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MARIA

(Humberto de Campos/Chico Xavier – Boa Nova, cap. 30)

Junto da cruz, o vulto agoniado de Maria produzia dolorosa e indelével impressão. Com o
pensamento ansioso e torturado, olhos fixos ao madeiro das perfídias humanas, a ternura materna
regredia ao passado em amarguradas recordações. Ali estava, na hora extrema, o filho bem-
amado.
Maria deixava-se ir na corrente infinda das lembranças. Eram as circunstâncias
maravilhosas em que o nascimento de Jesus lhe fora anunciado, a amizade de Isabel, as profecias
do velho Simeão, reconhecendo que a assistência de Deus se tornara incontestável, nos menores
detalhes de sua vida. Naquele instante supremo, revia a manjedoura, na sua beleza agreste,
sentindo que a Natureza parecia desejar redizer aos seus ouvidos o cântico de glória daquela noite
inolvidável. Através do véu espesso das lágrimas, repassou, uma por uma, as cenas da infância
do filho estremecido, observando o alarma interior das mais doces reminiscências.
Nas menores coisas, reconhecia a intervenção da Providência celestial; entretanto, naquela
hora, seu pensamento vagava também pelo vasto mar das mais aflitivas interrogações.
Que fizera Jesus por merecer tão amargas penas? Não o vira crescer de sentimentos
imaculados, sob o calor de seu coração? Desde os mais tenros anos, quando o conduzia à fonte
tradicional de Nazaré, observava o carinho fraterno que dispensava a todas as criaturas.
Frequentemente, ia buscá-lo nas ruas empedradas, onde a sua palavra carinhosa consolava os
transeuntes desamparados e tristes. Viandantes misérrimos vinham a sua casa modesta louvar o
filhinho idolatrado, que sabia distribuir as bênçãos do Céu. Com que enlevo recebia os hóspedes
inesperados que suas mãos minúsculas conduziam à carpintaria de José!... Lembrava-se bem que,
um dia, a divina criança guiara à casa dois malfeitores, publicamente reconhecidos como ladrões
do vale de Mizhep. E era de ver-se a amorosa solicitude com que seu vulto pequenino cuidava
dos desconhecidos, como se fossem seus irmãos. Muitas vezes, comentara a excelência daquela
virtude santificada, receando pelo futuro de seu adorável filhinho.
Depois do caricioso ambiente doméstico, era a missão celestial, dilatando-se em colheita
de frutos maravilhosos. Eram paralíticos que retomavam os movimentos da vida, cegos que se
reintegravam nos sagrados dons da vista, criaturas famintas de luz e de amor que se saciavam na
sua lição de infinita bondade.
Que profundos desígnios haviam conduzido seu filho adorado à cruz do suplício?
Uma voz amiga lhe falava ao espírito, dizendo das determinações insondáveis e justas de
Deus, que precisam ser aceitas, para a redenção divina das criaturas. Seu coração rebentava em
tempestades de lágrimas irreprimíveis; contudo, no santuário da consciência, repetia a sua
afirmação de sincera humildade: “Faça-se na escrava a vontade do Senhor!”
De alma angustiada, notou que Jesus atingira o último limite dos padecimentos
inenarráveis. Alguns dos populares mais exaltados multiplicavam as pancadas, enquanto as
lanças riscavam o ar, em ameaças audaciosas e sinistras. Ironias mordazes eram proferidas a
esmo, dilacerando-lhe a alma sensível e afetuosa.
Em meio de algumas mulheres compadecidas, que lhe acompanhavam o angustioso transe,
Maria reparou que alguém lhe pousara as mãos, de leve, sobre os ombros.
Deparou-se-lhe a figura de João que, vencendo a pusilanimidade criminosa em que haviam
mergulhado os demais companheiros, lhe estendia os braços amorosos e reconhecidos.
