ para acudir ao
exercicio d as virtudes , e obras
de sua obrigaçaõ. Tudo passa
ao contrario, quando a secura
he effeito.de peccados.
§.;XL
§. XII. i
F O R MU LAS,
o u
EXEMPLOS
DOS AFFECTOS.
Aãos
da ORAqAÒ Mental, p j
ï
Aãos de Esperança. '- ...
I. porque vós
O ibis que.tn sois , hum
Deos deinfinita bondade, pen-
reiça6 , e formosura , he m'mha
nomade firme * e determinada
mtepôr vossa honra , egloria ,
E ii e
q6 Tratado breve
e beneplacito a todo o bem
creado. Amo-vos , Senhor , mais
que a minha vida , mais qut
a minha honra , mais que a mi
nha alma , mais que a minha
salvaçaó , mais que todas as cou'
sas creadas , e poíîiveis : e me
alegro mui de véras , mui den
tro dò coraçao , de que vós se
jais taô santo , taó poderoso
taô glorioso , taõ bemaventu-
rado.
- II. Meu Deos , meu amor,
minha gloria , minha felicida
de , e todo meu bem : quem vo
amára quanto vós mereceis se
amado! Oh, se de mim, e dj
todas as creaturas forcis tac
amado , quanto em vós mesmo,
« para todas as creaturas sol
amavel !
111. Oh, se como oincen
io se derrete nas brazas , a sub-
. stan-
r>A OraçaS Mental. 97-
tancia toda de minha alma se
ierretêra em puriflimos ast'e-
Slos de vosso amor , para incen
sar o pé de vosso throno ! Quem
tie dera , que todas as arèas do
nar , todos os atomos do ar , to-
3as as estrellas do Ceo , todas
js folhas, estores do campo fo-
rao mundos cheios de cora-
çoens , e coraçoens cheios de
amor ; amor vosso mais sino , e
abrazado , que o de todos os Se
rafins !
IV. Viva oEmperador po-
tentissimo de todo o Universo ;
viva, e reine no meu coraçaõ ,
e nos de toda a creatura capaz
de conhecello, eamaiio: viva
por seculos de seculos , e além
da eternidade: abaixo coroas,
abaixo potestades , e principa
dos; adorai-o todos, porque só
elle he Santo, só elle Senhor,
E iii só
98 TRATADO BREVE
só elle he o Altissimo , e digno
de infinita gloria , magnificen-
cia , e acatamento.
V. Amabiliíïìmo Jesus,
Filho de Deos , e verdadeiro
Deos , Filho de Maria San-
tiífima , e verdadeiro homem :
prezo me tendes com vossa ines-
timavel formosura : e eu folgo
com estas doces prizoens , e as
estimo mais , que se lográra to-
dos os Senhorios do mundo :
folgo de fer vosto escravo , com-
prado com vosso Sangue , mar-
cado com a vossa Cruz. Vós
para mim sois cariífimo , e mui-
tamuito agradavel , porque to-
do sois bellissimo , emuito mui-
to para descjar. Entre tantas
aimas , que de véras vos amaõ ,
dignai-vos de contar a minha :
tende mais esta em vosso l'ervi-
ço, e servi- vos delia para vos
da Oraçao Mental. 917
louvar, eamar, e para tudo a
que delia quizerdes.
Amor a Maria
Santijfima* .
- .
I. /^V Uem haverá , que
\Jr ame a Deos , e nao
ame a Mai de Deos,
aEfpofa deDeos, aFilha pri-
mogenita de Deos ? Senhora ,
para vós naó serdes muito a-
mada de todas as creatúras ,
nao havieis de fer hum mar
de graças , hum thesouro im-
menso de virtudes , hum Ceo
animado, onde as períeiçoens
saõ mais , que no fïrmamento as
estrellas ; nao havieis de fer
sempre piedosa com os pecca-
dores , sempre liberal com os
neeeflîtados ; naá havieis de
fer Maria. Mas pois tudo ista
.I.« E iv fois,
loo .Tratado breve
Ibis , e eu me consolo , de que o
sejais , e tudo em vós está bem
empregado , e essa coroa de
Emperatriz de todas as creatu-
ras parece , que vos vem nasci
da : eu , ainda que indigno, terei
atrevimento deamar-vos, a. vós
subirá o meu affecto , em meu
coraçao vos farei hum lugar o
melhor , que eu puder ; eu vi-
yirei perpetuamente lembrado
de que vós sois Senhora da mi-
Jiha alma , e causa de minha ale
gria.
II. Que pura , que inno
cente , que humilde , que fiel ,
que prudente , e magnanima , e
piedosa , e constante , e compas
siva ! Quanto lirio , quanta açu
cena ! como recendem ! Aqui
pasta o Cordeiro de Deos : vin
de , affectos de minha alma , e
seguio-o para onde quer que for*
da ORAqAÔ" Mental, ioi
III. Basta , Creatura mila-
grosa , que tivestes poder para
attrahir o Verbo Divino do seio
do Eterno Pai ! Basta, quelòu-t
bestes encantar a ira justadoTíH
do poderoso com hum Faça-se.
da vossa bòca ! Attrahi-me , Se-.
nhora , para que vos ame ; en-
cantai-me o coraçaõ, para que;
de tudo o mais se eíqueça , e íó
de vós se lembre.
IV. Ó Maria gloriofissi-
ma , ó Maria Senhora de ex
cellente formosura : digne-se
vossa Magestade de pôr feus cle-
mentiflìmos oìhos neste humil-
de servosinho feu , coroo fazen-
da que heeomprada com osant
gûe de feu Filho ; e alcance-
lhe deste Senhor agraçadesua
devoçaõ ,' ç arror : porque stlria
couíàjndignifllma ; naõ amar o
íérvo a iua Senhora , o vafíalld
f E Y a iua
102 Tratado breve
a sua Rainha , o peccador a sua
Advogada , e a creatura a Mãi
de seu Creador.
