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í

TRATADO BREVE
D A
ORAÇAÒ MENTAL,
No quai por perguntas , e resposta» á
semelhança de conferencia espiritual
se instruem os principiantes no
modo práctico de a exeicitar ,
CO MPOSTO
PELO PADRE
MANOEL BERNARDES
Da Congregaçaó do Orato
rio de Lisboa.
Com humas Meditâmes do nlesmo Authif
soíi c cs tjuatro NoviJJìmos do Homenu
Sexta impressaó.

L I S B O A
NA REGÍA OFFTCINA ÏYVOGRAFICA.
M.DCC.LXXV.
Com LUeiìfU ia Rrai Meia Censtrio,

I \w I
'I f

.'. . y. - t.- «.>.

+ V
INTRODUCÇAÔ,

Que o Author saz delie breve


Tratado nosfeus livros das
* Meditaçoh da Fia
Purgativa.

COstumaõ os que com-


pocm livros de Medi-
taçoés inculcar no prin-
cípio delies as exceUencias , e
proveitos da Oraçaõ Mental,
eensinar o modo práctico de a
ter, quem nella quizer exerci-
tar-se. Seguindo este raciona-
velestilo, procurarei fazer aqui
o mesmo com a brevidade , e
clareza , que me for pofllvel ,
cm utilidade das pefibas mais
neceílìtadas de que alguem as
encaminhe : advertindo-lhes ,
que supposto que os documen-
tos , que aqui se apontaõ, po-
diaõ authorizar-se com a Escri-
A ii tu-
tura , Padres , e exemplos : com
tudo naó me pareceo convenien
te fazello aflim ; por quanto o
intento deste Tratado nao he
persuadir , ou convencer a quem
estiver opposto ; senaó ensinar-
a quem está persuadido : e este
tal deseja achar doutrina bre
ve , e lhana , que onaó cance,
e confunda. Além de que , se a
obra se dispuzesse nessa fórma ,
pedia outro volume. Saó po
rém os ditos documentos tira
dos ou da liçao dos Authores
mais assinalados nesta materia ,
ou da doutrina , que tenho ou
vido nesta Congregaçao , cujo
filho sou, ainda que indigno»

TRA-
ORAÇAÕ MENTAL.

ih
il E cousa he
Oracaó Men
tal ?
He huma ele
vaçaô , ou subida da alnva a
Decs , em que falia , e trata
com este Senhor familiarmen
te. Chama-se Mental para dif-
ferença da outra Oraçaó Vo
cal , que se faz naó só com o
coração , senai) tambem com
aboca, pronunciando palavras
A iii ' ex
2 Tratado breve
exteriores , e senííveis : e esta ^
de que tratamos , se faz somente
com o còraçaõ , espirito , ou
mente, segundo aquillo de. Da-
'vid : Meditatio cordis mei in
conspeEïu tuo semper ; ( Ps. 1 8.
15'.) e aquillo de S. Paulo:
Orabt> /piritu , orabo &• mente.
( i. Cor. 14. 15'.)
P. Que proveitos se tira6
de exercitar eíte modo de O-
raçaõ ?
R. Saõ tantos , e raá im
portantes , que para os decla
rar seriaõ neceísarios muitos li
vros. Nós neste lugar , para
tocarmos alguma parte de seus
louvores, íomente comparare
mos a Oraçao á Arvore da vi
da , que S.Joaõ vio noParaifo
celestial ; e da qual diz , que
produzia doze generos de fru
tos. Porque verdadeiramente a
Ora-
da Oraça5 Mental, g
Oraçaó Mental he huma arvo-
re plantada pela mao de Deos
no Paraiso da Igreja para sus-
tento da vida elbiritual : sua

Iericia de fer hum eolloquio da


aima com. o tnesmo' Deos y c
daqui procedem feus copiosis-
fimos , e dulciflìmos frusos , que
podemos reduzir aos doze íè-
guintes. :; ;. : . I
I. A Oraçao Mental refor
ma efficazmente a vida , e ar-
ranca de raiz os vicios , que
com nenhum outro remedio se
podiaõ arrancar : e cada dia
dos esta mostrando a experien-
cia, que peccadores , mût en-
yelhecidos cm feus máos cos
tumes , com pouco tempo , que
ufáraõ este exercicio , ie torná-
raõ taõ outres , que o mesino
Confeffor «s. deiixmheceii E
A iv tam-
4 . rTHATÁDO BREVE á:I
-tambenv purgi os peccados áà
vida paíìada ; porque o pecca*
dor os chora novamente cada
jdià équando chega ao Sacra-
iriento daiConmTaõ , leva del
ies exame mais cuidadolbiV'
:Gontriça6 mais viva.n. j -i:si
• II. Alcança grande luz das
verdades , e Mysterios denoffa
Santa Fé , consorme aquillo do
Psalmo : Chegai-vos a Deos , e
sereis allutniàdos. Donde vem ,
<\ue hum rustico, ou' huma"mu-
Iher simples com oraçaõ , en
tende ás vezes estes pontos com
maior sirmeza » e clareza , que
-hum Theologo sem oraçaõ î .
•verificando-sc ar.senteirça- de
-Christo, fallando com feu Eíetf-
no Pai : Escondestes estas cou
sas aos íabios , e as revelastes
aos pequenos. - ea- f.- » <} 1
• 111. - Fax que< faibamos dis-
a.ì -. i A cer-
da ORAqAÒ Mental. 5
cernir as inspiraçoes da graça
Divina, e moçoes do Espirito
Santo : cousa , que sendo tao
importante para o governo da
vida Christã , os mundanos a
naó entendem , nem obíervaó ,
e assim andaõ ás eícuras.
IV. Purifica, e endireita a
iptençaó , com que fazemos as
obras boas , ( como o leme en
direita toda a náo) e por con
seguinte assaz mais agradaveis
a Deos , mais rendosas para nós ,
e mais exemplares para o pro
ximo. Porque quem obra de
pois que ora, naõ segue tanto
os impulsos da natureza , como
os dictames da razao , e luz da
graça ; e o concerto de suas ac
çoes , e honesto fim , que com
ellas pertende , lança de si cer
to relplandor, que bem fedei-
la conhecer de tora.
A v V.
1
6 Tratado breto
V. Despéga o coraçao das
cousas transitorias, e o levanta
is eternas ; porque o amor a
qualquer creatura segue o co
nhecimento, que delia temos;
e como com a luz da Oraçao se
descobre a vileza dos bens ca
ducos , e a excellencia dos eter
nos , a estes vai buscar o cora-
çaó, desprezando aquelles.
VI. Consola , e fortalece
nas tribulaçoes ; e por isso os
Santos em todos seus trabalhos
se acolhem a esta cidade de re
fugio, e delia sahem taó animo
sos , que naô só rebatem , mas
ainda desafiaó o Mundo , e o
Inferno. Santo Ignacio de Lo
yola dizia , que se alguma cou
sa lhe poderia dar pena , seria
o desfazer-se a Companhia }
mas que com meia hora de
Oração1 sicaria socegado.
VII,
\
da OraçaS Mental. 7
VIL Amedrenta grandemen-
te os demonios , e defcobre as
ciladas , que nos armaõ ; porque
a oraçaõ dá azas ao espirito , e
o poem em lugar alto , donde as
possa descubrir ; e como diz o
Espirito Santo : (Prev.i .i7.) De
balde se lançaõ as redes á vis-
ta dos que tem azas. Dá tam-
bem esforço para vencermos
suas tentaçoës: Orate ne intretis
in tentationem. Por onde disse
S. Joaõ Climaco: Qui baculura
orationis jugiter tenet non of-
fendet ; sed fi ojsenâere eum cons
tîgerit, nonpenitus cadet. (Sca-
lœ gradu 18.) Quem tem na mao
o baculo da Oraçaõ continua-
mente , naõ tropeçará ; e se suc
ceder que tropece , na& cahi*
rá de todo. . :\
VIII. Desterra as tristezas
do coracaõ. Sente-se triste al-
) A vi gu»
8 TssATAÔO BREVE
gum de vós outros ? (diz o Apos
tolo San t- Iago cap.j. v.13.) Poife
ore. E esta alegria , que aqui fe
communica , naõ he exterior , e
falsa , como a que causaõ as
creaturas ; senaõ interior , e ver
dadeira : porque em fim he cau-
sada do Espirito Santo , consola
dor optimo , doce hospede , e
doce refrigerio das almas.
IX. Adoça , e facilita o ex
ercício da mortificaçao: o qual
por huma parte he necessario pa
ra despirmos o amor proprio ,
cauíà de todas nossas miserias j e
por outra he muito amargoso , e
contrario á natureza: e querer
dobrar, e amoldar esta sem pri*
meird meter o espirito na for
ja da Oraçaó , seria b-ater em
ferro frio.
X. Géra grande paz de
consciencia : porque cessando
da ORAqAS Mental. 9
os peccados , cessao os remor>
ibs , e o Elpirito Santo lá den
tro da alma dá testemunho , que
mora nella. Daqui nasce , que
a morte das peíToas habituadas
a este santo exercício he mais
desassombrada ; por quanto a
má consciencia heaque nos faz
mais horrorosa a passagem pa*
ra a eternidade. .. - 0:3».. h
XI. Alcança de Deos Nos
so Senhor grandes favores , e
mercês: porque da Oraçao nas
ce o conhecimento de que ne
cessitamos delias , o desejo de
as procurarmos , a confiança,
resignaçaõ , e perseverança pa
ra as pedirmos , e a humildade
para as conservarmos : e alli se
grangea a devoçao com Maria
Santíssima , a familiaridade
com os Anjos ; tudo disposições
para falarmos com bom despa->
cho:
ÍO TRATADO BREVE
cho : e aífim SJcaó Chrysostomo
chamou á Oraçaó , omnipotente.
: XII. Une os proximos en>
tre fi , porque une cada hum
com Deos : e daqui vem , que
rias Communidades , e familias ,
que tem excrcicio quotidiano
de Oraçaó Mental , reina mais
a paz do Senhor , e custaó menos
desvélo a quem as governa.
§- II.
P. /^V Ue sentem os Santos
KJ Padres deste Exer-
cick) ?
R. Experimentao em si os
íòbreditos frutos , e por iflb se
desfazem em feus louvores. San-
to Agostinho diz : Quid eíl era-
tione prœciarius ; quid vitœ
wostrœ utilius ; quid anima dul-
cius\ quid in tota nostra religio-
nesublimiusì (Traii.de mijeric»
- tom.
da OraçaÓ Mental, i i
tom. 10.) Que couíà ha mais eC-
clarecida , que a Oraçaõ ? Que
cousa mais proveitoia para a
nossa vida , nem mais doce para
a nossa alma , nem mais sublime
em toda a Religiaõ Christá ? E
em outra parte diz : Cum vide-
ris non à te remotam depreca-
tionem , securus efto , quia non
eít à te remota mijericordia
ejus. Hinc PsaímiUa ait : Bene-
dittus Deus, qui non amovit
erationemmeam, & misertcor-
diam suant à me. {In Ps. 6$. v.
1 9.) Èm quanto vires , que de ti
se naõ aparta a tua Oraçaõ , está
seguro , que de ti se naõ apartou
a misericordia de Deos. Por isso
o Psalmista diz : Bemdito seja
Deos, que naõ apartou demim
a minha Oraçaõ , e a sua miseri*
cordia. O mesmo Santo Doutor
affirma , que aquelles sabem bem
vi-
Í2 Tratado brevê
viver , que sabem bem orar : Re-
íìè novit vivere , qui reSìè novit
orare. (Hom. 40.) Tambem se
lhe attribue outra breve , e mui
notavel sentença : Que , a quem
Deos quer fa! var , concède orar :
Quem Deus vult Jalvare , dat
orare. S. Berna rdo diz aflìm : ht
oratione remcdium vulnerumy
ibijubfidia necejfitatum; ibi re-
fanitus defesluum , ibi profe-
Sïuuni copia , ibi denique quìd-
quid accìpere hominibus expe-
liìt , quïdquid decet , quidquid
oportet, (Serm. 86. in Cant.)
Na Oraçaó se acha a medicina
de todas as feridas, osoccorro
de todas as neceflìdades , eore-
paro de todas as faltas , e cópia
de todos os proveito? ; e final-
mente quanto para os liomens he
conveniente, honesto , e. neces-
làrio. Em outro lugar diz abso
da ORAqAÒ Mental. 1$
íutamente :' Nihil anìmum mu
nitpot entius ; nihil bominem ad
quœvis bona operafacienda, &
quafvis tribulationes perferen-
îias reddit alacriorem studio
contemplationis , ve/orationis.
( Apud Ludov. Granat. lib. 3.
deOrat. c.S.) Nenhuma coula
fortalece o espirito mais pode-
rosamente , nem o torna niais
animoso para emprender gran-
des obras do serviço de Deos , e
soffrer por feu amor quaesquer
tribulaçoés , como o exercicio
da Oraçaõ , e contemplaçaõ.
S. Lourenço Justiníano , fal-
lando etn especial da ntedi'ta-
çaõ , diz. assim : Nihil aptiùr
Deum pojfidere facit , & men
tent refrenat , quant attenta
meditatio , qua in oratione pro-
ponitur . hœcJtquidem cor amor
.vet ab exterioribus , & ad se
14 TRATADO BREVE
redire compeìlit : hac eîi di
sciplina mentis yspiritualispœ~
dagogus , orationis funiculus ,
incipientium eruditio , & in
tention}s mentisprovida guber-
natìo. Ex ipfius ajfiduitate Ha-
bilitur mens , purgantur cogi-
tationes-, folitudoJapity deìeÙat
Deus , ingenium acuitur , cajli-
ficatursensus, ìllustratur ratio,

ad alta suspenditur. Quandtu


mentis oratio veraciter pojjìdc-
tur , tanquam oculi pupilla cu-
Jìodienda eft, & velut quoddam
spirituale depofitum fervanda.
( De caïìo connub.cj.%^) Nenhu-
-ma cousa he mais accommodada
para fazermos noíïb a Deos , e
noflb o espirito proprio , do
que a meditaçáo attenta , que se
exercita na Oraçaõ : porque es
ta furta ocoraçaõ áscousas ex-
-,» te»
da ORAqAõ Mental,
(eriores , e o obriga a entrar em
si : esta he a escola da alma , o
aio , ou director espiritual , o
fio que puxa pela oraçao, ain-
strucçaó dos que começaó , e o
governo discreto da intençao
do espirito : com a sua conti
nuaçao- se estabelece a alma,
se purificaó os pensamentos , se
gosta de Deos , e da solidao , o
engenho se aguça , os sentidos
se fazem castos , o entendimen
to se illustra , a lingua se refrea ,
eo animo se suspende nas cou
sas altas : ( notem-se as seguintes
palavras ) em quanto alguem
está de posse de huma verda
deira oraçaó , veja bem que
a guarde , e resguarde como as
meninas dos olhos , ou como
hum deposito precioso.
S. Pedro Damiao diz , que
nas balanças da sua estimaçao'
mais
í6 TrATADO BREVE
niais pézaõ dous reis de ora-
çaõ, do que hum taiento de ou-
ro , e grande quantidade de
diamantes: In œsiimationis me<&
lancibus graviùs pensat SanRœ
oratìonìs obolus, quàm auri ta-
•kntjim , vil copiosa micanttum
wultitudo gemmarum. ( Lib. 6.
Ep. 2.) S. Gregorio Nysseno
affirma , que de todas as cousas ,
que se estimaõ, e prézaõ nestá
"vida , a nenhuma se deve me-
Ihor lugar que á Oraçao: Ni-
.hil ex his , qua per banc vham
coluntur , in pretiosunt, ora-
tioni prϒtat. ( De Orat. Do-
tninica.') Santo Ifidoro a compa
ra a huma cadea de ouro lança-
da do Ceò á terra , pela qual se
alguem quizeíTe íiibir , parece-
ria que trazia a cadêa para fi ,
e na verdade a cadêa o levava
para o Ceo : EH oratio ( quem-
ad-
da OnAqAò Mental. i7
aimodum prœstantijjìmi ante
nos dixerunt ) velut aurea cate-
na , è cœlo in terrant demijfa ,
per quam qui. ascendere velit ,
videtur quidem catenam adse
trabere , re autem verà trabi-
tur ipse ab il/a in cœlum. ( De
JruSlu orandi.)S. Nilolhe cha
îna encantamento , conique in-^
visivelmente ficao como atadas ,
e adormecidas as serpentes in-
íèrnaes , para naÔ poderem fa-
zer mal : Verefiquidem , & ma
xima , & efficax , & terribilis
incantatio adversus damones
eH vigil y attentaque oratio.
Outros Santos lhe chamaõ
chave do Ceo , mural ha da
Igreja , mai das virtudes, the-
louro perenne , conservaçaõ do
Mundo. Hum só S. Joaõ Çli-
maco lhe dá todos os titulos le-
guiutes : Oratio in qualitate.
qui-
ÏS TRATADO BREVE
quidem sua conjunEìio , atque
unitio est , hom/nis vi'delit et, &
Dei : secundhm aEìionem verò
conHantia mundì , ornatus col-
leSlio , reconciliatio Dei , lacry-
marum mater , earumque item
filia , peccatorum propitiatio ,
tentationum pons , tribulatio-
num interpofìtus paries , bello-
rum confra£ìio,Angelorum opus,
incorporearum omnium virtu-
tum cibus ,sutura latitia, infi-
jiìta operat io , virtutumfons ,
gratiarum minis'ira , profeSìus
invistbilis , nutrimentum ani
ma , mentis illuminatio , dejpe-
rationis amputatiospeì &fidei
demonfiratio , trìfìitiasolutio,
monachorum divitia ,Jolitario-
rum thesaurus , ira minutio ,
speculum proseSìus , mensura-
rum indicium , status insinua-
tio , futurorum revelat io , cle-
men-
da OraçaS Mental. 19
menthe signifieatio. (Scalœgr,

Mas sobre tudo as senten-


ças de S. Joaó Chryfostomo fa 6
nesta materia ( como em todas )
taó frequentes , e taó pondero-
sas , e abíòlutas , que podeen
abalar a qualquer peito , por
pouco inclinado que feja a este
íanto exercicio. Aqui ío apon-
taremos algumas por exemplo.
Primeira : Cum vidi
non amantem orandì ïtudium ,
vechujus ret servida , vehemen-
tique cura teneri , continuò mi-
hipalam eH , eum nihil egregia
doits in animopojjidere. Rur/ùs
ubi quem conspexero insatiabi-
liter adhœrentem cultuì Divi-
rto , idque in fummis damnis nu-
merantem, fi non cont inenter
oraverit: conjeSìo talem omnis
uirtutis firmunt ejje mediat 0-
rem
20- Tratado brevï
rem , tic Dei tempìum. (Ex lih.
de Orando Deum.) Quando eu
vejo aìguem , ( diz o Santo Dou
tor) que naó he amigo do exer-
-cicio daOiaçaó, nemtemdiíTo
hum fervoroso, e vehemente cui
dado , logo para mim he cousa
clara, que nao mora ali i virtude
alguma de consideraçao. Pelo
contrario , se eu vir alguem , que
se nao póde despegar do culto
Divino , e que reputa por grande
perda qualquer interrupçao da
Oraçao ; logo assento , que este
tal poiTue todas as virtudes , e
que he templo vivo de Deos. Se
gunda : Hoc omnes homines non
minus opus habemus , q-uàm ar
bores aquarum humore ; neque
enim valent illœfruíius produ-
cere , nljl bibant humorem radi-
eibus ; neque nos pretjofis pieta-
tisfruíUbus poterimus ejjêgra
da Or AqAÕ Mental. îi
iiidi , nìfì precibus irri^emur.
Deste cxercicio necesfitao 05 ho
mens , naó menos que as arvores
necessitaó de agua 5 porque nem
estas podem produzir frutos ,
senaó beberem pelas raizes a
humidade \ nem nós poderemos
acudir com os preciosos fru
tos da piedade , se nos faltar
o rego da Oríçaô, sserceira-:
Arbitror itaque cunElis ejjè
manifestum , quod simpliciter
impojsibile sit abjque precatio-
nis prœfidio cum virtute dege-
re , cumque bac bujus vit/e cur-
sum peragere. Falia da Oração
em commuai ; e diz : Julgo por
cousa a todos manifesta , que
he impolíivel simplesmente sem
a ajuda da Oraçao viver com
virtude .v e acabar bem a car
reira desta . vida. E mais abai
xo diz , que lie taó úecessaria :
B Jdeò
22 - Tratado brevê
-Adeò ut absque hoc nihil no-
bis boni pojjìt contingere , ne-
qne quod adsalntemconducat\
que sem Oraçaó nadapódesuc-
ceiier-nos bem , nem cousa que
conduza para a falvaçaó.
De tudo o sobredito se co-
Ihem tres cousas. Primeira ,
se tihha razaó meu Padre Saó
Filippe Neri em affirmar, que
hum nomem sem Oraçaó se naô
distinguìa de hum bruto. Se-

ìnuraõ , desprezaõ , ou impu-


gnaõ este santo exercicio. Ter-
cèira , se devem render a Deos
inuitas graças , os que elle por
Tua especial misericordia foi
!servido charrrar para a Ora-
çaó , exercicio tao nobre , taõ
ìiril , e raõ necessario. Porque
'supposto que algumas das au-
tho-
da OraçaÒ Mental. 23
tboridades sobreditas só fallaó
da Oraçaõ em commum , e por
santo se podem tambem enten
der da Vocal , he certo , qiíe
tudo o que se diz da excel-
Jencia , e utilidade da Oraçaó
Vocal , muito melhor quadra á
Mental : e esta he a que os mes
mos Santos exercitavaõ mais
frequentemente.

§. III.

P. Onforme esta dou-


trina , deixemos to
dos a Oraçaó Vocal , e só a
Mental se pratique na Igreja
de Deos.
R. Na Igreja de Deos he
conveniente , que haja de hu
ma , e outra , para o louvar
mos naó só com o coraçao ,
senao tambem com a lingua ;
B ii pa-
24 TrATAÒO BREVE
para profeísarmos o culto da
piedade Christâ com modo ex-
terior , e seníìvel ; e para en-
tendermos , e enthesourarmos na
memoria as Sagradas Escritu-
ras. Além de que , a Oraçaa
Mental he dom e special de
Deos , o qual concederá este
Senhor a quem for servido, e
Iho pedir , e se diipuzer para
recebello.
P. Sendo este exercicio tao
proveitoíb , porque razaõ íe
daõ taõ poucos a elle ?' . \
R. Muitas ; podem fer as
causas, i. Porque tal vez naâ
ha quem lho persuada , e en-
lìne : e aqui lè póde applicar
aquillo de S. Paulo : Quomodo
credent et , quem non audie-
runt ? .Quomodo autem audi-
ent fine prœdicante ? ( Rom.
10. 14.) 2. Porque a Nature
da OraçaS Mental,
za sempre tem mais sequito ,
que a Graça : e os caminhos..
costa arriba (qual he o da.
virtude) nunca iaõ muito tri
lhados. 3. Porque o inimigo
comtnum sabendo os damnos ,
que deste exercicio resultaõ ao
íeu reino do peccado , trabalha
quanto pôde , porque as almas
o naõ comecem , ou conti
nuem. 4. Porque com os pec-
cados nos fazemos indignos
de que Deos nos chame para
tratarmos com elJe familiar*
mente .
P. Porque razaõ estes gran
des frutos da Oraçaõ se paõ
vem logrados em muitos que
a frequentaõ?
R. Sempre nelles resplan
dece mais alguma piedade , e
temor de Deos , e estimaçao
das coulas eternas ; porque a
B iii Ora-
i6 Tratado breve
Oraçao he como o ambar ,
que hum só graozinho deixa
fragrância na buceta , por pou
co tempo que nella estivesíe.
Mas o naõ aproveitar-nos tanto
como puderamos , nasce pri
meiramente de que naõ acom
panhamos a Oraçaõ com mor-
tificaçaõ ; e porque o monte
da myrrha , em que se figura
a mortificaçaõ , he mais diíE-
cultoso.de subir , do que o ou
teiro do incenso , em que se
figura a Oraçaõ ; naõ nos de
terminamos , como a alma San
ta , a subir hum , e outro :
Fadam ad montem myrrha.,
& collem t buris. (Gant. 4. 16.)
Outros naõ fazem senaõ co
meçar , e largar ; tecer , e des
tecer. Muitos contentaõ-sc com
apanhar flores , que saõ os as
se ctos de ternura sensível , e
da ORAqAÒ Mental. 27
na6 trataõ dos frutos , que he
lidar sempre comilgo sobre a
vitoria de suas paixões , e re
forma de seus defeitos. E ou
tros naõ resistem ás distracçoes )
e vagueaçoés do pensamento; e
claro está , que a Oraçao , quarw
to tem dedistrahida, tanto naõ
tem de Oraçaõ. . . - t

§. IV. '' i, i;

P. Uantos modos ha;


17 de Oraçaõ Men-
^tau
R. Naõ se podem. nume
rar ; porque Deos N. Senhor po
de communicar-le por infinitos
modos, e costuma levar as al
mas por differentes veredas ,
conforme sabe que mais con
duz aos intentos de sua alta
Providencia , e ao bem de car
B iv da
a8 Tratado breve
da alma. Porém todos esses
modos se podem reduzir a
dous : hum de Oraçaõ ordi
naria , e adquirida ; outro de
Or-açaõ extraordinaria , e infu
sa. : A primeira se chama as
íim , porque he de muitos , e
se adquire com o nosso traba
lho , e diligencia , ajudando-
nos a graça de Deos. A se
gunda se chama aïïìm , porque
he de poucos , a quem o Se
nhor . a infunde sobrenatural
mente para os fins que elle
conhece. Á cerca desta pou
cas regras podem os homens
dar ; porque o Espirito San
to he o que naquelle estado
guia , e ensina por si mesmo.
Da primeira especie (que he
a Oraçao ordinaria ) tambem
ha varios modos , e conforme
a isso varios documentos , que
a
da Oração Mental. 29
a alma deve seguir. Porque
ha Oraçaó por exercício das
tres potencias da alma (e hç
a de que aqui só tratamos):
ha Oraçaó só por exercício de
actos interiores de varias vir
tudes : ha Oraçaó só por col-
loquios amoroíos com Deos :
ha Oraçaó de exame de con
sciencia , e conhecimento pro
prio : ha Oraçaó arrimada is
palavras do Evangelho , ou de
outra Escritura Sagrada , me
ditando cada huma por si : ha
Oraçaó só por fé , parando
em huma simples vista da pre
sença de Deos : e outros va
rios modos , dos quaes nenhum
he reprehensivel , ainda que
huns saõ mais geraes , e segu
ros que outros. Se a alma for
humilde de verdade , e tratar
sempre de fazer guerra ao seu
B v amor
30 TrATADO BREVE
ámor proprio , o Senhor a guia-
rá pelo caminho , que mais lhe
convem.
P. Póde huma aima defe-
jar , e aspirar , ou pertender
a Oraçaõ infusa , e extraordi-
naria ?
R. Responde-se com duas
distinçoens. Primeira : se o tal
desejo , ou pertençaõ consis
te em querer introduzir-se em
estado mais alto de Oraçaõ
fem o chamarem , e cuidar
que ha de alcançallo á força
das suas diligencias , e peti-
çoés : esta tal pefloa naõ edi-
fica obra firme , porque os fun-
damentos saõ avareza espiri-
tual , amor da propria excel-
lencia , e ficçaõ interior : a rui
na , que sobrevier , a desenga-
nará ; porque o Espirito Santo
(como elle mesmo diz) naõ
» .: quer
da OiuqAÔ Mental. 3 1
1 9
cto , nem se mistura com pen
samentos desasizados : Spiritus
enim SatiElus disciplina essu-
giet JiSlum , & aìiferet se à
cogitationibus , qua sunt fine
intelleftu , & corripktur à
superveniente iniquitate. Po
rém se este desejo consiste em
ir tirando da sua parte os im
pedimentos , que o fazem in
digno de receber efla mercê
de Deos , com intento de que
o Senhor lha faça , se for ser
vido , e quando , e como for
servido , entaõ parece nao só
licito , mas louvavel o tal de
sejo. ;jíí.-à
Segunda distinçaõ ; Duas
cousas fazem bom > ou máo
qualquer desejo : huma he a
cousa desejada , se he boa »
ou má , ou absoluta «u, der
B vi ter-
gi Tratado breve
terminadamente nestas , ou na-
quellas circumstancias. Outra
he o fim, ou intento da vontade
em desejar a tal cousa. Istosup-
posto : A Oraçao alta , e infun
dida por Deos , em fi he boa ,
e muito boa ; mas para tal , ou
tal pessoa , neste, ou naquelle
tempo , póde naó ser boa ; e no
intento com que eu a desejo
póde haver muito engano do
amor proprio , e dar-se oçca-
fiaõ a muitas embuscadas do ini
migo.. Por onde , o seguro he
entregar-me nas maós de Deos ,
para que obre em mim confor
me seu beneplacito , e levar
sempre por norte o dar-lhe gos
to , cumprindo sua santiflima
vontade, segundo o conheci
mento , que delia tenho , e des
cuidar do mais , que corre por
sua conta , e naó pela minha. ,
da OraçaÔ Mental. 33
P. Quaes saõ os impedi-
mentos , que fazem a huma ai
ma indisposta para receber esta
Oraçaõ ?
R. Saõ todos os affectos ás
cousas temporaes , que naõ es-
taõ mortificados ; toda a falta
de recta intençaõ, buscando-se
hum a fi mesmo no bem ,. que
obra , e no mal , que deixa de
obrar ; toda a amargura de co-
raçaõ, înquietaçaõ, ou pertur-
baçaõ nas adversidades , ou
prosperidades : toda a satisfa-
çaõ de si mesmo , e compla-
cencia nas honras , gostos , e
riquezas do Mundo : toda a fal
ta de mortificaçaõ nos sentidos >
e potencias : e em huma pala-
vra , todo o peccado grave , ou
leve , e todo o amor proprio ,
grande , ou pequeno. A razaõ
aisto he ; porque na tal OraçaO.
34 Tratado breve
se une a alma com Deos ; e pa
ra se unir, he necessario ser se
melhante a elle quanto for pos-
sivel. He verdade , que a mes
ma Oraçao vai purgando a al
ma , e dando-lhe esta seme
lhança , e diípondo-a para uniaõ
de cada vez mais intima , e aper
tada.
§. V.

