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Crianças pequenas fazendo musicalização: contribuições

dos brinquedos em processos educaƟvos


Small children making musicalizacion: contribuƟons of
the toys in educaƟonal processes
Aline Sommerhalder*
Ilza Zenker Leme Joly**
Camila Marques dos Santos***
Camila Tanure Duarte****
* Doutora em Educação Escolar. Docente do Programa
de Pós-Graduação em Educação (PPGE)/UFSCar/São
Carlos/SP. Docente do Departamento de Teorias e Prá -
cas Pedagógicas/CECH/UFSCar. Coordenadora do Grupo
de Estudos e Pesquisas sobre Processos Educa vos de
Crianças/CNPq. E-mail: sommeraline@hotmail.com
** Doutora em Educação. Docente do Programa de Pós-
-Graduação em Educação (PPGE)/UFSCar/São Carlos/SP.
Docente do Departamento de Artes e Comunicação/
UFSCar. Membro do Grupo de Pesquisa em Prá cas
Sociais e Processos Educa vos/CNPq. Coordenadora do
Grupo de Pesquisa Educação Musical, Cultura e Comu-
nidade/CNPq. E-mail: zenker@ufscar.br
*** Mestre em Educação. Membro do Grupo de Estudos
e Pesquisas sobre Processos Educa vos de Crianças/
CNPq. E-mail: marquesantos.ca@hotmail.com
**** Mestre em Educação. Membro do Grupo de Estu-
dos e Pesquisas sobre Processos Educa vos de Crianças/
CNPq. E-mail: camilatanureduarte@gmail.com

Resumo
Este ar go resulta de uma pesquisa que iden ficou processos educa vos presentes nas prá cas de
musicalização com crianças, tendo como apoio o uso de brinquedos. Realizou-se observação par -
cipante em dois grupos de musicalização com crianças, entre 2 e 3 anos de idade, com registro em
diário de campo. Os resultados permi ram concluir que o processo de musicalização foi enriquecido
de forma significa va pelos brinquedos disponibilizados para as crianças. Chocalhos, lenços, cavalos
de pau, bichos de pelúcia, fantoches, bonecas de pano, livros de histórias infan s, instrumentos de
pequena percussão e objetos sonoros incen varam a par cipação das crianças em cantos e danças,
ampliaram as relações entre crianças e seus pares e crianças e adultos, funcionando como apoios
lúdicos colaboradores na acolhida e convivência das crianças, na ampliação de suas interações e
fortalecimento de vínculos afe vos, sobretudo na promoção de momentos prazerosos, sensíveis e
mais humanizadores nas prá cas de educação musical com crianças.

Série-Estudos - Periódico do Programa de Pós-Graduação em Educação da UCDB


Campo Grande, MS, n. 40, p. 79-98, jul./dez. 2015
Palavras-chave
Brinquedos. Educação musical. Crianças.

Abstract
This ar cle results from a survey that iden fied educa onal processes present in music educa on
prac ces with children, with the support the use of toys. Our dates came from the par cipant
observa on in two groups with children aged between 2 and 3 years, accompanied by parents or
caregivers. We made notes, regularly in a field journal. The results showed that the process of mu-
sic educa on was significantly enriched by the children toys available in the music classes. Ra les,
scarves, wooden horses, stuffed animals, puppets, rag dolls, books, children’s stories, encouraged
the par cipa on of children in songs and dances, expanded rela onships between children and
their parents, teachers and other children. Join toys and musical instruments show us the poten al
of working as recrea onal support employees in the hospitality and conviviality of children, enhan-
cing their interac ons and strengthening emo onal bonds. As a result, we also had an important
increasing of the music crea vity, understanding and performance. It´s possible to realize children
development in the promo on of pleasant, sensi ve and more humanizing prac ces in music edu-
ca on -friendly moments .
Key words
Toys. Music educa on. Children.

1 Introdução dos sujeitos entre si e com o seu contexto


social. As prá cas sociais são construídas
Este artigo é resultado de uma em relações que se estabelecem entre
pesquisa concluída que teve como ques- pessoas, destas com as comunidades nas
tão de pesquisa: Que contribuições os quais se inserem, com as pessoas e seus
brinquedos podem trazer para processos grupos de relações, entre os próprios
educa vos produzidos na prá ca social grupos e do grupo com a sociedade mais
de musicalização com crianças? Adotou- ampla (OLIVEIRA et al., 2009). Conforme
-se a definição de Oliveira et al. (2009, Oliveira et al. (2009, p. 7), “Nas prá cas
p. 02) que esclarecem: “[...] em todas as sociais, promove-se formação para a
prá cas sociais há processos educa vos, vida na sociedade, por meio de proces-
portanto, todas as prá cas humanas [...] sos educa vos que desencadeiam [...]”.
são educa vas”. Esses autores apontam Mas, onde se fazem presentes prá cas
ainda que as prá cas sociais acontecem sociais? No caso deste ar go, a prá ca
em diferentes grupos, com a intenção social se dá em encontros entre crianças
de produzir bens, transmitir valores, e adultos que frequentam cursos de
transmi r significados e ensinar a viver musicalização.
(OLIVEIRA et al., 2009). Csikszentmihaly (1999) afirma que
Compreende-se que as práticas a vida co diana não se define apenas
sociais geram e decorrem de interações por aquilo que é realizado, mas tam-

