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Universidade Federal de São Carlos

Departamento de Ciências Sociais.

Trabalho Final – Antropologia da Técnica.

Discente: Pedro Mathias Fajardo Custodio R.A. 491543

São Carlos
2017
A partir de uma breve exposição sobre alguns novos usos da ayahuasca por indígenas e não
indígenas, o presente trabalho pretende refletir como uma abordagem via da Antropologia da
técnica pode para dar continuidade a alguns aspectos das interpretações aqui abordadas sobre o
tema, bem como gerar um novo ponto de vista no sentido de permitir a visualização de outros
ângulos da situação em questão.

A difusão da ayahuasca.
Ayahuasca, yagé, daime, caapi, hoasca, vegetal, nixi pae, natema, são alguns dos nomes
dados a bebida originaria do alto Amazonas, produzida geralmente a partir da cocção do cipó B.
Caapi com as folhas do arbusto Psychoria Viridis, podendo ter outros ingredientes sendo
documentado mais de duzentas espécies que podem ser adicionadas ao preparo dependendo de seu
preparador. Embora seu consumo seja documentado “com certeza há cerca de duzentos anos, seu
uso é provavelmente milenar” (Luna, 2005), remontando ao período incaico. “ O objeto mais antigo
relacionado ao uso da ayahuasca é uma taça cerimonial feita de pedra, com ornamentações
gravadas, encontrada na cultura Pataza da Amazônia equatorial datando de 500 a.c. a 50 a.c.”
(Lima, 2004:24). E assim como muitas outras plantas com propriedades psicoativas, a bebida é
usada para fins religiosos, rituais de cura e contato com o sobrenatural.

Há relatos do consumo da ayahuasca por quase toda a região amazônica e seu uso ritual
acontece em aproximadamente 72 grupos indígenas que a ela se referem por pelo menos 42 nomes
diferentes. Ao seu uso são atribuídos diferentes objetivos. E nenhuma das etnias que a utiliza pode
ser considerada a possuidora original deste conhecimento. Um ponto em comum entre todas as
etnias que a utilizam, é a manifestação do sagrado no consumo desta bebida. Ingerida muitas vezes
“pelo lider espiritual da comunidade xamã/pajé ou por mais pessoas acompanhadas e guiadas por
ele”(Lima, 2004:30), em busca de efeitos medicinais, oraculares, conhecimento e contato com os
extra-humanos, para alguns xamãs amazonenses a ayahuasca é “apenas a porta de entrada para um
complexo e extenso caminho de conhecimento procedente das plantas.” (Luna, 2005,p388).
Sobrevivendo a colonização e as missões catequizadoras, o uso indígena da ayahuasca se
disseminou entre cidades fronteiriças à floresta amazônica, onde foi reinterpretado pelos auto
denominados vegetalistas, curandeiros que “ajudam as pessoas das áreas rurais e as populações
pobres das áreas suburbanas que geralmente não tem outras opções em situações críticas na esfera
da saúde física, mental e em problemas sobrenaturais” (Lima, 2004 apudi Luna, 1986). A maior
concentração de vegetalistas se encontra nas áreas rurais da Colômbia e do Peru, e mesmo existindo
centenas deles que utilizam a ayahuasca em seus rituais de cura, tal prática não se difundiu para
locais distantes da floresta amazônica.
No Brasil o encontro da ayahuasca com os não indígenas aconteceu durante o ciclo da
borracha no começo do séc. XX, quando a Amazônia foi foco do interesse do capital, por ser uma
fonte na produção de borracha, que viria a ser matéria-prima para uma futura indústria
automobilística. No Acre concentrou-se a maior parte da extração de latex, realizada com a mão de
obra de imigrantes nordestinos, atraídos pelas promessas de prosperidade fomentadas pelos
governos dos estados através de subsídios que eram concedidos aos imigrantes. Além de que
devido a um grande período de seca que assolava o nordeste brasileiro, a região vivia uma crise, o
que contribuía para o intenso fluxo migratório em direção a floresta amazônica, região onde a
população iria de 330 mil pessoas em 1872 para 1 milhão e 400 mil em 1929 (Lima, 2004).
Foi por volta deste período que Raimundo Irineu Serra, vindo de São Luíz do Ferré no
estado do Maranhão para trabalhar no seringal, conhece a ayahuasca através de um indígena. Em
uma de suas experiências com a bebida “teve visões nas quais uma personagem feminina de nome
Clara, que ele associou como sendo nossa senhora da conceição, lhe deu instruções sobre uma nova
doutrina religiosa que ele deveria fundar.” (Lima, 2004)
Foi em 1945 que Mestre Irineu construiu a igreja que veio a se chamar CICLU(Centro de
Iluminação Cristã Luz Universal.) na Colônia Custódio Freire na zona rural de Rio Branco, onde
formou-se uma comunidade rural na qual viviam mais de 40 famílias que, através do sistema de
multirão garantiam seu sustento.
A doutrina do Santo Daime fundada por Mestre Irineu reorganiza o uso da ayahuasca tanto
na forma de preparo, e ritual de consumo, assim como o universo simbólico com o qual estava
relacionada introduzindo elementos de diversas tradições culturais como: xamanismo, vegetalismo,
catolicismo e espiritismo Kardecista, dando início a possibilidade de pessoas da cidade tomarem a
bebida da floresta.
Atualmente, Santo Daime “pode servir como identificação de dois grupos religiosos: o Alto
Santo e o Centro Eclético da Fluente Luz Universal Raimundo Irineu Serra (CEFLURIS)” (Labate,
2000), divisão que acontece após a morte de Mestre Irineu. Além dessas duas vertentes surgiram
mais religiões ayahuasqueiras com seus próprios fundadores, sincretizando outros elementos e
reorganizando o uso ritual da ayahuasca conforme seu contexto, entre essas estão a Barquinha e a
União do Vegetal (UDV). Dentre as religiões ayauasqueiras, apenas a vertente do CEFLURIS e a
UDV se disseminaram por outras regiões brasileiras, sendo que a primeira veio a possuir igrejas em
outros países, enquanto a Barquinha e o Alto Santo permanecem em Rondônia e no Acre,
respectivamente.
Ayahuasca e Xamanismo e Neoxamanismo nos Centros Urbanos.