P. T"\ Os modos da Ora-


\_J çaõ ordinaria, qual
he o mais proprio para princi
piantes , e mais geral , e segu
ro para todos ?
R. Parece ser aquelle , em
que se exercitaõ as tres poten
cias da alma : a memoria re
cordando os Mysterios da Vida ,
Paixaõ , e Morte lacratissima
de Nosso Senhor Jesus Chri-
fto , ou quaésquer outras yerda
da OraçaÔ Mental. $ç
des de nossa Santa Fé : o enten-
dimento diícorrendo sobre el-
las , fazendo pondera çaó da
sua importancia , sormosura , e
excellencia , e tirando daqui
luz para saber-se a alma reger
no caminho da falvaçaó : a von-
tade accendendo-se em afFectos
das virtudes , especialmente de
amor de Deos , repetindo mui-
tos propositos de abraçar o
bera , e fugir o mal. A razaó
disto (por quantQ intentamos
brevidade , e naó lie bem to-
calla de passagem) se póde ver
nos Reverendos Padres Alva-
rado , Molina , Granada , Puen-
te ; especialmente na vida , que
compoz do Padre Balthazar
Alvares. Se os outros sentem
outra cou fa : Unusquisque in
sensu suo abundet. (Rorn. 14*
36 Tratado breve
P. -De que partes consta
esta Oraçao?
jR. Consta de Preparaçao,
MeditaçaÒ , Acçaõ de graças ,
Oferecimento , e Petiçaõ ; e
se ha mais alguma , a estas se
póde reduzir.
P. ' Que cousa he Prepara
çao ?
R. He preparar-se a alma
para entrar neste santo exercí
cio. Porque, se para sal lar com
hum Rei da terra , primeiro
nos prevenimos , e estudamos
o modo, com que nos havemos
de portar em sua presença , e
o que lhe determinamos pedir ;
muito mais necessaria será esta
diligencia para fallar com o
Rei do Ceo , e de todas as
cfeaturas : Ante orationem ( nos
admoesta este mesmo Senhor)
frapara animam tuam, & noli
da Oração Mental. 37
tffe quasi homo , qui tentat
Deum : (Eccl. 1 8. 23.) Antes da
Oraçaó prepara a tua aima ,
e naó sejas como homem , que
tenta a Deos. Porque muitos »
se descuidaó desta primeira par
te da OraçaÒ, no mais discur
so delia lcachaõ tibios , edis-
trahidos , e abertos á passagem
de quantas creaturas o demonio
lhes traz á memoria.
P. Como se deve preparar
a alma para entrar na Oraçao ?
R. Duas saó as prepara
çoes : huma remota , ou mais
de ante mao : outra proxima ,
ou immediata ao tempo r em
que quero orar. A remota con
siste em despegar , quanto me
for possível , o coraçao das cou
sas da terra, e empregallo nas
do Ceo ; andar no discurso do
dia em presença de Deos ; ter
guar-
38 Tratado breve
guarda sobre a língua, e senti
dos ; e descartar-me de más
companhias , e negocios , que
me naõ tocaõ , quanto o meu
estado me permitte.
A preparaçao proxima con
siste em ler por algum livro es
piritual o ponto, sobre que hei
de meditar : tomar hora , lu
gar , e postura conveniente ao
tal exerci cio : e dispôr-me com
alguns actos interiores , e ex
teriores para entrar na medi
tação.
P. Que cousas se requerera
para esta liçao ser frutuosa ?
R. Deve ser breve , para
que naô carregue a memoria ,
em vez de ajudalla. Deve ser
attenta , para que se entendaó
as verdades , que se lem : e
naó se ha de buscar nelia cu
riosidade , nem erudiçao.
P.
da Ora qa3 Mental. 39
P. Bastará ler por qualquer
livro espiritual ?
- .R. Bastará , se o exercitante
he déstro , e sabe de qualquer
liçaõ tirar pomos. Mas com-
mummente será mais util a li
çao de livro determinado para
este intento , em que os pontos ,
e os frutos delies estaõ já tira
dos.
P. As peffoas , que nenhum
livro tem , ou naõ sabem ler ,
eomo suppriráõ esta falta?
R. Basta que renovem a
memoria das verdades de noflà
Santa Fé, que estão no Credo,
ou dos quatro Novissimos do
Homem, Morte ,Juizo, Infer
no , Paraiso ; ou dos paflos da
Vida , e Paixaõ de Christo nos
so Salvador : e fiem deste Se
nhor, que elle os ensinará , por
que á sua conta fica remediar
o que
40 Tratado breve
o que nós naõ podemos. Tam
bem se podem pedir ao Con
fessor os pontos para cada se
mana.
§. VI.

P. Ual he o tempo
\ / mais conveniente
para orar ? . -
R. O melhor be de noite,
quando tudo está em silencio :
Meditatus sam noëie cum corde
meo , ^ exercitabar feepe-
bam spiritum meum. ( Ps. y 6.
7.) Tambem he bom o da ma
nhã : Mane ora tio mea prœve-
niet te, (Ps. 87. i4.) levan
tando- se cedo , como fazia o
Povo de Deos no deserto para
colher o Manna.
Neste particular advirtamos
tres cousas. I. Que todas as
vezes, que o espirito se sentir
cha-
da OraçaS Mental. 41
chamado de Deos com algum
recolhimento , seja a hora que
for , deve acceitar a visita , e
lograr a maré. II. Que se á ho
ra costumada naó podemos ter
Oraçao por algum incidente >
queoccorreo, devemos dar-lhe
outra hora , que nos ficar livre.
III. Que o tempo de orar sem
pre se ha de pôr longe da hora
cie comer ; supposto que , quem
tem espirito de devoçaó , e naõ
se carrega muito de manjares,
estes lhenaó fazem grande im
pedimento.
P. Qual he o lugar mais a
propofito para a Oraçaó ?
R. O mais proprio he a
Igreja, que por isso se chama
casa de Oraçao : especialmente
onde ha Sacrario he certo, que
se aviva mais a Fé , e se lo
grai) muitos favores da preferi
42 Tratado breve
ça do Rei Christo Jesus : e
por esta razao he tambem lugar
menos exposto aos acometi
mentos do inimigo. Com tudo,
porque a modestia , silencio,
e singeleza Christã dos mais ,
que assistem nos Templos, naõ
está no ponto que devêra : e
por outra parte o nosso cpraçaõ
he facil de esvaecer- se , e difi
cultoso de se recolher : o mais
accommodado lugar para a Ora
çao Mental he o nosso aposento,
conforme o conselho do Se
nhor : Cum oraveris , intra in
cubiculum tuum , clausooíiio
ora Patrem tuum in abscondito.
( Matth. 6. 6.)
Sobre este ponto advirtamos
outras tres cousas. I. Que do
solitario do lugar naõ tomemos
licença para estar com menos
respeito , e compostura. II. Qye
naõ
da OraçaÔ Mental. 43
naõ demos por excluído , e to
talmente incapaz para a Ora
çao qualquer ourro lugar ; por
que na meza , nos caminhos,
no campo , &c. se pôde ter mui
ta , e boa Oraçaõ. III. Que,
se por algum titulo temos obri
gação , ou costume de assistir
nos Oratorios , ou Igrejas , naó
convem faltar em razaõ do
bom exemplo , que damos , e
os outros nos daõ ; e porque
naõ pastemos daqui a naõ ter
Oraçaõ nem na Igreja > nem
em casa.
P. Que postura de corpo
he mais conveniente para a Ora
çaõ ?
R. Fallando geralmente ,
a melhor he com ambos os joe
lhos em terra , o corpo direito ,
a cabeça descuberta , e sem tor
cer, os olhos baixos, as maõs
jun-
44 Tratado breve
juntas ante o peito. Deste mo
do , até de fora se está vendo ,
que a pessoa faz o officio de
çreatura , que he buscar , e
adorar a seu Creador. Se ha
infermidade , ou fraqueza , me
lhor he pôr-se em pé , do que
assentar- se ; e melhor he assen-
tar-se em algum lugar humilde
(pedindo primeiro licença ao
Senhor ) , do que encostar-se ,
ou debruçar-se.
Sobre este ponto , outros tres
avisos. I. Que em público se
deve evitar toda a singularida
de , todo o fazer gestos com a
cara , ou acçoés com as maós ,
ou dar suspiros , porque íe ha
de estar com huma serenidade
igual , assim nos affectos de go
zo , como nos de compunçao.
II. Que o estar bem quieto
(ainda que por isso se padeça
PA OraçacJ Mental. 45s
alguma molestia no principio)
ajuda muito assim o espirito , co
mo o mesmo corpo , a persistir na
Oraçao. III. Que as vezes a
força do affecto , que a alma
exercita , pedirá outro differen
te sitio do corpo ; como, se está
atribulada com algum traba
lho , o postrar-se ; se suspira com
jaculatorias, o levantar o ros
to ao Ceo , &c. Havendo po
rém respeito ao que diziamos
no primeiro aviso.

§. vii.

P. T) Arece que o estar hu-


JL ma pessoa desse mo
do posta de joelhos , com os
olhos baixos , e sem fallar .pa- v
lavra, poderá ter-se por inven-
çaó, ou ceremonia , ouJiypOT
criiia ; e dará que notar aos_
46 TRATADO BREVE
circunstantes , por fer cousa des-
usada.-' .. . !*' ' '- •
- R: Toda esta objecçaó , e
outras semelhanres faõ funda- '
das em medo vaó , soberba,
impiedade , malicia , e igno- -
rarìcia r e por tanto bem pode-
mos entender , que saó sugge-
ridas pelo eommum inimigo , o
quai antes consentirá quejejue-
iîios huma Quaresma a paõ , e
agua , do que empregarmos
meia hora em vifar o roíto da
alma para si , e para feu Deos ;
e parece que íhe arde muito es
te exercicio , porque faz que
as aimas naó ardaó com elle
erernamente. .. * - .
Píimeiramente a Oraçaó
Mer)t3t tem por Mestre o Elpi-
rito Santo í Òtfïd oremus , fìc-
ut oportet , -mscimus ; (diz Saô
Fauio) sed ipse Spiritus pojìu-
-UJ ^ lat
DA ORAqÁÔMENTAt. 47
latpro nobis gemitibus inenar-
rtbilibus.Qui autem scrutai ur
corda , frit quid defideretsptri-
tus: quiasecundum Deumpostu
lat fro Sarifîis. Naó sabemos
fazer Oraçaó como convem:
porém o Espirito Santo cádéní
tro pede por nós com huns ge-
midos mudos , e inexplicaveis :
e Deos , que penetra os cora-
çoés , bem sabe o que deseja } e
falla 0 Espirito Santo , que es
ta en/ìnando a orar os Sahtos ,
e a pedir couíàs conformes á
vontade do mesmo Deos. Este
mesmo exercicio nos propoz
Christo Salvador nosso com feu
;xemplo , e conselho. Com feu
:xempïo; porque deste Senhor
\h o Evangelho , que : Erat
ìernoElans in oratione Dei.
Luc. 6. 12.) Gastava a noite
ia Oraçaõ de Deos i isto he ,
C ii Ora-
48 Tratado brevè
Oraçao alta , recolhida , e mui
cspiritual , como expoem os In
terpretes iagrados : e claro es
ta , que nao gastava toda a noî-
te ío coìii Oraçoés vocaes: ma-
iormente lendo doutrina sua ,
que nao fallemos muito na Ora
çao : Oraiites autem nolite mul-
tum loqui. ( Matth. 6. 7.) Corn
feu conselho ; porque omesmo
Senhor disse , que importa va
orar continuamente sem desfa-
lecer : Oportet sempre orare ,
& nunqttam deficere. ( Luc.
18. 1.) Ó que se nao póde en
tendes senaó da Oraçao in tenor,
trazendo o coraçaó recolhido ,
e posto em presença de Deos. O
niefmo exemplo vemos resplan-
decer etn Maria Santissima Se-
nhora nossa , da qual diz o E-
.vangelista S. Lucas , que con-
servava no espirito todos os
Mys-
da Oração Mentai.-. 49
Mysterios Divinos , conferindo,
e meditando sobre elles dentro
em seu coraçao : Maria autem
conservabat omnia verba kœc
conferens in corde suo. ( Luc. 2.
19.) Os Varoens illustres em
santidade , que a Igreja Catho-
lica venera , seguirao este mes
mo caminho. E por tanto se hc
invençao , ou ceremonia , bons
Authores , e padrinhos tem pa
ra se poder seguir.
O parecer hypocrifia será
culpa do Fariseo , que julga ; e
naô do Publícano , que ora : hu
ma vez que a sua intençaõ for
( qual nós devemos entender
que he ) agradar a Deos , e tra
tar do bem da sua alma. E ca
so que a sua intençao fosse tor
cida , e perversa , esse mal naó
vinha do exercício , senaó do
exercitante; o qual póde tam-
C iii bem
Tratado BREVÍ
bem commungar , e ouvir Mis-
sa , e dar esmolas por hypocri-
íìa ; e nem por iflb estas obras
saõ más , ou dignas de nota , an
tes muito excellentes , e louva-
veis.
Nem ha que temer escanda-
lo do que nao vemos resultar ,
senaõ edificaçao : e ás vezes tan-
ta , que muitos tem Oraçaõ so
bre a Oraçaõ dos outros , e o
vellos de fora , os faz recolher
dentro em si. Ao Patriarca San-
to Ignacio , e hum companhei-
ro leu acompanhava hum moço
de mulas , o qual advertindo
como aquelles bemditos Pa-
dres , em chegando ás estala-
gens , se recolhiaõ , e punhaõ
de joelhos, e com as maõs le-
vantadas , quiz tambem fazer
o mesino no feu canto , sem en-
tender o que fazia. Achava-se
r IUUÌ
da Oracao Mental. 5*1
ami consolado-, e derramava
muitas lagrimas : das quaes
perguntando os Padres a causa ,
respondeo , quenaó sabia mais ,
senaó que se punha alli , e di
zia comsigo : Senhor , eu que
ro fazer o que estes Padres. fj»*
zem. Eis-aqui hum dos escan
dalos , que nascen> de ver estar
os outros orando com modestia ,
e reverencia*.
Nem he taó pouco usado este
Divino exercicio (especialmen
te depois que nosso Sanro Patri
arca , e esta minima Congrega
çao o puzeraó em público)- que
o naó tenhaó quotidianamente
em casa , e nos Templos muitos
de toda a íoçte > e estado de pes
soas: verificando-se da nova Je
rusalem da Igreja , o que pre
disse Zacarias : que derramaria
Deos lobre ella o espirito de lua
gra-
f2 TRATADO BREVE
graça , e oraçao : Ejsundam
Juper habitatores Jerusalem
spiritum gratta , S1 precum.
(Zach. 12. 10. ) Louvores á
Divina Bondade , que aíïîm abre
-feus thesouros a todos os que
.querem aproveitar-se delies,
-n )* i
§. VIII.

P. Ue actos saó , os
r/i ' ( que diziamos di£-
.. . jjunhaó a alma pa-
ía entrar na meditaçaó ?
.R. Podem fer os seguintes ,
ou outros íemel hantes. I» De
Fé , crendo vivamente , que a
Mageítade Divina está naquel-
le lugar , como em toda a par
te , por sua eiïencia , presença ,
e potencia. II. De adoraçaó,
o que sepódefazer, dizendo o
Gloria Patri , & Filio, & Spi
da ORA.q\Ò Mental. 5*3
ritui Sanfto , &c. com a maior
sumiíTao , e rendimento que pu
der. 111. Benzer- se , armando-
se com o final da Cruz contra
seus inimigos , e intentando afu-*
gentar com elle todas as tenta
ções , e fazer aquella obra em
nome das tres Divinas Pefíbas.
IV. De reflexaõ sobre si mes
mo , considerando sua vileza , e
aniquilando-se diante do infini
to ser de Deos. V. De agrade
cimento , por se dignar este Se
nhor de o admittir em sua pre
sença , e de o chamar para exer
cido taõ alto , e que he proprio
dos Anjos. VI. De recta inten
çao, naõ levando nesta obra fins
avessos , e torcidos , que perten
cem á propria commodidade
espiritual , ou temporal. VII. -
De invocaçao do auxilio de
Deos , para que o ensine , e lhe
C y il-
5*4 Tratado breve
illustre o entendimento, e mo
va a vontade. VIII. De conrri-
çaõ , dizendo : Senhor , peza-
me de vos ter offendido por ser
des vós hum Deos infinitamen
te bom : e proponho firmemen
te com voila graça de nunca
mais vos oftender. Este ultimo
acto ferve de pôr a alma em
graça de Deos , se acaso o naõ
estava , por causa de alguns pec-
cados occultos.
P. Parece que estes oito
actos para se fazerem , como
he bem , levaráõ a maior parte
do tempo dá Oraçaõ.
R, A alma, que anda já dés
ira , em muito breve tempo os
faz. Mas se a vontade se sentir
movida com qualquer delies ,
detvnha-se quanto quizer , que
isso mesmo he Oraçaõ. Como
agora > se quando adora a San-»
v tis.
da OraçaS Mental. 55
tiííìma Trindade , se sentir mui
entrada do respeito a Deos* e
desfeita no conhecimento de sua
propria vileza , pare nefle senti-
mento em quanto Ihe durar.
P. Acerca do sexto acto ,
que acima referimos , pergunto ,
que intençao hei de lcvar áOrar
çad , ou quai ha de fer o alvo
aonde atire ,. e o fim que perten-
da?
R. O ultimo fim devé' fer
dar a Deos gloria , e honra ,
santificar feu Nome, esgradar
a feus olhos , que tudo he o mes-
inòv A este fim uhimo sedevem
encaminhar outros fins secunda-
ries , os quaes podem fer estes c
Vou á Oraçaó por imitai-' à
Christo, por conheceroieu bte*>
neplacito com maior luz , por
segurar mais minha salvaçaô,
por fbmlecer-me contra as teu-
ta-
f6 Tratado breve
taçoés , e cobrar odio ao pec-
cado : Vou á Oraçao por desar-
reigar tal , ou tal vicio , que em
mim predomina ; para pedir a
Deos nosso Senhor tal, ou tal
mercê, de que necessito ; para ser
perfeito, e ir pelo caminho por
onde vaõ os que o procuraõ ler.

§. IX.

P. 1 1 1 Enho visto o que


JL toca á primeira par
te da Oraçaõ , que he prepara
çaõ : passo á seguinte , e per
gunto , que couía he meditaçao?
R. Meditaçao ( no sentido
em que neste lugar a tomamos)
he aquella principal parte da
OraçaÕ , que vai entre o princi
pio , e fim delia ; em que se
exercitaõ os actos das tres po
tencias» como acima dizíamos.
da ORAqAo Mental. 57
Primeiro entra a memoria re
cordando o ponto , que li , ou
as verdades , que creio : segue-
i'e o entendimento fazendo so
bre a tal verdade suas pondera-
çoés, e cavando razoens, com
que convencer ojuizo: ultima
mente achando-fe a vontade
movida com estas razoens , rom
pe em varios actos das virtudes ,
astectos de louvor , e amor de
Deos , propositos de fazer esta ,
ou aquella boa obra , ou de re
formar este , ou aquelle máo
costume. ;
P. Tomára hum exemplo
disto , breve , e prático. -
R. Supponhamos que o pon
to ou materia da meditaçao era
a incerteza da morte. Posto em
iilencio , e socegado o espirito :
Diz a Memoria.
fie çerp, que hei de morrer;
yg Tratado breve
isto he herança de meu pai
Adaó : todos por aqui passaõ :
até o Filho de Deos quiz mor
rer. Mas quando hei de mor
rer , naó o sei : poderá ser hoje :
poderá ser agora : quantos lhe
veio a hora , quando menos a
esperavaó !
Diz o Entendimento.
Este perigo sem dúvida he gran
de : qualquer outro , que me
ameaçára taõ de perto , havia
de prevenir-me para elle. Para
que quero eu ser nescio ? Para
qualquer cousa me aparelho, e
só para morrer naó ? Agora al
canço que era tramoia do dia
bo , represenrar-me , que este
ponto estava mui longe. Quem
me disse a mim, que estava lon
ge ? Dcos naõ mo disse : logo
foi o meu amor proprio excita-
da OnAÇAb Mental. 5*9
Diz a Fontade.
Temo a justiça Divina , que me
hadepedir conta de meus pec-
cados. Eu escolho por rcmedio
pedir a Deos me conceda espa-
ço de verdadeira penitencia.
Devo tal , e tal restituiçaõ : naõ
a guardemos para os herdeiros:
e que lei eu o que elles farao?
Lembra-me tal , e tal peccado,
que naõ confeflei: na primeira
occafiaõ os confeflo. Ah Se-»
nhor, bemdita scja vofla paci-
encia com este miferavel pecca-
dor : quantos louvores se devem
á vossa Bondade !
Eis-aqui a memoria propon-
do asverdades: o entendimen-
to cavando razoens: eavonta-
de exercitando propofitos, eas>
fectos.
P. Como podem as peflbas
rudes saber exercitar «stas ope»
l ra-
6o Tratado breve
raçoens interiores , nem entrar-
lhes na cabeça tanto preceito , e
documento ?
R. Nos livros eícrevem-fe
as cousas doutrinalmente com
ordem , e distjnçaõ , para que
melhor se entendaõ , e do mo
do, que he bem que sejaõ: na
praxe fará cada hum , o que pu
der, e Deos o ajudar; que sem
dúvida ajuda muito aos que
tem boa vontade. Além de que ,
o uío facilita muito as cousas,
como nesta mesma materia nos
tem mostrado a experiencia. He
tambem de considerar , que mui?
tas pefloas rudes , e incapazes
para outros ministerios, meti
dos neste o naõ saõ. E sobre
tudo , a palavra de Deos naõ
está atada : e ainda que naõ pro
cedamos com tanta ordem , obra,
os seus effeitos.
P.
da Oração1 Mental. 6 1
P. Em qual exercício ha
vemos de empregar mais tem
po: nos discursos, eraznensdo
entendimento, ou nos affectos,
e propositos da vontade ?
R. Tanto que a vontade se
moveo com as razoens , que lhe
propoz o entendimento , devo
parar com os discursos , eoccu-
par-me com os affectos : assim
como tanto que o fuzil tirou fa
ísca da pederneira , naó torna
mos a ferir esta , fenaó trata»
mos de fomentar aquella para
que se accenda lume , salvo este
se apagou : e tanto que a agulha
meteo a linha , naó usamos mai9
da agulha, salvo para tornar a
meter a linha, e dar outro ponto.
P. Em cada tempo deter
minado para a Oraçao havemos
de correr muitos pontos , ou
hum só?
R.
62 Tratado breve
R. A boa Oraçao naõ está
em correr muita terra , senaõ
em cavar para o fundo ; nao es
tá em salpicar muitas coníide
raçoes, passando por ellas leve^
mente : le nao em aflentar bem
hum desengano, e confirmar a
vontade com repetidos proposi
tos : porque mais segura hum
prégo com muitas martelladas ,
do que muitos com poucas. Do
irmaõ Alonso Rodrigues da
Companhia de Jesus ( varao in
signe em todo o genero de vir
tudes ) íè escreve , que gastava
ás vezes muitas horas 16 com
hum proposito , até sentir a von
tade bem rendida , e fixa nelle.
Mas se ainda astim naõ enche
mos o tempo com hum só pon
to , ou com dous , peguemos de
outros sacceíS vamente.
.:-r
da ORAqAÔ Mental. 63

§. X.

P. Ue hei de fazer no
caso , em que me
Q elqueceo o. ponto ,
que levava preparado para me
ditar ? /
R. Pedir a nosso Senhor,
que se sirva de mo trazer á me
moria : e se com tudo naó lem
bra , pegar de algum outro , em
que já meditei com mais affei-
çaó :. 011 rumiar segunda vez o
ponto da Oraçao antecedente.
P. E de que remedios usa
rei para recolher a imaginaçao ,
que anda vagueando por varias
cousas alheas daquelle exerci
do ?
R. Contra as distracçoens ,
aproveitaó os seguintes reme
dios. I. Trazer no discurso do
dia
6$ Tratado breve
dia os sentidos recolhidos , e
mortificados. II. Naõ dar lu
gar aos negocios do seculo , e
trato com ascreaturasS primei
ro que a este negocio da alma ,
e trato com Deos : por isso he
bom arrecadar logo a Oraçao
pela manha. III. Naõ levar o
estômago carregado de manja
res : Bona est oratio cumjeju-
nio. IV. Naõ desprezar a pre
paraçao1 proxima, ainda que a
vontade se ache dura em fazer
os actos , de que consta. V. Ap-
plicar bem o espirito no princi
pio da Oraçaõ , para que as po
tencias comecem a tomar cami
nho direito. VI. Renovar com
viveza a Fé da presença de
Deos , e invocar seu auxilio ,
para que me ajude a recolher.
VII. Entregar nas maõs do
meu Anjo todos os meus cuida
da OraçaS MentAi» 6?
dos , pedindo-lhe , que se me sa<5
necessarios , mos guarde para
seu tempo. VIII. Irçíistir na re
sistencia das distracçoens , en
tendendo que , ainda que niflb
gaste todo o tempo , tive Ora
çao muito proveitosa : e que se
me deixar levar delias , ficarei
com a imaginaçao de cada vez
mais indomavel.
P. E se nada disto basta,
que resta para fazer ?
R. Ter paciencia comsigo ,
conhecer sua milèria , entender
que tambem este trabalho pasta
pelos outros , e esperar a graça
de Deos.
Mas he de advertir , que este
resistir ás distracçoens huma , e
mil vezes , naô ha de ser cora
modo impaciente exasperando-
se ; senaõ com coraçao largo , e
socegado , como quem está cer
66 Tratado breve
tificado do nada para que pres
ta , se Deos o naõ ajuda.
. P. De que remcdlos usarei
contra a perleguiçaõ do sono?
jR. Se nasce de falta delle,;
conceda- se á natureza em outra
hora o que justamente pede : se'
de negligencia, e froxidao , ap-
plique-se a alma com vérás, e
naõ accommode o corpo em
postura , que esteja chamando
pelo sono : se he tentaçaõ dp ini
migo (como de alguns exem
plos consta , que o costuma fa
zer ) recorrer a Deos , e ao nos
so Anjo: se he enfermidade pro
cedida de algum humor , que
occupa o cerebro , consulte-se
a medicina.
- E geralmente fallando saõ
muito efficazes os tres remedios
seguintes. I. Tomar huma dis
ciplina antes de entrar á Ora-
çaõ,
da OraçaÔ Mental. 67
çaõ , co:no fazia o Santo Bispo
D.Joaó Palafox, e outros ser
vos de Deos. II. Sahir fora a
outro lugar , divertindo ainda
que íeja por brevifljmo tempo ,
e tomar logo a atar o fio. III.
Levar este negocio de mais lon
ge , procurando ler cuidadoso ,
e diligente em todas as obras dò
serviço de De'os , e grande esti
mador do trato familiar com
sua Divina Magestade.
P. Se vierem pensamentos
de blasfemia , de que modo se
rebatem ?
R. Nao fazendo caso delies
por feios que fejaó. E quanto
mais pena me causaõ , tanto he
mais certo sinal de que os naó
consinto. Ruffiao conta que a
hum achacado deste mal ensi
nou oSantoAbbade Pimenio o
seguinte remédio : Ne contris
68 TrATADO BREVE
teris ,filì. Quando bac cogita-
tio ad te venit , die : Ego cau-
sam nonhabeo: blasphemia tua
super tefit , Satanas. (Lib. 3.
Fit. PP. ». 5-7.) Naó te entrií-
teças , filho. Quando te vier esse
pensamento , dize : Eu naó te-
nho culpa : a tua blasfemia fi-
que íòbre ti , Satanás. Quando
a tentaçaó insista muito , impoi>
ta nao exasperar-me , nem ima
ginas de mim , que Dëos me
deiampara : senaó levar a Cruz
com resignaçaó por todo o tem
po, que o Senhor for lervido.
Santo Hugo Bispo Gracìanopo-
litano , varaó de eminente santi-
dade , padeceo este trabalho
muitos annos , e se nao vio li
vre delie, senaó pouco antes da
sua morte.
P. Como devo haver-me ,
quando na Oracaó nem poflo
- -. - ex-
da OfuqAÔ Mental. 69
exercitar os diícursos do enten
dimento , nem os affectos da
vontade ; e estaó estas duas po
tencias como atadas , huma com
trévas , outra com securas ?
R. He necessario averiguas
a causa dcnde este trabalho pro
cede, e conforme a isso appli-
car-lhe o remedio. Pôde nascer
de peccados : e entaõ o reme
dio he chorar a culpa , e aceitar
a pena. De peccados , digo,
naõ só commettidos de proxi
mo, senaõ ainda da vida passa
da ; porque he justo castigo , que
a alma , a cujas portas esteve o
Senhor esperando annos, ean-
nos, que lhe abrisse, e nao lhe
abria, agora esteja batendo ás
portas de Deos, e elle a deixe
estar de fora ; para que deste
modo purgue seus peccados , e
se faça mais digna de entrar. .
70 - Tratado breve
Pode nascer de fastio, queo
espirito tem cobrado a discor
rer muitas vezes sobre a mesma
verdade , da qual está já bem
certificado. E entaó será con
veniente pegar de outra mate
ria , ou entrar em outro modo
de Oraçao , precedendo neste
caso conselho de pessoa experi
mentada, e havendo respeito à
se este trabalho dura já ha mui
to tempo.
Se feitas as diligencias da
nossa parte , naó aproveitas) ,
póde-se entender , que Deos
poem a alma neste estado, para
purgalla com estas trévas , e se
curas , dos muitos actos de satis
faças) , que tem feito de si mes
ma , pelo que conhecia , e goza
va de Deos : e para lhe quebrar
os brios , e demaziada activida
de das potencias^ Nisto se mos
tra
N da OraçaÔ Mental. 71
tra este piedoso Senhor como
huma mãi , que enfaxa os braci-
nhos do menino, para quenaõ
bula muito com elles quando
tem pouca força , e se naõ cos
tume a acçoens muito rijas , e
desgovernadas. Por onde > affirri
como q menino faria mal em
forcejar contra as ataduras : as
íim a alma neste estado naõ faz
bem em querer trabalhar com
as potencias , e só lhe convem
aquieta r-ie , e receber da maõ
de Deos os bocadinhos , com
que a sor alimentando.
He também de advertir , que
muitas vezes neste estado a al
ma entende , mas naõ íabe que
intende ; ama , porém naõ sabe
}ue„au\a : porque ainda que
Deó&a naõ privou dos actos ,
}ue chamamos direitos , de co
nhecer, e amar; privou-a dos
D ii actos,
Y% Tratado BREVÊ f
actos , que chamamos reflexos;
pelos quaes havia de conhecer ,
e gozar-se de que conhecia , e
amava : e alîìm fica a tal aima
com o merecimento davirtude,
porque este consiste nos aétos
<lireitos ; e sem ogozo, e pra-
zer da meíma virtude ^porque
este- consiste nos actos reflexos.
Eisto hegrande bem da alma,
porque entaõ naõ se vira para si ,
para comprazer-se de si mesma ;
fenaõ para Deos , a quem só de-
-ve agradar : Revertere , rever-
tere , ut intueamur te^
'P. Por onde conhecerei ,
tjue as securas saõ prova t que
Deos me fez , e naô effeito d«
peccados ?--''; f- ,' -.
R, Qyando saõ: prova'-- d«
Deos , costuma bavera os» fe-
-guintes sinaes. I. Ainda' que s
aima tenha hum temor habituai,
ii CI de
da OfiAqAÔ Mental. 7$»
de que aquella secura seja pena
de feus peccados , nao Jhe re-
morde a consciencia , nem Ihe
vem á memória defeito algum
em particular. II. Da secura ti
ra humildade , e nao desmaio >
nem impaciencia. III. Fora da
Oraçaõ sente em si bom animq-,
e promptidaõ para acudir ao
exercicio d as virtudes , e obras
de sua obrigaçaõ. Tudo passa
ao contrario, quando a secura
he effeito.de peccados.

