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São Carlos
2017
A partir de uma breve exposição sobre alguns novos usos da ayahuasca por indígenas e não
indígenas, o presente trabalho pretende refletir como uma abordagem via da Antropologia da
técnica pode para dar continuidade a alguns aspectos das interpretações aqui abordadas sobre o
tema, bem como gerar um novo ponto de vista no sentido de permitir a visualização de outros
ângulos da situação em questão.
A difusão da ayahuasca.
Ayahuasca, yagé, daime, caapi, hoasca, vegetal, nixi pae, natema, são alguns dos nomes
dados a bebida originaria do alto Amazonas, produzida geralmente a partir da cocção do cipó B.
Caapi com as folhas do arbusto Psychoria Viridis, podendo ter outros ingredientes sendo
documentado mais de duzentas espécies que podem ser adicionadas ao preparo dependendo de seu
preparador. Embora seu consumo seja documentado “com certeza há cerca de duzentos anos, seu
uso é provavelmente milenar” (Luna, 2005), remontando ao período incaico. “ O objeto mais antigo
relacionado ao uso da ayahuasca é uma taça cerimonial feita de pedra, com ornamentações
gravadas, encontrada na cultura Pataza da Amazônia equatorial datando de 500 a.c. a 50 a.c.”
(Lima, 2004:24). E assim como muitas outras plantas com propriedades psicoativas, a bebida é
usada para fins religiosos, rituais de cura e contato com o sobrenatural.
Há relatos do consumo da ayahuasca por quase toda a região amazônica e seu uso ritual
acontece em aproximadamente 72 grupos indígenas que a ela se referem por pelo menos 42 nomes
diferentes. Ao seu uso são atribuídos diferentes objetivos. E nenhuma das etnias que a utiliza pode
ser considerada a possuidora original deste conhecimento. Um ponto em comum entre todas as
etnias que a utilizam, é a manifestação do sagrado no consumo desta bebida. Ingerida muitas vezes
“pelo lider espiritual da comunidade xamã/pajé ou por mais pessoas acompanhadas e guiadas por
ele”(Lima, 2004:30), em busca de efeitos medicinais, oraculares, conhecimento e contato com os
extra-humanos, para alguns xamãs amazonenses a ayahuasca é “apenas a porta de entrada para um
complexo e extenso caminho de conhecimento procedente das plantas.” (Luna, 2005,p388).
Sobrevivendo a colonização e as missões catequizadoras, o uso indígena da ayahuasca se
disseminou entre cidades fronteiriças à floresta amazônica, onde foi reinterpretado pelos auto
denominados vegetalistas, curandeiros que “ajudam as pessoas das áreas rurais e as populações
pobres das áreas suburbanas que geralmente não tem outras opções em situações críticas na esfera
da saúde física, mental e em problemas sobrenaturais” (Lima, 2004 apudi Luna, 1986). A maior
concentração de vegetalistas se encontra nas áreas rurais da Colômbia e do Peru, e mesmo existindo
centenas deles que utilizam a ayahuasca em seus rituais de cura, tal prática não se difundiu para
locais distantes da floresta amazônica.
No Brasil o encontro da ayahuasca com os não indígenas aconteceu durante o ciclo da
borracha no começo do séc. XX, quando a Amazônia foi foco do interesse do capital, por ser uma
fonte na produção de borracha, que viria a ser matéria-prima para uma futura indústria
automobilística. No Acre concentrou-se a maior parte da extração de latex, realizada com a mão de
obra de imigrantes nordestinos, atraídos pelas promessas de prosperidade fomentadas pelos
governos dos estados através de subsídios que eram concedidos aos imigrantes. Além de que
devido a um grande período de seca que assolava o nordeste brasileiro, a região vivia uma crise, o
que contribuía para o intenso fluxo migratório em direção a floresta amazônica, região onde a
população iria de 330 mil pessoas em 1872 para 1 milhão e 400 mil em 1929 (Lima, 2004).
Foi por volta deste período que Raimundo Irineu Serra, vindo de São Luíz do Ferré no
estado do Maranhão para trabalhar no seringal, conhece a ayahuasca através de um indígena. Em
uma de suas experiências com a bebida “teve visões nas quais uma personagem feminina de nome
Clara, que ele associou como sendo nossa senhora da conceição, lhe deu instruções sobre uma nova
doutrina religiosa que ele deveria fundar.” (Lima, 2004)
Foi em 1945 que Mestre Irineu construiu a igreja que veio a se chamar CICLU(Centro de
Iluminação Cristã Luz Universal.) na Colônia Custódio Freire na zona rural de Rio Branco, onde
formou-se uma comunidade rural na qual viviam mais de 40 famílias que, através do sistema de
multirão garantiam seu sustento.
A doutrina do Santo Daime fundada por Mestre Irineu reorganiza o uso da ayahuasca tanto
na forma de preparo, e ritual de consumo, assim como o universo simbólico com o qual estava
relacionada introduzindo elementos de diversas tradições culturais como: xamanismo, vegetalismo,
catolicismo e espiritismo Kardecista, dando início a possibilidade de pessoas da cidade tomarem a
bebida da floresta.
Atualmente, Santo Daime “pode servir como identificação de dois grupos religiosos: o Alto
Santo e o Centro Eclético da Fluente Luz Universal Raimundo Irineu Serra (CEFLURIS)” (Labate,
2000), divisão que acontece após a morte de Mestre Irineu. Além dessas duas vertentes surgiram
mais religiões ayahuasqueiras com seus próprios fundadores, sincretizando outros elementos e
reorganizando o uso ritual da ayahuasca conforme seu contexto, entre essas estão a Barquinha e a
União do Vegetal (UDV). Dentre as religiões ayauasqueiras, apenas a vertente do CEFLURIS e a
UDV se disseminaram por outras regiões brasileiras, sendo que a primeira veio a possuir igrejas em
outros países, enquanto a Barquinha e o Alto Santo permanecem em Rondônia e no Acre,
respectivamente.