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bém pela convivência com as pessoas. de educação musical para bebês, crian-
Em contextos educa vos com crianças, ças, adolescentes e adultos (JOLY, 2013).
considera-se que é no ambiente familiar Entre as propostas do programa tem-se
que a criança inicia seu aprendizado “[...] não apenas transmi r conhecimen-
musical, seja pelos sons advindos do tos musicais, mas educar os sujeitos
ambiente sonoro da casa, seja pela au- inteiramente, trabalhando valores e a -
dição de pequenas canções que alguém tudes, valorizando as tradições culturais
mais próximo, canta, dança ou ouve [...]” (RANIRO, 2008, p. 11).
com ela (ILARI, 2009). Nesse sen do, a Essa posição de interface com a co-
relação entre pais e crianças, mediada munidade corrobora com o pensamento
pela música, pelos objetos sonoros e de Bosi (1992) sobre esta abrir-se como
brinquedos, oferece uma forma segura espaço para discussão da cultura fora
e prazerosa para o início da vida social e do ambiente acadêmico, denominando
do conhecimento de mundo. de cultura extra universitária, expressa
Considera-se que há processos por seu caráter difuso da vida psíquica
educa vos gerados a par r de prá cas e social do povo, cons tuídas por sím-
sociais e que a compreensão deles cria bolos que não são objetos de análise ou
oportunidades de reflexão e produção interpretação sistemá ca. Dessa forma,
de conhecimento sobre os processos trazer crianças e seus familiares, perten-
de aprender e de ensinar. O obje vo da centes à comunidade externa à universi-
pesquisa foi, então, iden ficar e descre- dade, para projetos que acontecem em
ver processos educativos permeados espaços acadêmicos, nos permite fazer
na prá ca social de musicalização com a interface sugerida por Bosi e ampliar
crianças tendo como apoio, para as prá- olhares sobre produção de cultura.
cas, o uso de brinquedos. Os grupos de crianças foram
A pesquisa foi realizada a par r mediados por uma equipe de trabalho
da inserção em campo em dois grupos composta por profissionais atuantes e
de musicalização com crianças de 2 a 3 pesquisadores e futuros profissionais,
anos de idade, acompanhadas de seus sendo quatro alunos graduandos em
familiares, junto com uma equipe de licenciatura em música e uma estudante
profissionais. Sobre o campo de inser- da pedagogia, supervisionados por duas
ção, destaca-se que o Departamento docentes da universidade. Além disso,
de Artes e Comunicação está localizado par ciparam do projeto duas alunas de
em uma Universidade Pública Federal pós-graduação. A equipe de trabalho
no interior do estado de São Paulo e, reuniu-se para planejar as aulas/en-
desde 1989, registra o Programa de Ex- contros e produziu semanalmente um
tensão “Educação Musical”, que oferece planejamento pedagógico contendo a
diversas turmas de musicalização para a seguinte dinâmica: a) brinquedo livre:
comunidade, com diferentes enfoques formas de acolhimento e interação nos

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momentos que antecedem o início das e pensar novas estratégias didáticas
aulas; b) canto de entrada: possibilida- que pudessem contribuir com o melhor
des musicais, com suportes lúdicos, para desenvolvimento geral de cada criança
iniciar a aula e fazer com que as crianças par cipante, considerando os seus inte-
sintam-se acolhidas; c) hora do canto: resses e contexto de vida. A promoção
músicas infantis interativas voltadas do enriquecimento de repertório musi-
para o desenvolvimento da oralidade e cal, assim como o prazer da convivência
corporeidade, com uso de objetos lúdi- entre crianças e entre estas e os adultos
cos; d) marcha, dança e ciranda: resgate foram mediados pelas sonoridades e
de danças circulares, canções da cultura brinquedos.
popular, exploração dos movimentos Compreende-se a musicalização
e interação em grupo; e) conjunto de como uma atividade de ensino e de
percussão: momento para exploração aprendizagem de sons, cantos e danças,
de pequenos instrumentos musicais, de estimulando as manifestações imagi-
objetos em suas possibilidades sonoras, nárias, gestuais e de olhares de cada
junto com a música; f) relaxamento: mú- par cipante. Targas e Joly (2009, p. 114)
sicas que sugerem um descanso e a apro- destacam:
ximação sica e afe va entre as crianças
[...] o fazer musical está ligado à
e destas com adultos; g) despedida:
percepção de mundo, variando
estratégia musicalizada para encerrar a conforme o momento histórico
aula e afirmar o desejo de retorno para e o espaço social onde vivem as
próxima semana. O desenvolvimento do pessoas que estão envolvidas
planejamento foi vivido com o suporte em processos do fazer ar s co,
pedagógico de diversos materiais lúdi- seja ele composto por aprecia-
cos, como fantoches, lenços, fitas, teci- dores, iniciantes, amadores ou
dos, brinquedos de pelúcia, de plás co, profissionais. As experiências
bonecos de pano, cavalinhos de pau, estéticas e sensoriais, frutos
chapéus, alguns objetos construídos com da vivência co diana de cada
material reciclado, incluindo nesse rol de indivíduo, refletem as percep-
materiais, os instrumentos musicais vol- ções audi vas, afe vas e emo-
tados para o processo de musicalização. cionais das diferentes leituras
de mundo, que também são
No contexto do planejamento
decorrentes das diversidades
das atividades de educação musical,
de cada cultura.
destaca-se a presença de um processo
educa vo dialógico entre os estudantes O ouvir música é um processo de
e as docentes coordenadoras do projeto, dar sen do àquilo que é ouvido. “Ouvir é
com a intencionalidade de pesquisar uma a vidade tanto cria va como recep-
ações, instrumentos e músicas, refle r va entre a música (matéria) e o ouvinte,
sobre o trabalho pedagógico realizado que é quem significa e personaliza a ma-