§.;XL

P. A , Síìm como a aima.


-i.' xa. padece na Oraçaõ
feus trabalhos , logra tambero
suas consolaçoens ? . i
R. Deos nao só he recto >;
senao tambem suave : Dulcis ,
& reflus Dominus. Recto pa-
D iii ra
74 Tratàdo brevè
ra provar a alma com tribula-
çoens, e suave para a confolar
com suas visitas. Parece que
com huma maó fere , e com ou
tra la ra : Perculiam , & egosa-
vabo. (Deut. 32. 39.) E que
se na esquerda tem cspinhos , na
d^reita tem confolaçoens : De-
letìationes in dextera tua. (PJl
Xj.'zx.) Por iflojob depois das
trévas esperava a luz : Poïi te-
nebras spero lucem. {Job 17.
12.) E nas aimas perfeitas he
taó grande o jubilo, econten-
tamento, que causaó estas visi
tas , que naó ha cou fa no mundo,
com que se compare. .•
P. Que coula he a consola-
çaõ do Espirito Santo ?
R. He huma suavidade ,
alegria , é deleite interior, que
conforme o diverío modo , com
que affeicoa a aima, eosdiíFe-
ren-
da OraçaÕ Mental. 7^
rentes effeitos , que nella obra
affim tem diíferentes nomes;
Chama- se unçaõ mystica ; por
que á semelhança de oleo man
samente , e sem ruido penetra ,
e íe iníinua por toda a alma, e
a molliíica , e lhe faz expeditas ,
e correntes as potencias para o
amor , e louvor de Deos. Cha-
ma-se gosto da sabedoria ; por
que as verdades , que a alma
entao conhece , he com sabor , e
satisfaçao , e naõ secamente co
mo de antes entendia. Chama-
se fervor de devoçaõ ; porque a
alma se accende em amor de
Deos , e está rendida , e prompta
para tudo o que Deos ordenar
delia. Chama-se gozo do Espi
rito Santo ; porque he hum dom,
que o Espirito Santo communi-
ca , como prendas dos gostos
do Ceo. Chama-se paz interior ;
D iv por-
j6 Tratado breve
porque a alma fica socegada , e
pacifica, sem sentir por entao a
rebelliaõ de seus appetites , e a
inquietaçaõ das imagens , que
sempre se andaõ revolvendo na
sua fantasia &c.
- P. Quantos generos ha des
tas consolaçoens ?
R. Humas se recebem só
no sentido , outras só no espiri
to , outras no espirito , e no sen
tido juntamente. A coníolaçaõ
sensível he propria dos principi
antes, e imperfeitos, para fe
rem attrahidos a servir a Deos :
as outras saõ proprias dos apro
veitados , e perfeitos. Aconfo-
laçaõ espiritual só Deos a póde
causar: a sensível póde causalla
tambem o espirito maligno , e
o espirito proprio.
P. Por onde havemos dis
cernir se a consolaçao sensi
vel
da Oraçao Mental. 77
vel lie , ou naõ he de Deos ?
R. Naõ he facil isto , por
que para o saber fazer se reque-
re o dom especial de Deos,
que S. Paulo chama discriçao
de espiri tos ; e muita pureza de
consciencia , para reparar nos
movimentos , que pela alma pal-
saõ. Mas pelos esteiros , que
nella deixa6 , podemos investi
gar , quem Toi o author dessas
eonsolaçoens. Porque asconso-
laçoens Divinas mandao diante
como aposentador a humilda
de: vaõ , evem quando menos
o esperamos : ensinaõ , e mo
vem juntamente com hum. modo
pacifico , delicado , e secreto :
deixaõ a pessoa amiga de tratar
pouco com as creaturas , mas
de condiçao bem sazonada com
todos : até a dor dos peccados ,
que excitai) , he doce ; e as la-
D Y g"-
jS TRATADO BREVE
grimas brótaõ sem turbulencia ,
e tempestade , como aurora que
orvalha : o amor de Deos , que
cauíàõ, he junto com mais res-
peito : inclinaô o coraçaõ ao
cesprezo do mundo , e de si mes-
mo ; e fazem-lhe sentir huma
igualdade, e indifferença quie-
ta entre injurias , e louvoresj
tribulaçoens , e prosperidades.
Pelo contrario as consola-
çoens fingidas do espirito ma-
Jigno , geraõ trévas, e escuri-
dade ; fazem o homem soberbo ,
e impaciente , e indocil; e o
vaõ encaminhando para os de-
leites da carne ; porque nos-
soinimigo naõ nos offcrece mel
í'enaõ para disfarçar oveneno:
deroandaõ á aima com grande
pressa , e impeto , que faça , ovi
deixe de fazer isto , ou aquillo ,
sem ihedarem vagar, para que
o con-
da OraçaÕ Mental. 79
o consulte com a prudencia ;
porque quem quer passar moe
da falsa , nao folga que lha ro
cem : deleitao por hum modo
duro , e grosseiro , e como an
gustiado. Tambem he necessa
rio espreitar, se a tal consolaçao
vai caminhando, ainda que de
longe , e pouco a pouco , a per
suadir alguma cousa , que en
contre as Eícrituras Sagradas ,
ou que desfavoreça a obedien
cia aos maiores , e a caridade
igual com todos : porque tudo
isto he fumo , que naõ nasce se
nao de fogo infernal.
Quando ás conlolaçoens , que
sinto , precedeo alguma cousa
prospera , de que a natureza se
pague ; como agora , le me de~
rao algum louvor , ou se dei fim
a algum negocio , que me occu-
pava os sentidos , e attenqaõ
D vi &c.
8o Tratado breve
&c. he final , que nascem do es
pirito , e amor proprio. Tam
bem podem naícer semelhantes
consolaçoens de ter os humores
bem complexionados , e o cor
po em postura descançada , ou
de se deleitar o entendimento
com alguns pontos novos, altos,
e curiosos : e suppostó que es
tas taes consolaçoens saõ muito
pequenas , e de pouca' substan
cia i aos que nao tem experien
cia de outras maiores , a sua
pequenhtz lhes parece delica
deza, e espiritualidade.
P. Conforme o sobredito,
naõ será seguro pedir a Deos
consolaçoens ?
R. A vida de hum Christaõ
Jie imitar a Christo , e consiste
esta imitaçaõ em obrar bem , e
soffrer o mal , tudo por gloria de
Deos : nisto caõ pôde haver en-
•'•,'j i ' d gano ,
da OraçaÒ Mental. 8i
gano , e no buscar consola-
çoens póde haver muitos , lalva
for em algum caso raro com efi
pirito muito humilde i e intenr
çaó muito pura , de cobrar for-i
ças para servir a Deos, ou de
conhecello para amallo. ,
P. E como se haó de rece
ber as consolaçoens , que o Se
nhor enviar na Oraçao , ou fo
ra delia ? . .
R. Observarei os seguintes
avisos. I. Aceitar a visita com
humildade profunda, e agrade
cimento. II. Nao açorar-se co-.
mo pessoa appetitoíà, que lan
ça a maó com pressa ao bocado t
que lhe õfferecem : fénaó repor-
tar-se com hum modo comedi
do, e vergonhoso, nem regei-?
tando, nem affectando a dadi
va. 111. Naó attribuir o favor.
a merecimentos próprios , nem
-.-j an
82 TrATADO BREVE
andar buscando com a memoria
obra boa , que eu fizeffe , sobre
que aíTente , como premio ,
aquella consolaçaõ. IV. Naõ
defcançar , ou assentar o cora-
çaó naquelle favor , de sorle
que me eiqueça de buscar a
Deos , contentando-me com os
feus dons. V. Naó estender
com a imaginaçaó aqudla con
solaçaó , mais do que ella dá de
lì. VI. Naó imaginar por isso ,
que sou mais sarìtç , e agrada-
vel a Deos : antes posso , e devo
attribuillo a fraqueza das mi-
nhas forças espirituaes' , que
necessitaó de manter-se com
este leite doce, eliquido. VIL
NaÔ fazer arrojadamente gran
des propositos , nem abalançar-
£s a emprezas notaveis : porque
a graça ausenta-fe , e fica ío a
natureza. VIII. Naó entriste-
cer-
da Ora^aÔ Mental. 83
cer-sc , nem perturbar-se , quan
do o Senhor se ausenta. IX.
Naó descobrir o que passou pe-
la minha alma , ialvo ao Con-
feflur por justa caula. X. Usar
destas confolaçoens para a prá
tica das virtudes , especialmen
te da paciencia , humildade , e
pobreza , que necessitaó deste
conduto para as gostarmos.

§. XII. i

P. (~\ Uaes saõ os affe-»


V/ dos , que a vonta-
de ha ue exercitar
na Oraçao?
R. Distribuem-fe em tres
ciastes : huns , que pertencem
mais propriamente á via purga-»
tiva , que he a dos principian
tes : outros , que pertencem á
yia illuminativa , que be a dos
apto-
84 TRATADO BREVE
aproveitados : c outros , que
pertencem á via unitiva , que
he a dos perfeitos.
Chama-se via purgativa o
estado , em que a aima anda
purgando-ie de feus peccados,
e desterrando feus vicios anti-
gos. E por tanto deste estado
Í3õ mais proprios os afFcctos de
temor de Deos , contriçaó de
peccados , defprezo de si , e do
niundo , deíconfiariça propria ,
accusaçaó , e confissao de ieus
delictos , in vocaçaõ dò auxilio
dos Santos, lamentaçaõ de noí-
íàsmiscrias , ebutros senielhan-
tes.
Chama-se via illuminativa o
estado , em que a alma , :por esi
tar já purificada das maiores
trévas de feus peccados, vai re-
cebendo illuminaçoens do Ceo ,
epkutando as vinudes áimita-
-i i .; caâ
da OraçaS Mental. 85s
çaõ de Christo. E por tanto
deste estado saõ mais proprios.
os aftectos de esperança , exhor-
taçaõ ao estudo das virtudes ,
desejos de imitar os Santos ,
amor de Christo Senhor nosso ,
amor do proximo , propositos
de perseverança , sortaleza nas
adveríidades , e outros seme
lhantes. ..'
Chama-se via unitiva o esta-1
do, em que a alma já; rica de^
virtudes , e illustrada com as<
verdades, procura unir-se conv
Deos pela perfeita semelhança,
e resignaçaõ , querendo , ou naõ
querendo só o que conhece que
Deos quer , ou naõ quer. E desr
te estado saõ mais proprios os
aftectos de amor de Deos , ad
miração , e gozo de suas per-
feiçoens infinitas , desejo de lhe
dar muita honra , e gloria, sus-
86 Tratado breve
pi ros por se unir com elle, hu
ma santa impaciencia da tar
dança de sua vista , anniquilaçaõ
da vontade propria , e outros se
melhantes.
Neste lugar se advirta , que
ainda que a sobredita reparti
çao he doutrinal , e serve para
conhecer os progressos do espi
rito no caminho da virtude: com
tudo na praxe nunca estes tres
estados andaõ taõ separados ,
que hum naõ participe muito
dos outros ; e assim iiiccede fa
zer hum principiante muitos
actos , que pertencem á via uni
tiva , e hum perfeito muitos af-
fectos , que pertencem á purga
tiva : e a mesma pessoa dentro
da mesma hora póde achar-íe
em estados mui differentes.
P. A materia desta Medi-
taçaõ por ventura ha-ie de va
riar
da OraçaS Mental. g7
ríar conforme se mudaó estes
estados? ;- ' . ' . .:
R. Será mui conveniente,
que os do primeiro estado medi
rem no fim, para que o homem
foi creado j na graveza do pec-
cado , nos noviíumos do homem,
especialmente . nos primeiros
tres , e tambem nas vaidades
do mundo, e miserias da vida
humana. Os do segundo medi
tem nos Mysterios da Vida, Pai
xao , e Morte de Christo Senhor
nosso. Os do terceiro nos be
nefícios, e nas perfeiçoens, ou
attributos Divinos.
Naó he porém prohibido,
que ás vezes huns subaó , e ou
tros defçaó a meditar em qual
quer destas materias. Tambem
íé ha de attender á disposiçao,
em que se acha o espirito , con
forme os diversos tempos , e
sue-
88 TrATADO BREVÊ;'t'ï
succeflos : porque huma medi-
taçaõ serve para a occasiaõ do
delamparo , outra para o tempo
da tentaçaõ , outra para quando
acometo alguma eropreza do
íerviço de Deos, &c. E he re-
gra geral , que se naõ ha de vio-
lentar o espirito , senaõ fazer
como os mareantes , que víraõ
o pano ao vento.
-,:j:;r; .'ri ; t <.-: ) . ...;:.jvî

- P. T7 M que fórma se po-


i- ,. t JHídem exercitar os
sobreditos affectos ? Tomára
alguns exemplos praticos , . por
onde me governasse. - .
- R. Os pios , e eruditos va-
roens Joaõ Bona Cardeal , Lu-
dovico Blosio , e Nicoláo Avan-
cino fizeraõ já esta diligencia.
A sua imitaçaõ proporemos
aqui
da ORAqAb Mental. 8?
aqui alguns exemplos : adver
tindo primeiro ao exercitantç
tres cousas. I. Que se naó áte a
palavras , nem as estude. IT.
Que o principio mais erficaz^, e
geral , donde a vontade toma es
tes movimentos : ou~ se accende
nestes affectos , he a Fé sobrena
tural, aíïim em commum de tu
do o que Deos diste , e a Igreja
ensina , como em particular des
te , ou daquelle mystcrio. III.
Que, ainda que as obras, que
cada hum faz em serviço de
Deos , fad as que provaó o amor,
que lhe tem , e naô os affectos
ternos , e devotos ; com tudo naó
despreze estes : que o ensaiar-
se na espada preta, o fará de-
.pois brigar com a branca : e ain
da que lhe pareça , que na6 faz
estes actos com toda a verdade ,
e de coraçaõ , naõ 4efanime ,
; que
oo Tratado breve
que de cada vez os fará me
lhor.

F O R MU LAS,
o u
EXEMPLOS
DOS AFFECTOS.

I. Reio, Senhor, com fi-r-


V-^ me consentimento de
meu juizo , que tudo o que por
vossa iãgrada boca dissestes , tu
do o que nas Escrituras iàntas
nos revelastes , tudo o que pe
la Igreja Catholica nos ensi
nastes , he verdade , he certo ,
he indubitavel: faltará o Ceo,
e a terra ; e a minima destas
verdades naõ será fallida. - ..i j
II. Se estas: verdades faõ
erro,
da Oraça.9 Mental. 91
erro; ou vós, Senhor, vos en
ganastes , ou nos enganastes,
porque he certo , que vós as dis
sestes. Mas affiin como impoífi-
vel he , que vós , que fuis infinita
Sabedoria , vos enganasseis ; e
vós, que sois infinita Bondade ,
nos enganasseis : affim he impos-
sivel naõ serem estes mysterios
verdade.
III. Que ha Deos hum na
substancia , trino em Pessoas ;
que a segunda , que he o Verbo
Divino , se fez homem , e pade-
ceo por nós ; e tudo o mais , que
professamos no Credo ; he mais
certo, que o que vem os olhos,
apalpao as maõs , e a razaõ na
tural convence.
IV. Senhor , se levais gosto
de que eu dê a vida em testemu
nho destas verdades ; peza-me de
naõ ter mil vidas para dar toa
das :
Tratado breve
das : mas eu aceito o favor , ain
da que me conheço indigno de
me quererdes para officio tad
honrado, como he testemunhar
a vossa Fé : e já sei , que quem
me der o officio , me dará os
cabedaes da graça necessarios
para elle.
c. . .V* Senhor meu Jesus Chrisr
to , para eu saber , que estais
real , e verdadeiramente no San-
lissimo Sacramento , nao me sa<5
necessarios os olhos da cara ,
caso que vos descobrísseis ; nem
os milagres, que por este Mys-
terio tendes obrado ; nem os
esteitos , que experimentaõ as
almas perfeitas , que vos rece
bem : eu tenho por onde o sei
com maior certeza ; porque a
Igreja , a quem vós o ensinas
tes, mo ensina. :

Aãos
da ORAqAÒ Mental, p j
ï
Aãos de Esperança. '- ...

I. "^T A bondade , e mi*


J_\| sericordia infinita
de meu Deos , e nos merecimen
tos de seu Filho , e meu Senhor
Jesus Christo confio , que hei
de alcançar o fim , para que elle
me creou, que he velio, ego-
zallo eternamente , e que me
ha de dar graça para eu fazer
da minha parte boas obras.
Ií. Meu Senhor Jesus Chri
sto, fonte de todo o meu bem:
nenhum bem quero , nem es
pero nem nesta , nem na outra
vida , senao da vossa maó , e
pela vossa mao : em vós unica
mente ponho toda minha confi
ança : bem fundada vai : des-
cança , coraçao, em teu Deos,
que as suas misericordias naô
E tem
94 Tratado BREVfe
tem numero , nem as suas pro
messas saliencia.
III. Deos açoutado , Deos
cuspido , Deos crucificado ,
Deos morto , Deos alanceado !
Quem naô ha de confiar neste
Deos , que me ha de dar tudo o
que me for necessario para mi
nha salvaçaó ? Mas que me cas
tigue , mas que me leve ao Infer
no antes de acabar-se-me a vida
presente, neste Senhor confio,
como se já tivera nas raaós o que
pretendo com as esperanças.
IV. . Folgo , e alegro-me de
que só em vós , meu Deos , possa
assentar segura minha esperan
ça ; era vós , que unicamente sois
o meu refugio , o meu valedor ,
o meu amparo.
V. : Senhor Jesus , vós vi
estes á terra evangelizar o Rei
no dos Ceos : e havendo en-
i .. - com-
í>a OraçaS Mental. 9^
:ommcndado a voíïbs A posto
ns , que prégaflem o mei'mo a
:oda creatura , vos recolhestes
loEmpyreo, promettendo tor-
ìar no ultimo dia : agora , Se-
ìhor , eu protesto , que aqui es-
:ou esperando , que torneis, e
:umprais tudo : vinde , botn
[esus , vinde já , naõ tardeis
tanto : e em quanto tardais , líaô*
permittais, que aalampada da
"é , e caridade se me apague;
mtes resplandeça mais com o
îxercicio das boas obras.

Aóîos de Amor de Deos. .

I. porque vós
O ibis que.tn sois , hum
Deos deinfinita bondade, pen-
reiça6 , e formosura , he m'mha
nomade firme * e determinada
mtepôr vossa honra , egloria ,
E ii e
q6 Tratado breve
e beneplacito a todo o bem
creado. Amo-vos , Senhor , mais
que a minha vida , mais qut
a minha honra , mais que a mi
nha alma , mais que a minha
salvaçaó , mais que todas as cou'
sas creadas , e poíîiveis : e me
alegro mui de véras , mui den
tro dò coraçao , de que vós se
jais taô santo , taó poderoso
taô glorioso , taõ bemaventu-
rado.
- II. Meu Deos , meu amor,
minha gloria , minha felicida
de , e todo meu bem : quem vo
amára quanto vós mereceis se
amado! Oh, se de mim, e dj
todas as creaturas forcis tac
amado , quanto em vós mesmo,
« para todas as creaturas sol
amavel !
111. Oh, se como oincen
io se derrete nas brazas , a sub-
. stan-
r>A OraçaS Mental. 97-
tancia toda de minha alma se
ierretêra em puriflimos ast'e-
Slos de vosso amor , para incen
sar o pé de vosso throno ! Quem
tie dera , que todas as arèas do
nar , todos os atomos do ar , to-
3as as estrellas do Ceo , todas
js folhas, estores do campo fo-
rao mundos cheios de cora-
çoens , e coraçoens cheios de
amor ; amor vosso mais sino , e
abrazado , que o de todos os Se
rafins !
IV. Viva oEmperador po-
tentissimo de todo o Universo ;
viva, e reine no meu coraçaõ ,
e nos de toda a creatura capaz
de conhecello, eamaiio: viva
por seculos de seculos , e além
da eternidade: abaixo coroas,
abaixo potestades , e principa
dos; adorai-o todos, porque só
elle he Santo, só elle Senhor,
E iii só
98 TRATADO BREVE
só elle he o Altissimo , e digno
de infinita gloria , magnificen-
cia , e acatamento.
V. Amabiliíïìmo Jesus,
Filho de Deos , e verdadeiro
Deos , Filho de Maria San-
tiífima , e verdadeiro homem :
prezo me tendes com vossa ines-
timavel formosura : e eu folgo
com estas doces prizoens , e as
estimo mais , que se lográra to-
dos os Senhorios do mundo :
folgo de fer vosto escravo , com-
prado com vosso Sangue , mar-
cado com a vossa Cruz. Vós
para mim sois cariífimo , e mui-
tamuito agradavel , porque to-
do sois bellissimo , emuito mui-
to para descjar. Entre tantas
aimas , que de véras vos amaõ ,
dignai-vos de contar a minha :
tende mais esta em vosso l'ervi-
ço, e servi- vos delia para vos
da Oraçao Mental. 917
louvar, eamar, e para tudo a
que delia quizerdes.

Amor a Maria
Santijfima* .
- .
I. /^V Uem haverá , que
\Jr ame a Deos , e nao
ame a Mai de Deos,
aEfpofa deDeos, aFilha pri-
mogenita de Deos ? Senhora ,
para vós naó serdes muito a-
mada de todas as creatúras ,
nao havieis de fer hum mar
de graças , hum thesouro im-
menso de virtudes , hum Ceo
animado, onde as períeiçoens
saõ mais , que no fïrmamento as
estrellas ; nao havieis de fer
sempre piedosa com os pecca-
dores , sempre liberal com os
neeeflîtados ; naá havieis de
fer Maria. Mas pois tudo ista
.I.« E iv fois,
loo .Tratado breve
Ibis , e eu me consolo , de que o
sejais , e tudo em vós está bem
empregado , e essa coroa de
Emperatriz de todas as creatu-
ras parece , que vos vem nasci
da : eu , ainda que indigno, terei
atrevimento deamar-vos, a. vós
subirá o meu affecto , em meu
coraçao vos farei hum lugar o
melhor , que eu puder ; eu vi-
yirei perpetuamente lembrado
de que vós sois Senhora da mi-
Jiha alma , e causa de minha ale
gria.
II. Que pura , que inno
cente , que humilde , que fiel ,
que prudente , e magnanima , e
piedosa , e constante , e compas
siva ! Quanto lirio , quanta açu
cena ! como recendem ! Aqui
pasta o Cordeiro de Deos : vin
de , affectos de minha alma , e
seguio-o para onde quer que for*
da ORAqAÔ" Mental, ioi
III. Basta , Creatura mila-
grosa , que tivestes poder para
attrahir o Verbo Divino do seio
do Eterno Pai ! Basta, quelòu-t
bestes encantar a ira justadoTíH
do poderoso com hum Faça-se.
da vossa bòca ! Attrahi-me , Se-.
nhora , para que vos ame ; en-
cantai-me o coraçaõ, para que;
de tudo o mais se eíqueça , e íó
de vós se lembre.
IV. Ó Maria gloriofissi-
ma , ó Maria Senhora de ex
cellente formosura : digne-se
vossa Magestade de pôr feus cle-
mentiflìmos oìhos neste humil-
de servosinho feu , coroo fazen-
da que heeomprada com osant
gûe de feu Filho ; e alcance-
lhe deste Senhor agraçadesua
devoçaõ ,' ç arror : porque stlria
couíàjndignifllma ; naõ amar o
íérvo a iua Senhora , o vafíalld
f E Y a iua
102 Tratado breve
a sua Rainha , o peccador a sua
Advogada , e a creatura a Mãi
de seu Creador.
V. Oh graõ milagre da
Omnipotencia de Deos ! oh
obra digna da sua maõ ! oh
creatura , que mais agradaste a
Deos , que todas as creaturas !
todo o genero humano te ame,
c louve , e honre , e sirva , e ado
re , e magnifiquei pois todo o
genero humano te he devedor
naõ menos , que de hum Deos
humanado. Bemdito seja quem
te encheo de graça : bemdito
quem tecreou para tanta gloria
sua : bemdito quem se determi
nou a ser fruto do teu ventre.
Amor da próximo.
I. À Mo a todos meus
ii proximos , e a cada
hum délies como a mim mes
mo:
da OraçaS Mental. 103
mo : todo o bem , que para mim
quero, para elles quero: toma
ra ser sufficiente para remediai?
todas suas miserias , e trabalhos
de alma , e corpo : abomino , e
retracto tudo aquillo , em que
por obra , palavra , ou pensa
mento offendi a qualquer de
meus irmaós. Dai-me vós, Se.»
nhor , luz para o conhecer /e
graça para o emendar, e satis
fazer.
II. Senhor, que nos amas
tes fendo nós vossos inimigos,
e nos mandastes amar a todos
por amor de vós : dai a todos
meus proximos vossa graça , e

lhes convem , para que mais


Tos sirvaõ, e amem. Trazei á
luz de vossa Fé os Gentios ; &
uniaõ de vossa Igreja os Scis-
maticos j ao eítado de vossa gra-
E yi
104 Tratado breve
ça os peccadores ; ao fervor de
vossa caridade os tíbios ; ao lu
me de vossa gloria a todos, es
pecialmente as almas , que pe-
nao no Purgatorio. Conlolai
os attribulados , alliviai os en
fermos , amparai os persegui
dos ; soccorrei os tentados ; man
tende os pobres , e famintos;
acudi pela causa das viuvas , e
orfaós : vós sois o . remedio de
todos , e a todos podeis , e de
sejais fazer bem : se eu sirvo
sara instrumento vosso nesta
obra , eu me offereço com todo
o coraçao.
III. Deste affecto de cari
dade a ninguem excluo , nem os
que me foraÓ ingratos , nem os
cue faõ meus inimigos , nè'm Os
Hereges , Turcos , eJudeos : a
todos geralmente abraço , e me
ta nos idos de meu coraçao ;
*£ .7 x por-.
da ORAqA.5 Mental, iojr -
porque vós , dulcíssimo Jesus,
meu Mestre , e Senhor , a/fim o
mandastes, e eneommendastes : e
Te mandasteis , que amaste aos
mefnos demonios , até os de
monios amara , porque vós o
mandaveis : mas só estes abor
reço , e abomino , porque ló es
tes laõ volíos inimigos obstina
dos , e nunca o poderáõ deixar
de ser.
IV. Declaro , Senhor e
protesto , que esta he minha von
tade , ajuda ndo-me vossa gra
ça > que a nenhum proximo meu
quero ter aversao , nem inveja ,
nem a minima sombra deodio:
de nenhum quero tomar vingan
ça , nem que outrem a tome :
perdoo todos os aggravos , por
maiores que fossem : e para to
dos meus irmaõs desejo a mes
ma felicidade , que para mim :
isto
IOÓ TRATADO BREVE
jsto por servir-vos a vós , que aí-
íìm vos agrada.
V. Concedei-me , Senhor ,
amar a meus proximos , naó com
a lingua , e palavras , lenao com
a verdade, e obras ; para que
tudo , o que eu quero que uí'em
comigo , use eu com elles.

Contriçao.