V. Oh graõ milagre da
Omnipotencia de Deos ! oh
obra digna da sua maõ ! oh
creatura , que mais agradaste a
Deos , que todas as creaturas !
todo o genero humano te ame,
c louve , e honre , e sirva , e ado
re , e magnifiquei pois todo o
genero humano te he devedor
naõ menos , que de hum Deos
humanado. Bemdito seja quem
te encheo de graça : bemdito
quem tecreou para tanta gloria
sua : bemdito quem se determi
nou a ser fruto do teu ventre.
Amor da próximo.
I. À Mo a todos meus
ii proximos , e a cada
hum délies como a mim mes
mo:
da OraçaS Mental. 103
mo : todo o bem , que para mim
quero, para elles quero: toma
ra ser sufficiente para remediai?
todas suas miserias , e trabalhos
de alma , e corpo : abomino , e
retracto tudo aquillo , em que
por obra , palavra , ou pensa
mento offendi a qualquer de
meus irmaós. Dai-me vós, Se.»
nhor , luz para o conhecer /e
graça para o emendar, e satis
fazer.
II. Senhor, que nos amas
tes fendo nós vossos inimigos,
e nos mandastes amar a todos
por amor de vós : dai a todos
meus proximos vossa graça , e
Contriçao.
Je*
no Tratado breve
AccusaçaS de fi mesmo.
Confusao propria»
Des-
da OracaÔ Mental. 113
Desconfiança de fi.
Confiança em Deos. -
I. A Lma minha , de
jLx. que te turbas ? por
que te desanimas ? De ti naó
podes nada ; mas com a graça
de Deos , que te conforta , tu
do podes.
II. Alma minha , tens gran
de Deos , e para cujo poder tu
do he facil , e que elcolhe as cou
sas fracas para com ellas con
fundir as fortes : em nome de
Deos , huma funda te basta con
tra hum gigante : mete-te nas
maós de Deos , e ficarás conver
tido de cana fragil em aço fir
me. Quem confiou neste Se
nhor , e sahio confundido ? Se
que
Il6 TRATADO BREVE
queres que Deos te ajude mui-
to , confia nelle muito.
III. Quem fez de perscgui-
dores Apoítolos ? A graça de
Decs. Quem fez de publicanos
Evangeliítas ? A graça de Deos.
Quem fez até meninos defpre-
zarem os Reis , e Tyrannos
com todos feus tormentos ? A
graça de Deos. Quem faz em
tantos Santos , que o coraçact
humano feja amigo da Cruz , da
affronta , e do defprezo ? A gra
ça de Deos. Oh graça de Deos ,
como és poderoía ! Tu ferás a
penha viva , sobre a quai edisi-
carei minhas pretençoens , eat-
lentarei minhas efperanças.
Temor de Deos.
I. A Ntes quero fugir
il para o ínferno , do
que Yer o rosto de Deos irado.
As
da ORAqAÔ Mental. 117
As palavras , que sahem da sua
boca, saó espada cortadora de
dous fios , que penetra atéoes-
pirito ; e hum rio de fogo abra-
zador , que tudo Ihe desappa-
rece diante. Em presença da
Magestade deste graó Senhor as
columnas do Ceo se estreme-
cem. Quem vos nao temerá ,
oh Rei soberano , e omnipo
tente ? Quem escapará da vos-
sa ira, ou quem se poderá de
fendes de vossa justa indigna-
caó ?
II. Horrenda cotisa he ca-
hir nas maós de Deos vivo.
Naõ entreis, Senhor, emjuizo
com vosso íérvo : que de mil
perguntas , e cargos , que me fì-
zerdes , nao sabcrei responder
a huma ; nem diante de vos se
justificará nenhum vivente. Vos-
sosjuizos saÒ hum abysmo gran-
F de
li 8 Tratado breve
de» e basta serem voffòs , para
ferem justificados. ; -
III. Naõ temas , alma mi
nha , os potentados da terra,
que o mais que podem fazer,
com permiísao de Deos, he tirar-
te a vida : teme aquelle Senhor ,
que póde lançar tua alma , e
corpo no fogo eterno. Oh Se
nhor, por amor de vós mesmo
vos rogo me nao lanceis devoi
la presença , nem tireis de mim
o vosso Espirito Santo. Atraves
sai com vosso santo temor meu
coraçaõ , para que me nao as
saste hum ponto de vossa Lei.
Desprezo de si.
\
i5A ÛRAq.\Ô Mental. 121
mais , que o nome , a minha pe
nitencia he de amigos ; nas ac-
çoens naó ha modéstia , nemnas
palavras discriçao , nem sobre
o coraçao vigia, nem nos senti
dos freio. Como me lembraó
os aggravos ; e como , em me to
cando algum desprezo , os mon
tes de minha soberba fumegãó i
Onde está aqui o fundamento
para presumir ? Naó he isto ser
til , e desprezivel ? Para mim
este ponto deve ser taó certo , e
indubitavel , como se fora de
Fé.
V. De verdade o meu lu
gar he aos pés de todas as mais
creaturas. Muita mercê me faz
quem me injuria;, quem : me
despreza: he obra de justiçai, e
de misericordia ; de justiça ,
porque despreza o desprezivel ;
de misericordia , porque me
F iii aju-
122 Tratado breve
ajuda; a conhecer-me por esse
modo. No ponto, em que eu ima
ginar outra cousa , vou perdido.
Desprezo do mundo.
Imitaçao de ChriHo.