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téria musical” (STIFFT, 2009, p. 30). Ao Compreendida como uma lingua-
ouvir uma música, cada criança atribui gem, brincar promove a imaginação, a
um sen do e reage a ela a par r de suas cria vidade, a comunicação, a intera-
experiências culturais com essa lingua- ção, a socialização, o desenvolvimento
gem, vivenciadas com os adultos, como de habilidades, é uma forma prazerosa
seus familiares, nos espaços escolares e de aquisição de conhecimentos para as
em outros espaços sociais com outras crianças (KRAMER, 2009). Brincar não
crianças. Com crianças, é importante deve ser compreendido, por exemplo,
que estas experiências musicais estejam como algo naturalizado, trata-se de
mediadas também por objetos lúdicos1, uma experiência de cultura, por isso
es mulando a imaginação, a fantasia, a apreendido no contexto das relações
cria vidade e a curiosidade. estabelecidas com as pessoas e das me-
Brincar é uma a vidade intensa e diações realizadas por estas no uso de
preferida das crianças, que ocorre em objetos lúdicos.
uma dimensão imaginária sendo, assim, Brinquedo é o suporte para a
oposta à realidade. Sua realização pelas imaginação e ação lúdica. Trata-se de
crianças é carregada de emoções e afe- um elemento cultural que na ação lúdica
tos, o que a caracteriza como uma a vi- é u lizado pelas crianças independente
dade séria. Por desenvolver-se na dimen- de sua proposta inicial, não definindo a
são imaginária é carregada de fantasia e brincadeira. Sobretudo, compreende-se
simbolismo, oportunizando experiências que um dos obje vos do brinquedo é
de relações humanas e com os objetos da subs tuir os objetos reais para que as
cultura e, por isso, sendo promotora de crianças os manipulem, os conheçam
inúmeros processos educa vos. Brincar e interajam com estes e, quanto mais
representa a capacidade de mobilizar este material permi r a expressão da
as fantasias que possibilita a criança imaginação e da fantasia, maior será a
compar lhá-las com outras pessoas, de sua qualificação educa va (KISHIMOTO,
modo a produzir saberes significa vos 1999; 2003).
(SOMMERHALDER; ALVES, 2012). Sommerhalder e Alves (2011) es-
clarecem que, na percepção da criança,
1 qualquer objeto pode ser um brinquedo,
Nesta pesquisa compreende-se objeto lúdico
como recursos para expressão e vivência do quando este assume uma função lúdica.
lúdico, composto por brinquedos, brincadeiras, Consideram-se os objetos sonoros e os
jogos, livros infantis, instrumentos musicais, instrumentos de pequena percussão
objetos sonoros e pela própria ação de brincar. como brinquedos musicais, pois fazem
Comumente, o primeiro brinquedo da criança é parte do contexto da aula/encontro de
o corpo (dela ou mesmo do/s adultos/s que se
relacionam com ela), sendo inserida ao mundo música, tal como os bonecos e mario-
dos objetos lúdicos por outras pessoas, conside- netes, assumindo um papel importante
rando seu contexto social e cultural. na construção da interação lúdica das

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crianças com diferentes sons e músicas. 2 Procedimentos Metodológicos
A qualidade do material refletido no
grau de segurança para a criança, no Conforme anunciado, a pesquisa
es mulo para o imaginário e na qualida- foi realizada dentro de um Projeto de
de da experiência sonora e esté ca, são Musicalização, que compõe um Pro-
aspectos que devem ser considerados grama de Extensão Universitária em
no momento da escolha desses objetos Educação Musical.
sonoros e brinquedos. A pesquisa sustentou-se na abor-
Ilari (2009) afirma que os registros dagem qualitativa envolvendo dados
de a vidades musicais com crianças são descri vos que foram ob dos no contato
muito an gos e podem ser encontrados direto do pesquisador com a situação
em estudos filosóficos gregos, indianos estudada e buscou retratar a perspec -
e até em escrituras sagradas. Nos dias va dos par cipantes do estudo (ANDRÉ,
atuais, diz a autora, a música está muito 2004). Como procedimento metodológi-
presente na vida de gestantes, bebês, co realizou-se a observação par cipante,
crianças, adolescentes e adultos, incluin- na qual Cruz Neto (1994) destaca relação
do os diferentes âmbitos sociais. Dessa direta do pesquisador com os sujeitos
forma, a importância da música abre de pesquisa e seus contextos. Esse pro-
campos de estudos para olhares sobre o cedimento foi escolhido por possibilitar
co diano escolar, familiar e social no qual a inserção e observação da realidade
as crianças fazem suas vivências, crescem contextualizada, captando fenômenos
e cons tuem a iden dade e a cultura. que não conseguem ser ob dos sobre
Nessa perspec va, é que nos vol- outra forma. A observação par cipante
tamos para um projeto de musicalização, foi assumida, considerando que os su-
no qual os encontros com crianças, sem- jeitos par cipantes da pesquisa foram
pre desenvolvidos com objetos sonoros, crianças muito pequenas, inviabilizando
pequenos instrumentos e diversos brin- a coleta sob a forma de entrevista ou
quedos, são compreendidos como prá - mesmo conversas.
cas sociais que desencadeiam processos A coleta de dados foi realizada com
educativos singulares e construídos duas turmas de musicalização infan l,
dentro desse grupo específico. Com isso, sendo a primeira composta por crianças
o contexto da aula de música se tornou de aproximadamente dois anos de idade
fonte importante de informação para e seus familiares, e a segunda, por crian-
que pudéssemos compreender o signifi- ças com três anos de idade, em média
cado de alguns dos processos educa vos e seus familiares. Os grupos de crianças
gerados nos e pelos grupos envolvidos, foram acompanhados pela equipe de
cons tuídos pelas crianças nas relações trabalho, composta por cinco estudantes
com seus familiares e com a equipe de de graduação, duas alunas de mestrado
profissionais. e duas docentes da universidade.

