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Resumo: Jorge Luís Borges pensa um objeto denominado “aleph” onde estão
reunidos todos os tempos, passado, presente e futuro. O infinito aleph nos leva ao
que Henri Bergson chama de intuição do absoluto. Com ele, saímos de uma memória
psicológica para uma memória cósmica, uma memória que retorna no futuro em
novos afetos. Bergson e Borges se encontram unidos pela mesma idéia de tempo.
Abstract: Jorge Luis Borges thinks a object called “aleph” where the times,
past, present and future are congregated all. The infinite aleph in takes them to the
one that Henri Bergson calls of intuition of the absolute. With it, we leave a
psychological memory for a cosmic memory, a memory that returns in the future in
new affection. Bergson and Borges if find joined by the same idea of time.
*
Doutora em Filosofia pela UFRJ, Professora Adjunto da Universidade Candido Mendes
Quando Jorge Luis Borges escreveu “O Aleph”, ele não o fez por um exercício
meramente intelectual. Ele o escreveu para presentear Estela Canto juntamente com
um caleidoscópio, enquanto esperava por seu amor. Escreveu-o como “prova da
engrenagem do amor e da modificação da morte”. Seu objetivo é então muito
próximo a todo o ensinamento de Henri Bergson quando este nos diz que devemos
mudar a direção habitual do pensamento, ou seja, devemos nos habituar a pensar a
duração a aí ...imediatamente o que estava entorpecido se distende, o adormecido
acorda. O morto ressuscita em nossa percepção galvanizada.1 Dessa forma,
reviveremos, nos encheremos de vida.
Logo na primeira linha Borges nos diz: Na ardente manhã de fevereiro em que
Beatriz Viterbo morreu, depois de uma imperiosa agonia que não cedeu um só
instante nemo sentimentalismo nem ao medo, observei que os painéis da praça
constitucíon tinham renovado não sei que anúncio de cigarros vermelhos; o fato me
desgostou, pois compreendi que o incessante e vasto universo já se afastava dela e
que essa mudança era a primeira de uma série infinita.2 Era como se a partir do
instante de sua morte todo o futuro lhe fosso negado e mais: sua imagem ficaria
distante de todas as outras imagens do mundo, não mais agiria nem reagiria sobre
elas. Mas se Borges escreve “O aleph” como prova da engrenagem do amor e da
modificação da morte, ele sabe de que lado do pensamento e da vida ele tem que
estar. Deve estar do lado daqueles que compreendem o caráter criativo, imanente e
positivo do pensamento, vale dizer, da vida. Borges mais do que ninguém entendeu
1
Bergson, Henri. L’ intuition philosophique: 1365.
2
Borges, Jorge Luís. O Aleph: 115.
que a vida é criação e a ele restaria somente duas opções: criar ou morrer. Ou ele
criava (ou recriava) Beatriz ou morria (com ela). É assim que Borges recria Beatriz
em novos afetos e recupera a vida.
Tratava-se então de recuperar a imagem de Beatriz. E Borges poderia se servir
de dois caminhos: ele poderia acrescentar aos retratos da casa da rua Garay e a todos
os outros objetos e coisas que aludissem a Beatriz, uma longa e exaustiva lista de
suas características, comportamentos, sentimentos, etc. Esse caminho - Bergson nos
ensina - se detém no relativo. Já o segundo caminho nos leva a atingir o absoluto.
Significa que não mais olharei Beatriz de fora, mas a apreenderei a partir dela
mesma, dispensando tanto os símbolos quanto os pontos de vista que eu poderia me
colocar. Aqui, suas ações e gestos seriam naturais para mim e não acréscimos, que
nunca completariam a idéia que tenho dela, onde qualquer contribuição à sua história
pareceria destacada dela. Uma representação tomada de um certo ponto de vista,
uma tradução feita com certos símbolos, permanecem sempre imperfeitas
comparadas com o objeto representado, ou que os símbolos tentam exprimir. Mas o
absoluto é perfeito, no sentido que é perfeitamente o que é.3 Em outras palavras: ou
Borges ficava contando e relembrando num trabalho literário sempre enriquecedor
porém infinito de descrições, histórias e análises o que foi Beatriz Viterbo e com isso
ele só forneceria pontos de vista sobre ela e a aprisionaria em símbolos, ou Beatriz
lhe seria dada de uma vez, integralmente.