I. s\ Mniporente Eter-
V^/ no Deos , eu vos o£-
fereço , conlãgro , e dedico to-
F vi das
123 Tratado breve
das as obras , e trabalhos , que
yosso dilectissimo Filho , e meu
Senhor Jesus Omito , obrou , e
padeceo por vossa gloria , e nos-
sa salvaçao : aplaque-se vossa
justiça com o sacrifício desta
tiostia purissuna , santissima , e
preciosissima.
II. Senhor , vossa Mages-
tade foi servido de dar-me a seu
Unigenito Filho para me ensi
nar , remir, e salvar : agora eu
o torno a dar a vossa Magestade ,
para que por elle , nelle , e com
elle receba toda a honra , e to
da a gloria.
III. Eterno Deos , Princw
pio sem principio , e Pai de
meu Senhor Jesus Christo : por
que sei , que as obras de voflo
Filho vos làõ infinitamente mais
aceitas , e agradaveis , que as
de todos os Santos juntos, eu vos
da OraçaÔ Mental. 129
offereço todos os merecimentos
desteSenhor, desde o instante,
em que incarnou , até o instan
te , em que espirou na Cruz:
lembrai-vos da sua pobreza ,
mansidaó , paciencia , <j carida-
de : lembrai-vos de feus traba-
lhos em todo odiscuríò de sua
paixao; daquellas angustias no
Horto, daquelle iilenciodiante
dos Pontifices j daquella dor, e
pejo quando foi amarrado á
columna ; daquella afronta , e
cançasso quando levou a Cruz
pelas ruas de Jerusalem entre
dous ladroens ; daquelle desam-
paro quando se queixou na Cruz :
tudo vos offereço como sacrifi-
cio , que encheo plenissimamen-
te todas as medidas de voflb
agrado. Agora , Senhor, pon
de os olhos no Filho innocente ,
e perdoai ao servo peccador.
Je-
I30 TRATADO BREVE
Acçaô de graças.
I. Ue corresponden-
f cia terei com meu
f Deos , por tantos ,
e taõ grandes bencficios , que
me tem feito? Nenhuma outra
póde dar-lhe a pcbre creatura ,
lènaõ o reconhecimento desses
meímos beneficios comcoraçaõ
rendido , e affectuoso. Insinuas
Aniquilaçao própria.
Adoração.
- Admiraçao da grandeza
.;. de Deos.
OHquaõgrande he este Se
nhor em tudo ! Se pre
mia , dá- se a si mesmo : se casti
ga > dá hum inferno para sem
pre : se ama , offerece seu peito
a huma lança, e dá a beber seu
Sangue, e a comer seu Corpo.
Toda a vida de hum homem ,
que he seu inimigo , lhe está es
perando que se converta ; e
por hum Peza-me se esquece
de todas suas injurias. Abrio a
maõ , e semeou o Ceo de estrel-
las : acenou ao mar, eretirou-
ie encolhendo as suas ondas : as-
- . -i so-
da Ora qAÒ Mental. 141
soprou na face do homem , e fi
cou á sua imagem. Com huma
palavra sua foi Universo o que
era nada , e o poder todo do
Universo naõ pôde fazer humá
só aresta : com o madeiro de
huma Cruz escalou o Inferno,
matou a morte , e resgatou o ge
nero humano. Tanta grande
za ! tanta magestadê ! tanto mys-
terio ! cousas tao inopinadas ! e
sempre- mais , e mais ! Naõ ha
dar fundo aos seus abysmos. Os
entendimentos maiores , se por
mercê sua conhecem alguma
partesinha de suas grandezas,
areaõ ; e se querem levantar o
voo, cahem opprimidos, e ce
gos do escuro resplandor de sua
gloria. Milhoens de Espiritos
Angelicos estaõ suspensos em
sua vista , e lhes fica infinito
por comprehender. Alma , para
G gian-
142 Tratàdo brevê
grandes cousas foste creadal
í^uem he como Deos ? Enco-
liie-te quanto podéres em íeu .
acatamento : venera-o com pro-?
fundo íllencio , e fogeiçao ren-
didiflima.
Longanimidade. . '
§. XV.
§. XVI.
P. À Cabada a Oraca6
xi com todas as suas
partes , resta alguma diligencia
mais que fazer?
M. Será utilíssimo fazer
ainda tres cousas. I. Recordar
o fruto , que tirámos da Medi
taçao , renovando o proposito
de o pôr por obra. II. Tomai
alguma jaculatoria , para usai
delia no discurso do dia. III.
Pedir a bençaõ ao Senhor , e
a Maria Santiísima , e seu fa-
... - vor
da Oração Mental. 17 1
vor para aquelle dia , c todos os
que nos restaó de vida. E feito
isto 5 nos levantaremos da Ora-
çaó ; naó deixando porém apa-
I. ,.. . ..... . . . . /
H x §.
174 TRATADO BREVE
§. XVII.
§. XVIII.
' §. XIX.
P. A Cerca da intençao
X~V recta de agradar
fó a Deos , pergunto como a de
fenderei das tentaçoens de van
gloria ?
R. Trabalhoso he de ven
cer este mal , porque se gera das
mesmas boas obras , e do refis-
tir, e vencer á mesma vanglo
ria. Por onde hum Padre a com
para a huma casta de estrepe , a
que os Latinos chamaõ Tribu
tos , ou Murex , o qual era com-.
da Or aça Ô Mental. 189
posto de quatro pontas de ferro
em tal fórma , que cahindo no
chaõ , sempre tres deiJas ficavaõ
servindo de pés , e sustentando
a outra direita para cima * e ar
mada para ferir a quem paíTas-
se. Astun a vangloria para onde
quer , que a desvieis , sempre
torna a pôr-se em pé , e de qual
quer Jado vos fere. E por tanto
S. Joao Chrysostomo disse, que
o uilico remedio he pedir a
Deos , que no-la tire : porque a
humildade , que este Senhor dá ,
he de tal modo , que naõ vem
vangloria de ser humilde. - .>
Com tudo aproveitarao as
seguintes diligencias para fazer
mais efficaz a petiçao. Primei
ra : assentar como ponto de fé ,
ein que se presumo de mim , que
sou alguma cousa , ffa verdade
sou nada : Siquis existimat ( íaõ
1 pa-
190 Tratado breve
palavras de S. Paulo Ad Galat.