Silenciosamente, o filho de Zebedeu abraçou-se àquele triturado coração maternal. Maria deixou-
se enlaçar pelo discípulo querido e ambos, ao pé do madeiro, em gesto súplice, buscaram
ansiosamente a luz daqueles olhos misericordiosos, no cúmulo dos tormentos. Foi aí que a fronte
do divino supliciado se moveu vagarosamente revelando perceber a ansiedade daquelas duas
almas em extremo desalento.
– “Meu filho! Meu amado filho!...” – Exclamou a mártir, em aflição, diante da serenidade
daquele olhar de melancolia intraduzível.
O Cristo pareceu meditar no auge de suas dores, mas, como se quisesse demonstrar, no
instante derradeiro a grandeza de sua coragem e a sua perfeita comunhão com Deus, replicou
com significativo movimento dos olhos vigilantes:
– “Mãe, eis aí teu filho!...” – E, dirigindo-se, de modo especial, com um leve aceno, ao
apóstolo, disse: – “Filho, eis aí tua mãe!”
Maria envolveu-se no véu de seu pranto doloroso, mas o grande evangelista compreendeu
que o Mestre, na sua derradeira lição, ensinava que o amor universal era o sublime coroamento
de sua obra. Entendeu que, no futuro, a claridade do Reino de Deus revelaria aos homens a
necessidade da cessação de todo egoísmo e que, no santuário de cada coração, deveria existir a
mais abundante cota de amor, não só para o círculo familiar, senão também para todos os
necessitados do mundo, e que no templo de cada habitação permaneceria a fraternidade real, para
que a assistência recíproca se praticasse na Terra, sem serem precisos os edifícios exteriores,
consagrados a uma solidariedade claudicante.
Por muito tempo, conservaram-se ainda ali, em preces silenciosas, até que o Mestre,
exânime, fosse arrancado à cruz, antes que a tempestade mergulhasse a paisagem castigada de
Jerusalém num dilúvio de sombras.
*
Após a separação dos discípulos, que se dispersaram por lugares diferentes, para a difusão
da Boa Nova, Maria retirou-se para a Bataneia, onde alguns parentes mais próximos a esperavam
com especial carinho.
Os anos começaram a rolar, silenciosos e tristes, para a angustiada saudade de seu coração.
Tocada por grandes dissabores, observou que, em tempo rápido, as lembranças do filho
amado se convertiam em elementos de ásperas discussões, entre os seus seguidores. Na Bataneia,
pretendia-se manter uma certa aristocracia espiritual, por efeito dos laços consanguíneos que ali
a prendiam, em virtude dos elos que a ligavam a José. Em Jerusalém, digladiavam-se os cristãos
e os judeus, com veemência e acrimônia. Na Galileia, os antigos cenáculos simples e amoráveis
da Natureza estavam tristes e, desertos.
Para aquela mãe amorosa, cuja alma digna observava que o vinho generoso de Caná se
transformara no vinagre do martírio, o tempo assinalava sempre uma saudade maior no mundo e
uma esperança cada vez mais elevada no céu.
Sua vida era uma devoção incessante ao rosário imenso da saudade, às lembranças mais
queridas. Tudo que o passado feliz edificara em seu mundo interior revivia na tela de suas
lembranças, com minúcias somente conhecidas do amor, e lhe alimentavam a seiva da vida.
Relembrava o seu Jesus pequenino, como naquela noite de beleza prodigiosa, em que o
recebera nos braços maternais, iluminado pelo mais doce mistério. Figurava-se-lhe escutar ainda
o balido das ovelhas que vinham, apressadas, acercar-se do berço que se formara de improviso.