A expansão das religiões ayahuasqueiras brasileiras para os centros urbanos começa nos
anos 80, período que vivia intensamente os reflexos dos movimentos de contracultura “que
reivindicavam a extensão dos direitos de livre-disposição do corpo e de autonomia sobre si
próprio”(Carneiro, 2005: 67), além da:

“reivindicação da autonomia crítica da consciência, da recusa em se permitir ao Estado uma


jurisdição química sobre a mente que busca controlar o que se ingere ou se introduz voluntariamente
no interior do corpo. O movimento psicodélico representou uma defesa política da autonomia sobre
a intervenção psicoquímica voluntária contra a política oficial do proibicionismo estatal,
caracterizando como inquisição farmacrática contra o direito de escolha na estimulação química do

espírito ” (Carneiro, 2005: 67) .

O momento também acarretou mudanças nos valores espirituais, a partir do acesso à


literatura beat, a filosofia e as religiões orientais e as primeiras décadas da espiritualidade Nova Era.
Para alguns autores, a espiritualidade Nova Era é um fenômeno que expressa as transformações que
ocorreram nos comportamentos e práticas religiosas na vida moderna. Algumas de suas
propriedades gerais são:

“o seu fundamento no 'holismo', a ideia (oriental) de que 'tudo é um' e no 'místico', a ideia de que 'o
espírito é o interior de todas as coisas' […] Conforme Camurça, este movimento caracteriza-se por
um sincretismo, por um estilo de itinerância, de errância pelas religiões, uma adesão religiosa
instável, aproveitando tudo o que ha de 'bom nas religiões' para compor uma 'religiosidade
experimental individual' [...] os adeptos da Nova Era costumam postular uma unidade transcendental
das religiões, que não são mais nada do que reflexos e fragmentos de uma única religião...”

(Labate. 2000: 39).