I. Ç Enhor Deos , Trino ,


- O e Uno , por serdes vós
quem sois , e porque vos amo ,
e estimo sobre todas as cousas ,
me peza de rodo o coraçaó de
vos naver ofFendido : proponho
com vossa graça de nunca mais
vos offender : dos peccados , que
contra vós tenho commettido,
vos peço perdaó , e espero al-
cançallo pesos nierecimentos
4e rneu Senhor Jbsvb Ghristo*
II.
da OitAqAÔ Mental. 107
II. Clementiíïìmo Dcos ,
quanto me peza de haver-vos ag-
gravado ! Fiz mal : liavei de
mim misericordia. Deíde a pre
sente hora naõ quero quebran-
lar mais vossa Jei : naõ quero
consentir mais peccado algumr
antes qualquer tormento, qual-
quer infamia , a mesma morte ,
o mesmo Inferno , do que tor-
nar a oíFender voila bondade.
III. Meu Deos , justissima-
mente estais indignado contra
mim , pois vos offendi taõ gra-
vemente. Já reconheço que fiz
mal , e disso me arrependo , e
proponho firmemente emendar--
me : abomino , e detesto todos
meus peccados, porque saS of
fensas de vossa Magestade , a
quem quero daqui por diante
amar sobre todas as cousas.
IV. Quantos peccad«s l
Quaô
io8 Tratado breve
Quao feios , quao repetidos ,
quaõ inexcufaveis ! Por pala
vra , obra , e pensamento , con
tra hum, e outro, e outro manda
mento ! Diante de vossos olhos,
depois de tantos beneíícios , e
valendo-me destes mesmos para
offender-vos ! Quem dará lagri
mas a meus olhos , e dor a meu
coraçao ? Grande miseria foi a
minha ! Porém maior miseri
cordia he a vossa. Eu sumo to
dos meus peccados no mar de
vosso langue , e os queimo no
incendio de vosso amor. Peza-
me por íerem offensas vossas.
Nunca mais desprezar vossa
bondade : nunca mais assanhar
vossa justiça: nunca mais ser in
grato a vosso amor.
V. Veja vossa Magestade
se ha algum remedio, para que
0 naõ tenha offendido , que se o
ha,
da ORAqAÔ Mental. i09
ha, e eu posso dar-lho , aqui es
tou para tudo o que de mim
quizerdes fazer : se estas offen-
làs se apagao com se esgotarão
sangue de minhas veas , esgote-
se até a ultima pinga : se póde
desfazer-se o mal , que tenho
sei to , corn eu perder o ser ; em
bora , aniquile-se. Mas bemdi-
ta seja voila misericordia ; que
o sangue , que por mim derra
mastes , e as affrontas , com que
envilecestes , e quasi aniquilas
tes vosso fer, tem virtude ('eel->
las só tem esta virtude) para de
tal modo apagar todos os pec-
cados , como se nunca foraõ
conunettidos. . 0: 'Vú , k. :!.'.-. -;'î
- :. ' . - .- A .< '. .. -. . 1

Je*
no Tratado breve

AccusaçaS de fi mesmo.

I. H quanta foi até


Vyagora a minha ne
gligencia ! Como esperdicei o
rempo concedido para me con
verter , e emendar ! Como re
sisti aos auxílios da vossa graça ,
e me fiz surdo ás vozes , com
que me chamaveis I Errei co
mo a ovelha, que se desgarra.
Que tenho que dizer , senaõ,
que sou miseravel ? e em que
tenho que esperar , senaõ em
que sois misericordioso ?'
IL Pequei diante de vossa
presença , diante de vossos olhos
commetti a maldade , para ler
des justificado em vossos juizos ,
e fali irdes vencedor.
III. Eis-aqui está o que tor
nou a crucificar vosso Filho:
. Eis-
da OraçaS Mental, nr
Eis-aqui a mais abominavel, e
ingrata creatura de quantas a
terra sustenta , e o Sol cobre :
nem o poíïb, nem oquero ne-
gar. Confesso minha maldade :
nenhuma desculpa renho que
allegar diante de voíïa justiça :
minha culpa , minha culpa , mi
nha maxima culpa.

Confusao propria»

I. "^T A6 sei , Senhor , co^


JL t| mo tenho cara para
apparecer diante de vofla Divi-
na Magestade ! Se meus pecca-
dos foraó leves , se foraõ pou-
cos , se nascêraó fomente de
ignorancia , se o offendido naó
fora meu Redemptor , que mor-
rco por mim , já o pejo.fora
mais coleravel : mas^ay de mim ,
que íàó graves, e îauitaífno^.
ii2 Tratado breve
mes , e repetidos muitas vezes ,
e diante de meu Deos , que me
comprou com a sua vida em hu
ma Cruz ! Oh que vergonha
esta ! que confusao ! Montes, ca-
hi sobre mim , e escondei-me ,
se he possível , da face de meu
Deos.
II. Que diria de mim o
meu Anjo da Guarda , quando
me estava v^ndo offender a
Deos ! Em que conta estaria eu
no conceito de meu Senhor Je
sus Christo, que he a mesma
honra , decoro , e santidade !
Ah peccador cego , ingrato,
e infame ! A quem servias ? Ao
diabo , em iugar de servir a
Deos ? Por certo era bem acer
tada troca : tal foi a dos que es
colheraõ a Barrabaz.

Des-
da OracaÔ Mental. 113

Desconfiança de fi.

I. T) Eceadnr , ainda que-


JT res mais experiencias
de tua fraqueza , e inconstan
cia ? Acaba de crer , que de tì
naó podes nada , nem levantar
do chaó huma palha , se Deos
te naó ajudar. Es estatua com
pés de barro : se a pedra de
qualquer occafiaó te toca , estás
desfeito em pó : es cana fragil ,
que qualquer vento a dobra: se
te fundas em ti , edificas sobre
arêa , e em vindo a tempestade
padecerás ruina.
II. OIi quanta miseria ,
quanta fragilidade , quanta ig
norancia ! Naó tem chaó este
poço : parece que sou omni
potente para o mal : dos tres ini
migos da alma , eu proprio sou
o
H4 Tratado breve
omais prejudicial, emais con
tinuo, e mais astuto ; e assim sou
peior , que o demonio. Quem
M fia de si, bem se pode fiar do
demonio: efe do demonio nin
guem póde fiar- se , muito me
nos se póde fiar de si.
III. Quantas vezes promet-
ti a Deos emenda , e quantas lhe
faltei ? Quantas tenho começa
do , e tornado atrás em meus
propositos ? De huma hora para
outra sinto o coraçao mudado
mais facilmente, que as folhas
se mudao com o vento. Eu sou
o que loucamente imaginava de
mim , que era hum grande ho
mem , e estranhava os defeitos
dos outros. Oh que cegueira !
IV. S. Filippe Neri dizia
de si neste sentido : Estou deses
perado. E outra vez : Senhor,
guardai-vos de mim > que a cha
ga
DA ÛRAqAO MkNTAL. I
ga do lado vo-la farei maior.
Se o Santo sentia de si taó baixa
mente, que devo sentir eu?

Confiança em Deos. -

I. A Lma minha , de
jLx. que te turbas ? por
que te desanimas ? De ti naó
podes nada ; mas com a graça
de Deos , que te conforta , tu
do podes.
II. Alma minha , tens gran
de Deos , e para cujo poder tu
do he facil , e que elcolhe as cou
sas fracas para com ellas con
fundir as fortes : em nome de
Deos , huma funda te basta con
tra hum gigante : mete-te nas
maós de Deos , e ficarás conver
tido de cana fragil em aço fir
me. Quem confiou neste Se
nhor , e sahio confundido ? Se
que
Il6 TRATADO BREVE
queres que Deos te ajude mui-
to , confia nelle muito.
III. Quem fez de perscgui-
dores Apoítolos ? A graça de
Decs. Quem fez de publicanos
Evangeliítas ? A graça de Deos.
Quem fez até meninos defpre-
zarem os Reis , e Tyrannos
com todos feus tormentos ? A
graça de Deos. Quem faz em
tantos Santos , que o coraçact
humano feja amigo da Cruz , da
affronta , e do defprezo ? A gra
ça de Deos. Oh graça de Deos ,
como és poderoía ! Tu ferás a
penha viva , sobre a quai edisi-
carei minhas pretençoens , eat-
lentarei minhas efperanças.
Temor de Deos.
I. A Ntes quero fugir
il para o ínferno , do
que Yer o rosto de Deos irado.
As
da ORAqAÔ Mental. 117
As palavras , que sahem da sua
boca, saó espada cortadora de
dous fios , que penetra atéoes-
pirito ; e hum rio de fogo abra-
zador , que tudo Ihe desappa-
rece diante. Em presença da
Magestade deste graó Senhor as
columnas do Ceo se estreme-
cem. Quem vos nao temerá ,
oh Rei soberano , e omnipo
tente ? Quem escapará da vos-
sa ira, ou quem se poderá de
fendes de vossa justa indigna-
caó ?
II. Horrenda cotisa he ca-
hir nas maós de Deos vivo.
Naõ entreis, Senhor, emjuizo
com vosso íérvo : que de mil
perguntas , e cargos , que me fì-
zerdes , nao sabcrei responder
a huma ; nem diante de vos se
justificará nenhum vivente. Vos-
sosjuizos saÒ hum abysmo gran-
F de
li 8 Tratado breve
de» e basta serem voffòs , para
ferem justificados. ; -
III. Naõ temas , alma mi
nha , os potentados da terra,
que o mais que podem fazer,
com permiísao de Deos, he tirar-
te a vida : teme aquelle Senhor ,
que póde lançar tua alma , e
corpo no fogo eterno. Oh Se
nhor, por amor de vós mesmo
vos rogo me nao lanceis devoi
la presença , nem tireis de mim
o vosso Espirito Santo. Atraves
sai com vosso santo temor meu
coraçaõ , para que me nao as
saste hum ponto de vossa Lei.

Desprezo de si.

I. s\ Uem sou eu , quem


V-/ fui , quem serei , e
que posso ser ? Fui
nada, sou lodo, serei bichos,
e
da OraçaÔ Mental, it<>
c poíîb fer peior , que o Infer
no. Oh de quantas miserias es
tou cercado em corpo , e alma !
Oh se a maó de Deos me naõ
sustentara por momentos , que
monstro de abominaçoens fora!
II. Que tens de bem , al
ma minha , que naó recebesses
de Deos ? E se o recebeste , de
que te ensoberbeces , como fe
fora proprio ? Para que te enga
nas contigo mesma ? De que te
empinas , e tomãs orgulho , tu
que naó sabes se agradas a
Deos , e sabes muito bem , que
o desagradaste , e offendeste
gravissimamente ? Nada es , na
da podes , nadá' vales. '-' - í
III. Ouzias à levantar olhos
para o Ceo , tu que por miseri
cordia de Deos naó ardes já ho
Infl-rno ? Ouzas a tomar vanglo
ria diante de Deos dos dons , e
v - F ii mer-
çiQ ..Tratado breve
mercas do mesiiia Deos ? Na
sua casa furtas a honra ao mes
mo Deos ? Quem es tu diante
de Deos ? Que sentirá este Se
nhor de ti , que conceito fará de
tua .pouquidade , e miseria ?
Pois acaso podes tu ser mais na
realidade , do que es nos olhos
de Deos ? Olha para ti , naó
fujas de te ver no espelho do
desengano : conhece- te , e as
senta por huraa vez , que es
nada. . u-> -
IV. Bem considerada a ver
dade , nao ha em mim cousa sá ,
ainda depois que Deos me al-
luruiou, No amor Deos , e do
proximo sou hum regelo , e pa
ra o meu amor proprio sou hu-
ma braza viva : sou diligente
para as cousas do mundo , des
cuidado para as do Ceo ; a mi
nha Oração naõ tem de Oraçao

\
i5A ÛRAq.\Ô Mental. 121
mais , que o nome , a minha pe
nitencia he de amigos ; nas ac-
çoens naó ha modéstia , nemnas
palavras discriçao , nem sobre
o coraçao vigia, nem nos senti
dos freio. Como me lembraó
os aggravos ; e como , em me to
cando algum desprezo , os mon
tes de minha soberba fumegãó i
Onde está aqui o fundamento
para presumir ? Naó he isto ser
til , e desprezivel ? Para mim
este ponto deve ser taó certo , e
indubitavel , como se fora de
Fé.
V. De verdade o meu lu
gar he aos pés de todas as mais
creaturas. Muita mercê me faz
quem me injuria;, quem : me
despreza: he obra de justiçai, e
de misericordia ; de justiça ,
porque despreza o desprezivel ;
de misericordia , porque me
F iii aju-
122 Tratado breve
ajuda; a conhecer-me por esse
modo. No ponto, em que eu ima
ginar outra cousa , vou perdido.

Desprezo do mundo.

h f\ H como saõ vis , e


\_S desprezíveis todas
as cousas terrenas , quando po
nho os olhos nas celestiaes ! Bem
considerado o mundo , sua gran
deza he pequenhez , sua abun
dancia pobreza , sua sciencia
ignorancia , suas alegrias tris
tezas , sua luz trévas, sua feli
cidade miseria : aqui a honra he
hum pouco de fumo , a fazenda
he huma pouca déterra, e a vi- 1
da he servir á corrupçao... :-r;.-.
II. Pafla o mundo como fi
gura , e todas as couías , que
nelle ha , por momentos iè mu-
daõ. Vaidade de vaidades , e
.. ; ï '.' tu-
da OracaÒ Mental. 123
tudo vaidade : só o amor de
Deos permanece, e o premio,
que noCeo nos está preparado.
III. A Deos mundo : nada
teu me enche os olhos: todo es
huma mentira armada de infini
tas mentiras. Quem bebe do
teu calix dourado , no fim lhe
amargaó as fezes : quem se co
roa de tuas flores , por baixo o
lastimaó os espinhos. Basta já
de enganar-me contigo : naó
queremos mais paz , nem de ti
espero cousa , que me satisfaça.
IV. Acima coraçaó: lá no
Ceo tens os bens verdadeiros,
para que foste creado. A terra
naó he senaó lugar de trabalhos,
de mudanças , de enfermidades *
dementiras, de desgraças , igA
norancia , malícia, e peccado;
e tudo vem a parar na morte , e
em hum incendio universal , em
F iv que
124 Tratado breve
que se ha deabrazar o mundo.
Só quem o naõ conhece o es
tima.

Imitaçao de ChriHo.

meu Deos foi


j : J taõ misericordioso pa
ra com os homens 3 que os quiz
ensinar pela propria peíloa de
seu dileftiffimo Filho , e para
àsso o mandou á terra , e o pro-
poz por exemplar de todas as
virtudes : eu quero , mediante
a sua graça , aprender por es
te exemplar. Elie disse , que
era caminho, verdade, evida:
pois se eu o creio como verda
de , e espero alcançallo como
.vida , quero tambem seguillo
como caminho.
II. Este he o caminho , al
ma minha , naõ tens que buscar
ou-
da ORAqAb Mental. 12?
outro. Oh como he direito , e
seguro , e cheio de luz ! -faze
conforme o exemplar , que te he
mostrado no monte Calvario,
e vás certa de que agradas a
Deos. O Eterno Pai deo teste
munho no monte Thabor de
que este era sem Filho , que
muito lhe agradava , e que ou-
vissemos a sua voz. Ouvir a sua
voz he seguir a sua doutrina :
segue a sua doutrina , e agrada
rás a Deos. : i '.v . '. «
UL Repara -, 1 que nenhum
Santo ha , nem houve , nem ha
de haver, que naó caminhasse
pelos passos da imitaçao deste
Senhor : e quanto melhor o imi
tarao, mais santos > e perfeitos
foraó. Por certo naô está este
original escondido a teus olhos,
estando manifesto aos de to
dos : olha tambem para elle,
ii6 Tratado breve
e vai lançando as tuas linhas
como puderes, que elle te aju
dará. Vês como he pobre de es
pirito ? pois naó sejas afferrado
aos bens da terra , nem ainda
aos dons de sua graça. Vês co
mo perdoou as injúrias ? pois
naó desejes tu vingança. Vês
como fugio das honras ? pois pa
ra que as buscas ? Vês como
toda sua vida foi trabalhos , e
Cruz ? pois naó tenhas horror á
Cruz, e abraça-te com os tra
balhos. Isto he ser Christaõ na
substancia , e naó somente no
nome.
IV. Deos posto em huma
Cruz ! e por aquelles mesmos a
quem honrara , e fizera tanto
bem ! espirando com morte taô
afrontosa , tao pública , taõ
cruel ! escarnecido , infamado ,
desamparado ! e tudo pelo ar—
4 . den-
da ORAqAÒ Mental, itf
àentiflimo amor , que teve aos
homens! Alma minha, que te
demandaó estes exemplos ? em
que obrigaçaõ te poem ? Deves
ler mais humilde , que o pó da
terra ; deves crucificar o teu.
amor proprio , deves amar , e
soffrer a todos , deves ser san
to: até agora naô cuidaste dis
to , como se Christo viera ensi
nar as pedras a quebrarem-se ,
e naó a ti que quebres de tua
condiçaó , de tua dureza. Ain-*
da he tempo de começar : ap-
plica-te , e começa.

Ojserecimento dos mereci


mentos de ChriHo aseu
Eterno Fai.

I. s\ Mniporente Eter-
V^/ no Deos , eu vos o£-
fereço , conlãgro , e dedico to-
F vi das
123 Tratado breve
das as obras , e trabalhos , que
yosso dilectissimo Filho , e meu
Senhor Jesus Omito , obrou , e
padeceo por vossa gloria , e nos-
sa salvaçao : aplaque-se vossa
justiça com o sacrifício desta
tiostia purissuna , santissima , e
preciosissima.
II. Senhor , vossa Mages-
tade foi servido de dar-me a seu
Unigenito Filho para me ensi
nar , remir, e salvar : agora eu
o torno a dar a vossa Magestade ,
para que por elle , nelle , e com
elle receba toda a honra , e to
da a gloria.
III. Eterno Deos , Princw
pio sem principio , e Pai de
meu Senhor Jesus Christo : por
que sei , que as obras de voflo
Filho vos làõ infinitamente mais
aceitas , e agradaveis , que as
de todos os Santos juntos, eu vos
da OraçaÔ Mental. 129
offereço todos os merecimentos
desteSenhor, desde o instante,
em que incarnou , até o instan
te , em que espirou na Cruz:
lembrai-vos da sua pobreza ,
mansidaó , paciencia , <j carida-
de : lembrai-vos de feus traba-
lhos em todo odiscuríò de sua
paixao; daquellas angustias no
Horto, daquelle iilenciodiante
dos Pontifices j daquella dor, e
pejo quando foi amarrado á
columna ; daquella afronta , e
cançasso quando levou a Cruz
pelas ruas de Jerusalem entre
dous ladroens ; daquelle desam-
paro quando se queixou na Cruz :
tudo vos offereço como sacrifi-
cio , que encheo plenissimamen-
te todas as medidas de voflb
agrado. Agora , Senhor, pon
de os olhos no Filho innocente ,
e perdoai ao servo peccador.
Je-
I30 TRATADO BREVE

Acçaô de graças.

I. Ue corresponden-
f cia terei com meu
f Deos , por tantos ,
e taõ grandes bencficios , que
me tem feito? Nenhuma outra
póde dar-lhe a pcbre creatura ,
lènaõ o reconhecimento desses
meímos beneficios comcoraçaõ
rendido , e affectuoso. Insinuas

favel caridade , e dignaçaÔ ,


com que tratais este servo inutil ,
que naõ merece senao estar ar-
dendo nos infernos.
.II. Senhor , se eu quizera
contar as mercês , que me ten
des feito , quando acabára de as
contar? Vós me creastes á vos-
sa imagem , esemelhança; vós
me déstes hum Anjo , que oie
»', - acom-
da ÛRAqA.5 Mental. 13 r
acompanhasse , e defendesse ;
vós me allumiastes comaluzde
volTa Fé ; vós me chamades com
mìsericordia , e esperastes com
paciencia ; vós me sarais a aima
com vossa graça ; vós me susten
tais com vossa Providencia ; . vós
me dais vosso Corpo , e Sangue ,
eAlma, e Divindade no Santiíi
íïmo Sacramento do Altar ; vói
me convidais para viver com-
vosco eternamente no Ceo : naõ
ha hora , nem momenta -, era
que me naó estejais fazendo
bem. Oh que bom Deos ! Oh
que bondade taó fina , raó dek
intereíTada ! Bemdito seja , e
louvado , e magniíìcado para
sempre vosso nome : gloria , e
honra , e louvor vos seja dadû
por todas as creaturas , por te*
da a eternidade : tomára que o
meu coracaó fora, infini tos cora^
çoens
13 z Tratado breve
çcens para vos sacrificar todos
em agradecimento de tantos be
nefícios.

Aniquilaçao própria.

. I. 3VT Ada sou, nada pos-


JL\I lo, nada valho. De
nada fui creado , e em nada me
tornarei , tanto que me loltar a
maó de Deos. Sem o auxilio da
graça do Eípirito Santo, nem o
nome de Jesus posso tomar na
boca, de iorte que me aprovei
te ; nem hum ló peníamento
bom poflo fazer , se Deos mo
naó inspirar , e me ajudar a fa-
zello.
II. Que sou eu a respeito
da redondeza da terra ? naô ap-
parece o meu fer. Que he a
terra comparada com o Firma
mento? hum pontosinho. Que
da OraçaÒ Mental. 133
lie o Firmamento comparado
com o Empyreo ? outro ponto.
Que he o Empyreo comparado
com a Immensidade Divina ? he
como senaó fora. Logo que se
rei eu na presença de Deos , e
que vulto fará o meu ser diante
de sua grandeza infinita ? sou na
da , e se pudesse ser , menos que
nada. Como se atreve o nada a
presumir de si diante do infinito
ser 2
III. Se as minhas obras (no
caso que alguma delias , ou to
das foraó boas ) se puzessem
apar das que fizeraõ os Santos,
que cor teriaô , ou quem pode
ria olhar para ellas ? Eseappa-
recessem diante das virtudes de
Maria Santissima Senhora
nossa , como ficaria corrida mi
nha pobreza ? De verdade sou
nada: quem me faz sospeitar o
con-
134 Tratado breve
contrario , me faz huma gran
de traiçaó. Assentemos nisto:
naó nos levantemos do nosso
centro.

Adoração.

I. A O Rei dos seculos


immortal , e invisí
vel , hum só Deos , honra , e
gloria por seculos de seculos ;
gloria ao Padre , e ao Filho,
e ao Espirito Santo , aílim co
mo era no principio, agora, e
sempre , e por seculos de iecu*
los. Amen.
- II. Prostrado ante o acata
mento de; vossa soberana , e in*
comprdiensivel Magestade, vos
adoro , reconheço , e confesso
como a supremo Senhor meu ,
e de tudo o que tem ser.
III. Se tivera em minha
maõ
da Oraç\Ò Mental. 135*
maó todo opoder, egloria, e
fenhorio dos Ceos , e terra , o
rendêraao péde vosso real thro-
no : porque fo vós fois Senhor ,
só vós sois digno , fó vós fois o
Altissimo , que vive , e reina
fera principio, fem fim , e fera
mudança. . ..
1
- . Refignaçao.
«r
L ■ / Aça-se em mim , de
> ..JD mim , e ácerca de
mim -, e de todas minhas cousas ,
agora , e fempre , no proípero ,
e no adverso vossa santissima
vontade: Fiat, Fiat.
II. Disponde de mim, Set.
nlmr , como Senhor que sois ,
e muito ao vosso bencplacito :
naó soumeu, fcnaõ vosso: vos
sa he a minha saude, e vida;
vossa a minha f'azenda , e honra ;
r. : voi-
igó Tratado breve
voflos os membros de meu
corpo , e os sentidos , e poten
cias de minha alma ; vosso he
tudo o que sou , e valho , e pos
so ser , e valer : obrai como for
mais agrado vosso : e fazei cora
vossa graça , que esta minha en
trega seja de coraçao , e de ver
dade.
III. Naõ quero outro que
rer , ou naó querer , Tenaó o
voflo : nada me succeda como
eu intentar, se eu intentar cou
sa , que vos naó agrade : naó
se una a vossa vontade com a mi
nha , a minha se una com a vos
sa : e de tal sorte se una , que se
ja huma só vontade.
IV. Quem reina , quem
vive , alma minha ? Reina
Dcos , e vive Deos : e tu es a
que has de servir , e obedecer,
morrendo a ti, para que Deos
viva
da OraçaÒ Mental. 137
viva em ti. Pode haver major
dira para ti , que fazeres a von
tade de Deos ? Bom he , Se
nhor , o vosso Ceo : mas.melhor
he a vofla vontade. -:—»«
- Y. Para que íbu eu crea ru
ra > senaó para fazer a vontade
de meu Creador ? Para que sou
barro , senaó para tomar a figu
ra, que me quizer dar o meu Ar
tifice , sem contradizello ? Para
?|Ue sou membro de Christo.,
enaô para me unir com esta Ca
beça ? E para que sou ovelha
sua , senaó para seguir a voz do
meu Pastor ? Faça-se em mim a
vontade de Çhristo : Fiat , Fiat*

Louvor de Deos. . l: 'ss.

. I. T Ouva, alma minha,


.1 V a teu Deos ; louva ,
exalta , ç magnifica seu admir^
'j " . vel
I38 TRATADO BREVE
vel nome por seculos de secu-
Oh quaó boni he Deos em
si hiesmb, equaó boni he para
ti ! Suas perfeiçoens sao infini-
tas , feus beneficios para conti-
go saóinnumeraveis. Vinde so
das as crcaturas , que habitais
na terra , e debaixo do abysino ,
no Ceo , e sobre as alturas ; vin-
d'e, e servi de linguas para en-
grandecer o vosso Author , e de
coraçoens para o amarJ'
"LÏI. Bemdize , alma minha,
a teuDeos; etodas minhas en-
tranhas louvem feu santo Nome.
Oh qua6 poderoio he , quaõ sa-
bio , quaõ justo , e misericordio-
so ! que immeniò, eterno , e im-
mutaveH Gomo he secreto em
feus conselhos , fiel em suas pro-
messas , verdadeiro em suas pa-
lavras , terri vel em feus juizos,
fuaye em suas communicacoens ,
e
da OraçaS Mental. 139
e santo em todas suas obras ! Ze
la , e naó perde a pàz ; dá , e haõ
perde o domínio ; castiga, e na6
perde o amor. Todo he olhos
para conhecer , todo maós para
obrar : nenhum lugar o èinge-, e
com todos os lugares se penetra :
nenhuma duraçao o mede, e to
das as duraçoens possue em hum
fó indivisivel sem principio ,
sem fsm , sem successaó , ou mu
dança. Cheios estaó os Ceos ,
e rerra da Magestade de sua
gloria : seja o nome do Senhor
bemdito por séculos de seculos.
Amen.
III. Oh grande Deos , e
louvavel infinitamente ! Quem
podéra render á voísa formosu
ra , e bondade a minima parte
dos louvores i que merece ! Se
todas vossas perfeiçoens saó
ineffayeis , e incomprehensiveis ,
140 Tratado breve
louvai-vos a vós mesmo ; que só
vós comprehendeis vossa bon
dade , íó vós conheceis o que
em vós mesmo tendes.

- Admiraçao da grandeza
.;. de Deos.

OHquaõgrande he este Se
nhor em tudo ! Se pre
mia , dá- se a si mesmo : se casti
ga > dá hum inferno para sem
pre : se ama , offerece seu peito
a huma lança, e dá a beber seu
Sangue, e a comer seu Corpo.
Toda a vida de hum homem ,
que he seu inimigo , lhe está es
perando que se converta ; e
por hum Peza-me se esquece
de todas suas injurias. Abrio a
maõ , e semeou o Ceo de estrel-
las : acenou ao mar, eretirou-
ie encolhendo as suas ondas : as-
- . -i so-
da Ora qAÒ Mental. 141
soprou na face do homem , e fi
cou á sua imagem. Com huma
palavra sua foi Universo o que
era nada , e o poder todo do
Universo naõ pôde fazer humá
só aresta : com o madeiro de
huma Cruz escalou o Inferno,
matou a morte , e resgatou o ge
nero humano. Tanta grande
za ! tanta magestadê ! tanto mys-
terio ! cousas tao inopinadas ! e
sempre- mais , e mais ! Naõ ha
dar fundo aos seus abysmos. Os
entendimentos maiores , se por
mercê sua conhecem alguma
partesinha de suas grandezas,
areaõ ; e se querem levantar o
voo, cahem opprimidos, e ce
gos do escuro resplandor de sua
gloria. Milhoens de Espiritos
Angelicos estaõ suspensos em
sua vista , e lhes fica infinito
por comprehender. Alma , para
G gian-
142 Tratàdo brevê
grandes cousas foste creadal
í^uem he como Deos ? Enco-
liie-te quanto podéres em íeu .
acatamento : venera-o com pro-?
fundo íllencio , e fogeiçao ren-
didiflima.

Defejos de ver a Deos.

i ls /^\H summo bem , e


VL/ ultimo fi m , para
cujo logro fui creado , Deos
meu , e Senhor meu , objecto de
minhas efperanças , e alvo de
meus defejos! Por vós chamo,
por vós anhelo , a vós fuspiro
defde este profundo valle de
miferias , onde vivo desterrado
de vosta prefença ; fe he que
hum desterrado de vossa prefen
ça póde dizer-se , que vive ;
pois a sua vida consiste' fó na
vossa vista. Oh quando chega
da ORAqAb Mental, 143
ei a lograr esta vista , e esta vi-
a; vidaeterna, vidabemaven-
urada > vida viva !
II. Oh quem me concedera
zas de pomba , para voar , e
eicançar em vós ! Que formo-
os , e amaveis sao vossos taber-
aculos , Senhor Deos das vir-
udes ! A minha aima anhela,
: desfalece por entrar nas vostas
noradas. Oh quando chegarei
apparecer diante de voflo ros-
o ] Que tenho eu na terra , e
in da no Ceo , fóra de vós,
)eos de meu coraçaó , e todo
peu bem eterno ! Abreviai ,
íenhor , este prazo ; queaelpe-.
ança , que se dilata , afflige a
lnia : mostrai-me vostb rosto , e
yei salvo : mostrai-me vofla
rande misericordia , e dai-me
fím de minha lalvaçao.
III. Oh se hoje neste dia,
G ii oh
144 Tratado breve
oh se agora neste instante me e
chamáreis para vós ! Oh se íbá- (
ra a vossa doce voz em meus ou-;<
vidos , e me dissereis : Levanta-^
te , alma , e dá- te pressa , queja \
passou o inverno , e tempestade
dos trabalhos , e he chegada a
primavera do descanço : vem do
deserto ; vem , eserás coroada 1
Como me alegrara , ainda que
sou indigno de tanto bem! Co
mo nada do mundo me íizera
falta , nem detença ! Como voa
ra mais veloz a vossos pés , do
que a aguia á sua preza !
IV. Meu Deos , inquiete
está o meu coraçao, emquante
naõ descança cm vós : vazia eíVá
a minha alma , em quanto vós ï
nao encheis : a minha alma h<
estampa de vosso rosto , e o vos
so rosto he sellò da minha alma
que cousa póde ajustar-se com ;
estam
da ChtAqAÔ Mental, itf
;stampa, senaõomesmo sello,
:jue a figurou ? Equecousa pó-
íeencher a minha alma, senaõ
i luz de vóíso rosto , que a for-
tiou ? Oh selío de ouro , oh sel
lo preciosiUïmo da Santiflìma
Trindade: vinde, e reformai;
vinde , e.enchei; vinde, eajuf-
tai-vos á voíTa estampa.
V. Meu Deos , naõ tardeis
tanto : accelerai- vos , e tirai-me
desta terra de miserias : morra
eu para vos ver , e veja-vos para
viver eternamente. Oh vida mor-
ta , acaba de morrer , para que
eu comece a viver a vida viva.
Desejo ver vossa formosura ,
desejo aìcançar a minha orï-
gern , desejo buscar o meu cen-
tro : vós fois mar , e eu fou rio ;
vós fois centro , e eu fou pedra :.
oh entre já este rio no feu mar ,
ache esta pedra p feu centro.
G iii De-
I46 TRATADO BREVE

Desejes-de padecer por amor


de Christo.