E aquele primeiro beijo, feito de carinho e de luz? As reminiscências envolviam a realidade
longínqua de singulares belezas para o seu coração sensível e generoso. Em seguida, era o rio das
recordações desaguando, sem cessar, na sua alma rica de sentimentalidade e ternura. Nazaré lhe
voltava à imaginação, com as suas paisagens de felicidade e de luz. A casa singela, a fonte amiga,
a sinceridade das afeições, o lago majestoso e, no meio de todos os detalhes, o filho adorado,
trabalhando e amando, no erguimento da mais elevada concepção de Deus, entre os homens da
Terra. De vez em quando, parecia vê-lo em seus sonhos repletos de esperança. Jesus lhe prometia
o júbilo encantador de sua presença e participava da carícia de suas recordações.
A esse tempo, o filho de Zebedeu, tendo presentes as observações que o Mestre lhe fizera
da cruz, surgiu na Bataneia, oferecendo àquele espírito saudoso de mãe o refúgio amoroso de sua
proteção. Maria aceitou o oferecimento, com satisfação imensa.
E João lhe contou a sua nova vida. Instalara-se definitivamente em Éfeso, onde as ideias
cristãs ganhavam terreno entre almas devotadas e sinceras. Nunca olvidara as recomendações do
Senhor e, no íntimo, guardava aquele título de filiação como das mais altas expressões de amor
universal para com aquela que recebera o Mestre nos braços veneráveis e carinhosos.
Maria escutava-lhe as confidências, num misto de reconhecimento e de ventura.
João continuava a expor-lhe os seus planos mais insignificantes. Levá-la-ia consigo,
andariam ambos na mesma associação de interesses espirituais. Seria seu filho desvelado,
enquanto receberia de sua alma generosa a ternura maternal, nos trabalhos do Evangelho.
Demorara-se a vir, explicava o filho de Zebedeu, porque lhe faltava uma choupana, onde se
pudessem abrigar; entretanto, um dos membros da família real de Adiabene, convertido ao amor
do Cristo, lhe doara uma casinha pobre, ao sul de Éfeso, distando três léguas aproximadamente
da cidade. A habitação simples e pobre demorava num promontório, de onde se avistava o mar.
No alto da pequena colina, distante dos homens e no altar imponente da Natureza, se reuniriam
ambos para cultivar a lembrança permanente de Jesus. Estabeleceriam um pouso e refúgio aos
desamparados, ensinariam as verdades do Evangelho a todos os espíritos de boa vontade e, como
mãe e filho, iniciariam uma nova era de amor, na comunidade universal.
Maria aceitou alegremente.
Dentro de breve tempo, instalaram-se no seio amigo da Natureza, em frente do oceano.
Éfeso ficava pouco distante; porém, todas as adjacências se povoavam de novos núcleos de
habitações alegres e modestas. A casa de João, ao cabo de algumas semanas, se transformou num
ponto de assembleias adoráveis, onde as recordações do Messias eram cultuadas por espíritos
humildes e sinceros.
Maria externava as suas lembranças. Falava dele com maternal enternecimento, enquanto
o apóstolo comentava as verdades evangélicas, apreciando os ensinos recebidos. Vezes inúmeras,
a reunião somente terminava noite alta, quando as estrelas tinham maior brilho. E não foi só.
Decorridos alguns meses, grandes fileiras de necessitados acorriam ao sítio singelo e generoso.
A notícia de que Maria descansava, agora, entre eles, espalhara um clarão de esperança por todos
os sofredores. Ao passo que João pregava na cidade as verdades de Deus, ela atendia, no pobre
santuário doméstico, aos que a procuravam, exibindo-lhe suas úlceras e necessidades.
Sua choupana era, então, conhecida pelo nome de “Casa da Santíssima”.
O fato tivera origem em certa ocasião, quando um miserável leproso, depois de aliviado
em suas chagas, lhe osculou as mãos, reconhecidamente murmurando:
– “Senhora, sois a mãe de nosso Mestre e nossa Mãe Santíssima”.