É neste contexto que ayahuasca chega aos centros urbanos, principalmente mas não
unicamente através da disseminação de igrejas do CEFLURIS.
Como aponta Langdon (2010), a própria antropologia contribui com a disseminação das
práticas neo-xamanicas pelo mundo, através das publicações como as de Castañeda e mais tarde
Harner e Goodman nos anos 80, o movimento beatnik também contribuiu para que o tema ganhasse
destaque dentro e fora da academia. A princípio, autores como Harner, Goodman e Campbell
tinham a preocupação de identificar as técnicas do êxtase que se propunham a ensinar como
originárias de populações indígenas específicas, assumindo mesmo que implicitamente que o
xamanismo é um fenômeno “que se desenvolveu ao longo da história de grupos que podiam ser
pensados como cultural, temporal e geograficamente contíguos” (Langdon. 2010: x).
Ao passo que o neoxamanismo se expande pelo globo são incorporados ao xamanismo
diversos elementos não indígenas e de contextos variados. Outro fenômeno que tange as expressões
do neoxamanismo é a espiritualidade Nova Era como descrita anteriormente e sua capacidade de
detectar uma sabedoria semelhante em tradições religiosas ou espirituais que se entendem distintas,
relativizando assim as arestas ou pontos de discordância (Teixeira 2015 apud Heelas 1996: 18 )
Assim para os “movimentos heterogêneos globais do neo-xamanismo” o indígena aparece
como figura objetificada, vista como modelo, portador de conhecimentos ancestrais primordiais. O
xamanismo é pensado não como algo “vinculado a culturas e contextos específicos” mas como
conhecimentos primordiais da humanidade, expressando valores do individualismo moderno e uma
orientação para objetivos psicológicos e terapêuticos.
Os novos xamanismos emergem em meio a um momento de interesse popular pelos estados
alterados de consciência em paralelo com a argumentação de psicoterapeutas, etnofarmacólogos,
antropólogos entre outros, a respeito dos “benefícios desses estados”, procurando afirmar que as
substancias como a Mescalina o LSD e a Ayahuasca “funcionam para a liberação da mente e a
integração da psique” (Langdon. 2010:88) ao contrário do que vinha sendo afirmado no meio
acadêmico. “Com o tempo, a ligação do sagrado com os estados alterados xamânicos tomou
importância central no discurso do neo-xamanismo e , hoje, o termo mais utilizado para designar as
inúmeras substâncias utilizadas nesses contextos é o de enteógeno, em referência ao acesso ás
dimensões sagradas provocado por sua ingestão” (Langdon, 2010:88)
A seguir apresento brevemente um exemplos etnográficos como forma de ilustrar o encontro
acima descrito entre Ayahuasca/Centros Urbanos, trata-se do artigo cujo titulo é: Diálogos
(neo)xamânicos: encontros entre os Guarani e a ayahuasca escrito por Isabel Santana de Rose em
parceria com Esther Jean Langdon. No campo do debate antropológico o artigo suscita questões
como cultura e autenticidade, tradição/modernidade, continuidade, e contato entre indígenas e não
indígenas.

O encontro entre os Guarani e a ayahuasca.