6. 3.) se aliquid esse , cum nihil
Jit , ipse se seducit. E em outra
parte diz o mesmo Apostolo:
Em nenhuma cousa sou inferior
aos mais Apostolos, e com tu
do (ou nada: Nihil minus fui
ab iis, qui sunt supra modum
ApoHoli , tametfi nihilsum. E
se hum S. Paulo sem mentir he
nada : eu , para fallar verdade ,
que serei ?
Segunda : no principio de to
das minhas obras procurarei
habituar-me a levantar o cora
ção a Deos nosso Senhor , refe-
rindo-as para sua maior gloria:
e depois quando sentir , que o
amor proprio se mete como la
drao a sizar alguma cousa para
si , resistir-lfre a toda a pressa , e
dar-lhe hum empurrao, que o
arremefle bem longe : e se tor
nar,
bA Ora q ao Mental. 191
nar , fazer-lhe o mesmo ; enten
dendo , que a vida do homem
sobre a terra he milícia, e que
Deos dará entretanto o auxilio ,
e depois a virtude , quando nos
vir bem desejoíòs delia , e bem
entrados do conhecimento de
nossa miseria.. . .
Terceira: considerar como a
gloria , que me daó os homens ,
he falsa , e caduca : porque ou
íe enganaô , ou me enganao , e
o mesmo de que hoje le pagao ,
á manha lhes desagrada , ou tal
lhes nao lembra , quando eu cui
do , que nisso eflaô cuidando : e
eu se busquei o applauíò huma
no , lancei a minha obra no mar ,
e desobriguei a Deos de me pa
gar os custos , que naõ fiz por
conta de seu amor.
P. Tem algum perigo acon
selhar eu a outros, que fedem
I ii á
192 Tratado breve
á Oraçao, enfínallos, e intro-
duzillos neste caminho do Ceo ?
R. Nos principiantes , fim :
porque ainda naõ tem espirito
dobrado para poderem repartir :
e primeiro he na planta o lançar
raizes , do que o admittir en
xertos , ou offerecer. garfos. Des
te perigo nos acautella o Espi
rito Santo , dizendo : Stultus
proferi totum spiritum suum:
sapiens differt , ac reservai in
pqfterum. (Prov. 29. 11.) O
necio logo põem á mostra todo
o seu espirito : o prudente vai-
se devagar , e guarda-o para o
tempo adiante. E S. Bernardo
diz : Se eu naS tenho mais , que
huma pinga de azeite , com que
me ungir , ou allumiar , Jerã
bom , que a dê aos outros , e me
fique ás escuras ? Nao por cer
to: mas antes lhes responderei
quan-
da OraçaÔ Mental. 193
quando mo pedirem : Ide a quem
o vende , forque nao succeda ,
que nao bafle para todos. Esta
mesma doutrina he de Santa
Teresa. . .
P. E no fallar de Deos,
tratando cousas pias , e espiri-
tuaes , he tambem neceflaria
circumspecçaõ , e cautella ?
R. Quem negará , que tem
grandes frutos ? Aster vora os
cjue convérlaõ , e os une , e faz
amigos em Deos : evitaó-lè
murmuraçoens , e outros vicios
da lingua , que saõ innumera-
veis : conserva-se amemoria de
nosso Deos, que taó eíquecido
anda entre os Fieis , &c. Cora
tudoporque muitas vezcs, ain-
da que a niateria , em que se
falla , fejaboa, o silencio póde
fer melbor , conforme aquillo
do Psalmista , interpretado por
I iii San-
194 TraTADO BREVE
Sanro Isidoro : Stlui à bonis ;
ou Tacui âebono-, como verte
S. Jeronymo : será conveniente
observar os seguintes avisos.
Primeiro : que naõ nos ostente-
mos experimentados nas cousas
<ìo espirito. Segundo: que tra-
iemos as cousas divinas com de-
córo , e humildade , naõ lhes
uiisturando outras ridiculas, se-
«aõ : fpiritualìbus Jpirìtualia
comparantes. Terceirorque naõ
demos regras dia n te de pessoas
mais velhas , doutas , e Reli-
giosas. Quarto : que naÓ nos ef-
gotemos de modo, que íìque o
espirito seco , e delàbrido , e
se eyapore toda a devoçaõ : por-
<jue ( como enfinava aos feus
noviços o Beato David de Au-
gusta , Religioso Menor) o es
pirito amigo de filencio adqui-
re mais profundeza, esubli mi-
da-
da OraçaS Mental. 195*
dade , aflìm como a mâi de
agua , que naó tem sahida.
§. XX.
F I M.
AD-
209
ADVERTÊNCIA.
SEntença he do Espirito
Sanio , que em todas nossas
obras nos lembremos de
nossos Novissimos , e nunca pec-
ca remos. E fendo o peccado o
maior mal , que pode haver em
todo o mundo ; pois tira a Deos
a honra , e a nós a sua graça , e
salvaçao eterna : razaó he , que
K to-
214 Meditaçoens sobre
tomemos todos este conselho , e
appliquemos este remedio , pois
he dado por boca do mesmo
Deos. A este fim se apontaõ aqui
para pessoas rudes , e que naõ
tem cópia de livros , algumas
confideraçoens sobre os qua
tro Novissimos do homem , que
saõ Morte , Juizo , Inferno , e
Paraiso.
MEDITAÇAÕ I.
Da Morte.
I. PONTO.
.'. . III.
os quatro Novíssimos. 225"
III. PONTO.
MEDITAÇÃO II.