A tradição criou raízes em todos os espíritos. Quem não lhe devia o favor de uma palavra
maternal nos momentos mais duros? E João consolidava o conceito, acentuando que o mundo lhe
seria eternamente grato, pois fora pela sua grandeza espiritual que o Emissário de Deus pudera
penetrar a atmosfera escura e pestilenta do mundo para balsamizar os sofrimentos da criatura. Na
sua humildade sincera, Maria se esquivava às homenagens afetuosas dos discípulos de Jesus, mas
aquela confiança filial com que lhe reclamavam a presença era para sua alma um brando e
delicioso tesouro do coração. O título de maternidade fazia vibrar em seu espírito os cânticos
mais doces. Diariamente, acorriam os desamparados, suplicando a sua assistência espiritual.
Eram velhos trôpegos e desenganados do mundo, que lhe vinham ouvir as palavras confortadoras
e afetuosas, enfermos que invocavam a sua proteção, mães infortunadas que pediam a bênção de
seu carinho.
– “Minha mãe – dizia um dos mais aflitos – como poderei vencer as minhas dificuldades?
Sinto-me abandonado na estrada escura da vida...”.
Maria lhe enviava o olhar amoroso da sua bondade, deixando nele transparecer toda a
dedicação enternecida de seu espírito maternal.
– “Isso também passa! – dizia ela, carinhosamente – só o Reino de Deus é bastante forte
para nunca passar de nossas almas, como eterna realização do amor celestial.”
Seus conceitos abrandavam a dor dos mais desesperados, desanuviavam o pensamento
obscuro dos mais acabrunhados.
A igreja de Éfeso exigia de João a mais alta expressão de sacrifício pessoal, pelo que, com
o decorrer do tempo, quase sempre Maria estava só, quando a legião humilde dos necessitados
descia o promontório desataviado, rumo aos lares mais confortados e felizes. Os dias e as
semanas, os meses e os anos passaram incessantes, trazendo-lhe as lembranças mais ternas.
Quando sereno e azulado, o mar lhe fazia voltar à memória o Tiberíades distante. Surpreendia no
ar aqueles perfumes vagos que enchiam a alma da tarde, quando seu filho, de quem nem um
instante se esquecia, reunindo os discípulos amados, transmitia ao coração do povo as louçanias
da Boa Nova. A velhice não lhe acarretara nem cansaços, nem amarguras. A certeza da proteção
divina lhe proporcionava ininterrupto consolo. Como quem transpõe o dia em labores honestos e
proveitosos, seu coração experimentava grato repouso, iluminado pelo luar da esperança e pelas
estrelas fulgurantes da crença imorredoura. Suas meditações eram suaves colóquios com as
reminiscências do filho muito amado.
Súbito recebeu notícias de que um período de dolorosas perseguições se havia aberto para
todos os que fossem fiéis à doutrina do seu Jesus divino. Alguns cristãos banidos de Roma traziam
a Éfeso as tristes informações. Em obediência aos éditos mais injustos, escravizavam-se os
seguidores do Cristo, destruíam-se-lhes os lares, metiam-nos a ferros nas prisões. Falava-se de
festas públicas, em que seus corpos eram dados como alimento a feras insaciáveis, em horrendos
espetáculos.
Então, num crepúsculo estrelado, Maria entregou-se às orações, como de costume, pedindo
a Deus por todos aqueles que se encontrassem em angústias do coração, por amor de seu filho.
Embora a soledade do ambiente, não se sentia só: uma como força singular lhe banhava a
alma toda. Aragens suaves sopravam do oceano, espalhando os aromas da noite que se povoava
de astros amigos e afetuosos e, em poucos minutos, a lua plena participava, igualmente, desse
concerto de harmonia e de luz.
Enlevada nas suas meditações, Maria viu aproximar-se o vulto de um pedinte.
– Minha mãe – exclamou o recém-chegado, como tantos outros que recorriam ao seu
carinho –, venho fazer-te companhia e receber a tua bênção.