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Par ciparam da pesquisa 25 crian- musicalização. Para chegar à compre-
ças, que frequentaram os grupos de ensão de uma prá ca social existente,
musicalização, acompanhadas de seus perguntou-se às crianças do grupo de
familiares. Não houve a presença das aproximadamente 3 anos de idade “o
25 crianças em todos os encontros que que você vem fazer aqui?”. Algumas das
foram acompanhados, em decorrência respostas foram: “eu venho brincar com
da frequência voluntária e, por isso, o cavalinho” (objeto lúdico utilizado
ausência em alguma aula. em danças); “eu vim dançar e brincar”;
Os encontros de musicalização “eu venho brincar”; “dançar”, “cantar
ocorreram no Laboratório de Musicali- e dançar”. Na turma de crianças de 2
zação2 uma vez por semana com cada anos de idade, em média, a percepção
grupo e com duração de uma hora cada, de uma prá ca social ocorreu por meio
por um período de quatro meses segui- da observação das pesquisadoras das
dos. O laboratório compreende uma relações das crianças com a música, com
sala ampla, com portas e janelas, piso a família, com a equipe de trabalho, com
de madeira, uma pequena área com o espaço, com os objetos e com outras
jardim em anexo, decorado com cor nas crianças. Essa observação se apoiou
e mobiliado com móveis e armários para principalmente nos aspectos que pode-
acolher os pais e acompanhantes e para riam ser vistos e percebidos nas crianças
o desenvolvimento das prá cas musicais em suas interações com esses elemen-
com bebês e crianças. Destaca-se a exis- tos ou pessoas. Como os grupos eram
tência de um vasto e diverso material pe- compostos por vários par cipantes, de
dagógico, como objetos lúdicos sonoros diferentes idades, optou-se por focalizar
(apitos, conchas, colheres de pau, etc.), os processos educa vos que ocorriam na
brinquedos, instrumentos de pequena produção das crianças, no convívio en-
percussão e almofadas. Um piano acús- tre elas e com outras pessoas do grupo
co, um piano digital, violão e tambores (como equipe de trabalho). Sendo assim,
ficam à disposição para uso constante os encontros para cantar e brincar que
em aulas. O centro da sala cons tui-se ocorreram no processo de musicalização
em um espaço livre, com demarcação de são uma prá ca social, pois neles ocor-
um círculo decorado com tema infan l. rem relações entre crianças-crianças e
A prática social acompanhada crianças-adultos nos momentos de aula.
foi dos encontros para cantar e brincar Importante ressaltar que foram
que se desenvolveram nas aulas de seguidos os preceitos é cos de pesquisa,
recorrendo aos par cipantes e respon-
2
sáveis com o Termo de Consen mento
O Laboratório de Musicalização é um espaço
para ensino, pesquisa e extensão e desenvolve Livre e Esclarecido, assim como o uso de
ações e a vidades de um Programa de Extensão nomes fic cios, preservando a iden da-
Universitária in tulado: “Educação Musical”. de dos consen dos.

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Empregou-se o diário de campo Realizou-se a análise de conteúdo,
como recurso metodológico de registro proposta por Bardin (1995) e Franco
da observação par cipante nos grupos, (2008). Franco (2008) destaca que a
em acordo com Bogdan e Biklen (1995, análise de conteúdo toma a mensagem
p. 150) “[...] em estudos de observação como par da, podendo esta ser verbal
par cipa va todos os dados são consi- (oral ou escrita), gestual ou mesmo si-
derados notas de campo, (sendo que) lenciosa, mas sempre comportando um
este termo refere-se cole vamente a significado e um sen do. Sendo assim, a
todos os dados recolhidos durante o análise de conteúdo consiste em:
estudo”. Também foram seguidos os
[...] um conjunto de técnicas
aspectos destacados por Falkembach de análise das comunicações
(1987, p. 24) na produção destes re- visando conter, por procedi-
gistros: mentos sistemá cos e obje -
[...] os fatos devem ser regis- vos de descrição de conteúdo
trados no diário de campo das mensagens, indicadores
o quanto antes, se possível que permitam a inferência
imediatamente depois de ob- de conhecimentos relativos
servados. Caso contrário, a às condições de produção/
memória vai introduzindo ele- recepção destas mensagens.
mentos que não se deram; e (BARDIN, 1995, p. 42).
a interpretação reflexiva, não As categorias construídas, a par-
separada do fato concreto, virá
r dos resultados encontrados foram:
frequentemente deturpá-lo.
Recepção das crianças na chegada:
Os registros em diários de campo interações por meio da caixa lúdica’;
ocorreram da observação par cipante Brinquedos nas práƟcas musicais: fanta-
da ro na das crianças dos grupos de sia e imaginação; Objetos sonoros como
Musicalização, que se reuniram para brinquedos.
cantarem, dançarem e brincarem. Os A seguir os resultados serão apre-
diários foram agrupados e realizaram-se sentados por meio dessas categorias e
leituras densas dos registros feitos. Os analisados qualita vamente, por meio
dados foram organizados em categorias da análise de conteúdo.
de análise, na perspec va anunciada por
Franco (2008). Essas categorias foram 3 Resultados e discussão
construídas a posteriori, a partir dos
conteúdos dos diários de campo, pois Na categoria ‘Recepção das crian-
“[...] emergem da ‘fala’, do discurso, do ças na chegada: interações por meio da
conteúdo da respostas e implicam cons- caixa lúdica’, destaca-se que, no momento
tante ida e volta do material de análise à de início dos encontros de musicalização,
teoria” (FRANCO, 2008, p. 61). as crianças foram recebidas pela equipe