Os Guarani são uma das etnias mais populosas da América do sul, chegando a
aproximadamente 65 mil pessoas, constituída por vários subgrupos, seu idioma pertence a família
tupi guarani, os integrantes desta etnia migram por um território que ultrapassa as fronteiras
nacionais da Argentina, Paraguai e Brasil. Entre esses subgrupos três ou quatro estão no Brasil
sendo o mais documentado etnologicamente os mbya, estes e os que se denominam chiripá habitam
a costa atlântica do espirito santo ao Rio Grande do sul.
Localizados muitas vezes perto de grandes cidades e marginalizados, os Guarani tem usado
de seu idioma e suas praticas espirituais como estratégias de resistência, permanecendo monoligues
e mantendo seus rituais em segredo, “fecham” as aldeias para os não índios. Por serem alocados em
areas impróprias e improdutivas, “muitas comunidades sofrem de pobreza e suas consequências, tais
como doenças, violência e abuso de álcool, com altos índices de mortalidade que refletem essa
situação.”( ROSE e LANGDON 2010:93)
A aldeia de Águas Claras onde Isabel Santana de Rose realizou um trabalho etnografico, esta
localizada em uma área metropolitana próxima a Florianópolis, foi reconhecida pelo Estado como
terra indígena em 2003, mas foi reocupada em 1980 por uma extensa família chiripá que migrou de
uma região mais ao sul. Hoje a aldeia ocupa uma importante posição em uma rede de trocas entre as
aldeias guarani, e diferente de outras aldeias possui uma intensa interação entre índios e não índios.
Isso vem ocorrendo pois, “a aldeia de Águas Claras parece estar assumindo a liderança na mediação de
práticas rituais com não-indígenas, através da apropriação do uso ritual da ayahuasca e de outras
práticas relacionadas.”(ibidem).
A apropriação da ayahuasca pelos Guarani(que até então não estavam relacionados ao consumo
da bebida, uma vez que esta é encontrada principalmente entre as populações indígenas da amazônia)
ocorre através do encontro entre um morador da aldeia de Águas Claras e um membro de um grupo
espiritual que “caracteriza-se pela realização de uma série de rituais que combinam diversos elementos
que teriam origem em diferentes tradições do continente americano, sendo que a principal influência
está nas práticas dos grupos indígenas das planíces norte-americanas, especialmente os Lakota” ( ROSE
e LANGDON 2010:89). Ente estes rituais realizados pelo grupo, que as autoras do texto chamam pelo
nome fictício de Fogo da Verdade, está o uso ritual da ayahuasca.
Kuruay foi internado no Hospital Universitário de Florianópolis devido a um linfoma. ao se
negar a fazer o tratamento prescrito, a quimioterapia, resolveram contatar um médico residente do
hospital que era conhecido por conduzir “cerimonias xamânicas”. Conseguindo se aproximar de Kuruay,
o médico se interessou em conhecer os curadores tradicionais da aldeia de Águas Claras, recebendo um
convite para ir a aldeia. “De acordo com as narrativas de muitos moradores desta comunidade
indígena, assim que o médico chegou à aldeia, ele foi reconhecido pelos karaikuery¹ como a pessoa que
eles estavam esperando. Essas narrativas contam que há algum tempo esses anciões haviam tido um
sonho profético que dizia que iria chegar uma pessoa de fora para ajudá-los a retomar os rituais de
reza e outras práticas, 'resgatando' a cultura e a tradição Guarani.”( ROSE e LANGDON 2010:95).
Sendo reconhecido como essa pessoa, o médico passa a frequentar rituais guarani como o petynguá