Maternalmente, ela o convidou a entrar, impressionada com aquela voz que lhe inspirava
profunda simpatia. O peregrino lhe falou do céu, confortando-a delicadamente. Comentou as
bem-aventuranças divinas que aguardam a todos os devotados e sinceros filhos de Deus, dando
a entender que lhe compreendia as mais ternas saudades do coração. Maria sentiu-se empolgada
por tocante surpresa. Que mendigo seria aquele que lhe acalmava as dores secretas da alma
saudosa, com bálsamos tão dulçorosos? Nenhum lhe surgira até então para dar; era sempre para
pedir alguma coisa. No entanto, aquele viandante desconhecido lhe derramava no íntimo as mais
santas consolações. Onde ouvira noutros tempos aquela voz meiga e carinhosa?! Que emoções
eram aquelas que lhe faziam pulsar o coração de tanta caricia? Seus olhos se umedeceram de
ventura, sem que conseguisse explicar a razão de sua terna emotividade.
Foi quando o hóspede anônimo lhe estendeu as mãos generosas e lhe falou com profundo
acento de amor:
– “Minha mãe, vem aos meus braços!”
Nesse instante, fitou as mãos nobres que se lhe ofereciam, num gesto da mais bela ternura.
Tomada de comoção profunda, viu nelas duas chagas, como as que seu filho revelava na cruz e,
instintivamente, dirigindo o olhar ansioso para os pés do peregrino amigo, divisou também aí as
úlceras causadas pelos cravos do suplício. Não pôde mais. Compreendendo a visita amorosa que
Deus lhe enviava ao coração, bradou com infinita alegria:
– “Meu filho! meu filho! as úlceras que te fizeram!...”
E, precipitando-se para ele, como mãe carinhosa e desvelada, quis certificar-se, tocando a
ferida que lhe fora produzida pelo último lançaço, perto do coração. Suas mãos ternas e solícitas
o abraçaram na sombra visitada pelo luar, procurando sofregamente a úlcera que tantas lágrimas
lhe provocara ao carinho maternal. A chaga lateral também lá estava, sob a caricia de suas mãos.
Não conseguiu dominar o seu intenso júbilo. Num ímpeto de amor, fez um movimento para se
ajoelhar. Queria abraçar-se aos pés do seu Jesus e osculá-los com ternura. Ele, porém, levantando-
a, cercado de um halo de luz celestial, se lhe ajoelhou aos pés e, beijando-lhe as mãos, disse em
carinhoso transporte:
– “Sim, minha mãe, sou eu!... Venho buscar-te, pois meu Pai quer que sejas no meu reino
a Rainha dos Anjos...”
Maria cambaleou, tomada de inexprimível ventura. Queria dizer da sua felicidade,
manifestar seu agradecimento a Deus; mas o corpo como que se lhe paralisara, enquanto aos seus
ouvidos chegavam os ecos suaves da saudação do Anjo, qual se a entoassem mil vozes cariciosas,
por entre as harmonias do céu.
No outro dia, dois portadores humildes desciam a Éfeso, de onde regressaram com João,
para assistir aos últimos instantes daquela que lhes era a devotada Mãe Santíssima.
Maria já não falava. Numa inolvidável expressão de serenidade, por longas horas ainda
esperou a ruptura dos derradeiros laços que a prendiam à vida material.
*
A alvorada desdobrava o seu formoso leque de luz quando aquela alma eleita se elevou da
Terra, onde tantas vezes chorara de júbilo, de saudade e de esperança. Não mais via seu filho
bem-amado, que certamente a esperaria, com as boas-vindas, no seu reino de amor; mas extensas
multidões de entidades angélicas a cercavam cantando hinos de glorificação.
Experimentando a sensação de se estar afastando do mundo, desejou rever a Galileia com
os seus sítios preteridos. Bastou a manifestação de sua vontade para que a conduzissem à região
do lago de Genesaré, de maravilhosa beleza. Reviu todos os quadros do apostolado de seu filho
e, só agora, observando do alto a paisagem, notava que o Tiberíades, em seus contornos suaves,
apresentava a forma quase perfeita de um alaúde. Lembrou-se, então, de que naquele instrumento
da Natureza Jesus cantara o mais belo poema de vida e amor, em homenagem a Deus e à
humanidade. Aquelas águas mansas, filhas do Jordão marulhoso e calmo, haviam sido as cordas
sonoras do cântico evangélico.