Do Juízo particular.
I. PONTO.
II. P O N T O.
. . v- L iii
242 Meditaçoens sobre
III. PONTO.
COnsidera ultimamente a
sentença , que o supremo
Juiz pronuncia. E visto que o
número dos que sahem reprova
dos he muito maior que o dos
eícolhidos, accommoda- te , al
ma minha , a considerar , ou sup-
pôr (o qtie Deos naõ permitta)
que tu es do numero dos mais ;
para que temendo por esta via
a Deqs , ordene elle que sejas
do numero dos menos. Suppo-
nhamos. pois , que aquelle Se
nhor de infinita Magestade , de
Éiljo 'aceno tremem os Ceos , a
terra , e o Inferno» depois de
examinada a tua causa , olha
para ti com olhos indignados,
e te diz: Aparta-te de mim,mal-
âito ; vai-te de minha presença ,
.. . in-
OS QUATR0 NOVISSIMCS. 243
ingrato ; vai-te para 0 fogo
eterno, em conipanhia dos demo-
nios , a quem fervifle. Que fa»
rás , ó pobre alma ? Quefarás , ó
triste creatura nesse ponto ? Pe*
diras niais tempo de vicia para te
emendares ? Já te soi concedi-
do muitas vezes •, que , se aflìtn
na6 fora , muito tempo ha já ,
que estarias ardendo no Infer-
110 : e se mais vivêras , mais peo
cáras. Appellarás para a Mise-
ricordia Divina , e merecimen-
tos do sangue do mesmo Chrb-
sto ? Essa misericordia he a que
tu nao quizeste , offerecendo-ta
oSenhor tantas vezes: esse íài>
gue he o que delprezastey e por
ìsso clama contrat! justiça. Iní-
vocarás a Virgem Maria /qu*
he toda piedade , e clemencia ?
Já por ti interccdeo mut'tíis' ve^
zes ? e por islb Dcos te ícíïria
u L iv e
244 MEDITAqOENS SOBRE
e esperava ; e nao póde fer , que
esta Senhora queira o que lie
contra a gloria de Deos , e von-r
tade determinada de feu Filho.
Quanto mais , que huma vez
que tu acabaste fòra da amiza
de de Deos , já nao poderá a tua
vontade mover-se a nenhum
desses actos pios ; como faó,
pedir misericordia , e invocar
o amparo da Senhora. Pois que
remedio ? Fugirás do Tribunal
da justiça Divina , efcondendo-
te ? E quem póde fugir do Se
nhor, que he immenso ; oues-
conder-fe da luz , que tudo en
che. ,íe penetra ; ou resistir ao
Omnipotente ? Tirar-te-has o
-fer a ti mesmo aniquilando-te ,
com que tornes ao nada , que
eras antes que Deos te desse o
ser ? Bem o desejarás ; mas as
sim como só Deos nos póde dar
. .' o
OS QUATRO NoVISSIMOS. 24?
oser, aflîm tambem sóelleno-
lo póde tirar.
Pois que has de fazer , misera-
vel alma desgraçada creatura ?
Tu escás cercada- : - de çima o
Juiz severo ; debaixo o Inferno
aberto ; por dentro a conícien-
cia damnada ; de fora os demo-
nios rodeando-tejá com as gar-
ras abertâs para fazer preza.
Oh que angustia ! Oh que ago-
nias ! Oh que deígraça das def-
graças ! He possivel que ta Ô ca-
ro custa o deleite do peccado ?
Nisto vem a parar as vaidades,
e sonhos , e ridicularias s e bran-
duras , e mentiras do mundo , e
da carne, e do demonìo ? Oh
traidora carne ! ; Oh mundo em-
busteiro! Oh serpente infernal ,
como me enganàste ! Enganeir
te , ( responderá o demonio mut
ufano ; e eícarnecendo de .ti)
L y. en^
246 Meditaçoens sobre
enganeite ? Iflo he que me con
sola , porque aborreço a Deos ,
cuja imagem está em ti ; e que
ro fazer injuria ao teu Christo,
que te estimou tanto, que deo
por ti a vida : e eu tive poder pa
ra fazer , que ainda assim o naõ
amastes , nem servisses a elle ; se-
naó a mim , que naó procurava
senao a tua perdiçao , como tu
bem sabias. Pois já que seguis
te sempre o que te aconselhei,
eu te recebo por minha ; anda ,
e arderemos juntos por toda a
eternidade. Neste ponto já o
Tribunal do Senhor desapare
ce, e o teu Anjo te desampara,
e os demonios te arrebataõ co
mo lobos famintos, e sepultaó
nas profundezas , donde nunca
mais has de sahir eternamente.
Tudo isto , alma minha , que
agora passa por ti na imagina-
çaó,
os quatro Novíssimos 247
çaõ ,~ bem pode algum- dia paf»
far na realidade. E visto que
entaõ he desgraça , que naõ tem
remedio , póde-o ter agora.
Que remedio ? Ccnverter-me.