I. f\ Uem differa , Se-


nhor, que na vossa
Cruz se encerrava
tanta fuavidade , e doçura ; rias
vossas afrontas tanta honra , e na
voffa pobreza tao inestimaveis
thesouros? Oh quanto val hum
instante de estarcrucificado com
Jesus ! Indigno fou de vossa
gloria ( he cousa ciara ) : mas
he taõ grande gloria a vossa
Cruz , que por mais indigno
me julgo da vossa Cruz , que
da vossa gloria.
II. Oh quem podéra aper-
tar bem dentro do coraçao os
vossos espinhos ! poderá fer que
(ainda que he má terra) pegaf-
lem , e dessem flores para vos
ador-
da OracaÔ Mental. 147
adornar o leito. Oh quem co
meçara a ser voflb discipulo,
naõ desejando nada do que se
vê com os olhos , íenao o pade
cer comvosco por vosso amor 1
III. Oh alma minha , que
estranho espectaculo he este,
que estás vendo naquelle mon
te ! O Filho deDeos em huma
Cruz , pregado de maõs , e
pés , manando rios -de sangue ,
nú , escarnecido , e vituperado ï
Que fazes , em que te occupas ,
por onde caminhas até agora ?
Naõ ha outro caminho senaõ a
Cruz: esta deve ser a? tua com
panheira inseparavel por toda a
vida , este o teu thesouro , o teu
estudo , o teu amor , e a tua
gloria.
IV. Senhor , se o repartir
des comigo das voilas penas ,
vo-Jas pode aliviar, dai-medas
vos-
I48 TRÁTADO BREVE
voíTas penas , do voflo calix ,
dos voíïos desamparos. Vós íà-
beis o que eu posso , que he na-
da: mas vós podeis fazer, que
eu possa tudo : vamos , e morra-
mos comvoíco ; que morrer
comvosco, verdadeiramente he
viver : venhaõ sobre mim todos
os tormentos do mundo , e do
Infer.no , com tanto que aílïm
vos ag'rade. ..

Compaìxao das penas


. . de Çhristo.

I. TVT Inguem houvç,. oh


î: ; JlN bom Jesus, que
acodisse por vós diante de vos-
sos accuiadores ? Ninguem se
lembrou de vossos benefiçios , e
maraviihas ? Ninguem reparou
no vosso rosto, em que estavaõ
resplandecendo a caridade , a
man
da OraqaÔ Mental. 149
nansidao , e a innocencia ? To
los pregáraõ a boca para defen-
ler-vos , todos soltáraõ as lin-
juas para calumniar-vos ? Oli
:omo estais desamparado ! Hum
liscipulo vos vende , nutro vos
lega , e todos vos fogem : o vos-
b povo , que havia tantos secu-
os espcrava por vós , esse vos
xmdemna , sentencea , e crucifi-r
:a: corre por certo , que sois
R-ei fingido , hypocrita , mal-
feitor, e amotinador do povo :
2 vosso Eterno Pai dissimula.
Oh dulcissìmo Jesus , oh man-
fo Corde iro de Deos , oh Ai
ma da minha alma ! Deixai-me
tornar para o meu naõ fer , don-
de me tirastes , e naõ veja eu tal
eí'pectaculo. Melhor estou com-
tigo , oh Sol , que te escureces-
te ; melhor estou comvosco , oli
pedras, que. vos quebrastes , do
G y 1ue
i^o Tratado breve
que com os coraçoens humanos,
que á vista de hum Deos cho
rando , e clamando , naó se que-
braó , naó se derretem em la
grimas , naõ se exhalao em sus
piros.

Zelo da honra de Deos.

A Onde estais, creaturas, que


se vos naó dá da honra
de vosso Creador ? Só a causa
de Deos ha de fer a mais des
amparada ? Todos buscaó o que
he feu , e ninguem o que he
de Jesus Christo ? Oh quem
podéra meter fogo em todos os
coraçoens dos filhos de Adaó;
fogo que os fizera voar á sua es-
féra , que hedar gloria a Deos !
Quem vira o nome de Deos co
nhecido , e respeitado por toda
a redondeza da terra ! Oh se na
» .» ter-
da ORAqAb Mental, rji
terra se fizera a vontade de
Deos como no Ceo ! Quem po-
déra impedîr huma íb offensa
sua com todo o sangue de suas
veas ! Quem clamára por essas
praças : fíomens , a quem te-
meis, se naó temeis a Deos- ? e
se naó amais a Deos , a quem
amais ? Senhor , vós que podeis ,
ponde o remedio : consolai as
almas , que vos querem bem ,
santificando vosib nome , dai a
voíso nome muira muita gloria»

Longanimidade. . '

I. T) Orque desmaias , al-


- . - A ma minha ? Por ver
te chea de peccados , cercada
de miserias , perseguida de ini-»
migos ? Impollìvel he scres taó
peccadora , taó miseravel , etaC*
fraca , quanto Deos he San.to 3e
G yì jMi-
içi Tratado breve
Misericordioso , e Omnipoten
te : desvia os olhos de ti , e em-
prega-os em teu Deos , e recebe
rás conforto.
II. Confiai , Filhos , disse
Christo Jesus a seus Discípu
los , confiai , que eu venci o mun-
co. Oh como he certo , que as vi
torias de Christo saõ a confiança
dos peccadores ! Venceo Chris
to o mundo , venceo o Inferno ,
venceo a morte , venceo o pecca-
do ; e naõ poderá vencer-te a ti ,
c fazer , que venças tudo ?
III. Dilata o coraçaõ , e
para o dilatares , vaza-o do
amor proprio , enche-o do amor
de Deos ; que o amor de Deos
he o que dilata os coraçoens , e
o amor proprio o que os aperta.
Deos he immenso , mete a Deos
em teu coraçao , e terás hum
coraçao immenso..
da OraçãÔ Mental. i^3
IV. Cahiste outra vez em
tuas miserias antigas ? Mais an
tigas saõ em Deos as suas mise
ricordias : e para vires a cahir
nas suas misericordias , permit-
tio Deos , que cahisses nas tuas
miserias. Esse es tu : que menos
esperavas de ti ? E este he Deos:
que menos deves elperar delle ?
Tu deímaias por veres , que es
quem eras , e naõ te animas por
saber , que Deos he o que sem
pre foi ? Já Deos naõ tem po
der , nem graça , nem clemen
cia ? Elle te fez de barro , es
peravas , que fostes de diamante ?
Torna-te para Deos; que o amor
de qualquer pai naõ cança tad
depressa , quanto mais o de
Deos. ; /
V. De que desanimas ? Por
que as difficuldades saõ muitas ,
e cada vez descobres maiores ?
Deos
154 Tratado brevê
Deos te ajuda , que he maior ,
que todas : Obra tu sempre , mas
que seja pouco , e pouco : se te
encolhes , e cruzas as niaós , fa
zes o gosto a teus inimigos : o
aperto de coraçao para nada
ferve: o teu auxilio vem de ci
ma , vem do Senhor, que fez o
Ceo , e a terra : naó estendas o
temor ás difficuldades , quehaô
de sobrevir: obra hoje, e ama
nha Deos sabe o que será : bas-
ta-lhe a cada dia a sua malicia :
alegra-te em Deos , e elle te da
rá o que lhe pedir o teu cora
çao : os Santos , que fizeraó
cousas admiraveis , eraó de car
ne , e sangue como tu ; mas aju-
dáraô-se de Deos : tambem ti-
veraó peccados , e imperfei-
eoens ; mas procuráraó sempre
jazer-lhes guerra.
Estes saÕ os principaes afe
ctos ,
da ÛRAqAÒ Mental. if$
ctos, que a alma póde exercitar
a feu modo , conforme o pedir a
occasiaó, e o ajudar o impulso
do Espirito Santo , que he o Da
vid, quesabe tocar estas cordas
da cithara interior com grande
fuavidade , e destreza. Agora
passemos dos affectos aos pro-
pofitos ; que era a outra obra ,
que diziamos pertencer ao exer-
cicio da vontade.
§. XIV.
P. Ue coufas faó as
\J que devo propôr ,
ou aflentar comigo
na Oraçaó, para depois execu*
tallas ?
R. As partìculares , a occa*
siaó, enecessidade decadahum
lhas ensinará. As geraes , e ein
que naõ póde haver perigo ,
podera fer as feguintes.
Fre»
1^6 TrATADO BREVE
Frequencia de Sacrameiitos com
difyosiçaõ.
Mortificaçaó dos scntidos , jui-
zo, e vontade propria.
Exercicio das obras de miseri-
cordia com o proximo.
SofFnmento das injurias , mo-
lestias , e calumnias.
Penitencia scm indiscriçoens ,
nem exterioridades.
Perfeicaõ das obras ordinarias
de cada dia.
Devoçaó com o Santifîimo Sa-
cramento, e Maria Senho-
ra noíTa , e com o meu An-
jo da Guarda.
Mansidaó , e affabilidade no
trato com os proximos.
Confiança em Deos , e descon-
fiança de mim proprio.
Liçaó attenta de livros espiri-
tuaes.
Moderaçaõ da lingua , e pre-
- .1 ce-
da OrAq a 5 Mental. 15-7
cedendo a consideraçaõ ás
palavras.
Temperança na meza , cama ,
vestido , &c.
E outros semelhantes. Mas im
porta naõ propor muitas cousas
juntas, porque costuma ser cau
sa de nenhuma se cumprir. Por
onde seria acertado reduzir es
tes frutos a alguns ainda mais
geraes , com que se lidasse sem
pre , e que alcançados elles en
riquecem por huma vez a al
ma.
P. Quaes podem ser estes ?
R. Os tres seguintes. I. An
dar em presença de Deos. II.
Fazer guerra ao amor proprio.
111. Trazer o coraçao humil
de , e quieto. Toda via se o
exercitante acha , que por serem
estes frutos tao geraes , se naõ
applica a elles como deve , e
dei-
I58 TrATADO BREVE
deixa passar as occasioens de
exercitallos : mais util lhe fera
propôr cousas particulares , e
apanhar ao dedo espiga , e es-
piga , visto que naó póde abra-
çar , e segar muitas juntas.
P. Quando a alma padece
éscuridade , e desamparo inte-
rior , he tempo de assentar com-
lìgo alguns propofitos ?
R. Naõ proponha , nem al
tere cousa alguma , ainda que
lhe pareçaõ resoluçoens muito
uteis , e bem fundadas. Faça
como o caminhante, que onde
anoitece , alli para , até tornar
a luz do dia , e entaó vê por on
de poem os pés.
P. Estes propofítos hao* de
fer das virtudes confideradas
em gerai , ou havemos de deí-
ceracaiòs particulares? Como
agora , basta dizer : Proponho
da Oraçaò Mental. iç<j
de ser manso , e casto : ou he ne
cessario dizer : Proponho de sof-
srer , e dissimular a Fulano tal,
e tal aggravo : proponho de evi
tar tal , e tal encontro perigoso ?
R. He necessario descer a
casos particulares , conforme a
condiçaõ , estado , e necessida
de de cada hum : como faz o
hortelao , que encaminha o re
go para o leiraõ , ou canteiro >
que está mais seco. Porém as
materias da ira , e contra a cas
tidade , tiraó-se desta regra , e
he necessario fazer os propositos
muito em geral , e abstracto :
vigiando entre tanto , naó falte
alguma fa isca no coraçao ; por
que este he polvora , e ambos
aquelles vicios saó fogo.
P. Donde procede a ineffi-
cacia , e pouca firmeza de nos
sos bons propositos ?
R.
i6o Tratado breve
R. Muitas costumaó ser as
causas. Primeira : iaó os máos
habitos contrarios á virtude ,
que propomos , os quaes fazem
pendor na alma como em huma
balança , e haó de vencer em
quanto da outra parte lhe nao
puzermos maior pezo de obras
boas , ou daquelle mesmo gene
ro , ou de caridade de Deos.
Segunda : he a confiança de
nós mesmos, com que secreta
mente imaginavamos , que nos
sas proprias forças nos haviaó
de tirar a paz , e salvo : e quem
finca o pé no barro , que muito
que escorregue ? E suppoílo que
huma pessoa diga com a boca
( e lhe pareça que tambem o diz
com o coraçao ) , que de si naó
pode nada , e só confia na ajuda
de Deos : as mais vezes se enga
na , por falta de conhecimento
pio-
da Oraça5 Mental. i6í
Proprio : e a prova disso he , que
quando cahe , e falta a seus pro
positos , se desalenta , e entriste
ce : o que naó fora , se só em
Deos confiára.
Terceira : procede tambem
de propormos cousas , que no
presente estado nos naõ convem ;
ou por demaziadas para as pou
cas forças de nosso eípirito; ou
por oc'casionadas á vangloria ,
nao tendo nós iufficientes ali-
cerses de humildade ; oú por an-
ticipadas a outras mais necessa
rias , que a boa ordem pedia
cumpríssemos primeiro. E dis
poem a piedade Divina por
meio desta inefficacia de nossos
propositos , que o edifício vá
mais solido , e seguro ; e leve
nos fundamentos as pedras, que
convem ; e que estas caldeem
primeiro j que íe affentem ou
tras.
IÓ2 Tratado breve
tras. Por onde , hum grande se
gredo da vida espiritual , e dig
no de se notar , he qtie a alma
nem vá mais de vagar , nem-
mais de pressa , dp que a conduz
a graça de Deos : e nem deixe
estar na arvore a fruta já madu
ra , nem cuide que ha de ma-
durecer á força de aapolegar,
senaõ com o Sol. /
A quarta causa he , que quan
do se nos ofterece occafiaõ de
pôr por obra os bons propositos,
naõ recolhemos a virtude do es
pirito , que anda já dissipada
com as exterioridades. Se pa
rarmos hum pouco , puxando
pelo coraçao para dentro , e re
querendo a Deos seu auxilio ,
melhor successo lograremos.
A quinta, he a inconstancia.
natural do coraçao humano ,
que : Nunquam in eodem statu
per-
da Oração Mental. 163
jpermanet : e estabelecei Io he
proprio da graça , a quem de
vêramos ter recurso mais con
tinuo. 1 - ; t
A sexta , he a impugnaçaõ do
inimigo commum , o qual sabe ,
que se nos deixar ir pondo pe
dra sobre pedra , brevemente
nos achará murados. -

§. XV.

P. T) Estao por' explicar


XA. as ultimas tres par-
tesda Oraçao, convem a saber ,
Acçaó de graças , Oferecimen
to , e Petiçao : e primeiramente
pergunto , que.cOuia he acçao
de graças?
R. He agradecer a Deos
Nosso Senhor os benefícios ge-
raes , e particulares , que de fua
Hberaliffima maó contmuamen
te
164 Tratado breve
te estou recebendo : e louvallo
por isso , e por suas perfeiçoens
infinitas ; convocando todas as
creaturas , para que me ajudem ;
e reconhecendo sempre , que he
maior , que todos os louvores ,
que lhe podem dar infinitos
mundos , se os houvera.
P. Como se faz o Ofereci
mento ?
R. Comprehende duas cou
sas. Primeira : Offerecer ao
Eterno Padre os merecimentos
de seu Unigenito Filho, e tudo
o que por sua gloria , e nofla
salvaçaõ obrou , e pádeceo : of-
ferta que devemos fazer com
grande confiança , e espirito,
porque he de infinito agrado
ara Deos. Disto íe poz acima
um exemplo, em quanto oof-
ferecimento era affecto particu
lar , que tambem occorre no
dis-
da Oraçaõ Mental. i65'
discurso da Meditaçao. Ás o-
bras de Christo posso ajuntar
as de sua Mãi Santilììma , e de
todos os Santos.
Segunda : Offerecer a Deos
todas minhas palavras , obras ,
e pensamentos ( especialmente
aquella oraçao , que ao presen
te tive) para honra , e gloria do
mesmo Senhor ; dedicando a
este fim todas as forças de mi
nha alma , e corpo , todas as'
operaçoens de meus sentidos , e
potencias , e tudo o que sou ,
posso, e valho: que para lhe ser
de algum agrado , devo ajun-
tallo , e como incorporallo com
as obras de Christo. -
P. Que cousas hei de pedir
na ultima parte da Oraçao ?
.R. Esta pergunta fizeraõ os
Discipulos a Christo nosso bem :
e.o Senhor lhes satisfez ensinan-
H do-
i66 Tratado breve
do-lhes a Oraçao do Padre nos
so : na qual se encerrao sete pe-
tiçoens , as melhores , e mais
aceitas a Deos , que póde ser.
Com tudo , porque nestas sete se
incluem virtualmente outras
muitas , parece sení util descer
cada hum a especificar o que
mais deseja , e necessita que
Deos lhe conceda para si , e seus
proximos em geral, e particu
lar. Póde pedir pela exaltaçaò
da Igreja , propagaçaõ da Fé,
acertos do Summo Pontífice,
paz dos Principes Christa6s.
Pode pedir pelos que estao em
peccado mortal , que N. Senhor
os tire de taó miserável estado
(e se juntamente saó moribun
dos , he a maior necessidade ,
que se póde considerar): pelas
Almas do Purgatorio , pelos
Christaós cativos em terra de
Ia-
da Or a çaS Mental. 167
ìfieis , pelos innocentes calum-
iados, eafflictos; pelos pais,
filhos, e bemfeitores, &c. e
or todos aquelles , a quem por
ualquer titulo está obrigado :

aqui entraõ tambem os inimi-
os, porque nos ajudaõ ao exer-
icio das virtudes , ao desconto
e peccados , e aborrecimento
o mundo. Para si póde pedir
erseverança na virtude , graça
nal , e boa morte ; aquellas
irtudes, que mais lhe íaõ ne-
essarias para agradar a sua Di- _
ina Magestade; luz para naÕ
:r enganado no caminho da
)raçaõ; e tudo o que o Senhor
ê , que lhe convem , e he ne-
essario para se unir com elle
or conhecimento, e amorper-
:ito.
P. E dos bens temporaes,
u bom successo de negocios ,
H ii que
TÓ8 Tratado breve
que me encommcndarem , farei
umbem memoria ?
R. Presen tarei a N. Senhor
a minha falta , e as de meus
proximos , e entregarei tudo nos
braços de sua paternal Provi
dencia , certo de que tem cui
dado de nós , quem provê até
as formigas ; e que dos males
sabe tirar bens > para sua maior
gloria, e nosso maior proveito.
t P. Que condiçoens devem
aeompanhar a petiçao para ser
eíficaz > ou impetratoria ?
R. As seguintes. I. Ha de
estar em graça de Deos a pessoa
que péde. II. Ha de pedir err
nome de Christo , e fundado en
seiísj merecimentos. III. Ha d<
pedir cpusa , que naõ seja con
traria á honra de Deos , e salva
çaõ das almas, IV. Ha de pe
dir com humildade , e resigna
f.j i. ix çao
da ORAqAÒ Mental. 169
a6 na vontade de Deos. V.
la de pedir com confiança-, e
jerseverança , ainda que veja ,
lue se naó segue logo o des-
>acho. - ' - '-
Para excitar esta confiança ,
proveita trazer primeiro á me-
noria a promefla de Christo
101T0 bem quando disse : Eu
'os affirmo , que todas as cou-
as , que na Oraçaõ pedirdes ,
:rede que as recebereis, e suc-
:eder-vos-haó : ;Dico vobis- ;:
Omnia quœcumqueorantespetir
fí , credite quia accipietis , &
Renient vabis. .( Marc. 1 1. 24.)
E outra vez despedindo-se de
feus Discipulos na ultima Cea :
Iudo o que quizerdes , pedi , e
será feito : Quodcumque vo/ue-
ritis petetis, &fiet vobis. (. Jû-
111.15.7.) Isto he huth thefoiv-
ro incrivel , de que poucos se íar
H iii bein
170 Tratado breve
bem aproveitar : porque saô
duas letras de credito aberto,
abonadas com a verdade doE-
vangelho , e passadas íobre a
Omnipotencia do Padre, e cor
respondencia de seu amor infi
nito com o Filho.

§. XVI.

P. À Cabada a Oraca6
xi com todas as suas
partes , resta alguma diligencia
mais que fazer?
M. Será utilíssimo fazer
ainda tres cousas. I. Recordar
o fruto , que tirámos da Medi
taçao , renovando o proposito
de o pôr por obra. II. Tomai
alguma jaculatoria , para usai
delia no discurso do dia. III.
Pedir a bençaõ ao Senhor , e
a Maria Santiísima , e seu fa-
... - vor
da Oração Mental. 17 1
vor para aquelle dia , c todos os
que nos restaó de vida. E feito
isto 5 nos levantaremos da Ora-
çaó ; naó deixando porém apa-

devemos ir cevando com a pre


sença de Deos , e jaculatorias.
P. Em que consiste este ex
ercicio da presença de Deos?
R. Consiste em dous actos.
O primeiro he de Fé , pela quaL
creio que Deos está presente ,
e conhecendo-me , e vendo- me, e
dando-me o ser, a vida, e o movi
mento. Segundo , de amor , ou
de qualquer outra virtude : pe
lo qual significo ao mesmo Se
nhor , que o amo , ou desejo
amar ; ou lhe dou graças , ou
lhe peço perdaó de meus pecca-
dos , ou lhe insinuo qualquer ou
tro aôecto pio de meu coraçao.
Este exercido bem continua-
H iv do,
172 Tratado breve
do , he hum atalho compendio-
siflimo para chegar a grande fa
miliaridade com Deos N. Se
nhor ; e huma negociaçao* oc
culta , com que se enriquece a
alma de todas as virtudes. E
tem , além das mais excellen-
cias , esta ; que como he breve ,
e facil de manejar , em todo o
lugar , e tempo se póde pegar
deile, quantas vezes o espirita
quizer, e Deos o ajudar. Mas
adverte-se , que este exercido
de per si , sem a oraçao perma
nente decada dia, naó bastará
para levar a alma á perfeiçao.
P. De que modo poiso con
siderar a Deos presente > e que
me está vendo?
R. Posso considerar a Deos
dentro da substancia de minha
alma , como recolhido em hum
palacio ; ou a mim dentro. de
t- ' lk Deos ,
da Oração1 Mental, 173
)eos , como os peixes andaó no
neio do mar ; ou a Deos no
hrono dos Ceos, como lugar es
pecial de sua gloria. E poiso
ambem naó formar representa
rao alguma na minha imagina
rao : senaó simplesmente por
hum acto do entendimento re
novar; à fe. , de que Deos. está
aqui onde eu estou , e em toda
a parte. Este ultimo modo hc
maisdescançado , e mais solido :
mais descançado , porque naõ
depende de formar imagens ,
que pela continuaçao vem a dei-
bilitar a cabeça : mais solido»
porque se funda na pura verda
de do que he, sem mistura das
minhas fantasias, e modos, 011
de outra qualquer imagem , sup- .
posto. que verdadeira» r. -. i

I. ,.. . ..... . . . . /
H x §.
174 TRATADO BREVE

§. XVII.

P. /"V Ue cousa sa6 Ora-


W çoens jaculatorias ,
com que se acom-
panha a presença de Deos , e
como ie exercitaõ?
R. Pelo exemplo da setta
se entenderá melhor. Porque a
setta he arma de longe , ligeira ,
pequena, e penetrante, e que se
atira com força ; equem peleja
com settas , nao usa de huma só ,
íenao de muitas, que para iffo
Tem guardadas naaljava. Affim
estas oraçoens devem fer bre
ves , frequentes , e fervoroíàs ,
e sobem ao Ceo com força a fe
rir o. coraçaõ de Deos. Deste
modo de orar usavaõ muito os
Padres do ermo : e he razaõ ,
que todos usemos ( cada hum se-
- v i gun-
da OraçaÔ Mental. 175*
gundo a medida da graça , que
Deos lhe conceder) pelos gran
des proveitos que traz comsigo.
E se lá o outro prizioneiro em
hum castello se contentava com
atirar settas para aquella parte
onde ficava a sua patria : mui
to mais razaõ he , que os mor-
taes , que estamos prizioneiros
neste mundo , arremessemos set-
tas de desejos , e suspiros para
a nossa patria bemaventurada »
que he o Ceo. " .
Apontaremos aqui algumas
jaculatorias , para que a alma
devota possa guardalías na me
moria , e usar delias a seu tem
po , que , como dissemos , he to
do o tempo.
O aterna veritas , vera
charitas , & chara atemitas 1 .
Tu es Deus meus , ad teJujpira
die, acnoBe. Oh eterna verda-
H vi de,
Ij6 TRATADO BREVE
de , oh caridade verdadeira ,
oh eternidade amada ! Vós sois
Deos meu , a vós de dia , e de
noite suspiro.
Quandoveniam , & appare-
lo antefaciem tuam ! Oh quan-
do chegarei á vossa presença ,
quando verei claramente o Yos-
iò rosto !
Trabe mepoïi te , suavijsime
Redemptor, qui dixifti: Si exal
tatussuero à terra , omnia tra-
ham ad me ipsum. Attrahi-me
en» voíTo seguimento , ó Re
demptor suaviíîìmo , que diffes-
les , que , scndo levantado na
Cruz;, hayieis de attrahir todas
as cousas.
Pater , peccavi in cœlum,
& coram te y jam non sum
dignus nocari filius tuus. P ai,
pequei contra o Ceo , e em
voila preíença , já naó fou di
da OfiAqAÔ Mental. 177
gno de chamar-me filho vos-
io.
Jesu , & Maria , dono
vobis meum cor , & animant
meam. Jésus , e Maria , dou-
vos o meu coraçaó , e a minha
aima.
Ne derelìnquas me , 'Domine
Deus meus , ne dìjcejjeris à me :
intende in adjutorium meum-)
Domine Deusfalutis meœ. Naó
me desampareis , meu Deos , e
Senhor , naõ vos aparteis de
mim: attendei a meu soccorro ,
Senhor Deos de minha íàlvaçaõ.
Amor meus Jésus crucifi-
xus. O meu amor he Jésus cru-
cificado. v
Deus meus , &* omnìa. Meu
Deos, etodo obem, que póde
considera r- se.
Fiat voluntas tuaficut in cœ-
ïot & in terra. Seja feita a vos-
sa
I78 TRATADO BREVE
fa vontade aflim na terra como
no Ceo.
O ignts increate , quando me
totum incremabis fiarnma ar
dentijjìma amorïs tut ! Oh fo-
go increado , quando me abra-
zareis todo com a chamma ar-
dentislima de vcflb amor !
Jjominus meus , Deus
meus, amem tesolum pr opter te,
& nihil amem nist te. Meu
Deos , e meu Senhor , ame eu ió
a vós por amor de vós , e nada
mais ame fora de vós.
Cupio difjohi , & ejse cvm
Chrìtto. Desejo deíatar-me dos
laços desta vida mortal , e estar
com Christo.
Ecce tu pulcher es, DileSìe
mi , decorus : ostende mihì
faciem tuam , & fafous ero.
Oh que formoio fois , Amado
meu , e que engrajado! mof
trai-
da OraçaÔ Mental. 179
rrai-me o vosso rosto , e serei
salvo.
uEternasac cum SanSiis tu'ts
ingloria numerari. Conrai-me ,
Senhor , entre os vulïbs Santos ,
que predcstinastes para agloria
eterna.
Avertefaciem tuant àpecca-
tis meis , & omnes iniquitates
meas dele. Desviai , Senhor, vos-
sos olhos de meus peccados , e
apagai todas minhas maldades.
Nihilfumus , nihilpojsumus ,
nihil valemus ,Jervi inutilesJu-
mus , malè tibifervîmus , Do
mine jEsuCbrifte miserere na
bis. Nada somos, nada pode-
mos , nada valemos , inuteis ser-
vos somos , muito mal vos ser-
vimos , Senhor Jésus Christo ,
tende de nòs misericordia.
Quàm magna multitudo dul-
tedinis f&s' , quam abscondijïi
di-
iSo TRATADO BREVE
diligentibus te ! Oh que gran
de he a abundancia de voila do-
çura , que elcondestes para os
que vos amaõ !
O DileEìe mi , quem solum
quœro, quando mibi puisant i,
CÍ7" gementt aperies ! Oh Ama-
do racu , a quem unicamente
buíco , quando abrireis á min'ha
aima , que de fóra está batendo ,
e suspirando !
Adoramus te , Cbrifle, & be-
ntdicimus tibi, quia per crucem
tuant redemisti mundum. A vós
Jesus Christo adoramos , e ren-
demos as graças , porque com
voila morte deCruz remistes o
mundo.
O momentum , à quo pendet
aternitas ! Oh momento, do
qual .depende a eternidade !
Gloria Patri , &FiIio, fr
Spiritui Sanfto : suut erat in
prin-
da Oraçaò' Mental. i81
principio , & mine , &.semper ,
& in sœcula sœculorum. Amen.
Gloria aoPadre, caoFilho, e
ao Espiriro Santo : aflìm como
era no principio , agora , e sem-
pre, e por seculos dosseculos.
Ainen.