Dulcíssimas alegrias lhe invadiam o coração e já a caravana espiritual se dispunha a partir,
quando Maria se lembrou dos discípulos perseguidos pela crueldade do mundo e desejou abraçar
os que ficariam no vale das sombras, à espera das claridades definitivas do Reino de Deus.
Emitindo esse pensamento, imprimiu novo impulso às multidões espirituais que a seguiam de
perto. Em poucos instantes, seu olhar divisava uma cidade soberba e maravilhosa, espalhada
sobre colinas enfeitadas de carros e monumentos que lhe provocavam assombro. Os mármores
mais ricos esplendiam nas magnificentes vias públicas, onde as liteiras patrícias passavam sem
cessar, exibindo pedrarias e peles, sustentadas por misérrimos escravos. Mais alguns momentos
e seu olhar descobria outra multidão guardada a ferros em escuros calabouços. Penetrou os
sombrios cárceres do Esquilino, onde centenas de rostos amargurados retratavam padecimentos
atrozes. Os condenados experimentaram no coração um consolo desconhecido.
Maria se aproximou de um a um, participou de suas angústias e orou com as suas preces,
cheias de sofrimento e confiança. Sentiu-se mãe daquela assembleia de torturados pela injustiça
do mundo. Espalhou a claridade misericordiosa de seu espírito entre aquelas fisionomias pálidas
e tristes. Eram anciães que confiavam no Cristo, mulheres que por ele haviam desprezado
conforto do lar, jovens que depunham no Evangelho do Reino toda a sua esperança. Maria
aliviou-lhes o coração e, antes de partir, sinceramente desejou deixar-lhes nos espíritos abatidos
uma lembrança perene. Que possuía para lhes dar? Deveria suplicar a Deus para eles a liberdade?!
Mas Jesus ensinara que com ele todo jugo é suave e todo fardo seria leve, parecendo-lhe melhor
a escravidão com Deus do que a falsa liberdade nos desvãos do mundo. Recordou que seu filho
deixara a força da oração como um poder incontrastável entre os discípulos amados. Então, rogou
ao Céu que lhe desse a possibilidade de deixar entre os cristãos oprimidos a força da alegria. Foi
quando, aproximando-se de uma jovem encarcerada, de rosto descarnado e macilento, lhe disse
ao ouvido:
– “Canta, minha filha! Tenhamos bom ânimo!... Convertamos as nossas dores da Terra em
alegrias para o Céu!..”
A triste prisioneira nunca saberia compreender o porquê da emotividade que lhe fez vibrar
subitamente o coração. De olhos extáticos, contemplando o firmamento luminoso, através das
grades poderosas, ignorando a razão de sua alegria, cantou um hino de profundo e enternecido
amor a Jesus, em que traduzia a sua gratidão pelas dores que lhe eram enviadas, transformando
todas as suas amarguras em consoladoras rimas de júbilo e esperança. Daí a instantes, seu canto
melodioso era acompanhado pelas centenas de vozes dos que choravam no cárcere, aguardando
o glorioso testemunho.
Logo, a caravana majestosa conduziu ao Reino do Mestre a bendita entre as mulheres e,
desde esse dia, nos tormentos mais duros, os discípulos de Jesus têm cantado na Terra,
exprimindo o seu bom ânimo e a sua alegria, guardando a suave herança de nossa Mãe
Santíssima.

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Por essa razão, irmãos meus, quando ouvirdes o cântico nos templos das diversas famílias
religiosas do Cristianismo, não vos esqueçais de fazer no coração um brando silêncio, para que a
Rosa Mística de Nazaré espalhe aí o seu perfume!

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