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de trabalho que disponibilizava no centro se senƟu a vontade para sair
da sala, uma caixa com diversos brinque- do colo materno e explorar a
dos, como bichos de pelúcia, carrinhos e caixa. Uma das educadoras
miniaturas de animais. As crianças eram entregou-lhe um cachorrinho
de madeira com rodas, que
incen vadas a explorar os brinquedos,
logo ele pegou para brincar.
construir brincadeiras e relacionar-se (Diário de Campo, 8 de maio).
entre si e com os adultos presentes.
Nesses momentos, algumas crian- Às 18 horas iniciava-se a aula de
ças sentavam na roda demarcada por musicalização propriamente dita, sendo
uma fita no chão e se dirigiam sozinhas que a maioria das crianças já estava pre-
à caixa lúdica. A par r de objetos lúdicos sente, e uma das educadoras anunciava
selecionados por elas, brincavam livre- a hora de guardar aqueles brinquedos de
mente com os adultos próximos e tam- composição da caixa lúdica. Esse proces-
bém entre elas. Algumas, em momentos so era incen vado por uma música em
diversos, preferiam brincar sozinhas com que a equipe de trabalho e os familiares
o uso ou não dos brinquedos disponibi- cantavam com e para as crianças, em
lizados. Destaca-se a interação de uma que a letra anunciava o momento final
criança com um dos educadores. de uma brincadeira e a ação de guardar
os brinquedos. As crianças colaboravam
Gabriela brincava com o adul-
to, um dos responsáveis pela com esse momento, guardando sozinhas
organização das aulas. Jogava os brinquedos de volta na caixa e anun-
um cachorrinho com rodas no ciando, a par r do incen vo dos adultos
joelho do adulto, que se jogava em cena, um “tchau” para aqueles ob-
no chão e provocava risos na jetos lúdicos.
criança. (Diário de Campo, 8 Sobre esse momento pôde-se pre-
de maio). senciar a situação em que:
Outras crianças iniciavam alguns João queria continuar com
encontros junto de seus familiares e os brinquedos e Ɵnha alguns
preferiam não aproximar inicialmente deixados no chão. Uma das
da roda de pessoas e da caixa lúdica. adultas da equipe de trabalho
Nessas situações, um membro da equi- se aproxima para conversar
pe de trabalho, na tenta va de acolher com ele sobre o brinquedo do
a criança que chegava, oferecia-lhe um chão e incenƟvá-lo a guardá-lo
na caixa. Mas João, rapidamen-
brinquedo ou incen vava outras crianças
te, entende que a adulta quer
que já estavam brincando a convidarem o brinquedo para guardá-lo.
aquela para brincar. Corre, então, até a caixa para
Diogo e sua mãe sentaram deixar o objeto. (Diário de Cam-
na roda, mas o menino não po, 14 de maio).

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O momento de guardar os brin- brincadeiras e, assim, fomentaram as
quedos na caixa se fez presente em relações no grupo.
todas as aulas. Mesmo quando, em um Sommerhalder e Alves (2011)
primeiro momento, a criança tenha de- apontam que o brinquedo é um suporte
sejado permanecer com o brinquedo, na brincadeira, sendo qualificado com
as relações estabelecidas com as outras um bom material lúdico quanto maior
crianças, o diálogo entre elas, os olhares, a possibilidade de o brincante imaginar
os gestos, a observação de outra criança e criar. Ele é ainda um es mulador da
guardando o material, a introdução e a imaginação e da fantasia por expressar,
condução de uma nova canção, possi- muitas vezes, imagens de representação
bilitaram que a criança compreendesse de aspectos da realidade, oferece, assim,
a necessidade de guardar esse objeto à criança a oportunidade de lidar com
lúdico, pois, em seguida outras brinca- subs tutos de objetos reais. Ao u lizar
deiras e outros brinquedos estariam a um brinquedo, é fundamental que as
sua disposição. crianças possam desmontá-lo, sujá-lo,
A ação de representação simbólica enfim, conhecê-lo. Nesse processo de
de dizer “tchau” para aquele brinquedo brincar com o objeto lúdico (brinquedo),
que segue no “trem mágico”, a ro na elas experimentam a tarefa constante de
dos encontros e a convivência naquele construção e reconstrução da realidade
espaço entre as próprias crianças e entre (ALVES; SOMMERHALDER, 2006).
elas e os adultos foram aspectos que Kishimoto (2003) indica que, na
contribuíram para a construção desses prá ca de brincar em grupo, composto
processos educa vos. apenas por crianças ou com adultos, é
Os brinquedos disponibilizados fundamental que as crianças, além de
em uma caixa lúdica foram colabora- desenvolverem suas próprias apren-
tivos como suportes para incentivar dizagens, tenham oportunidades para
as relações entre as crianças, além de aprender a respeitar regras e normas
elemento pedagógico que possibilitou de convivência. Ao serem incen vadas
a aproximação dos adultos (como os por um adulto a brincar ou brincar com
membros da equipe de trabalho) com outras crianças, em grupos, elas am-
as crianças. Santos (2015), em pesquisa pliam seus laços de convivência e assim
realizada nesse contexto, evidencia que ensinam e aprendem conjuntamente.
a caixa lúdica u lizada nesse momento Além disso, podem ainda resolver con-
de chegada favorecia a ambientação flitos de interesses pelo uso do mesmo
das crianças, pois com os brinquedos as brinquedos e estabelecer ou aprimorar
crianças circulavam pelo espaço da sala, relações afe vas.
permi ndo assim a exploração deste. Em momentos de convivência na
Para a autora, os brinquedos dispostos brincadeira, as crianças tem oportuni-
serviram ainda como incen vo para as dades para construir um modo próprio