Eu quero resolutamente daqui
por diante temer , e amar a
Deos; pois he meu Senhor, ô
Creador , e Redemptor , e todo
meu bem ; e seus juizos saõ mui
to altos , e justificados por si
mesmos. Torno a dizer , que eti
quero amar a Deos de todo o
9 ' *
ultimo fim , o meu summo bem»
e lhe devo tudo quanto iòu, e
valho , e me amou a mim pri
meiro com amor taõ fino, que
por mim se poz em huma Cruz ,
ná', ástrontado , e coroado de
eípinhos , e crucificado. Eu
quero cortar por iodos os estor
vos , que me impedem a minha
L vi emen-
248 Meditaçoens sobre
emenda , e reforma ; retirar-me
de más companhias , de occa-
fìoens perigosas , de tratos , e
contratos illicites, de deleites,
e vaidades mundanas. Eu que
ro fazer huma confissaó geral
bem feita ; para que , accusan-
do-me primeiro de meus pecca-
dos , o Senhor me perdoe , e
naô tenha meu inimigo de que
me accuse. Eu me resolvo a fa
zer penitencia , para dar alguma
satisfaçao á JDivina justiça do
muito, que lhe devo : e porque
todas minhas obras valem pou
co, as unirei com o langue de
Jesus Çhristo., cujo valor. he in
finito.. Eu quero aproveitar o
tempo , e até as minimes horas
de minha vida , pois me nao he
dada a vida' temporal .senaõ pa«
ra negociar a eterna. Senhor ,
que semeais em minha alma es-
-a-xs.j ï-.- tes
OS QUATRO NoVISSIMOS. 249
tes bons propositos íopormife-
ricordia vossa , e porque a vofla
natureza lie bondade , edesejais
salvar a todos : regai com a chu-
va de vofla graça , e creai com
o Sol de vofla caridade estes
mesmos propofitos , que semeas-
tes y para que se logrem , e che-
guem a dar o precioso frutp de
tninha salvaçaó , e vofla gloria.
Amen.
MEDITAÇAÓ m.\
. Do Inferno.
I. PONT O.
COnsidera em segundo lu
gar a pena , que se chama
do Sentido, em particular a que
nas
2^6 MEDITAqOENS SOBRE
nasce do tormento do fogo. Fin
ge na tua imaginaçao ( oh naó
permitta Deos , que assim ve
nha a ser na realidade) que os
demonios , a quem o braço da
justiça Divina relaxou tua des
graçada alma , a arrebataó de
improviso como aves de rapina ,
ou leoens esfaimados , e a lan-
çaó naquelle poço , ou lago de
incendios voracíssimos ; onde
com o pezo de teus peccados,
( oh peccados , que doces ereis ,
ou parecíeis ser antigamente ao
commetter-vos , e agora como
amargareis eternamente ! ) on
de , digo , com o pezo de teus
peccados se some de sorte , que
ficaó acima delia duzentas bra
ças de fogo , e debaixo , e aos
lados outras tantas. Vê como
todo te convertes em fogo t fo
go os olhos , fogo a lingua , fo
go
os quatro Novíssimos. 25j
gd ia garganta , fogo as costas ,
e o peito ; fogo o coraçao , fogo
as entranhas todas , fogo as
maos , e os pés ; e fogo nao co
mo este , que na terra vemos ,
senaõ escuro , groíso , fétido , e
abrazador mais que se fora de
metal derretido ; fogo , que com
as suas linguas ata , e prende os
membros , como huma serpente
com as suas roscas ; fogo , que
soa como levada . de muitas
aguas, ou tempestade de furio
sos ventos ; fogo feito de propo
sito pela maõ do Omnipotente,
para tormento daquelles sober-
bifllmos gigantes os demonios ,
que tiveraõ atrevimento dp fa
zer guerra , e competir com o
Altissimo. ....
Cuidas por ventura, ó alma
miflha , que este dizer vai algU'
ma cousa encarecido ? Muito
•-. mais
258 Meditaçoens sobre
mais que te differa , e tudo
quanto nesta materia tem dito
os Santos , e algumas almas , a
<juem foraó revelados os tor-
mentos do Inferno , hepintura,
he sonho , he nada em compara-
çaó da verdade. Oh Deos eterv
no ! Se eu agora mal posso íbf-
frer que me caia na mao o mur*
raó accezo de huma véla , ou
que me salte nosolhos o espirro
de huma candea : como soffre-
rei (ai de mim ! ) a furia , e acti-
vidade daquelle eterno incen-
dio ? Vem cá , nescio : tu , que
tao soltamente peccas , e com
tanto desempenho, e alegria vais
caminho direito para 0 Inferno ;
dize-me : tens acaso prevenido
alguma resistencia contra aquel-
le fogo , para que te naô' chegue,
nem offenda ? Levas comtigo,
se alli cahires , tflgum efficaz re-
- - me-
OS QUATRO NOVISSIMOS. 2^0
medio , que o apague , ou sabes
aJgumas' palavras com que o en-
cantes ? Ou Deos empenhou-te
sua palavra , de que naó es ru
dos que haó de cahir naquelle
lago ? Ou se cahires , mandará
este Senhor feus Anjos , que te
chovaó orvalho do Geo , e façaõ
viraçaó branda , para que a vio-
lencia daquellas chammas te
naó moleste , como fez com os
meninos da fornalha de Babylo-
nia ?
Pois feninguem alli te póde
valer , porque te naó vales ago
ra a ti meímo ? Ou porque i Bi
pedes a Deos , que te valha ,
quando se oíFerece para valer-
te ? Como es taó infensato , que
recusas o fazer penitencia , fen-
do a penitencia remedio taó le
ve , que te podia livrar de hum
mal taó graye ? Penitencia > pé
2Ó0 Meditaçoens sobre
nitencia , agora que he provei
tosa ; agora que os jejuns , os
cilícios , as disciplinas , as ca-
deas te podem suster empezo,
para que naó caias naquelle
abysmo. Dóem ? Que importa ?
Que mais ha de doer aquelle fo
go/' Gustaõ ? Mais ha de custar
asli hum momento daquelle in
cendio, do. que se toda a. vida
estivestes nos cordeis de hum
potro. Es fraco ? Pois como só
para offender a teu Deos foste
valente ? Anima-te , e confia na
graça de Jesus Christo , que a
outros mais fracos deo este Se
nhor forças para. o servirem. Pa^-
ga , pois deves ; paga agora com
pouco , que val muito , o que de
pois nem muito , nem pouco po
derás pagar com eternas penas.