§. XVIII.

-P. T7 Ico ainda com aJgu-


.17 mas dúvidas , cuja
explicaçaõ parece necessaria
para o complemento da presen
te materia. Pergunto em pri-
rneiro lugar., quaes saó os ma-
iores impedimentos da Ora-
çaõ?
R. Parecem fer tres. Pri-
meiro , o peccado : segundo , o
affecto docoraçaoás cousas ter-
renas : terceiro , o muito trato ,
econversaçao com as creaturas*
A
iSz Tratado breve
A razao disto he clara , a quem
lè lembrar , que cousa he Ora-
Oraçaó (como todos sa
bern) he subida do espirito a
Deos , para tratar com elle ami
gavel, e familiarmente. Se he
subida, requere, que o espiri
to naó esteja pegado a cousas da
terra , que. puxaó por elle para
baixo: ie he trato com Deos,
requere , que se retire huma
pessoa (quanto seu estado lho
permittir ) do trato com as crea-
turas ; e se he communicaçaó
amigavel com o mesmo Deos ,
requere , que a alma o naó of-
fenda com peccados. Da pouca
diligencia , que ordinariamente
pomos em tirar èstes impedi
mentos , se verá clara a razaõ
porque naó aprovei ramos neste
santo exercício , ainda depois de
frequentado por muitos annos.
da Oração' Mental. 183
P. Quantas horas deve dar
a este exercício da Oraçaó ,
quem leva intentos de ser per
feito , e chegar a unir-se com
Deos ? '
R. Sem hum grande , e
bem continuado uso de Oraçaó ,
mal pôde huma alma adiantas
se muito. Nem basta só faner
muitas obras
Deos : he necessario buscar a fa
ce do mesmo Deos cada dia , e
por muitas horas : que este he o
Sol, e a chuva, que faz crescer
as plantas das virtudes. Mas
naó se esqueça , que nunca deve
largar damaôarouce damorti-
ficaçaó, com que roce o mato
de suas paixoens bravias , que
affoga estas plantas. Perseveran
do nesta diligencia com fide
lidade, e desinteresse, e tendo
paciencia com Deos N. Senhor ,
(o
184 TRATADO BREVE
(o quai como Ihechama Tho-
maz de Kempis : Eítsortis pra-
bator áevotorum : he provador
forte das aimas devotas) chega-
rá a ver o fini de feus descjos.
P. E que fará quem por
razaó de feu estado , ou acha-
ques , ou occupaçoens inexcusa-
veis , naó póde conceder tanta
parte do dia á Oraçaó ?
R. Naó deve desconfolar-
íe, advertindo, que nefle esta
do póde agradar muito a Deos
N. Senhor ; cuja maó nao he
abbreviada , nem fe governa ta-
xadamente pelas nossas diligen-
cias , e meios humanos. Além
diflb cada hum deve contentar-
fe com os gráos de peifeiçao ,
para que elle Senhor o chama :
e se nao póde mais no estado ,
em que elleopoz, he fmal que
por entao o naó chama para
mais.
da ORAqAb Mental. 185*
mais. Por onde dizia S. Bernar-
do : Amar-vos-hei,Senhor, con
forme a minha medidasinha :
le na6 quanto vós mereceis , e eu
quizera , ao menos quanto eu
posso , e vós quereis. -.
1 P. Em que consiste a per-
feiçaó Christá? *yi .'.
K. Muitos por ventura cui-
daráó , que consiste em tratar
feu corpo com asperriinas peni-
tencias ; ou na multidaõ de re-
zas, visitas de Igréjas, frequen-
cia de Sacramentos ; ou na pon-
tual observancia das suas re
gras , e estatutos ; ou no exerci-
cio continuo deobras doservi-
ço do proximo ; ou no retiro a
lugares ermos , e abstracçaó da
communicaçao com os homeus.
E todas estas cousas , fupposto
que ou sao meios uteis para che-
gar á perfeiçaCt ; oufrutos, que
. pro-
iS6 Tratado breve
procedem da mesma perfeiçaô
já conseguida : com tudo ne
nhuma delias he o ponto essen
cial , em que esta consiste. Pois
qual he ? Amar a Deos sobre tu
do , por elle ser quem he. Po
rém para eu o amar deste modo »
he necessario aborrecer-me a
mim i porque amor proprio , e
amor de Deos juntamente , he
impossível. E assim como o
amar a Deos de véras consiste
em fazer sua íantissima vontade
em todas as cousas : assim o
aborrecer-me a mim consiste
em naõ fazer a minha vontade
em cousa alguma. Por onde,
como qualquer das outras dili
gencias acima ditas podem mui
bem estar com a minha vontade ,
e sem a de Deos : por isso ne
nhuma delias he o ponto essen
cial da perfeiçaõ.
Este
da Ora çaÔ Mental. i87
Este amor de Deos , e odio
de si melmo necessariamente
luppoem hum conhecimento
mui bem assentado , e quasi ex
perimental de como Deos he
digno de toda a gloria , e hon
ra , por ser em si todo o bem : e
eu digno de todo o desprezo , e
abatimento , por ser de mim to
da a miseria. O qual conheci
mento se ganha na Oraçaõ com
a luz do Espirito Santo , efóra
da Oraçaõ com o exercido pra
tico das virtudes. E do dito se
colhe, que quem deseja cami
nhar á perfeiçaõ , (que para
bem havíamos ser todos os que
vivemos na Lei Evangelica )
necessariamente ha de applicar-
se bem a estas tres cousas : pri
meira, muita Oraçaõ, e trato
com Deos N. Senhor : segunda ,
muita abnegaçaõ de seu amor
. . pro-
i88 Tratado breve
proprio : terceira , intençaõ re
cta de agradar unicamente a
Deos em tudo o que obrar , ou
deixar de obrar. E nenhuma
destas cousas poderá fazer íeui
grande confiança em Deos , e
grande desconfiança de si.

' §. XIX.

P. A Cerca da intençao
X~V recta de agradar
fó a Deos , pergunto como a de
fenderei das tentaçoens de van
gloria ?
R. Trabalhoso he de ven
cer este mal , porque se gera das
mesmas boas obras , e do refis-
tir, e vencer á mesma vanglo
ria. Por onde hum Padre a com
para a huma casta de estrepe , a
que os Latinos chamaõ Tribu
tos , ou Murex , o qual era com-.
da Or aça Ô Mental. 189
posto de quatro pontas de ferro
em tal fórma , que cahindo no
chaõ , sempre tres deiJas ficavaõ
servindo de pés , e sustentando
a outra direita para cima * e ar
mada para ferir a quem paíTas-
se. Astun a vangloria para onde
quer , que a desvieis , sempre
torna a pôr-se em pé , e de qual
quer Jado vos fere. E por tanto
S. Joao Chrysostomo disse, que
o uilico remedio he pedir a
Deos , que no-la tire : porque a
humildade , que este Senhor dá ,
he de tal modo , que naõ vem
vangloria de ser humilde. - .>
Com tudo aproveitarao as
seguintes diligencias para fazer
mais efficaz a petiçao. Primei
ra : assentar como ponto de fé ,
ein que se presumo de mim , que
sou alguma cousa , ffa verdade
sou nada : Siquis existimat ( íaõ
1 pa-
190 Tratado breve
palavras de S. Paulo Ad Galat.
6. 3.) se aliquid esse , cum nihil
Jit , ipse se seducit. E em outra
parte diz o mesmo Apostolo:
Em nenhuma cousa sou inferior
aos mais Apostolos, e com tu
do (ou nada: Nihil minus fui
ab iis, qui sunt supra modum
ApoHoli , tametfi nihilsum. E
se hum S. Paulo sem mentir he
nada : eu , para fallar verdade ,
que serei ?
Segunda : no principio de to
das minhas obras procurarei
habituar-me a levantar o cora
ção a Deos nosso Senhor , refe-
rindo-as para sua maior gloria:
e depois quando sentir , que o
amor proprio se mete como la
drao a sizar alguma cousa para
si , resistir-lfre a toda a pressa , e
dar-lhe hum empurrao, que o
arremefle bem longe : e se tor
nar,
bA Ora q ao Mental. 191
nar , fazer-lhe o mesmo ; enten
dendo , que a vida do homem
sobre a terra he milícia, e que
Deos dará entretanto o auxilio ,
e depois a virtude , quando nos
vir bem desejoíòs delia , e bem
entrados do conhecimento de
nossa miseria.. . .
Terceira: considerar como a
gloria , que me daó os homens ,
he falsa , e caduca : porque ou
íe enganaô , ou me enganao , e
o mesmo de que hoje le pagao ,
á manha lhes desagrada , ou tal
lhes nao lembra , quando eu cui
do , que nisso eflaô cuidando : e
eu se busquei o applauíò huma
no , lancei a minha obra no mar ,
e desobriguei a Deos de me pa
gar os custos , que naõ fiz por
conta de seu amor.
P. Tem algum perigo acon
selhar eu a outros, que fedem
I ii á
192 Tratado breve
á Oraçao, enfínallos, e intro-
duzillos neste caminho do Ceo ?
R. Nos principiantes , fim :
porque ainda naõ tem espirito
dobrado para poderem repartir :
e primeiro he na planta o lançar
raizes , do que o admittir en
xertos , ou offerecer. garfos. Des
te perigo nos acautella o Espi
rito Santo , dizendo : Stultus
proferi totum spiritum suum:
sapiens differt , ac reservai in
pqfterum. (Prov. 29. 11.) O
necio logo põem á mostra todo
o seu espirito : o prudente vai-
se devagar , e guarda-o para o
tempo adiante. E S. Bernardo
diz : Se eu naS tenho mais , que
huma pinga de azeite , com que
me ungir , ou allumiar , Jerã
bom , que a dê aos outros , e me
fique ás escuras ? Nao por cer
to: mas antes lhes responderei
quan-
da OraçaÔ Mental. 193
quando mo pedirem : Ide a quem
o vende , forque nao succeda ,
que nao bafle para todos. Esta
mesma doutrina he de Santa
Teresa. . .
P. E no fallar de Deos,
tratando cousas pias , e espiri-
tuaes , he tambem neceflaria
circumspecçaõ , e cautella ?
R. Quem negará , que tem
grandes frutos ? Aster vora os
cjue convérlaõ , e os une , e faz
amigos em Deos : evitaó-lè
murmuraçoens , e outros vicios
da lingua , que saõ innumera-
veis : conserva-se amemoria de
nosso Deos, que taó eíquecido
anda entre os Fieis , &c. Cora
tudoporque muitas vezcs, ain-
da que a niateria , em que se
falla , fejaboa, o silencio póde
fer melbor , conforme aquillo
do Psalmista , interpretado por
I iii San-
194 TraTADO BREVE
Sanro Isidoro : Stlui à bonis ;
ou Tacui âebono-, como verte
S. Jeronymo : será conveniente
observar os seguintes avisos.
Primeiro : que naõ nos ostente-
mos experimentados nas cousas
<ìo espirito. Segundo: que tra-
iemos as cousas divinas com de-
córo , e humildade , naõ lhes
uiisturando outras ridiculas, se-
«aõ : fpiritualìbus Jpirìtualia
comparantes. Terceirorque naõ
demos regras dia n te de pessoas
mais velhas , doutas , e Reli-
giosas. Quarto : que naÓ nos ef-
gotemos de modo, que íìque o
espirito seco , e delàbrido , e
se eyapore toda a devoçaõ : por-
<jue ( como enfinava aos feus
noviços o Beato David de Au-
gusta , Religioso Menor) o es
pirito amigo de filencio adqui-
re mais profundeza, esubli mi-
da-
da OraçaS Mental. 195*
dade , aflìm como a mâi de
agua , que naó tem sahida.

§. XX.

P. TP\ Onde procedem tan-


tos desvios , e em-
baraços , quantos experimenta
mes , que nos ìmpedem o lo-
grar huma hora de Oraçao ?
R. Inimicus homo hocfecit :
Como nós virmosazizania affo-
gar o trigo , tenhamos por cer-
to , que he obra do Demonio.
O santo exercicio da Oraçao ,
quanto para nós he saudavel ,
tanto para elle he odioso. Ra-
zaó , por que S.Joaó Climaco
disse , que toda a guerra entre
nós , e os Demonios era íyb^e
fazermos , ou naõ fazenqps
Oraçaó : Univerfum bellum ,
quod inter nos-, & dœmones con-
\ iv Jla-
196 Tratado breve
flaíur , non de aliâre , quàm de
oratione : eH enim Mis oratio
valde adversa , & odiosa , nobis
vero salutaris , & benigna.
( Scalœ grad. 4.) O Abbade
Agathon perguntado , qual era
o exercício mais importante pa
ra a vida espiritual ? Respon-
deo : Perdoai-me , que hei de
dizer o que sinto , e he , que
nenhum outro exercicio he de
tanta importancia como o da
Oraçaõ : fundando-me em que
o fneímo he querer o homem
orar em presença de seu Deos ,
do que tratarem os Demonios
de o impedir por todas as vias,
que podem , porque muito bem
íàbem , que nenhuma cousa os
ijppiígna , e desttoe tanto , co-
mp a Oraçao. Tambem Santo
Egidio , sendo-lhe perguntado ,
porque causa impedia o Demo-
da OraçaÔ Mental. 197
nio a Oraçao com maior em
penho , do que outra qualquer"
obra pia ? Respondeo com este
símile : Se hum litigante pkitea
diante de seu Juizsobre huma
causa sua de grande importan
cia : claro está , que o seu con
tendor ha de trabalhar opvffi-
vel , porque nao saia por elie a
sentença. Pois o meímo ioccede
a quem ora ; que diante do Tri
bunal Divino poem demanda
ao Demonio sobre a salvaçao da
sua alma , que elle pertende
roubar por dolo, e injustiça: e
assim naõ be muito , que este
inimigo teça dilaçoens, earme
trapaças para impedir o bom
íuccesso da causa. Do sobredi
to se mostra . como oExercitan-
te deve estar sobre aviíò;, para
naó deixar embaraçar-se com
estes enredos do inimigo.
I98 TRATADO BREVE
P. Quaes saó os sinaes de
ter huma pessoa boa Oraçaõ ?
R. No principio deste Tra.
tado comparámos a Oraçaõ a
huma arvore : e as arvores se
conhecem pelos frutos : porque
Non potest arbor bona ( diz
Chriílo Senhor noflo) malos
fruíìusfacere : neque arbor ma
te bonoïfruBusfacere : naô pó-
de a boa arvore dar máos fru
tos , como nem bons a má. Os
frutos da boa Oraçaõ, saó ha-
mildade de coraçao , obedien-
cia prdmpta aos íuperiores,
desapego das coulas terrenas,
caridade com o proximo, des-
prezo de si mesmo , conformi-
dade com a vontade divina na
prosperidade , e adversidade,
desejosoide imitai . a Christo ,
perfeiçao nas obras ordinarias,
e outros íemelhsntes^ Queax
ir i co-
da OraçaS Mental. 199
colhe estes frutos , ainda que a
Oraçaó pareça seca , dura , e
fria como huma pedra , tem boa
Oraçaó , porque dessa pedra fez
Deos , que tirasse mel , e azeite :
Ut sugeret mel de petra , oieum-
que de saxo durissimo. (Deut.
32. 13.) Pelo contrario se naó
experimenta em ll nestss virtu
des algum progresso , ( ainda
que seja pouco) póde entender
que naó tem boa Oraçaô , e pro
cure applicar-se com nova reso-
Juçaó. E para conhecer se apro
veita nas virtudes, e seospec-
cados vao em diminuiçao , fa
ça todas as noites, antes de re-
colher-se , exame de conscieu*
cia , tomando-se conta fiel de to
das as obras , que fez no diseur»
so do dia.
.P. Qual he a prática deste
exame? ' . v ' . -.. 1 *
I vi .R.
zoo Tratado breve
R. Comprehende os seguin
tes pontos , que todos se podem
fazer dentro em hum quarto de
li ora , ou pouco mais. I. Pôr-se
em. presença de Deos , adorar a
Santiffima Trindade , e benzer.
II. Dar graças pelos benefícios,
especialmente pelos que recebi
naquelle dia. III. Pedir memo
ria , e conhecimento de ineus
peccados , e faltas , dor para as
abominar , e desejo para as
emendar. IV. Segue-se o exa
me geral das obras daquelle
dia , naó só das más , senaó
tambem das boas , para ver a
imperfeiçao com que as fiz , e
naó só das obras boas. , e perfei
tas , senaó tambem da omiflaó
culpavel delias. V. Logo o
exame particular da virtude,
que trago entre maós , para ad
quirir ; ou do vicio principal,
i. i que
da ORAqAo Mental. 101
que pretendo desterrar. VI.
Confundir-me de minhas mise
rias , e dizer com grande humil
dade a Confissao geraJ. Eupec-
cador muito errado me confes
so a Deos , &c. VII. Fazer
asto de contriçao o melhor,
que eu puder , porque esse pó
de ser o ultimo , com que me
colha a morre aquella noite ; e
outros tres das tres virtudes
Theologaes , Fé > Esperança, e
Caridade. VIII. Offerecer ao
Eterno Padre os merecimentos
de seu unigenito Filho em des
conto, e remissao de peccados.
IX. Fazer alguma penitencia
pelos peccados daquelle dia ,
por naõ ir ajuntando tudo para
a outra vida , sem lhe dar nesta
alguma descarga pouca , ou
muita*
Depois será util rezar algu
mas
2oz Tratado breve
mas devocoens á Virgem Se
nhora nona , ao Anjo da Guar
da,"' Santo do meu nome , ou
devoçaó, &c. e tambem algu
ma cousa de esmola ás Almas
do Purgatorio. Efeito isto, to
maremos a bençaô ao Senhor ,
e a sua Mai Santíssima , e nos
recolheremos , considerando em
alguns pensamentos santos , em
quanto nos despimos , e pega
mos no sono ; e desejando , que
todas noflas respiraçoens fossem
actos de amor divino mui fer
vorosos.
P. Páde qualquer pessoa
dar-íe á vida espiritual , sem
ajuda , e direcçaó de algum
mestre ?
R. Com grande difficulda-
de : porque a vida espiritual he
huma sabedoria prática , que
mais se aprende com a experi-
- . . en-
da ÛKAqAÔ Mental. 203
encia , do que pela especulaçaó :
e senaó tiver o exercitante ,
quem lhe responda ás suas dúvi
das , quem o esforce nas tenta-
çoens, quem o alente á perse
verança, quem lhe descubra os
enganos do Demonio , e do
amor proprio , ( que tudo he o
mesmo ) expõem-se a muitos
perigos. As prendas , que ha de
buscar no Padre espiritual, saó
piedade , prudencia , e scien»
cia. Huma vez escolhido , naó
se mude. para outro sem grave
causa. Deícubra-lhe fielmente
todo seu interior , e obedeça-lhe
em tudo , fiando, que até dos
seus erros tirará Deos acertos*
.P. Logo a pessoa, que por
razaõ de alguma circumstaneia
particular estiver impossibilita
da de ter Padre espiritual , fi
cará tambem impossibilitada pa->
ra
204 Tratado breve
ra tratar com Deos na Ora
çao , e lograr os grandes fru
tos , que dizíamos trazer esta
com sigo?
R. Nos livros naó se podem
apontar tantas regras , quantos
podem ser os casos. Essa tal
pefloa póde , e fará bem , em
governar-se pela luz interior do
Espirito Santo , pela imitaçaô
da vida de Christo , que he luz
de todo o mundo , especialmen
te dos que se chegaó a elle com
intençao humilde , e recta , e
pela liça6 dos livros , que tratao
destas materias : e se lhe occor-
rerem algumas dúvidas , em
que naó laiba resolver-se , pó
de ou por escrito , ou por in
terposta pessoa communicar-se
com quem a possa aconselhar.
E deste modo naó fica excluída
da Oraçaõ mental , e seus fru-
tos :
da OraçaÔ Mental. 20?
tos : como o naõ estava a Vene
ravel Madre Firmiota , em
quanto Deos lhe naõ deparou
por Padre espiritual a S.Fran
cisco de Sales , e se governava
por si mesma : antes tinha junto
tanto cabedal de virtudes , que
o Santo a julgou por capaz para
Fundadora , e primeira Prelada
da Ordem da Visitaçao. Fie
mos nós de Deos , e façamos o
que está da nossa parte , que este
Senhor fará o que está da sua.
P. Por remate da conferen
cia pergunto : que meios ha pa
ra ter perseverança ?
R. He dom de Deos : e co
mo tal se lhe deve pedir instan
temente : e para álcançallo
aproveitarao as seguintes dis-
posiçoens. Primeira : aborrecer
todo o genero de mudanças , e
novidades, e curiosidades. Se-
gun-
2o6 Tratado breve
gunda : empenhar o espirito etn
mais do que sofftem minhas for
ças. Terceira : naõ começar a
abrir caminho á tibieza na Ora
çaõ , faltando nella de quando
em quando. Quarta : fugir co
mo de peste todo o genero de
desconfiança contra o Padre es
piritual. Quinta : ter formado
hum grande conceito , e estima
çao da mercê , que Deos lhe
fez em o chamar para o exercí
cio da Oraçao mental. Sexta:
desviar-se todo o possivel de
más companhias. Setima : quan
do souber, que algum de seus
amigos , ou companheiros lar
gou o caminho de Deos , naõ o
estranhar, nem murmurar, se
nao encolher- se diante de Deos ,
e pedir-lhe , que o livre de seme
lhante desgraça. Oitava: quan
do reconhece o perigo , e teme
a
da OraçaÔ Mental. 207
a falta de sua perseverança , des
cobrir- se ao Conseflbr} o qual
lhe poderá aconselhar o reco
lhimento de nove, ou dez dia6
de exercícios , que hoje estaó
muito em uíb, e delies se tira õ
maravilhosos effeitos, e grande
renovaçaó de espirito. Nona :
tenha sabido asoccafioens, em
que periga a per scverança, que
ordinariamente íaó casamentos ,
doenças , jornadas , officios no
ves , pfosperidade de fortuna,
ruina em algum peccado mor
tal depois de muitos annos de
vida perfeita , ausencia , ou mor
te do Padre espiritual, e outras
semelhantes : e em quanto du-
raó , pegue bem do fio , que le
vava , e ande mais temeroso de
si , e dependente da graça de
Deos. Este Senhor nos conceda
perseverança fiel em seu santo
ser-
2o8 Tratado brevê
serviço até á morte , para que
depois nos conceda a coroa da
vida eterna , pois elle mesmo a
promette aos que perseverarem :
EBo fidelis usque aã mortem,
& dabo tibi coronam vit£. (A-
poc. 2. IO.)

F I M.

AD-
209
ADVERTÊNCIA.

f~% Santíssimo Padre Benedi-


KS Bo XIV. em hum Breve
seu, que principia Quemadmo-
dum nihií , expedido para to
do p Orbe Chrisiaõ em 16 de
Dezembro de 1746 , havendo
primeiro confirmado todas as
indulgencias , até então conce
didas (nao fendo das já revo
gadas) pelos Summos Pontífi
ces seus Predecessores aos que
orao, asjim vocal, como mental
mente : novamente concede a to
dos os Fieis Chrifiaiís de hum ,
e outro sexo , que especialmente
se applicao aosanto exercido da
Oraçao Mental, as indulgen
cias seguintes.
I. A todas as pessoas , que
Ttas Igrejas , ou em outro qual- ^
quer lugarì pública, ou particu
lar-
zio Advertencia.
larmente , enstnaremaos que ig
norai) estesanto exercicio da O-
raçao Mental, o methodo , ou
modo prático de o exercitar ; co-
mo tambem aos mesmos , que o
aprenderem , e affiHirem a esta
pa , esaudavel instrucçao : par
cadavez, que iítofizerem , es
ta ndo verdadeir'ameute arre-
pendidos dos feus peccados , e
tendo recebido a Sagrada Com-
munhao, concede Sua Santidade
fête anues, e outras tantas qua-
reMenas de indulgencia , ou re
laxafao das penitencias , que
Ibes fejao impoïias , ou aliàs
por algum modo dévidas pelos
feus peccados.
II. Aos mesmos, queìíiofi-
zerem comfrequencia , e conti-
nuaçao , tant o aos que enfina-
i*em , como aos que aprenderem ,
concede Sua Santidade huma
vez
Advertencia. 211
vez em cada mez, pelo tempo
que niBose empregarem , indul-
gencia plenaria , eremiffao ge
rai de todos os feus peccados , no
dia, que cada hum escolher afeu
arbitrio : com tanto que verda-
deiramente penitentes , e arre-
pendìdos dos feus peccados , e
recebìda a Sagrada Commu-
nhao , orem a Deos com devo-
tas preces , e rogativas , pela
paz , e concordia entre os Prin
cipes Chriítaôs., extirpaçaÔ
das hereftas , e exaltaçaS da
Santa Igreja Catholica. E Ihes
concede tambem faculdade pa
ra poderem applicar a mefma
indulgencia por modo defuffra-
gio pelas aimas do Purgato-
rio.
III. A todos os Fieis Chris
taos , que por hum mezinteiro ,
continuadamente todos os dias ,
pra-
2ii Advertência.
fratiçarem a Oraçao Mental ,
por espaço de meia hora , ou pe
lo menos de hum quarto de hora
em cada dia ; concede Sua San
tidade na mesma forma , que
poisa cada hum escolher a seu
arbítrio , em cada hum dos
mezes , que iíiofizer , hum dia
fomente ; no qual confessando-
fe , e commungando , e rogando
a Deos pela concórdia entre os
Principes Chriílaos , extirpa
çao das here/ìas , e exaltaçao
da Santa Madre Igreja , ganhe
indulgencia plenaria , e remis
sao geral de todos os seus pec-
cados : com faculdade tambem
parat a poder applicar por modo
defuffragio pelas almas do Pur
gatório.
Parase lucrarem todas es
tas indulgências , he preciso ter
a Bulla da Cruzada. .
ME
MEDITAÇOENS
Sobre os quatro Novifljmos
do homem
MORTE 3 JUÍZO , INFERNO ,
E PARAÍSO.
COMPOSTAS PELO PADRE
MANOEL BERNARDES
Da Congregação do Oratorio
de Lisboa.
In omnibus operibus tuis memorare
Noniiffima tua , <&. in £ternum
non peocabis. Eccl. 7. 40.

SEntença he do Espirito
Sanio , que em todas nossas
obras nos lembremos de
nossos Novissimos , e nunca pec-
ca remos. E fendo o peccado o
maior mal , que pode haver em
todo o mundo ; pois tira a Deos
a honra , e a nós a sua graça , e
salvaçao eterna : razaó he , que
K to-
214 Meditaçoens sobre
tomemos todos este conselho , e
appliquemos este remedio , pois
he dado por boca do mesmo
Deos. A este fim se apontaõ aqui
para pessoas rudes , e que naõ
tem cópia de livros , algumas
confideraçoens sobre os qua
tro Novissimos do homem , que
saõ Morte , Juizo , Inferno , e
Paraiso.

MEDITAÇAÕ I.

Da Morte.

POsto em presença de Deos ,


e feita a preparação ordU
naria de adorar a Santiífima .
Trindade , benzer-se , fazer
Acto de Contriçao , invocar o
auxilio divino, &c. pedirei ao
Senhor me conceda por sua mi
sericordia luz , para que desta
Me-
os quatro Novissimos. 215*
Meditaçao tire por fruto hum
desengano verdadeiro , e firme ,
com que me despreze a mim , e
a todas as cousas deste mundo,
e só trate daqui por diante de
servir a sua Divina Magestade ,
e assegurar minha salvaçao. Lo
go entrarei a considerar os tres
seguintes pontos. Primeiro, con-
siderando-me em quanto mor
tal. Segundo , em quanto mo
ribundo. Terceiro , em quanto
já morto.