88 Aline SOMMERHALDER et al. Crianças pequenas fazendo musicalização: contribuições ...


de explorar o ambiente, de se relacionar dor, de modo que a criança era incen -
com os brinquedos e com crianças de di- vada a interagir com esse personagem
ferentes idades (PRADO, 2009). A autora simbolizado no fantoche. O registro do
aponta ainda que as crianças podem diário de campo descreve a interação de
[...] expressar suas emoções e algumas crianças com o fantoche.
estabelecer relações sociais e Neste dia, o fantoche de ra-
afe vas diversificadas, experi- tinho foi usado para dar as
mentando, imitando, simulan- boas-vindas às crianças (na
do, observando, inventando música de acolhimento). Ga-
brincadeiras nos mais diversos briela abraçou o fantoche e
momentos, nem sempre espe- dançou com ele. Lucas e Breno
cificados ou permi dos para preferiram não tocá-lo, então
essa a vidade, numa lingua- eles foram incenƟvádos a tocar
gem nem sempre de palavras, o brinquedo e foram tocados
em que a dimensão do corpo e com o raƟnho. TaƟ esƟcou os
do movimento ganha amplitu- pézinhos na frente do raƟnho e
de especial – de transgressão, o abraçou com os pés. Isadora
de fantasia, de músicas e histó- e Pedro acariciaram o fantoche
rias, do inusitado [...]. (PRADO, e colocaram o dedinho em sua
2009, p. 104) boca. (Diário de Campo, 22 de
A categoria ‘Brinquedos nas prá- maio).
cas musicais: fantasia e imaginação’
O fantoche de raƟnho é usado
representa diversos momentos lúdicos para mediar a interação com a
vividos pelas crianças em que brinca- criança Laura e com isso, incen-
deiras com caráter simbólico mediaram Ɵvá-la a cantar. Como Tadeu é
as relações entre elas e os adultos (seja a próxima criança sentada na
equipe de trabalho ou familiares). roda e está longe de sua mãe,
Em uma a vidade permanente de corre ao colo materno para ser
aula, conhecida como ‘canção de acolhi- recepcionado pelo fantoche
da’, um membro da equipe de trabalho raƟnho. Ele acaricia o fantoche
realizava a interação com a criança tendo e abraça-o. O mesmo ocorreu
como auxílio um fantoche de animal. Em com as demais crianças. (Diário
de Campo, 11 de junho)
tal ação, dirigia-se a cada uma das crian-
ças enquanto todas as pessoas cantavam Tal fato pode ser compreendido
uma música de acolhimento, dizendo pelo que retrata Kishimoto (2013),
em um momento específico da música quando aponta que o brinquedo atende
o nome da criança. Nesse momento, o uma faceta funcional e simbólica de in-
fantoche era entregue para a criança ou gresso ao imaginário. Em seus aspectos
mesmo permanecia nas mãos do educa- materiais, o fantoche de rato tem uma

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textura prazerosa, cor, tamanho, forma mais difíceis para realização
que permite que a criança interaja com como por exemplo, o estalar
ele, o que não é possível com o animal dos dedos e o ronco da barriga.
da realidade. Com isso, ela pode abraçar (Diário de Campo, 15 de maio).
o fantoche, beijá-lo, apertá-lo, acariciá-
Um dia frio e chuvoso. Uma
-lo, enfim, interagir com ele, de modo das educadoras da equipe de
a conhecê-lo. Cabe lembrar que, na trabalho contou a história do
cultura brasileira, o rato é símbolo de livro “Plic Plic: um barulho da
um animal com sen do nega vo, asque- chuva”. Tentamos produzir o
roso, prejudicial à saúde e nojento. No som das gotas d’água com dois
entanto, com o fantoche, a criança pode dedos a bater na palma das
refazer o significado cultural do animal, mãos aberta. A criança Tati
aproximando-se dele. Da mesma forma, apresentou inicialmente dificul-
uma boneca pode representar uma pes- dades em realizar o movimen-
soa que está brincando de roda, com- to, e a educadora auxiliou-a
pondo o conjunto de adultos e crianças ao pegar em sua mão. Após a
que canta e dança em círculo. ajuda, a criança conseguiu rea-
lizar o som e sorriu. Produziu-se
Em outros momentos, o livro de
o som de uma tempestade, ao
histórias infan s também se apresentou bater os dedos na palma da
como um objeto lúdico que oportunizou mão fortemente. Realizou-se
experiências musicais envolvendo a fan- o ruído de uma garoa, ao mo-
tasia e a imaginação. vimentar os dedos levemente.
Uma das educadoras da equipe A educadora da equipe de tra-
de trabalho contou a história balho comparou o barulho das
do livro “Tum Tum Tum: um mãos com o da chuva do lado
barulho do corpo”. A história de fora. Perguntou se chovia
envolvia duas meninas que forte ou fraco e a criança TaƟ
escutavam os sons produzidos respondeu fraco, o que de fato
pelo corpo desde o momento ocorria (Diário de Campo, 29
que despertam até a hora de maio).
de dormir. Alguns sons como As histórias e os livros es mulam
aquele realizado pelo coração, a imaginação das crianças, ampliam as
o estalar dos dedos, a barriga
possibilidades sonoras e sugerem novas
roncando e o ronco ao des-
cansar foram realizados por
prá cas lúdicas, pois os livros usados
uma educadora da equipe de nham sons. Os misteriosos mundos en-
trabalho e reconstruídos pelas contrados nos livros de histórias infan s
crianças, a parƟr de suas per- lidos ou contados pelos adultos aguçam
cepções. Alguns sons causaram a vontade de experimentar o ouvido,
risos nas crianças, outros foram por meio do brincar (KRAMER, 2009).