Paga por ti , pois es culpado ; já
que Deos pagou por ti, fendo
ôs quAtro Novissimos. 261
innocente. E para que esse pou-
co , que fìzeres , seja muito,
ajunta-o comaspenas de Chris-
to , e offerece-as ao Eterno Pa-
dre , pedindo-lhe instantemente
perdaõ de teus peccados. Per-
doai-fne , Eterno Padre , por
amor de vosso Fil ho Jesus
Christo. Perdoai minhas loucu-
ras , e exceflbs ; minhas ingrati-
doens , e atrevimentos. Valha-
me o Sangue de vosso precioíìíïï-
mo Filho Jesus Christo ; valha-
me a sua Cruz , os feus tormen-
tos , affrontas , afflicçoens , e
desamparos. E dai-me graça »
para que nunca mais yos offeri-
da , nem provoque contra mim
vossa ira , que taõjustamente te-
nho merecida.
M . III.
2Ó2 MeDITAÇOENS SOBRE
III. P O N T O.
COníìdera ultimamente na
duraçaó infinita , e perma-
nencia invariavel daqudìes tor-
mentos. Finge com apprehen-
saó viva , que desde as profun-
dezas efcurissimas daquella sub-
terranea masmorra , estas ouvin-
do bradar a hum daquelles dis-
graçados : Oh Eternidade! Eter
nidade ! Eternidade ! Qyando
se acabaráo minhas penas ? Nun-
ca. Quando teraó ao menos al
guilla dimiiuiiçaó , ou alivio ?
Nunca. Quando íahirei deste
abismo ? Nunca. Quem me li-
vnará deste miserabiliflìmo esta-
do ? Ninguem. Quem poderá
coiisolar-me ? ûlinguem. Quem
ao menos se compadecerá de
raim ? Ninguem. Affim hei de
. es
os quatro Novíssimos. 263 :
star em quanto Deos for Deos ? .
V íD m. Naõ ha rasto de esperan-
sl , nem daqui a mil milhoens'
le milhoens de seculos? Nem'
>or todos os seculos da eterni-
ìade. Pois que farei ? Penar,
trder , e agonizar sempre , sem--'
>ire , sempre. Aqueíle , que me-
i eo o ser creando-me , naõ mo
rirará aniquilando-me ; ou naa-
consentirá , que eu pereça ? Está
irado para sempre ,. Fechou-se a ^
porta, cortou- se o fio dá sua mi
sericordia. Oh trévas perpetuas,
bem. merecidas de minha ce
gueira ! Oh carcere eterno , jus
ta pena de minhas liberdades !
Oh fogo infinito , devido tor
mento á minha sensualidade!
Oh Eternidade ! Eternidade!
Isto , que ouves , alma minha ,
a hum daquelles condemnados ,
he o mesmo, que dizem todos. -
... M ii At-
264 MEDITAÇOEtíS SOBRE
Attende bem aos espaços pro-
fundiífimos daquellas cavernas
temerosas : alli esta innutneravel
multidaõ de todos os estados ,
sexos , e idàdes : muitos Reis ,
e. Senhores soberanos antiga-
mente servidos , e quasi adora-
dos dos póvos ; muitos Letra-
dos , Sacerdotes , Religioíbs ,
e Bispos , que em outro tempo
consagráraõ o corpo de Christo ,
e absolvêraõ de peccados , e go-
vernáraõ almas , e enfináraò a
outros a salvar-se : muitos mo-
ços , e anciaõs , enganados huns
da luxuria , outros da avareza :
muitas mulheres disgraçadas,
que vendiaõ a alma , e corpo ao
demon iù , por ter paõ, ou por
. hum momento de deleite bru-\
tal , e--torpiísimo ; e naô íb se
condemnáraõ a si , senao que
cora suas maõs arrçmessáraõ no
-U: i- Isl In*
OS QUATR0 NoVISSIMOS. 2Ôf
Inferno as creaturas , que affo-
gáraõ, por affogar a íua triste
deshonra : muitos ufureiròs , ero
cuja falsiflìma balança pezou
mais hum sacco de dinheiro , do
que o Reino dos Ceos , e a hon-
ra de Deos : muitos inimistados
comodios antigos, que antes se
determináraõ a quebrar com
Jésus Christo , do que a soldar
com o proximo : muitas Reli-
giosas , que na casa de feus pais
îinhaõ medo de naõ fer muito
honestas , e na de Deos naõ o
tiveraõ de fer adulteras infa
mes. Olha bem como todos fei-
tos huns tiçoens negros, humas
sombras horriveis , hum espe-
ctaculo de miferia eterna , em
confusa desordem , e vozeria,
entre ondas de fogo , desde o
seio daquelle medonho abyimo
clamaõ .huns : Oh Eternidade,
-.. r M iii Eter-
266 MEDITAqOENS SOBRE
Eternidade ! E respondem ou
tros : ; Oh Eternidade, Eterni
dade ! '.' .: . . i : ,
E nós-outros os mortaes , que
andamos sobre a face da terra,
em que nos determinamos , ou
que fazemos, crendo estas ver
dades ? Verdadeiramente pare
ce , que nao as cremos. Oh fé,
como estás morta á violencia de
nossos graves, e contínuos pec-
cados ! Oh fé , como estás oppri-
mida , e sepultada debaixo das
cinzas de nosso esquecimento !