É dessa idéia de absoluto, de como atingi-lo, que Bergson nos fala do conceito
de intuição em oposição ao conceito de análise. A intuição seria pois essa
coincidência no interior do objeto, coincidência essa inexprimível em palavras, em
3
Bergson, Henri. Introduction a la métaphysique: 1394.
oposição ao conceito de análise, onde toda a tentativa de tradução nos leva sempre à
falta, ao desenvolvimento infinito da busca da incompletude. Entrar na casa da rua
Garay todo dia 30 de abril e rever seus retratos, relembrar seus momentos, nada mais
seria do que um exercício de análise, mas o aleph é a forma que Borges imaginou
para atingir o infinito. Com ele, Borges chega também à intuição, porque sabe que
não pode separar o acontecimento dele mesmo.
Borges visitava a casa de Beatriz neste que seria o dia do seu aniversário e
além de saudar seu pai e seu primo, encontrava seus retratos, móveis, louças, ou seja,
objetos presentes, objetos percebidos, imagens atualmente dadas, ou ainda, se
deparava com a matéria. estudar as circunstâncias de seus muito retratos, ver revelar-
se uma Beatriz para cada ocasião e data, o fazia lembrar o que foi Beatriz em cada
uma dessas épocas, e lembrar também de tantos outros momentos, relembrar seus
muitos gestos, falas e sorrisos. E além disso, aproximar-se de Carlos Argentino
Daneri era uma maneira de encontrar tantas imagens dela. Mas Borges sabia que essa
memória que lhe daria somente o passado passado de Beatriz, que lhe daria imagens
com data, hora e local, de acontecimentos passados, essa memória relativa, era
apenas a memória do seu corpo, do “Borges pessoal”. Com ela, ao olhar o telefone,
Borges teria o saudoso pensamento de que aquele instrumento “noutros dia
reproduziu a irrecuperável voz de Beatriz”. Ou, ao se aproximar do retrato sobre o
piano num “desespero de ternura” confessar que Beatriz Elena Viterbo estava
perdida para sempre, porque no retrato ela deixa de ser uma imagem presente e passa
a ser uma imagem representação e como tal, ele se isola do restante do mundo
material. Ou para dizer como Bergson, esse isolamento condensa períodos enormes
de uma vida mais intensa e resume assim uma história muito longa.4 Mas esse
contato do espírito com o objeto não é um ato simples. A percepção não é um
conjunto de sensações, mas é formada por imagens rememoradas a partir desses
objetos. Ocorre que uma imagem rememorada nunca é algo pronto. Essa percepção
atual é apenas um conteúdo de uma experiência mais vasta e mesmo indefinida que a
contém.5 Quando Borges vê, por exemplo, as fotografias de Beatriz que são estados
presentes, ele já é lançado no passado e quando esse passado se transforma em
imagens, quando ele se atualiza, ele se confunde com o meu presente, ou seja, a
percepção já está impregnada de imagens-lembranca que a completam e é por esse
motivo que essas últimas se assemelham à percepção atual. Assim, a lembranças não
chegam como coisas mortas, mas chegam límpidas, nítidas e flagrantes como um fato
presente. Quando vejo uma coisa não vejo apenas a atualidade dela, não fico com a
percepção pura e simples. Sempre acontece um reconhecimento, isto é, associo a essa
percepção todas as imagens relacionadas a ela, o que equivale dizer que toda
percepção ocupa já uma certa espessura da duração ao prolongar passado no presente
e por isso participa da memória. Trata-se de um encontro de afetos entre Borges, o
lembrador, e os velhos objetos sagrados que encantaram Beatriz.
As imagens-lembrança por sua vez, participam da lembrança pura. São
materializações ou atualizações dela. Essa atualização da lembrança é uma invocação
da imagem pelo presente. É ela que constitui a consciência psicológica. Mas a
invocação da lembrança é o salto pelo qual me instalo de súbito no virtual, no
passado puro, ou ainda, na memória pura.6 Deleuze nos diz que essa subjetividade-
4
Bergson, Henri. Matière et Mémorie: 342.
5
Idem: 286.
6
Deleuze, Gilles. Le bergsonisme: 59.
7
Idem.
8
Idem: 52.
9
Borges, Jorge Luís. Cinco visões pessoais: 17.
10
Bergson, Henri. Matière et Mémoire: 228.
11
Idem: 317.
12
Borges, Jorge Luís. O jardim das veredas que se bifurcam: 103.
13
Borges, Jorge Luís. Cinco visões pessoais: 17.
14
Hyppolite, Jean. Figures de la pensée philosophique I – Écrits de Jean Hippolyte (1931-1968): 469.