90 Aline SOMMERHALDER et al. Crianças pequenas fazendo musicalização: contribuições ...


Os livros escolhidos para a musicalização possam apoiar a cabeça) um brinquedo
envolveram ambientes sonoros, os quais de deslizar pelo espaço, lembrando um
es mularam a compreensão e produção avião ou um pássaro que acompanha
de sons pelas crianças, em um contexto a música com seu voo. Já outra criança
de fantasia e imaginação. A percepção deslizou o travesseiro, com o auxílio da
dos sons feitos ao contar as histórias e mão até chegar aos pés da sua mãe.
as relações das crianças com os adultos Retornou deslizando para o centro da
presentes e com outras crianças contri- roda, sempre ao sabor daquilo que a
buíram para que elas produzissem sons, canção sugeria. Outra criança curiosa-
cada uma ao seu modo. mente a observou e imitou-a realizando
Em algumas experiências musicais, um movimento muito parecido, crian-
materiais como travesseiros também fo- do uma nova relação com o material,
ram transformados em brinquedos pelas pois, ao invés de deslizar com as mãos,
crianças que, mobilizadas pela fantasia ela colocou a cabeça no travesseiro e
e pela imaginação, atribuíram outras movimentou-se como uma “minhoca”.
funções para esse objeto. As duas crianças que estavam próximas
encontraram-se nessa brincadeira,
Ao som de uma canƟga de ni-
usando cada uma o seu travesseiro e,
nar, entrega-se um travesseiro
de tecido para cada criança e
depois de interagirem com esses objetos
pede-se que deite próxima de lúdicos, voltaram para suas respec vas
seus familiares. A criança Lu- mães. Dessa forma, a canção es mulou
ciana, ao pegar o travesseiro a fantasia, ajudou o desenvolvimento
que tem um botão como objeto da imaginação e a aproximação afe va
decoraƟvo, tenta girá-lo, canta entre crianças e seus familiares.
para ele e o cutuca. Isso desper- O interesse infan l pelas prá cas
ta a curiosidade de Tadeu que musicais foi percebido na curiosidade
circula pela sala à procura de demonstrada com a introdução de ou-
um travesseiro parecido. Leva- tros objetos na aula, que enriqueceram
-o para perto da Luciana e jun- a experiência musical.
tos ficam brincando deitados e,
em outros momentos, sentados Maria começa a entregar ba-
com o botão do objeto, ora lões (conhecidos como bexigas)
cada um com o seu, ora com o para as crianças, enquanto
travesseiro do outro. (Diário de Sabrina e Marília abriam um
Campo, 14 de maio). tecido extenso, largo e colorido,
em formato arredondado e
Em outro encontro de musicali- conhecido como paraquedas.
zação, uma criança fez do travesseiro Foi solicitado que as crianças
(objeto usado na música de relaxamento jogassem as bexigas no centro
para que as crianças ao deitarem no chão do paraquedas e balançasse-

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-o, acompanhando a música. lidade e experiências sensoriais, como
Algumas crianças estavam ni- tato e audição.
Ɵdamente empolgadas com os Para brincar, a criança pode ou não
balões, outras entusiasmadas u lizar um objeto simbólico. Como lem-
com o próprio tecido. Algumas bra Bomtempo (1997), ele é o parceiro
ajudavam a balançá-lo, outras da criança na brincadeira. Os brinquedos
jogavam ao alto seus balões,
simbólicos são aqueles que criam uma
abrindo mão do objeto, como
situação imaginária e que servem como
era o caso de Tadeu que queria
suporte para o faz-de-conta (KOBAYASHI,
o balão verde e a Marcela o
balão cor de rosa, o que de- 2009).
mandou a negociação entre Explorar um material e descobrir
eles para a troca dos balões. outros jeitos de brincar ou mesmo
Quando o paraquedas descia transformá-lo em um brinquedo possi-
ao chão, as crianças como a Le- bilita à criança a experiência da autoria,
andra e a Priscila queriam subir em que aprender acontece a par r da
nele. E quando o paraquedas criação, da atribuição de um significado
era movimentado, acompa- e não da reprodução (SOMMERHAL-
nhando o ritmo da música, as DER; ALVES, 2011). Além de considerar
crianças entravam embaixo o objeto lúdico uma mo vação para as
dele, senƟndo de maneira mais prá cas musicais com as crianças, este
concreta os aspectos musicais também proporcionou a ampliação das
da canção. Algumas crianças oportunidades para explorar, inventar,
ficavam embaixo e outros que- descobrir, par lhar, imaginar e ampliar
riam que abaixasse o paraque-
relações sociais entre as crianças e com
das para que pudessem pegar
seus familiares.
seu balão. (Diário de Campo,
Benjamin (1984) aponta para a
11 de junho)
independência do brincar em relação ao
A alegria das crianças com esses brinquedo. Ele defende que conteúdo
objetos lúdicos foi contagiante, perce- ideacional do brinquedo jamais deter-
bido pelos olhares, gestos e falas. No mina a brincadeira, pois é a brincadeira
momento em que todos cantavam, o pa- que orienta o uso dos objetos. Por isso
raquedas e os balões (bexigas) serviram foi possível, naquela cena lúdica, a trans-
de apoio ao imaginário simbolizando formação, pelas crianças, do travesseiro
tradições culturais, pois eles repre- em pássaros ou avião. “A riqueza dos
sentavam alguns objetos comumente brinquedos decorre de sua capacidade
encontrados em muitas festas juninas de ins gar a imaginação infan l. E, não
brasileiras, como balão e fogueira. Esses como muitos acreditam, da possibilidade
objetos lúdicos oportunizaram outras de imitação dos gestos [...]” (OLIVEIRA,
experiências motoras, como de latera- 1989, p. 58).