(cachimbo sagrado) e cerimonias na casa de reza opy. Através de seu contato com as lideranças
espirituais de Águas Claras propõem uso da ayahuasca, as primeiras cerimonias com a bebida
ocorreram na cozinha da casa do tcheramoi, “importante espaço de sociabilidade no qual ocorrem
cotidianamente reuniões noturnas onde se toma chimarrão, fuma-se tabaco e contam-se histórias, lendas
e piadas.” Contam os moradores que em suas primeiras experiencias com a bebida proporcionaram a
lembrança do passado e o encontro com seus “antigos avós”, bem como o encontro com seres
sobrenaturais. Assim que os rituais com a ayahuasca começaram a ter uma maior participação dos
moradores da aldeia a cerimonia passou a ser realizada na casa de rezas opy, integrando o ritual do
opyredjaikeawã, “que teriam como um de seus objetivos centrais ajudar Nhanderu Kuaray (um dos
principais deuses para os Guarani) a cuidar do mundo, protegendo a humanidade durante sua ausência” (
ROSE e LANGDON 2010:96).
Outros agentes importantes no contexto onde a ayahuasca e outras praticas comuns com o
Fogo sagrado foram incorporadas pelos Guarani são: o Estado através da FUNASA e uma ONG
contratada por este Órgão do Ministério da Saúde para prestar atenção aos indígenas do estado de
Santa Catarina. Foi por meio de recursos fornecido pela FUNASA e repassados pela ONG que
realizou-se um projeto, que teve duração de quatro anos, para a introdução da ayahuasca e de
praticas como o temazcal em outras aldeias Guarani da região, o medico e dirigente do Fogo da
Verdade atuou como parte da Equipe Multidisciplinar de Saúde Indígena (EMSI) e as instituições
interpretaram que o projeto seria capaz de atender os moradores das aldeias guarani da região afim de
“promover a saúde do povo Guarani resgatando e fortalecendo o lado espiritual/místico, fundamentado
nas antigas cerimônias tradicionais” (Vargas, 2002, p. 8); combater o alcoolismo e reforçar as
lideranças espirituais das aldeias, que constituiriam a base para as ações programadas no “modelo de
atenção à saúde espiritual indígena” (Vargas, 2002, p. 13)” ( ROSE e LANGDON 2010:96).
Com o aumento do consumo de ayahuasca, que até então era trazida do Peru pelos
integrantes do Fogo da Verdade, uma comunidade do Santo Daime em Florianópolis passou a
fornecer a bebida integrando a rede de trocas até então entre Fogo da Verdade e Águas Claras, Desta
maneira até o final do projeto foi construída uma casa de barro no formato de iglu, que foi chamada
de opydjere que significa literalmente casa de rezas redonda, para a realização de rituais de
temazcal na aldeia de Águas Claras, seus moradores passaram a frequentar vez ou outra rituais na
sede do Fogo Sagrado e na sede do Santo Daime e vice versa.
Santana Oliveira (2004) realizou também uma pesquisa etnografica na aldeia em Águas
Claras, a autora afirma que seus moradores atribuem às “cerimonias de medicina” e o ritual na
opydjere um grande poder de cura, mesmo assim com o tempo alguns Guarani, principalmente de
outras aldeias, deixaram de participar dos rituais com ayahuasca e até critica-los por ser “coisa de
branco” e não uma tradição Guarani. ” Assim, entre os Guarani da rede das aldeias do litoral
catarinense, e mesmo entre os moradores de Águas Claras, não existe um ponto de vista homogêneo ou
um consenso sobre o tema, que continua sendo assunto de conversas, especulações, críticas e
controvérsias.”( ROSE e LANGDON 2010:99)