I. PONTO.

COnsidera , homem , que es


mortal. Has de morrer
forçosamente. He estatuto , e
decreto indispensavel de Deos ,
a que estás sugeito desde o pon
to , em que foste gerado. A to
dos os filhos de Adaõ nascidos ,
K ii e
ai6 Meditacoems sobre
e por nascer, espera esta sorte.
Até o meímo filho de Deos , hu
ma vez que quiz fer filho de
Adaó , quiz tambem morrer. Tu
bem vês que daqui naó ha esca
par , e que o mesmo he ir viven
do, que ir caminhando para a
sepultura. Mais cedo, ou mais
tarde alli párao todos. Este mun
do naó he patria nossa , he des
terro ; naõ he morada , he esta
lagem ; naó he porto , he mar ,
por onde navegamos. Vivemos
de emprestimo : o Senhor da
nossa vida he Deos : quando qui-
zer pedilla , ninguem póde ne
gar , ou retardar a divida. E
por outra parte sabendo que has
de morrer , naó sabes quando ,
nem onde , nem como. Pode
ser hoje ? Bem póde. Póde ser
antes de acabar de ler esta re
gra ? Póde sem algum milagre.
Pó-
os quatro Novissimos. ï i 7
Pode ser com morte desastrada ,
e violenta , e sem Sacramentos ?
Póde , e ninguem ha deaccular
a Deos de injusto , se alfim o
permittir.
Pois , alma minha , se sabes
que has de apartar-te deste cor
po , e deste mundo , e naó sabes
quando : como vives taó descui
dada de ti , e taó cuidadosa das
cousas deste mundo ? Como tra
tas tanto do temporal , e. taó
pouco do eterno ? Para que ar
mas nessa louca imaginaçaó tan
tas torres fantasticas de esperan
ças vãs , e desejos inuteis ? Di-
ze-me : Se Deos te creára para
morares na terra para sempre,
e souberas de certo , que naô ha
vias de morrer , nem dar conta ,
de que modo havias tu de viver ,
senaó do modo, que até agora
tens vivido ? Se tu foras Gentio ,
K iii e
2 1 8 MEDITAqOENS SOBRE
e naó Christaó ; se foras bruto >
e naó racional , que menos caso
havias de fazer da morte , e da
eternidade , do que agora fazes ?
Para que fecha6 os olhos de pro
posito á luz da fé , da razaõ , e
da experiencia ? Nescio , olha
que has de morrer. Onde poens
o teu amor , e as tuas esperan
ças ? Na tua carne , que apodre
ce ? Na tua vida , que he hum
sopro ? No mundo , cuja figura
se está mudando de momento a
momento ? No demonio , que
te deseja tragar , como leaô fa
minto? Naó he acerto pôr o co
raçao em Deos , que he eterno ,
e te ama de véras ? Na virtude ,
que naó acaba com a morte ?
Eia , desengano : que duvido
mais , ou para que me detenho ?
Fora vaidades , fora regalos,
fora tudo o que me pode apar
tar
os quatro Novissimos, aro
tar de servir a Deos : comece
mos vida nova , governada por
outra lei, a Lei deChristo, e
naó a do meu appetite. Oh quan
to me peza de haver cahido taó
tarde na verdade ! Oh quanto me
arrependo de haver dado ao
mundo , e á minha carne o amor,
que só devo a meu Deos! Porém
já que comecei tarde , andarei
depressa. Ajudai-me , Deos meu,
a levar adiante estes bons pro
positos, que fostes fervido ins-
pirar-me.
II. PONTO.
COnsidera-te como já mo
ribundo : suppoem , que
em fim he chegado o teu fim : já
te estaõ embarcando para aquel-
la irrevocavel , e fatal viagem
da eternidade : tens posto p pé
na raia., que divide este mundo
K iv do
220 MEDITAqOENS SOBRE
do outro : a casa terreira de teu
miseravel corpo se está vindo a
baixo, fendida por mil partes:
já as canas dos pulsos se abrem,
as extremidades se esíriaõ , o
peito se levanta , a respiraçao se
difficulta. Já os Medicos descon-
fiáraõ : e teus filhos , amigos , e
parentes se despedem de ti até
mais ver na caía da eternidade.
Vem o Sacerdote ungir-te : me-
tem-te huma véla na maõ , e te
ajudaõ a pegar delia : dizem-te
o Officio da agonia : respondem
os circunstantes : Ora pro eo ,
ora pro eo : as dores , e parocis-
mos vaõ-se augmentando : e no
modo de respirar cançado , e
apertado; na vista dos olhos,
que se vai retirando , e escure
cendo , se conhece , que as rai-
zes da alma se abalaõ para dar
o ultimo arranco.
Nes-
OS QUATRO NOVISSIMOS. 221
Neste paffb taõ cheio de hor-
ror , e perigo , te ha de vir á me-
moria quaó gravemente tens of-
fendido a Deos no vivo da sua
honra ; e que dentro em brevis-
íìmo intervallo has de fer pre-
sentado em feu Tribunal , e dar
conta de todos os instantes de
huma vida , talvez de 60. ou 80.
ou mais annos ; e que a fentença
ha de ter execuçaõ promptiíli-
ma , e duraçaõ eterna. Oh que
ancias ! Oh que apertos ! Oh que
temorés ! Estes temores accref-
centaõ os demonios , e talvez
apparecendo vifivel mente em
horrendas fórmas, e esquadroens
numerosos , sabendo fer aquelle
o ultimo combate , donde pende
o vencer , ou fer vencido para
sempre ; apertaõ quanto podem ,
tentando com dú vidas na fé,
COtn presumpçaõ das boas obras
K Y pro-
222 MEDITAqOÊNS SOBRE
proprias, com desesperaçaó da
misericordia Divina , com ef-
crupulos das confissoens mal fei-
tas, ou das restituiçoens dafa-
zenda , ou honra alheia , ou das
obrigaçoens do proprio estado ,
e officio : e para desalentarem a
pobre aima se fazem mui cer-
tos , e confiados da vitoria; e lhe
dizem ao coraçao , que já na-
quelles termos naó tem reme-
dio , e bem póde desaferrar a
ancora da esperança ; que foi
miseravel , e outros muitos mi-
seraveis achará no Inferno por
companheiros.
Ai pobre alma! Ai triste de
ti , senaó acabas em graça de
Deos ! Pois dize-me agora : que
folgáras de baver entaó feito?
Folgáras de haver feito peniten-
cia ? De haver restituido o a-
lheio? De naó ter inimizades,
- - nem
OS QUATRO NOVÍSSIMOS. 223
nem contendas com o proximo ?
De haver desprezado o que dirá
o mundo ? De haver abraçado a
imitaçao deChristo, e exemplo
dos Santos ? He certo , que tu
do isto, e muito mais desejarás
haver feito. Pois faze-o agora.
Para que te deo o Creador en
tendimento , e luz da fé , e ins-
piraçoens da sua graça , senao1
para prevenires estes futuros
certiffimos, muito á tua vonta
de , com todo o desça nço , e
acerto ? Reíoluçaõ , alma mi
nha : enche-te bem de virtudes ,
que todas te haõ de ser necessa
rias naquella hora : frequenta
bem os Sacrairfentos , para ter
confiança segura no sangue e
merecimentos de Christo. Naõ
coníintas agora com o tentador
em couía alguma , para que te
aches então1 déstro na luta. Dá
K vi es-
324 Meditaçoexs sobre
esmolas , e exercita todo o géne
ro de obras de misericordia , pa
ra que' os pobres pelejem peia
tua parte naquelle combate ; fi
nalmente vive bem, enaõ mor
rerás mal.
Assim o proponho , Senhor ,
com ajuda de vossa graça : e vós ,
que agora me fazeis o beneficio
incomparavel de me dar tempo ,
e luz para confídèrar de espaço
nestas importantissimas verda
des , sinal he certo , que me
amais , e quereis salvar. Oh
bom Jesus ! Oh amabilissimo
Salvador das almas , que por el-
las com tanto amor , e trabalho
destes a vida ríDs braços de hu
ma Cruz: naõ permitrais se per
ca em mim taõ excessivo amor,
taõ precioso sangue , redemp-
çaõ taõ copioíã.

.'. . III.
os quatro Novíssimos. 225"

III. PONTO.

COnsidera- te já como mor


to , e como se tu mesmo
foras outra differente pessoa vi
va , poem-te a olhar para o teu
corpo defunto. Adverte como
fica feio , pállido , e desfigura
do. Alguem de casa lhe cerra
os olhos, aperta o queixo, es
tende os pés , compoem os bra
ços ; e amortalhado em hum po
bre lançol ( que he o despojo ,
que leva de todas as cousas des
te mundo ) o poem na casa sobre
hum pano negro com luzes a hu
ma , e outra parte. Vem os Mi
nistros da Igreja , rezaõ o res
ponso , tomaõ em pezo o cada
ver , que está mui intiriçado ,
frio , e pezado , e com princí
pios de corrupçao , e descera
pa-
32 6 Meditaçoens sobre
para o meter na tumba , despe-
dindo-se delie os domesticos -
com algumas lagrimas , que
brevemente se enxugaó , e para
o defunto saó totalmente inuteis.
Caminhaó á Igreja , onde está
prevenida huma cova , e amon
toados a hum , e outro lado del
ia muitos ossos mirrados , e mui
ta terra , que lança de si o far
tum dos mortos , de que costu
ma ser cama : este lie o espaço
so , e ameno palacio , onde ha de
morar o novo hospede , até que
a trombeta de hum Archanjo o
acorde , e o mande levantar ,
para que dê conta , e leve o pre
mio , ou pena do que servio , ou
offendeo a seu Greador. Alli
deixaó cah ir o cadaver : ossos, e
terra por eolchoens ; terra , e
ossos por cobertores. Começaõ
a calcallo a golpes de enxada :
po-
os quatro Novissimos. 227
poem-]he huma lagem em cima :
vaõ-se os circunstantes huns a
comer , e beber , outros a rir ,
ou contar novas , outros a tratar
do seu negocio. E dahi a pou
cos dias desappareceo até a me
moria do tal defunto : e ainda a
mulher , e filhos o nomeaó pou
cas vezes , e talvez para o pra-.
guejarem, se deixou pouco re
medio.
Vês , alma minha , o que he o
mundo ? Vês o que he o teu cor
po ? Pois para que adoras o re
galo , e commodidades do teu
corpo ? Para que idolatras na
estatua fantastica do mundo ? A
vista de taó horrendo espectacu
lo , e desengano taó palpavel ,
naó me dirás de que ferve o des-
v-elar-se por amontoar fazenda
com inquietaçao da tua consci
ência , por crescer na honra,
por
228 MEDITAqOENS SOBRE
por sahir com o teu appetite ?
Onde está agora tudo o que deo
prazer , e recreaçao a teus sen
tidos ? Que proveito tiraste da
raidade, e da malícia ? Como
es ta 6 nescio , que com offensa
grave de Deos cativas a tua al
ma , e o teu corpo ; e todo o
tempo , e cuidado se te vai era
o accommodar , fomentar , e
defender ? Naó vês que he pó ,
e bichos, honor, e podridão?
Naó sabes que te naó ha de pa
gar estes obsequios , senaõ com
tormentos ?
Ah Senhor ! Nao sei que en
cantamento he este do amor pro
prio , que me traz cego , e alhea
do. Parece que as trévas do meu
peccado meapagaõ até a luz da
Fé , e da experiencia , com que
nao vejo o mesmo , que cada dia
estou vendo. Meu Senhor Jesus
Chri-
os quatro Novissimos. îîq
Chriílo, que fois a verdadeira
luz , que allumiais a todo o ho
mem, que entra neste mundo:
por vossa infinita piedade vós pe
ço commun iqueis á minha alma
vossa claridade : dai-me luz pa
ra que veja o que sois vós , o que
sou eu , e o que he o mundo : o
que sois vós, meu ultimo fim,
meu summo bem , meu Creador,
e Salvador , e toda minha feli
cidade : o que sou eu , miserá
vel filho de Adaó , terra ao prin
cipio, e no fim terra, escravo
da culpa , illusaõ do tempo / des
pojo da morte , assumpto de vos
sos juizos : o que he o mundo ,
lugar de tentaçao , theatro de
vaidades , oceano de miserias ,
e perigos. Senhor Deos , huma
boa hora para sahir de tantas
miserias em estado , que nao en
tre em outras maiores eterna-
men
330 Meditaçoens sobre
mente: huma hora ditosa , em
-que entregue em voffas maós
meu espirito. Por amor de vos
sa affrontosa , e amargofissima
morte de Cruz , me concedei
huma boa morte , para que lou
ve vosso nome na terra dos vi
vos por seculos dos seculoSt
Amen.

MEDITAÇÃO II.

Do Juízo particular.

TAnto que a alma se aparta


do corpo , entra logo a ser
julgada no Tribunal de Christo,
para ser , conforme suas obras
merecerem , sentenciada a pre*
mio eterno , ou a eterna pena. E
se no ponto, em que a colheo a
morte , estava em graça de Deos,
porém naó tinha íatisfeito intei
ra-
os quatro Novissimos. 23 1
ramente por seus peccados , cora
verdadeira penitencia , he leva
da ao Purgatorio , onde pena
por tanto tempo , até que pague
tudo o que devia á justiça Divi
na : sobre esta verdade funda
mental pódes considerar os se
guintes pontos.

I. PONTO.

COn sidera o pavor , estra


nheza , e admiraçao com
que se achará a alma , tanto
que se apartou dos laços do seu
corpo , e sc vir cm outra regiaó,
e estado totalmente diverso, e
até entaó nunca experimentado.
Entaó conhecerá a dignidade,
e nobreza de seu ser natural ,
creado á semelhança do Altilsi-
tno: equaó baixas, e desprezí
veis íào todas as couías da ter
ra ,
13 * MEDITAqOENS SOBRE
ra , de que fazia tanta estima
çao. Entaô lhe parecerá toda a
vida passada hum sonho , de que
acordou , desapparecendo-lhe
de repente todas as figuras men
tirosas das vaidades deste mun
do , e achando-se solitaria na re
giao da verdade. Verá junto a
fi a hum lado o seu Anjo Custo
dio , ao outro o demónio seu ten
tador: aquelle para a defender
com as suas boas obras , este pa
ra accusa lia de todos seus pec-
cados. Verá claramente mui
por miudo, tudo quanto fez,
disse , e cuidou no discurso da
sua vida passada : e se as obras ,
em que servio a Deos , a coníò-
laó , e alentaó ; pelo contrario ,
as em que se atreveo a offen-
dello , a atormentaó , e atemo-
rizaó. Eis vai a pobre alma (a
nosso modo de entender) cami-
nhan-
os quâtro Novissimos. 233
nhando para o Juizo : sabe Deos
como sahirá sentenciada. Oh
que temeroso paflo he este ! Oh
que suspensao taõ chea de an
gustia , entrar em contas com
Deos , a cujos olhos nada se pó
de encobrir ; de cuja grandeza ,
e magestade até as columnas do
Firmamento estremecem ; cujo
poder he supremo , e absoluto ;
cuja justiça he rectiffima ! Dar
conta a Deos , a quem tantas
Vezes , e com tanta ingratidao'
óffehdi , e conta geral de todos
os caminhos da minha vida, de
todas as obrigaçoens do meu es
tado , de todos os benefícios da
sua graça , de todas as conse
quencias do meu peccado ! Oh
trance como es apertado , e ter
rível !
Aqui verás quanto te impor
ta nao fazer agora as contas
- ": cora
334 MíDITAqOENS -SOBRE
com o teu amor proprio , nem
com o teu corpo, nem com o
mundo , nem com os filhos , pa
rentes, e amigos , senaõ só com
Deos. Quando agora intentas
fazer , ou deixar de fazer algu
ma cousa , faze primeiro contas
com aquelle supremo Senhor ,
a quem algum dia as deves dar
de toda a tua vida : attende aos
remorsos da tua consciencia ,
governa-te pela Lei de Deos ,
exemplos de Christo , e dos San
tos , e naõ pelas repugnancias
de tua carne , nem pelo que di
rá o mundo : lembra-te , que
naõ has de levar contigo ao Tri
bunal de Christo as honras , nem
as dignidades , nem as riquezas ,
nem o credito , e fama. Tudo
isso fica atraz : só te haõ de fa
zer companhia , e dar consola
çao as virtudes, que exercitais
te,
os quatro Novíssimos. 23s
te , as penitencias, jejuns, es
molas , communhoens , oraçoés ,
perdaõ de injurias , &c. Para
te prevenires , e armares bem
com santas obras , te he con
cedido o tempo desta vida ; em-
prega-o bem , tendo fome , e se
de de justificar-te mais cada dia ;
que deste modo tanto menos te
merás aquelle Juizo , quanto él-
le he mais recto , e verdadeiro.

II. P O N T O.

COnsidera , alma minha ,


que já estás diante do Tri
bunal de Jesus Chqj^p , e que
vês a este Senhor assentado em
hum throno de luzes com grande
magestade , e assistido dos exer
citos dos Anjos ; e que por outra
parte acodem os infernaes espí
ritos malignos , trazendo , e def
eri-
2$6 Meditaçoens sobre
envolvendo os processos de tuas
culpas, emostraõ grande alvo
roço, e confiança de que a sen
tença sahirá por elles : luppoem
que o Senhor emprega em ti
seus divinos olhos (aquelles o-
lhos , de quem está escrito , que ,
se olhaõ para a redondeza da
tçrra , a fazem tremer) e que
fallandò comtigo te diz : Eu sou
teu Creador , e Salvador : Eu
sou quem te deo o ser , e por teu
amor me fiz homem , andei no
mundo, chorei, e trabalhei , e
padeci fome , pobreza , aífron
tas, e tormentos, até dar avi
da em hugaa Cruz , porque te
naò perdesses ; vejamos agora
como correspondeste a meus
benefícios : dá-me conta de co
mo guardaste a minha Lei , co
mo te aproveitaste de minha
graça 7 em que empregaste os
an-
os quatro Novissimos. 237
annos , que te concedi de vida
para me amares. Dize , que ra
zao tiveste para me desprezares,
e offenderes ? Induzio-te o de
monio ? Porque consentiste com
elle , pois eu te ajudava a pelei-
jar, e tinhas a teu lado o meu
Anjo , que te defendesse ? A tua
carne era fraca? Porque anao
mortificaste , para naó feres del
ia vencido ? Porque naô usaste
das armas da Oraçao, e Sacra
mentos, que te deixei para esse
elFeito , e com que outros mui
to mais fracos , que tu , sahíraÕ*
vencedores ? Se te reconciliei
comigo tantas vezes, porque tor
naste a recahir nos mesmos pec-
cados ? Como te atreveste a
cómmetter cm minha presença
tantas abominaçoens , e torpe
zas ? Naó sabias muito bem >
que eu te estava vendo ? Naó te
L disse'
238 MEDITAqOENS SOBRE
disse huma , e muitas vezes ao
coraçao , que te punhas a peri
go de perder-fle ? Naó vias os
exemplos dos que viviaó santa
mente , sendo da mesma carne
fragil , d;ue tu eras ? Que re
spondes ingrato? Olha para estas
Chagas s que por teu remedio
foraó abertas : como te na6
aproveitaste de remedio , que
para ti era taó efficaz , e para
mim foi taõ custoso ?
Por este modo (quanto ao que
nós podemos entender) vai o
Senhor pondo com a sua luz di
ante dos olhos da alma a multi
dão", e fealdade dos seus pecca-
dos , e a ingratidao a seus bene
ficies ; com huma residencia taõ
geral , que le examinaó todas as
acçoens do discurso da tua vida i
e taô miuda, , que se pede allí
conta de huma palavra ociosa.
os quatro Novissimos. 239
Oh que pouco adverte nesta
conta , quem agora naó tem
conta , mais que com fizer a sua
vontade, indo cegamente para
onde o levaõ seus appctites í
Falio , converso , rio , jogo ,
como , e bebo > uso de meu cor
po , e forcas , e de todas as po»
tencias de minha alma , como se
eu fora o mesmo, que medeio
ser , e naó tivesse superior al
gum , a quem dar conta , e todos
estes bens estivessem á minha li
vre disposiçaô, para usar delies
como me parecer , seja , ou naõ
seja contra vontade de Deos.
Eternidade naó me passa pela
memoria : sou Christaô quasi só
no appellido : achei-me assirst
bautizado , quando abri os olhos
.ao uso da razaó : ouço dizer que
.ha Juízo , Ceo ,e Inferno iassim
o creio , como os outros , com
L ii quem
2-40 Meditaçoens sobre
quem vivo ; porém nestes pon
tos naõ faço reflexao alguma,
nem tomo o pezo a cousas de
tanta importancia. Se alguma
vez medespertaõ deste sono os
brados do Pregador , ou algum
caso idesestrado , que vejo, en-
tristeço-me hum pouco , e logo
remetto-me á misericordia de
Deos , que tudo perdoa , e faço
conta que tambem os outros
peccaõ-, divirto-me -, e vou an
dando como de antes -, vem o
demonio, e o lugar , que na&
dei áquellas inspiraçoens , oc-
cupa-o com novas tentaçoens:
consinto , porque já o inimigo
tem como de casa a minha von
tade; ao seu mandar : eis temos
novos peccados , e com elles
vai-se. dobrando a minha ce
gueira , e a ira de Deos ente-
íòurando-se contra mim , para
sí.-j-V . n rom-;
OS OUATRO NOVISSIMOS. 24!
romper tcda naquelle ultimo
dia. v o 1 . .1:;
Aima minha , aonde vamos
parar ? Perdeste ô sizo ? Naõ
íentes , nao crês , naõ te pene-
traõ estas verdades ? Nunca ou-
viste dizer , que o Evangelho
affirma , que saõ poucos os que
le l'alvao ? Que fazes tuporser
destcs poucos ? Nunca puzeste
os olhos' em Christo crucifica-
do ? Como queres que nada te
custe o que a Christo custou tan-
to ? Resolve-Te , muda de proce-
dimentos. Pelo caminho largo
vais errada : isto he certo<..Eu
me rendo , Senhor ; quero daqui
por diante servir-vos, e amar-vos
com todas as minhas forças.,
confiando , que me haveis de
ajudar com vossa graça. ». .

. . v- L iii
242 Meditaçoens sobre

III. PONTO.

COnsidera ultimamente a
sentença , que o supremo
Juiz pronuncia. E visto que o
número dos que sahem reprova
dos he muito maior que o dos
eícolhidos, accommoda- te , al
ma minha , a considerar , ou sup-
pôr (o qtie Deos naõ permitta)
que tu es do numero dos mais ;
para que temendo por esta via
a Deqs , ordene elle que sejas
do numero dos menos. Suppo-
nhamos. pois , que aquelle Se
nhor de infinita Magestade , de
Éiljo 'aceno tremem os Ceos , a
terra , e o Inferno» depois de
examinada a tua causa , olha
para ti com olhos indignados,
e te diz: Aparta-te de mim,mal-
âito ; vai-te de minha presença ,
.. . in-
OS QUATR0 NOVISSIMCS. 243
ingrato ; vai-te para 0 fogo
eterno, em conipanhia dos demo-
nios , a quem fervifle. Que fa»
rás , ó pobre alma ? Quefarás , ó
triste creatura nesse ponto ? Pe*
diras niais tempo de vicia para te
emendares ? Já te soi concedi-
do muitas vezes •, que , se aflìtn
na6 fora , muito tempo ha já ,
que estarias ardendo no Infer-
110 : e se mais vivêras , mais peo
cáras. Appellarás para a Mise-
ricordia Divina , e merecimen-
tos do sangue do mesmo Chrb-
sto ? Essa misericordia he a que
tu nao quizeste , offerecendo-ta
oSenhor tantas vezes: esse íài>
gue he o que delprezastey e por
ìsso clama contrat! justiça. Iní-
vocarás a Virgem Maria /qu*
he toda piedade , e clemencia ?
Já por ti interccdeo mut'tíis' ve^
zes ? e por islb Dcos te ícíïria
u L iv e
244 MEDITAqOENS SOBRE
e esperava ; e nao póde fer , que
esta Senhora queira o que lie
contra a gloria de Deos , e von-r
tade determinada de feu Filho.
Quanto mais , que huma vez
que tu acabaste fòra da amiza
de de Deos , já nao poderá a tua
vontade mover-se a nenhum
desses actos pios ; como faó,
pedir misericordia , e invocar
o amparo da Senhora. Pois que
remedio ? Fugirás do Tribunal
da justiça Divina , efcondendo-
te ? E quem póde fugir do Se
nhor, que he immenso ; oues-
conder-fe da luz , que tudo en
che. ,íe penetra ; ou resistir ao
Omnipotente ? Tirar-te-has o
-fer a ti mesmo aniquilando-te ,
com que tornes ao nada , que
eras antes que Deos te desse o
ser ? Bem o desejarás ; mas as
sim como só Deos nos póde dar
. .' o
OS QUATRO NoVISSIMOS. 24?
oser, aflîm tambem sóelleno-
lo póde tirar.
Pois que has de fazer , misera-
vel alma desgraçada creatura ?
Tu escás cercada- : - de çima o
Juiz severo ; debaixo o Inferno
aberto ; por dentro a conícien-
cia damnada ; de fora os demo-
nios rodeando-tejá com as gar-
ras abertâs para fazer preza.
Oh que angustia ! Oh que ago-
nias ! Oh que deígraça das def-
graças ! He possivel que ta Ô ca-
ro custa o deleite do peccado ?
Nisto vem a parar as vaidades,
e sonhos , e ridicularias s e bran-
duras , e mentiras do mundo , e
da carne, e do demonìo ? Oh
traidora carne ! ; Oh mundo em-
busteiro! Oh serpente infernal ,
como me enganàste ! Enganeir
te , ( responderá o demonio mut
ufano ; e eícarnecendo de .ti)
L y. en^
246 Meditaçoens sobre
enganeite ? Iflo he que me con
sola , porque aborreço a Deos ,
cuja imagem está em ti ; e que
ro fazer injuria ao teu Christo,
que te estimou tanto, que deo
por ti a vida : e eu tive poder pa
ra fazer , que ainda assim o naõ
amastes , nem servisses a elle ; se-
naó a mim , que naó procurava
senao a tua perdiçao , como tu
bem sabias. Pois já que seguis
te sempre o que te aconselhei,
eu te recebo por minha ; anda ,
e arderemos juntos por toda a
eternidade. Neste ponto já o
Tribunal do Senhor desapare
ce, e o teu Anjo te desampara,
e os demonios te arrebataõ co
mo lobos famintos, e sepultaó
nas profundezas , donde nunca
mais has de sahir eternamente.
Tudo isto , alma minha , que
agora passa por ti na imagina-
çaó,
os quatro Novíssimos 247
çaõ ,~ bem pode algum- dia paf»
far na realidade. E visto que
entaõ he desgraça , que naõ tem
remedio , póde-o ter agora.
Que remedio ? Ccnverter-me.
Eu quero resolutamente daqui
por diante temer , e amar a
Deos; pois he meu Senhor, ô
Creador , e Redemptor , e todo
meu bem ; e seus juizos saõ mui
to altos , e justificados por si
mesmos. Torno a dizer , que eti
quero amar a Deos de todo o
9 ' *
ultimo fim , o meu summo bem»
e lhe devo tudo quanto iòu, e
valho , e me amou a mim pri
meiro com amor taõ fino, que
por mim se poz em huma Cruz ,
ná', ástrontado , e coroado de
eípinhos , e crucificado. Eu
quero cortar por iodos os estor
vos , que me impedem a minha
L vi emen-
248 Meditaçoens sobre
emenda , e reforma ; retirar-me
de más companhias , de occa-
fìoens perigosas , de tratos , e
contratos illicites, de deleites,
e vaidades mundanas. Eu que
ro fazer huma confissaó geral
bem feita ; para que , accusan-
do-me primeiro de meus pecca-
dos , o Senhor me perdoe , e
naô tenha meu inimigo de que
me accuse. Eu me resolvo a fa
zer penitencia , para dar alguma
satisfaçao á JDivina justiça do
muito, que lhe devo : e porque
todas minhas obras valem pou
co, as unirei com o langue de
Jesus Çhristo., cujo valor. he in
finito.. Eu quero aproveitar o
tempo , e até as minimes horas
de minha vida , pois me nao he
dada a vida' temporal .senaõ pa«
ra negociar a eterna. Senhor ,
que semeais em minha alma es-
-a-xs.j ï-.- tes
OS QUATRO NoVISSIMOS. 249
tes bons propositos íopormife-
ricordia vossa , e porque a vofla
natureza lie bondade , edesejais
salvar a todos : regai com a chu-
va de vofla graça , e creai com
o Sol de vofla caridade estes
mesmos propofitos , que semeas-
tes y para que se logrem , e che-
guem a dar o precioso frutp de
tninha salvaçaó , e vofla gloria.
Amen.

MEDITAÇAÓ m.\

. Do Inferno.

Composiçaó do lugar será


que vejo . iìo
centro da terra huma masmorra ,
ou rcalabouço .;profundislìmo ,
escuriflìmo , tristissimo , çheio
de lavaredas de fogo de enxo-
fre, e de nuvens de espeflb fií?
250 Meditaçoens sobre
mo : e alli abrazando-se innu-
mcravel muitidaó de condem-
nados , atados em feixes huns
com outros , emcompanhia dos
demonios; e todos em confufa
vozeria bramindo , e uivando
como caens damnados , e vomi-
tando contra Deos blasfemias
horrendas.

I. PONT O.

COnsidera com attencaó va-


garosa a grandeza , e ter-
ribilidade dos tormentos, que
alli padecem estes miseraveis.
Primeiramente considera a pe
sta > que chamamos de Damno ,
e consiste no bem, que perdê-
raó , podendo naó o haver per-
dido. Oh quanto perdêraó a-
quellas desgraçadas almas ! Per-
déraó a companhia amabilissi-
ma
os quatro Novissimos. 25' i
ma de Christo, e de sua Mãi
Santiíììma , e de todos os An
jos , e Santos. Perdêraõ os de
leites ineffavcis de todos os
sentidos , que no Reino dos
Ceos lograô os seus moradores.
Perdêraó a liberdade , perde
rao a paz da consciencia , per
dêraõ todas as virtudes , e dom
da graça Divina. Perdêraó a
honra de ferem filhos , e herdei
ros do mesmo Deos , e Reis
coroados em a sua Corte. Per
dêraó a vista clara de Deos , o
seu ultimo fim , e summo bem ,
para que foraó creadas. Em fim
perdêraó a vida eterna , perdê
raó a salvaçaõ, que he perder
tudo : e para sentir tantas , e tad
irremediaveis perdas , ló a vida,
e ser naõ perdêraó.
He possivel (poderá dizer
qualquer daquelles miseraveis i
co-
252 Meditacoens sobre
comendo-se de raiva ) que por
minha livre vontade , por meu
querer abíoluto , perdi a Deos !
He polïïvel , que naó fiz caio dos
premios da vida eterna ! Des
prezei hum Reino , e Reino,
que naó tem fim , por sepultar-
me no Inferno ! He possivel , que
escolhi antes o tormento , do
que a. gloria ! Antes a maldi
çaõ de Deos , do que a sua ben
çao ! Antes a companhia dos
demonios , que a de Christo !
Antes a morte eterna , do que a
eterna vida ! E isto , tendo eu
entendimento , e fendo Chri-
staõ, e avisando-me Deos , ere-
mordendo-me a consciencia ,
e esperando-me a paciencia Di-
.vina tantos annos , para que pu
deste mudar de eleiçaf) , e tor
mar o caminho da verdade !
Que me aproveitáraó as rique-
s zas,
os quatro Novíssimos. 253
zas , e prazeres em que puz a
minha coniolaçaõ , e confiança ?
Em que me podiaõ valer . as
creaturas logradas com offensa
do Creador ? Porque estimei
mais qualquer coula do mundo,
do que a minha alma ? Como
fui tao insensato , e louco , que
pizei o Sangue deChristo, que
era o preço , com que me podia
salvar ? Como nao tive amor a
hum Deos , que tanto amor me
teve, que naõ duvidou dar por
mim a vida ? Se tantos do meu
estado , e peccadores como eu ,
se arrependerao' , e salváraõ por
este meio , naõ pudéra eu tam
bem arrepender-me com tempo ,
e salvar-me ? Pudéra. Oh mal
dita hora em que nasci ! Mal
ditos os pais , que me gerarao!
Maldito este corpo a quem fer
vi , e adorei : maldita esta alma ,
que
254 Meditaçoens sobre
que Hie obedeceo ! Maldita
&c. Aqui seõ as blasfemias hor-
rendas , as raivas furiosiffimas ,
odefejar com ancia viva o def-
pedaçar-se a si , e todas as crea-
turas , e deílruir o mesmo fer de
Deos , se lhe fora possivel ; e o
ter-lhe odio taõ empedernido,
e desesperado , que ainda que
lhe oífereceíTe a salvaçaõ , a naõ
quizera , só por lhe negar a glo-
ria , que niflo teria.
Porém tu , alma minha , que
estas de fóra vendo com os olhos
da consideraçaõ o que alli passa ,
( íupposto que do que alli paíïa ,
nunca pódeschegar a ver mais,
que huma pintura rosca, ou hu
ma leve sombra) tira da desgra-
ça alheia escarmento proprio.
Terne a Deos ; que naõ temer
ao íummo poder , e á fumma
justiça hum peccador taõ mile-
ra-
os quatro Novissimos. 25s
ravel, he a maior de todas as
loucuras , e temeridades. E pa
ra o temeres , considera muitas
vezes nestas verdades , e pede
ao Senhor te communique este
dom, que ferve de freio á li
berdade de tua carne , e furia
de teus appetites ; dizendo com
David aquelle Santo Rei peni
tente : Senhor , traspafjai com
vosso temor meu coraçao, porque
temi os nossos juízos. Ou cora
hum Agostinho tambem pecca-
dor , e depois Santo : Senhor ,
aqui nesta vida me abrazai , e
aqui meferi , e despedaçai ; com
tanto , que me perdoeis eterna
mente.
II. PONTO.