15
Bergson, Henri. Matière et Mémoire: 290.
16
Bergson, Henri. Introduction a la métaphyísique: 1399.
evoca outras imagens que também nos causa dificuldade: um anjo que voa
simultaneamente para os quatro pontos cardeais, um pássaro que é ao mesmo tempo
todos os pássaros, e outras imagens análogas ao aleph. talvez a mais próxima seja
aquela de Pascal: “uma esfera cujo centro está em todas as partes e a circunferência
em nenhuma”. Descrevê-lo, ele sabe, é tarefa imposs´iel pois requer a “enumeração
de um conjunto infinito” . Ele precisa registrar com palavras os milhões de atos que
ocuparam o mesmo ponto (sem contudo haver superposição ou transparência) vistos
num “ instante gigantesco”.17 Bergson já havia nos dito: a arte do escritor consiste
sobretudo em nos fazer esquecer que ele emprega palavras ... a harmonia que ele
busca é uma certa correspondência entre as idas e vindas do seu espírito e as de seu
discurso.18 E aí as palavras tomadas isoladamente não mais importarão. O que passa
a importar é o sentido que as atravessa. Desaparecem as palavras: restam então dois
espíritos que vibram juntos, sem mediação. É essa complicação do dizer que causa o
“desespero de escritor” de Borges. O que ele viu foi simultâneo, mas o que ele diz é
sucessivo, porque a linguagem assim o é. Ou seja, enquanto escritor Borges não pode
escapar da complicação do dizer, mas enquanto escritor que nos propõe imaginar o
aleph, ele nos coloca na simplicidade do ver. Apesar de Borges fazer uma descrição
sucessiva por causa das imagens, a descrição que ele queria fazer coincidia com o
que ele viu, mas a linguagem não o permitiu fazê-lo. Era a descrição na duração real
dos acontecimentos. Os acontecimentos não estão nem no passado, nem no presente,
nem no futuro, porque o tempo puro está fora da sucessividade, ou nas próprias
17
Borges, Jorge Luís. O Aleph: 125.
18
Bergson, Henri. L’âme et le corps: 849.
palavras de Borges: Não haverá um quando no tempo porque passado e futuro são
infinitos. Tampouco haverá um onde porque todo o ser eqüidista do infinito.19
No conto de Borges o aleph é um objeto descoberto por Carlos Argentino,
guardado no porão da sala de jantar de sua casa. É preciso descer as escadas do porão
para vislumbrá-lo. Ao chegar lá Borges vê um mundo contraído numa esfera de dois
ou três centímetros de diâmetro. Mas apesar dessa dimensão, todo o espaço cósmico
estava ali reunido sem diminuição de tamanho. Lá estavam, sem se confundirem
todos os lugares do mundo, vistos de todos os ângulos.20 E mais: todos os tempos do
mundo contraídos sem sucessão ou justaposição. Uma espécie de eternidade estava
ali: todo o passado, esse passado que não se sabe quando começou. E todo o
presente. Esse momento presente que engloba todas as cidades, todos os mundos, o
espaço entre os planetas. E é claro, o futuro. O futuro que ainda não foi criado, mas
que também existe.21 Ao descer ao porão, Borges afasta o véu da imprecisão,
reencontra o imediato e toca o absoluto.
Borges imagina o aleph para poder, mesmo que por um curto espaço de tempo,
criar a possibilidade de vislumbrar a memória pura, a memória cósmica. Imagina-o
para poder dialogar com todas as imagens de Beatriz. O aleph seria então essa
pequena esfera furta-cor “de brilho quase intolerável” onde todos os tempos estariam
contraídos. Tudo o que Borges quer é que o “incessante e vasto universo” não se
afaste dela porque enquanto atualização ela perde o contato com si mesma, mas
quando novamente jogada na virtualidade pura, ela volta a integrar o todo da
duração. Por isso não quer ficar com o passado passado, quer o passado no futuro.
19
Borges, Jorge Luís. A esfera de pascal: 16.
20
Borges, Jorge Luís. O Aleph: 122.
21
Borges, Jorge Luís. Cinco visões pessoais: 43.
22
Citado por Bergson, Henri em Matière et mémoire: 316.
23
Borges, Jorge Luís. O Aleph: 128.
PÓS-ESCRITO ?
24
Borges, Jorge Luís. O Aleph: 8.
25
Deleuze, Gilles. Pourparlers: 93.
26
Idem.
27
Idem.
28
Borges, Jorge Luís. O Aleph: 7.
BIBLIOGRAFIA