Lembra-se o homem do corpo ,
esquece-se da alma : cuida , e
lrata da presente vida , descui-
-da-se da eterna : trata de como
livrará a sua capa da chuva ; naõ
trata como livrará à sua alma ,
e o seu corpo do fogo eterno:
sonha em como adquirirá mais
dinheiro i nem por sonhos lhe
OS QUÀTRO NoVISSIMOS. 2.6/
paffa de como naõ perderá a
graça de Deos , e o Reino do
Ceo. Oh fé , quaõ dcbalde te
plantou o Fiiho de Deos tanto
á sua custa nos coraçoens da ma-
ior parte dos homens ! Tu por
Ventura 3 alma minha, queres fer
nescia com os nefcios ? Queres
fer cruel comtigo mesma ? Acor-
da , desperta , poem-te em sal-
vo. O mundo se arruina : des-
pega-te do mundo. Outro mo
do de viver daqui em diante;
outros procedimentos , outros
tratos , outras conversaçoens ,
outras companhias. Por ti só
nada farás: com Deos farás tu-
do : rccorre á sua graça : impor-
îuna-o ccm a oraçaõ : iníiste em
teus bons propofitos : naõ olhes
mais para traz : adiante sempre ,
Sjiie os que perseveraõ , esses se
álvaô. Faze-te vioiencia , que
M iv o
2Ó8 MEDITAqOENS SOBRE
o Reino do Ceo quer-se levado
por força. Força , que a carne ,
o mundo , e o demonio puxaó
para baixo : força , que o ven
ceres importa : força , que se ca-
hes no Inferno , naó ha surgir
acima eternamente : força , que
Deos te ajuda , e por te ajudar
rasgou as maós , e pés , e abrio
pelo peito. Ai , Deos meu !
Donde me hso de vir tantas for
ças , senaó de vós , que sois to
do poderoso ! Dai-me a maõ ,
e ajudai-me : efla maó , que por
mim pregastes na Cruz , susten-
tai-me com a sua virtude ; que eu
quero pegar delia, e cooperar
com o seu auxilio. Em vós , Se
nhor , ponho minha confiança ,
naó perecerei eternamente.
ME-
os quatro Novissimos. 269
. Da Gforia.
II. P O N T O.
111. PONTO.
COnsidera ultimamente o
premio , e a gloria essen
cial da alma bemaventurada ,
que consiste em ver a Deos cla
ramente. Que he ver a Deos,
alma minha ? He viver de Deos ,
viver com Deos , e viver para
Deos , em quanto o mesmo
Deos for Deos. Que he ver a
Deos ? He carecer de todos os
males , e gozar de todos os bens
juntos em hum só bem simplifli-
mo , immutavel , e eterno. Que
he ver a Deos ? He ser sabio,
e imruortal; santo, eimpecca-
cu:; Yel>
os quatro Nov íssimos. i$ç
'Vel ; ser filho do Altiíïimo , e
ser quasi o mesmo Deos , por
uniao de perfeito amor , e par
ticipaçao ineíFavel de sua Natu
reza. Que he ver a Deos ? He
ter a Deos por alma , que te vi
vifique ; por coraçao , que te a-
lente ; por thesouro , que te enri
queça ; por coroa , que te honre ;
por Sol , que te illumine ; por
templo , onde assistas ; por so
ledade , onde te retires ; por es
pelho, onde te revejas ; por Pai ,
a quem te assemelhes; por es
poso , com quem te unas ; por
Rei, e Senhor, aquem sirvas,
e adores : e finalmente he ser
Deos em ti , e para ti todas as
cousas boas ; e feres tu para
Deos toda , e totalmente , e pa
ra sempre.
He possível , que para tanto
bem te creou este Senhor ? Para
t* N taõ
î86 MEDITAqOENS SOBRE
taS alta felicidade te chaîna ?
Para tao abundante , edelicioía
meza te convida ? Se elle meftho
o naõ affirmára, se o naõ pro-
mettêra no Evangelho , e se nos
nao adquiríra elía gloria com
feu proprio Sangue, quam tal
crêra ? ou tivera atrevimento
de levantar as suas esperanças a
tao remontada altura? Oh que
cego desatino he logo , á vista de
hum tal premio , pôr a tua affei- i
çaõ nas cousas da terra , estimar
ninherias, desvelar-te por inte
resses , ou regalos, ou honras vas
deste miseravel mundo 1 Oh que
monstruosidade , que huma alma
creada , e remida para ver a
Deos, naõ menos que com a vida
do mesino Deos , sirva por cour
sas tao vis ao demonio ! Por
yentura terá ohomem razaõde
jescusar-se de padecer alguma
Cruz,
os quatro Novissimos. 287
Cruz , por chegar a conseguir
taó feliz estado ? Naó será cou
sa vergonhosiflïma difficultar a
observancia dos Mandamentos
da Lei de Deos , taó poucos, taó
suaves , e racionaveis , e naó fa
zer a vontade a hum Senhor,
que tanto o ama, e que a sua von
tade naó he outra , que salvallo ?
Oh naó ha de ser isto ailim da
qui em diante : o meu amor só
para meu Deos ; o meu cuidado
só no eterno; as minhas preten-
çoens só de. me salvar. Acima ,
afFectos ; acima , esperanças : pa
ra onde temos o porto , e a pa
tria , para ahi emproemos. Que
tenho eu , que sou eterno , com
o mundo , que ha de acabar? Q
meu morgado he hum Reino , e
Reino eterno , que mo comprou
o mesmo Filho de Deos com seu
precioíillitno Sangue , e as escri-
tu
288 MEDITAqOENS.
turas , por onde me compete o
direito a este morgado , naõ faõ
menos , que as Chagas do mes
mo Senhor , vivas , e estampadas
em seu corpo.
Eia , trabalhemos, padeça
mos , procedamos como filhos
de quem queremos ser herdei
ros ; que perseverando aflim , -
certiflimo temos o premio. Oh
premio eterno ! Oh Gloria , que
naõ fenece ! Oh eternidade bem-
aventurada ! OhDeosmeu, vi
da minha, amor da minha alma ,
.c todas minhas cousas : a vós
suspiro , a vós anhelo , em vós
espero , a vós amo sobre todas
as cousas , e por vossa graça con
fio '-alcançar a vossa gloria.
F I M.