Os usos da ayahuasca do ponto de vista de uma Antropologia da técnica.


Os estudos do campo da antropologia técnica e da tecnologia como aponta Sautchuk, é
transpassado pela questão da relação e definição de humanos e não humanos, em alguns casos mais
recentes sugerem a desconstrução da dicotomia Natureza/Cultura historicamente pensada como dois
conjuntos fechados em si mesmo, ontologias distintas que devem ser pensadas através de lógicas
distintas, assim o campo da natureza remeteria a elementos relacionados entre si por fatores físicos,
biológicos, objetivos. Enquanto ao campo da cultura estão relacionados os elementos de ordem
simbólica, social, subjetiva.
A necessidade da desconstrução desta dualidade natureza e cultura surge de casos
etnográficos variados, como o contexto indígena amazônico onde: a pessoa não pode ser pensada
destacada de seus objetos, através de uma cosmologia construcionista os mitos narram primeiro o
aparecimento dos artefatos e depois dos humanos, o corpo artefatual cria o corpo orgânico e os
objetos técnicos operam como instrumentos de transformação e vida não existindo uma espécie
pura (purificada – só biológica) mas seres que são amalgamas de afetos e capacidades, recolocando
a questão orgânico/inorgânico. Questão essa que pode renovar as analises sobre os efeitos e a
composição/descrição (farmacológica e enquanto ser) da ayahuasca, uma vez que na maioria dos
estudos (todos os que eu tive acesso), o chá depois de preparado (a partir de procedimentos
específicos conforme a etnia ou grupo que o está preparando) não é uma bebida apenas mas um ser,
possuindo características agentivas, a ayahuasca cura, ensina, é entidade com a qual quem a ingere
entra em contato. Neste sentido a elaboração de uma linguagem capaz de tratar humano e não
humano simetricamente me parece fomentar mais o debate antropológico.
A antropologia da técnica se insere no debate contemporâneo no campo antropológico sobre
os conceitos de natureza e cultura produzindo estudos que pensam a porosidade ou uma dissolução
completa(dependendo da proposta do pesquisador) da fronteira entre natureza e cultura. É a
possibilidade de enxergar como porosa/flexivel as fronteiras que são tradicionalmente vistas pela
antropologia como impermeáveis/rígidas que a meu ver proporciona novos ângulos para observação
dos usos da ayahuasca no contexto urbano.
No caso etnográfico brevemente apresentado, o médico transmite aos moradores de águas
claras um conjunto de conhecimentos/tecnologias contidos nos rituais neo-xamanicos, assim a
ayahuasca enquanto tecnologia amplia a percepção e facilita o acesso dos guarani a outros domínios
como aponta as autoras do artigo: “As narrativas de muitos moradores da aldeia a respeito de suas
experiências iniciais com a bebida fazem referência à lembrança do passado e ao contato com seus
”antigos avós”, bem como a outros seres e espíritos ”.
Desta maneira para pensar a questão do empréstimo do artefato ayahuasca pelos guarani
sem passar pela chave da aculturação e da imposição/dominação é preciso deixar de estabelecer um
vínculo privilegiado entre o objeto e seu construtor, pois se o fizermos :“ao considerar
esseconstrutor não como um (ou mais) indivíduo(s), mas como expressão de uma coletividade
(geralmente uma sociedade ou um povo), estamos também acostumados a pensar que um objeto
produzido unicamente pelo povo 'x' não pode ser considerado como sendo também de 'y', no caso
de este apenas utilizá-lo. Podemos chegar a pensar que 'y' conote esse objeto de outra forma, mas
seríamos relutantes em considerar o objeto como sendo 'seu' ” (Mura,2011, p97) Ao quebrar este
vinculo entre construtor e objeto podemos pensar o interesse dos guarani pela ayahuasca como uma
escolha tecnológica e por isso um meio de produzir alteridade (Silva, F. A, 2002, p132). Minha
reflexão sobre questão a partir do vies da técnica vai no mesmo sentido, porém por caminhos
diferentes em relação a analise de Rose e Langdon.
Para as autoras do texto a introdução do o uso de rituais com ayahuasca e temazcal com
recursos do Estado Brasileiro houve grandes transformações nas relações entre indígenas e não
indígenas, nas quais tradicionalmente o indígena é marginalizado e colocado em uma posição
subordinada. É claro que ainda existe muita assimetria entre os moradores de Águas Claras e a
população ao redor, mas certamente suas relações com os não indígenas passaram a ter mais
igualdade e respeito do que há normalmente nessas interações. “Somado a isto, as cerimônias com
ayahuasca na aldeia atraem uma série de não-indígenas que pagam uma taxa para participar, ajudando a
cobrir os custos envolvidos na realização e gerando mais uma fonte de renda para a comunidade. ”
( ROSE e LANGDON 2010:103). As autoras do artigo abordam a apropriação da ayahuasca e de
rituais do xamanismo norte americano via Fogo da Verdade, não sob uma perspectiva de que seria
uma curiosa forma de neocolonialismo, com os Guaranis atuando como agentes ingênuos deste
processo, mas pelo contrário, enfatizando sua participação de maneira ativa nos diferentes diálogos
e negociações envolvidos neste contexto. Elas ainda propõem uma reflexão no sentido do trabalho
de SAHLINS “Este autor, que procura olhar os indígenas como atores, argumenta que, contrariando
expectativas correntes nas décadas de 1950 e 1960, esses povos recusaram-se tanto a desaparecer quanto
a se tornar como nós, esforçando-se numa tentativa de “incorporar o sistema mundial a uma ordem
ainda mais abrangente: seu próprio sistema de mundo”(1997, p. 52)” ( ROSE e LANGDON 2010:103).
Esta reflexão permite pensar a aceitação e a discordância do uso da ayahuasca entre os Guarani e a
homogeneidade e a heterogeneidade não como excludentes mas como partes constituintes da
realidade.
Referencias Bibliograficas:

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