Ayahuasca e Xamanismo e Neoxamanismo nos Centros Urbanos.
A expansão das religiões ayahuasqueiras brasileiras para os centros urbanos começa nos
anos 80, período que vivia intensamente os reflexos dos movimentos de contracultura “que
reivindicavam a extensão dos direitos de livre-disposição do corpo e de autonomia sobre si
próprio”(Carneiro, 2005: 67), além da:
“o seu fundamento no 'holismo', a ideia (oriental) de que 'tudo é um' e no 'místico', a ideia de que 'o
espírito é o interior de todas as coisas' […] Conforme Camurça, este movimento caracteriza-se por
um sincretismo, por um estilo de itinerância, de errância pelas religiões, uma adesão religiosa
instável, aproveitando tudo o que ha de 'bom nas religiões' para compor uma 'religiosidade
experimental individual' [...] os adeptos da Nova Era costumam postular uma unidade transcendental
das religiões, que não são mais nada do que reflexos e fragmentos de uma única religião...”
É neste contexto que ayahuasca chega aos centros urbanos, principalmente mas não
unicamente através da disseminação de igrejas do CEFLURIS.
Como aponta Langdon (2010), a própria antropologia contribui com a disseminação das
práticas neo-xamanicas pelo mundo, através das publicações como as de Castañeda e mais tarde
Harner e Goodman nos anos 80, o movimento beatnik também contribuiu para que o tema ganhasse
destaque dentro e fora da academia. A princípio, autores como Harner, Goodman e Campbell
tinham a preocupação de identificar as técnicas do êxtase que se propunham a ensinar como
originárias de populações indígenas específicas, assumindo mesmo que implicitamente que o
xamanismo é um fenômeno “que se desenvolveu ao longo da história de grupos que podiam ser
pensados como cultural, temporal e geograficamente contíguos” (Langdon. 2010: x).
Ao passo que o neoxamanismo se expande pelo globo são incorporados ao xamanismo
diversos elementos não indígenas e de contextos variados. Outro fenômeno que tange as expressões
do neoxamanismo é a espiritualidade Nova Era como descrita anteriormente e sua capacidade de
detectar uma sabedoria semelhante em tradições religiosas ou espirituais que se entendem distintas,
relativizando assim as arestas ou pontos de discordância (Teixeira 2015 apud Heelas 1996: 18 )
Assim para os “movimentos heterogêneos globais do neo-xamanismo” o indígena aparece
como figura objetificada, vista como modelo, portador de conhecimentos ancestrais primordiais. O
xamanismo é pensado não como algo “vinculado a culturas e contextos específicos” mas como
conhecimentos primordiais da humanidade, expressando valores do individualismo moderno e uma
orientação para objetivos psicológicos e terapêuticos.
Os novos xamanismos emergem em meio a um momento de interesse popular pelos estados
alterados de consciência em paralelo com a argumentação de psicoterapeutas, etnofarmacólogos,
antropólogos entre outros, a respeito dos “benefícios desses estados”, procurando afirmar que as
substancias como a Mescalina o LSD e a Ayahuasca “funcionam para a liberação da mente e a
integração da psique” (Langdon. 2010:88) ao contrário do que vinha sendo afirmado no meio
acadêmico. “Com o tempo, a ligação do sagrado com os estados alterados xamânicos tomou
importância central no discurso do neo-xamanismo e , hoje, o termo mais utilizado para designar as
inúmeras substâncias utilizadas nesses contextos é o de enteógeno, em referência ao acesso ás
dimensões sagradas provocado por sua ingestão” (Langdon, 2010:88)
A seguir apresento brevemente um exemplos etnográficos como forma de ilustrar o encontro
acima descrito entre Ayahuasca/Centros Urbanos, trata-se do artigo cujo titulo é: Diálogos
(neo)xamânicos: encontros entre os Guarani e a ayahuasca escrito por Isabel Santana de Rose em
parceria com Esther Jean Langdon. No campo do debate antropológico o artigo suscita questões
como cultura e autenticidade, tradição/modernidade, continuidade, e contato entre indígenas e não
indígenas.
. BRAGA. Karina, R. G. Modelando xamãs: O Caso da tenda do Suor, Natal/RN: UFRN PPGAS
2010.
GOLDMAM, Marcio. 2015. “‘Quinhentos Anos de Contato’”: Por uma Teoria Etnográfica da
(Contra)Mestiçagem”. Mana. Estudos de Antropologia Social 21.
HEELAS, Paul (1996). A Nova Era no contexto cultural: Pré-Moderno, Moderno e Pós-Moderno.
Religião e Sociedade 17/1-2: 15-32
INGOLD Tim. Trazendo as coisas de volta à vida: emaranhados criativos num mundo de materiais.
Horiz. Antropol., Porto Alegre , v. 18, n. 37, p. 25-44, June 2012
LABATE e S. L. Goulart (Orgs.), O uso ritual das plantas de poder. Campinas Mercado das
Letras.2005
LIMA, Emmanuel Gomes Correia. O uso ritual da Ayahuasca: da Floresta Amazônica aos centros
urbanos. 2004. 90f. Monografia (Conclusão do curso de graduação em Geografia) – Departamento
de Geografia, Instituto de CiênciasHumanas, Universidade de Brasília, Brasília, 2004.
ROSE, Isabel S. de; LANGDON, Esther Jean. Dialogos (neo)xamanicos: encontros entre os
Guarani e a ayahuasca. Tellus, ano 10, n. 18, jan./jun. 2010