COnsidera em segundo lu
gar a pena , que se chama
do Sentido, em particular a que
nas
2^6 MEDITAqOENS SOBRE
nasce do tormento do fogo. Fin
ge na tua imaginaçao ( oh naó
permitta Deos , que assim ve
nha a ser na realidade) que os
demonios , a quem o braço da
justiça Divina relaxou tua des
graçada alma , a arrebataó de
improviso como aves de rapina ,
ou leoens esfaimados , e a lan-
çaó naquelle poço , ou lago de
incendios voracíssimos ; onde
com o pezo de teus peccados,
( oh peccados , que doces ereis ,
ou parecíeis ser antigamente ao
commetter-vos , e agora como
amargareis eternamente ! ) on
de , digo , com o pezo de teus
peccados se some de sorte , que
ficaó acima delia duzentas bra
ças de fogo , e debaixo , e aos
lados outras tantas. Vê como
todo te convertes em fogo t fo
go os olhos , fogo a lingua , fo
go
os quatro Novíssimos. 25j
gd ia garganta , fogo as costas ,
e o peito ; fogo o coraçao , fogo
as entranhas todas , fogo as
maos , e os pés ; e fogo nao co
mo este , que na terra vemos ,
senaõ escuro , groíso , fétido , e
abrazador mais que se fora de
metal derretido ; fogo , que com
as suas linguas ata , e prende os
membros , como huma serpente
com as suas roscas ; fogo , que
soa como levada . de muitas
aguas, ou tempestade de furio
sos ventos ; fogo feito de propo
sito pela maõ do Omnipotente,
para tormento daquelles sober-
bifllmos gigantes os demonios ,
que tiveraõ atrevimento dp fa
zer guerra , e competir com o
Altissimo. ....
Cuidas por ventura, ó alma
miflha , que este dizer vai algU'
ma cousa encarecido ? Muito
•-. mais
258 Meditaçoens sobre
mais que te differa , e tudo
quanto nesta materia tem dito
os Santos , e algumas almas , a
<juem foraó revelados os tor-
mentos do Inferno , hepintura,
he sonho , he nada em compara-
çaó da verdade. Oh Deos eterv
no ! Se eu agora mal posso íbf-
frer que me caia na mao o mur*
raó accezo de huma véla , ou
que me salte nosolhos o espirro
de huma candea : como soffre-
rei (ai de mim ! ) a furia , e acti-
vidade daquelle eterno incen-
dio ? Vem cá , nescio : tu , que
tao soltamente peccas , e com
tanto desempenho, e alegria vais
caminho direito para 0 Inferno ;
dize-me : tens acaso prevenido
alguma resistencia contra aquel-
le fogo , para que te naô' chegue,
nem offenda ? Levas comtigo,
se alli cahires , tflgum efficaz re-
- - me-
OS QUATRO NOVISSIMOS. 2^0
medio , que o apague , ou sabes
aJgumas' palavras com que o en-
cantes ? Ou Deos empenhou-te
sua palavra , de que naó es ru
dos que haó de cahir naquelle
lago ? Ou se cahires , mandará
este Senhor feus Anjos , que te
chovaó orvalho do Geo , e façaõ
viraçaó branda , para que a vio-
lencia daquellas chammas te
naó moleste , como fez com os
meninos da fornalha de Babylo-
nia ?
Pois feninguem alli te póde
valer , porque te naó vales ago
ra a ti meímo ? Ou porque i Bi
pedes a Deos , que te valha ,
quando se oíFerece para valer-
te ? Como es taó infensato , que
recusas o fazer penitencia , fen-
do a penitencia remedio taó le
ve , que te podia livrar de hum
mal taó graye ? Penitencia > pé
2Ó0 Meditaçoens sobre
nitencia , agora que he provei
tosa ; agora que os jejuns , os
cilícios , as disciplinas , as ca-
deas te podem suster empezo,
para que naó caias naquelle
abysmo. Dóem ? Que importa ?
Que mais ha de doer aquelle fo
go/' Gustaõ ? Mais ha de custar
asli hum momento daquelle in
cendio, do. que se toda a. vida
estivestes nos cordeis de hum
potro. Es fraco ? Pois como só
para offender a teu Deos foste
valente ? Anima-te , e confia na
graça de Jesus Christo , que a
outros mais fracos deo este Se
nhor forças para. o servirem. Pa^-
ga , pois deves ; paga agora com
pouco , que val muito , o que de
pois nem muito , nem pouco po
derás pagar com eternas penas.
Paga por ti , pois es culpado ; já
que Deos pagou por ti, fendo
ôs quAtro Novissimos. 261
innocente. E para que esse pou-
co , que fìzeres , seja muito,
ajunta-o comaspenas de Chris-
to , e offerece-as ao Eterno Pa-
dre , pedindo-lhe instantemente
perdaõ de teus peccados. Per-
doai-fne , Eterno Padre , por
amor de vosso Fil ho Jesus
Christo. Perdoai minhas loucu-
ras , e exceflbs ; minhas ingrati-
doens , e atrevimentos. Valha-
me o Sangue de vosso precioíìíïï-
mo Filho Jesus Christo ; valha-
me a sua Cruz , os feus tormen-
tos , affrontas , afflicçoens , e
desamparos. E dai-me graça »
para que nunca mais yos offeri-
da , nem provoque contra mim
vossa ira , que taõjustamente te-
nho merecida.

M . III.
2Ó2 MeDITAÇOENS SOBRE

III. P O N T O.

COníìdera ultimamente na
duraçaó infinita , e perma-
nencia invariavel daqudìes tor-
mentos. Finge com apprehen-
saó viva , que desde as profun-
dezas efcurissimas daquella sub-
terranea masmorra , estas ouvin-
do bradar a hum daquelles dis-
graçados : Oh Eternidade! Eter
nidade ! Eternidade ! Qyando
se acabaráo minhas penas ? Nun-
ca. Quando teraó ao menos al
guilla dimiiuiiçaó , ou alivio ?
Nunca. Quando íahirei deste
abismo ? Nunca. Quem me li-
vnará deste miserabiliflìmo esta-
do ? Ninguem. Quem poderá
coiisolar-me ? ûlinguem. Quem
ao menos se compadecerá de
raim ? Ninguem. Affim hei de
. es
os quatro Novíssimos. 263 :
star em quanto Deos for Deos ? .
V íD m. Naõ ha rasto de esperan-
sl , nem daqui a mil milhoens'
le milhoens de seculos? Nem'
>or todos os seculos da eterni-
ìade. Pois que farei ? Penar,
trder , e agonizar sempre , sem--'
>ire , sempre. Aqueíle , que me-
i eo o ser creando-me , naõ mo
rirará aniquilando-me ; ou naa-
consentirá , que eu pereça ? Está
irado para sempre ,. Fechou-se a ^
porta, cortou- se o fio dá sua mi
sericordia. Oh trévas perpetuas,
bem. merecidas de minha ce
gueira ! Oh carcere eterno , jus
ta pena de minhas liberdades !
Oh fogo infinito , devido tor
mento á minha sensualidade!
Oh Eternidade ! Eternidade!
Isto , que ouves , alma minha ,
a hum daquelles condemnados ,
he o mesmo, que dizem todos. -
... M ii At-
264 MEDITAÇOEtíS SOBRE
Attende bem aos espaços pro-
fundiífimos daquellas cavernas
temerosas : alli esta innutneravel
multidaõ de todos os estados ,
sexos , e idàdes : muitos Reis ,
e. Senhores soberanos antiga-
mente servidos , e quasi adora-
dos dos póvos ; muitos Letra-
dos , Sacerdotes , Religioíbs ,
e Bispos , que em outro tempo
consagráraõ o corpo de Christo ,
e absolvêraõ de peccados , e go-
vernáraõ almas , e enfináraò a
outros a salvar-se : muitos mo-
ços , e anciaõs , enganados huns
da luxuria , outros da avareza :
muitas mulheres disgraçadas,
que vendiaõ a alma , e corpo ao
demon iù , por ter paõ, ou por
. hum momento de deleite bru-\
tal , e--torpiísimo ; e naô íb se
condemnáraõ a si , senao que
cora suas maõs arrçmessáraõ no
-U: i- Isl In*
OS QUATR0 NoVISSIMOS. 2Ôf
Inferno as creaturas , que affo-
gáraõ, por affogar a íua triste
deshonra : muitos ufureiròs , ero
cuja falsiflìma balança pezou
mais hum sacco de dinheiro , do
que o Reino dos Ceos , e a hon-
ra de Deos : muitos inimistados
comodios antigos, que antes se
determináraõ a quebrar com
Jésus Christo , do que a soldar
com o proximo : muitas Reli-
giosas , que na casa de feus pais
îinhaõ medo de naõ fer muito
honestas , e na de Deos naõ o
tiveraõ de fer adulteras infa
mes. Olha bem como todos fei-
tos huns tiçoens negros, humas
sombras horriveis , hum espe-
ctaculo de miferia eterna , em
confusa desordem , e vozeria,
entre ondas de fogo , desde o
seio daquelle medonho abyimo
clamaõ .huns : Oh Eternidade,
-.. r M iii Eter-
266 MEDITAqOENS SOBRE
Eternidade ! E respondem ou
tros : ; Oh Eternidade, Eterni
dade ! '.' .: . . i : ,
E nós-outros os mortaes , que
andamos sobre a face da terra,
em que nos determinamos , ou
que fazemos, crendo estas ver
dades ? Verdadeiramente pare
ce , que nao as cremos. Oh fé,
como estás morta á violencia de
nossos graves, e contínuos pec-
cados ! Oh fé , como estás oppri-
mida , e sepultada debaixo das
cinzas de nosso esquecimento !
Lembra-se o homem do corpo ,
esquece-se da alma : cuida , e
lrata da presente vida , descui-
-da-se da eterna : trata de como
livrará a sua capa da chuva ; naõ
trata como livrará à sua alma ,
e o seu corpo do fogo eterno:
sonha em como adquirirá mais
dinheiro i nem por sonhos lhe
OS QUÀTRO NoVISSIMOS. 2.6/
paffa de como naõ perderá a
graça de Deos , e o Reino do
Ceo. Oh fé , quaõ dcbalde te
plantou o Fiiho de Deos tanto
á sua custa nos coraçoens da ma-
ior parte dos homens ! Tu por
Ventura 3 alma minha, queres fer
nescia com os nefcios ? Queres
fer cruel comtigo mesma ? Acor-
da , desperta , poem-te em sal-
vo. O mundo se arruina : des-
pega-te do mundo. Outro mo
do de viver daqui em diante;
outros procedimentos , outros
tratos , outras conversaçoens ,
outras companhias. Por ti só
nada farás: com Deos farás tu-
do : rccorre á sua graça : impor-
îuna-o ccm a oraçaõ : iníiste em
teus bons propofitos : naõ olhes
mais para traz : adiante sempre ,
Sjiie os que perseveraõ , esses se
álvaô. Faze-te vioiencia , que
M iv o
2Ó8 MEDITAqOENS SOBRE
o Reino do Ceo quer-se levado
por força. Força , que a carne ,
o mundo , e o demonio puxaó
para baixo : força , que o ven
ceres importa : força , que se ca-
hes no Inferno , naó ha surgir
acima eternamente : força , que
Deos te ajuda , e por te ajudar
rasgou as maós , e pés , e abrio
pelo peito. Ai , Deos meu !
Donde me hso de vir tantas for
ças , senaó de vós , que sois to
do poderoso ! Dai-me a maõ ,
e ajudai-me : efla maó , que por
mim pregastes na Cruz , susten-
tai-me com a sua virtude ; que eu
quero pegar delia, e cooperar
com o seu auxilio. Em vós , Se
nhor , ponho minha confiança ,
naó perecerei eternamente.

ME-
os quatro Novissimos. 269

MEDITAÇAÕ IV. '.

. Da Gforia.

A Grandeza dos bens eter


nos , que Deos tem guar
dado para os que o servirao , e
amáraó , nenhuma língua a pó
de declarar , nenhum pensamen
to compre hender. E assim tudo
0 que a Escritura Sagrada , tu
do o que os Santos Padres ,
Theologos , e Doutores mysti-
cos tem dito nesta materia , com
parado com a realidade , he me
nos que a luz de hum carvao
accezo comparada com a do
| Sol. E ainda que os entendi-
1 mentos de todos os homens , e
Anjos se ajuntassem a querer de
proposito compôr huma Bem-
aventurança , a maior que pu-
<„ > Mv des
27O MEDITAqOENS SOBRE
dessem representar em seu con
ceito ; esse tal conceito ficaria
taõ inferior á Bemaventurança ,
que Deos nos rem promettida ,
e nós esperamos , quanto fica
ria longe de chegar ás estreitas
a setta , com que hum menino
atirafle para o Ceo. Com tudo ,
importa que atiremos com es
tas setta* , ainda que naõ che
guem taõ alto : isto he , convém
que consideremos na grandeza
da Gloria eterna , ainda que se
ja ao nosso modo rasteiro , e im
perfeito ; porque nos animemos
a padecer, c trabalhar pela al
cançar ; e desprezemos tudo o
mais, que naõ he eterno.
I, PO N T O.
COn sidera primeiramente a
fabrica , grandeza , e ma
gnificencia da Corte , e palacio
v z.'* Ce-
os quatro Novissimos, tyï
Celestial, onde os Bemaventu-
rados liabiraÕ : has de saber co
mo toda esta vastiffima máquina
. do Universo , que o Supremo
Arquitecto fabricou com sua
palavra , he composta de varios
globos , ou esféras , humas me
nores dentro de outras maio
res; de forte que , quanto mais
lubimos da terra para o Ceo ,
tanto mais dilatados saõ os 'es
paços , que se vao seguindo. No
lugar Ínfimo está o globo da ter
ra , e agua , onde agora os filhos
de Adaó peregrinamos. SegUe-
se a regiaó ampliffima do ar ,
onde andaó as aves , e as nuvens,
e se formaó os relampagos , oí
Cometas , e tempestades. Lo-
go a outra esfera do elemento
do fogo em sua natural pureza.
Logo o Ceo , que chamaõ Ethé-
reo, onde gyraó a Lua > o Sel , e
M vi os
l'jr MEDITAqoÊNS SOBRE
os mais planetas em districtos
mais altos huns, que os outros.
jMais acima o outro Ceo , que
se chama Firmamento , o qual
he de materia solida , e masfica ,
e anda continuamente á roda,
juntamente com todos esses ex
ercitos de estrellas , que nelle
estaó engastadas , e fixas. Sobre
o Firmamento estaó as aguas
muitas (que outros chamaõ Ceo
Crystallino) as quaes , quan
do Deos creou o mundo , sepa
rou das outras , que cubriaÒ a
terra , e delias depois recolhi
das a hum lugar , se formaraõ
os mares. Ultimamente está o
Ceo, que se chama Empyreo,
que he immovel , e de materia
solida i e todo mais resplande
cente , que mil Soes na força
do meio dia. E alli está edifi
cada a Corte Santa de Jerusa-
os quatro Novissimos. 273
lem triunfante , onde moraó
os Anjos , e Santos com Deòs ,
e com o Rei da gloria Jesus
Christo.
Isto supposto , para formares
algum conceito , ainda que li
mitado, da grandeza doEmpy-
reo , adverte que , segundo af- /
firmaó os Astronomos , toda esta
redondeza do globo da terra , e
agua ; com ser taó grande, , e ca
paz , que comprehende tantos
Reinos , e máres , e tem de cir
cuito sete mil e trezentas le
guas ; com tudo , a respeito do
Firmamento , he menos que hum
graó de arêa ; de sorte que , pa
ra poder alcançar a ver terra,
quem estivesse lá nas estrellas ,
feria necessario, que ella fosse
sessenta e quatro vezes maior
do que he. E a razaó he mani
festa ; porque a mais pequenina
Ï74 MEDITAqOENS SOBRE '
estrella , que nós alcançamos a
divisar cá desde a terra , he ma
ior que ella sessenta e quatro
vezes. E o Sol , com estar mui
to abaixo do Firmamento, he
maior que toda a terra- trinta e
oito mil e seiscentas vezes : e
corre taó veloz pelo Ceo Ethé-
reo , que em tanto espaço de
tempo, quanto gasta a arteria
do pulst* de hum homem saó em
dar huma pancada, anda seiscen
tas e quarenta e tres leguas de
quatro milhas cada huma. Vê
agora : fendo tantas as estrellas ,
que se naõ podem contar , quan
ta será a grandeza do Firma
mento ; e quanto maior a do
Ceo Crystallino ; e ainda mui
to mais vasta a do CeoEmpy-
reo.
Pois dize-me , alma : Se Deos
nada fez ociosamente > pois ve
mos,
os quatro Novissimos. 275s
mos , que até em hum palmo dè
terra está creando diversas natu
rezas , todas uteis , e perfeitas
em sua especie; que grandezas
exquifitas , e nobilimmas terá
fabricado dentro desses Ceos,
para demonstraçaõ de sua Sabe
doria , Bondade , e Omnipoten
cia ì Que palacios para habita
çao do Rei da Gloria seu Filho
Jesus Christo ? Que jardins ,
fontes , e bosques para delicias
do Esposo castissimo das almas ?
Que theatros para os especta
culos eternos da vilaõ beatifica ?
Que thesouros para enriquecer ,
e latisfazer a capacidade do co
raçao- humano ? Que Reinos
para remunerar os merecimen
tos dos que por seu amor renun-
ciáraõ o mundo? E finalmente,
que bens para detempenhar a
honra, e o amor de hum Deos
s i in-
1"j6 MEDITAqOENS SOBRE
infinito em perfeiçoens , e bon
dade ? E que á vista disto tu ,
que tens íè , e sabes , que nesta
materia o menos he o que che
gamos a imaginar , tenhas ani
mo para desprezar estes bens !
E que naó só os desprezes , se
nao que lhes anteponhas , e pre
firas cousas viliffimas da terra !
Sabendo de mais a mais, que se
perderes o Ceo por amor da ter
ra , naó has de ficar logrando a
terra , nem o Ceo , senaó penan
do para sempre no Inferno! Pa-
j ece-te melhor o carcere dos
demonios, do que o palacio, e
Corte de Deos ? Escolhes por
morada eterna antes estar den
tro das entranhas da terra ar
dendo em fogo, e blasfemando
de Deos , do que sobre as estrel-
las cantando os seus louvores?
Fazes maior estima caõ dos goí-
-..- tos,
os quatro Novissimos. 277
tos , em que es semelhante aos
brutos , e brevemente haó de
perecer , do que daquelles , em.
que es semelhante aos Anjos, e
ao mesmo Deos, e haó de per
manecer por seculos infinitos?
Oh cegueira lastimosa ! Oh desa
tino monstruoso! Senhor, de vos
sa luz necellito ; que só ella po
de remediar-me : dai-me enten
dimento para que viva : Intelle-
£ium da mihi , & vivam. Para
que viva agora pela vida de vos
sa graça , e depois pela vida de
vofla Gloria. Amen.

II. P O N T O.

LEvanta agora o pensamen


to a considerar naquella
Corte Celestial de Anjos , e
Santos , em cuja amabiliflima
companhia esperas viver , se o
278 Meditaçoens sobre
na6 desmereceres por tua culpa.
Os Anjos saõ tantos em nume
ro , que , como revelou a Vir
gem Senhora nossa a sua serva
Santa Brigida , ainda que se
ajuntassem todos os filhos de
Adaõ , que foraõ , sa6 , e ha.6
de ser , até o ultimo , que nas
cer no mundo , haveria para ca
da homem mais de dez Anjos.
E mais os Anjos, que Deos man
da guardar os homens , naõ cos-
tumaõ ser , como dizem os
Theologos , lenaõ de hum só
coro , que he o inferior a todos.
Estaõ repartidos em tres jerar
quias, e cada jerarquia em tres
coros , e de cada qual daquel-
-les loheranos Espíritos he tanta
a formoíura , gloria , e magesta-
de , que cm sua comparaçaõ to
das as formosuras do mundo , e
tudo o que nelle pôde haver,
que
os quatro Novíssimos. 279
que leve os olhos , e affectos ,
he vileza , he escuridao } he fe
aldade.
Entre os córos dos Anjos es-
taõ os dos Santos com admira
vel ordem , e variedade ; cujo
numero , supposto que a respeito
.dos réprobos he mui limitado ,
com tudo em íi he tao excessi
vo , que parece aquella Cidade
Santa hum Ceo cuberto de es-
trellas na serena noite : ou os
campos , e valles alcatifados de
boninas pela Primavera. Qual
quer destes Cortezaõs he mais
sabio que Salamaõ , mais po
deroso que todos os Monarcas
do mundo , mais resplandecen
te que o Sol : he Rei coroado
de immortalidade, he filho do
mesmo Deos , em fim hum qua
si Deos porcommunicaçaõ com
o Deos dos Deoses , cuja vista
280 Meditaçoens sobr^
clara-, e caridade perfeita os fez
feus semelhantes. Todos tetn
entre si summa paz , firme con-
cordia , amoroso trato. Que he
feito da morte ? Já triunfáraõ
delia. Onde estaó as desgraças ,
ou ao menos os temores delias ?
Já pasiaraó para naó tornarem
já mais. Easjagrimas, e tníre-
za ; dor, e ehfermidade ? Fu-
gíraó para sempre. Naó podem
peccar , ( oh que felicidade ! )
nem desagradar a Deos com o
minimo defeito. Soa6 por toda
a parte alternadas as muficas , e
alleluias , com melodia taõ a-
ventajada á que os huma nos ou-
vidos costumaõ perceber cá na
terra , que hum lervo 'de Deos ,
a quem o Senhor quiz conce
der o favor de que ouvísse al-
guma cousa delia , depois di-
zia dos musicos mais selectos,
OS QUATRO NoVISSIMOS. 2$ I
e affamados , que Ihe pareciaó
caens ladrando. Fallaõ , e tra-
taó familiarmente com o feu
Rei Christo Jésus, acompa-
nhando-o , adorando-o , louvan-
do-o , abraçando-o , e beijando
amorosiflìmamente as ehagas de
feus pés ,.e maós, e lado facratil-
simo; reconhecendo-as por pre-
ço de feu resgate , portas de sua
entrada no Reino dos Ceos , e
lèllos do amor inestimavel , que
o Senhor lhes tçve. Vêm , ad-
miraó , e louvaó a belleza , e
Magestade incomparavel da So-
berana Imperatriz de todas as
creaturas Maria Santissima Se-
nhora nossa j que a naó haver
a maó do Altiífimo feito mais
obra que esta , ella fó bastava
para acreditar feu infinito poder,
fabedoria , e riqueza dos thesou-
ros inexhaustos de sua gráça,
« r. " Ok
ï8x MEDlTAqOENS SOBRE
Oh aima minha , dize-me :
Naõ 'invejas esta companhia ?
Naõ fuspiras por taó feliz ella-
do ? Naó delejas ver a reu Re-
demptor , e a íua MliSantiíIi-
ma i a quem devesranto; eque
te araáraô ainda antes , que ti-r-
vesses vida, eser? Acima , co-
raçaó : naò te pareça ìmpoffivel

tihefeiro. Queres tu ter huma


cadeira naquelle coro do Tem-
plo vivo do Senhor , onde se es-
taó cantando perpetuamente
seus louvores , e onde a dura-
çaó de mil annos parece taó
como o dia de hontem ,
que já passou ? Queres alGstir
naquelle theatro Faiitosissimo de
roilhares demilhares de Anjos ,
e Santos ? Queres ver debaixo
de tuas plantas o Sol , Lua , e
estrellaSj para onde agora levaa-
tas
OS QUATRO NOVISSIMOS. 283
tas cá de longe os olhos saudo-
samente ? Queres paflear pot*
entre aquelles rosaes , e florestas
amenìssimas, cujo verdor sem-
pre novo naó fegue as leis do
tempo ? Se naó queres , mui ter-
reno , e vil es: debalde. te creou
Deos para fi : em va6 deo por
ti o feu Sangue : binto deves fer,
ou penhasco insenfivel. Se que
res , na tua maó está , mediante
a graça de Deos , e os merecn
mentos de feu Salvador , que
por todos padeceo. Vive bem ,
abomina o peccado , defpreza o
que perece , estima o eterno ,
çhega-te a Deos , deixa-te guiar
do teu Anjo , abraça a Cruz ,
que he o caminho do Ceo : pe-
nhora-te muitas vezes da Glo
ria, que esperas, recebendo o
Santiffimo Sacramento do AU
tar : 'espera } e persevera; que
t iv 1 aos
284 Meditaçoens sobre
aos que aflìm empregaõ a pre
sente vida , promette o Senhor
a eterna vida. E faltará o Ceo ,
e a terra , mas a palavra de Deos
naõ falta.

111. PONTO.

COnsidera ultimamente o
premio , e a gloria essen
cial da alma bemaventurada ,
que consiste em ver a Deos cla
ramente. Que he ver a Deos,
alma minha ? He viver de Deos ,
viver com Deos , e viver para
Deos , em quanto o mesmo
Deos for Deos. Que he ver a
Deos ? He carecer de todos os
males , e gozar de todos os bens
juntos em hum só bem simplifli-
mo , immutavel , e eterno. Que
he ver a Deos ? He ser sabio,
e imruortal; santo, eimpecca-
cu:; Yel>
os quatro Nov íssimos. i$ç
'Vel ; ser filho do Altiíïimo , e
ser quasi o mesmo Deos , por
uniao de perfeito amor , e par
ticipaçao ineíFavel de sua Natu
reza. Que he ver a Deos ? He
ter a Deos por alma , que te vi
vifique ; por coraçao , que te a-
lente ; por thesouro , que te enri
queça ; por coroa , que te honre ;
por Sol , que te illumine ; por
templo , onde assistas ; por so
ledade , onde te retires ; por es
pelho, onde te revejas ; por Pai ,
a quem te assemelhes; por es
poso , com quem te unas ; por
Rei, e Senhor, aquem sirvas,
e adores : e finalmente he ser
Deos em ti , e para ti todas as
cousas boas ; e feres tu para
Deos toda , e totalmente , e pa
ra sempre.
He possível , que para tanto
bem te creou este Senhor ? Para
t* N taõ
î86 MEDITAqOENS SOBRE
taS alta felicidade te chaîna ?
Para tao abundante , edelicioía
meza te convida ? Se elle meftho
o naõ affirmára, se o naõ pro-
mettêra no Evangelho , e se nos
nao adquiríra elía gloria com
feu proprio Sangue, quam tal
crêra ? ou tivera atrevimento
de levantar as suas esperanças a
tao remontada altura? Oh que
cego desatino he logo , á vista de
hum tal premio , pôr a tua affei- i
çaõ nas cousas da terra , estimar
ninherias, desvelar-te por inte
resses , ou regalos, ou honras vas
deste miseravel mundo 1 Oh que
monstruosidade , que huma alma
creada , e remida para ver a
Deos, naõ menos que com a vida
do mesino Deos , sirva por cour
sas tao vis ao demonio ! Por
yentura terá ohomem razaõde
jescusar-se de padecer alguma
Cruz,
os quatro Novissimos. 287
Cruz , por chegar a conseguir
taó feliz estado ? Naó será cou
sa vergonhosiflïma difficultar a
observancia dos Mandamentos
da Lei de Deos , taó poucos, taó
suaves , e racionaveis , e naó fa
zer a vontade a hum Senhor,
que tanto o ama, e que a sua von
tade naó he outra , que salvallo ?
Oh naó ha de ser isto ailim da
qui em diante : o meu amor só
para meu Deos ; o meu cuidado
só no eterno; as minhas preten-
çoens só de. me salvar. Acima ,
afFectos ; acima , esperanças : pa
ra onde temos o porto , e a pa
tria , para ahi emproemos. Que
tenho eu , que sou eterno , com
o mundo , que ha de acabar? Q
meu morgado he hum Reino , e
Reino eterno , que mo comprou
o mesmo Filho de Deos com seu
precioíillitno Sangue , e as escri-
tu
288 MEDITAqOENS.
turas , por onde me compete o
direito a este morgado , naõ faõ
menos , que as Chagas do mes
mo Senhor , vivas , e estampadas
em seu corpo.
Eia , trabalhemos, padeça
mos , procedamos como filhos
de quem queremos ser herdei
ros ; que perseverando aflim , -
certiflimo temos o premio. Oh
premio eterno ! Oh Gloria , que
naõ fenece ! Oh eternidade bem-
aventurada ! OhDeosmeu, vi
da minha, amor da minha alma ,
.c todas minhas cousas : a vós
suspiro , a vós anhelo , em vós
espero , a vós amo sobre todas
as cousas , e por vossa graça con
fio '-alcançar a vossa gloria.

F I M.

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