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A terceira e úl ma categoria “Obje- aos materiais, inventando novas formas
tos sonoros como brinquedos” destaca as de explorá-los e assim, transformando
interações das crianças com os objetos as suas próprias tradições brincantes.
sonoros nas prá cas musicais. O trecho de diário de campo revela
Outro trecho de diário de campo como a equipe de trabalho disponibili-
mostra como as crianças interagiram zava os objetos sonoros às crianças. Por
com os objetos sonoros no momento meio de cestos de palha colocados no
em que cantavam as músicas propostas e centro da roda, a autonomia de meni-
como esses materiais, transformados por nos e meninas foi fomentada, pois cada
elas em brinquedos, ampliaram as possi- criança responsabilizava-se por escolher
bilidades sonoras como, por exemplo, a sozinho um objeto, pegá-lo e devolvê-lo
exploração de diferentes sons e ritmos. ao final da a vidade. Essa experiência
Para interagir ainda mais com oportunizou ainda a escolha de mate-
as crianças, fez-se o combi- riais, a inicia va de buscá-lo, as negocia-
nado de agitar o chocalho ções necessárias em caso de escolha do
até o momento de o relógio mesmo objeto lúdico, além da ampliação
tocar. E assim, as crianças se de relações sociais. Horn (2002) afirma
atentavam à tarefa com ajuda que a disposição de materiais e brinque-
dos pais, fazendo o gesto bem dos em espaços de trabalho pedagógico
expressivo de segurar o cho- deve estar ao alcance das crianças, para
calho e o ruído “Shiiii” (para que, assim, desenvolvam sua autono-
ficar em silêncio). Interessante
mia e independência incen vando, por
que Tadeu se movimentava no
senƟdo de agitar o chocalho.
exemplo, a liberdade de escolha de qual
No momento em que o desper- brinquedo pretende usar para brincar.
tador ligava, Tadeu deixava os Em outra situação de prá ca musi-
chocalhos no chão para senƟr cal, foram u lizados martelinhos sonoros
com os dedos o despertador como objetos lúdicos para imitação do
tocar e depois voltava a agitar som de grilos, como sugeria a canção
o chocalho pela sala. RepeƟu proposta. Ao brincar com os marteli-
a cena durante todas as vezes nhos sonoros, disponibilizados em uma
que a música foi cantada. (Di- cesta no centro da roda, primeiramente
ário de Campo, 11 de junho). elas escolheram o material conforme
Sommerhalder e Alves (2011) a cor desejada e, em seguida, foram
esclarecem que as experiências lúdicas incen vadas pela equipe de trabalho a
das crianças são ampliadas pelos adultos conhecer e explorar livremente o objeto
quando estes lhes fornecem recursos e suas possibilidades sonoras, realizan-
lúdicos e/ou se relacionam com elas do para isso movimentos de bater no
nas brincadeiras. Esclarecem ainda que chão de várias maneiras (com uma das
as crianças atribuem outros significados mãos, com as duas, com o cabo do ob-

Série-Estudos... Campo Grande, MS, n. 40, p. 79-98, jul./dez. 2015 93


jeto tocando o chão). Elas produziram Foi relembrada pela equipe de
diversos sons, perceberam que o som trabalho a canção “O menino
depende da maneira de tocar e segurar canta”. Primeiramente, todas
o material, assim como compreende- as pessoas cantaram juntas.
Em seguida, duas educadoras
ram o momento apropriado da música
inseriram no centro da roda
para baterem com esses brinquedos no um tapete em forma de escala
chão. Também produziram sons fortes e musical. Em cada peça havia
leves, ao controlarem a intensidade da uma nota musical (do, ré, mi,
força empregada para baterem o objeto fá, sol). As crianças foram con-
conforme a entonação da voz. vidadas a andarem sobre as
notas ao cantarem a música.
A música “Grilo” produzia um
Uma educadora caminhou so-
som similar ao canto do inseto
bre o tapete, depois convidou
(“cri cri, cri cri”). Para reali-
as crianças. Quem se habilitou
zação dessa parte da canção, primeiramente foi a criança
colocou-se um cesto de palha Gabriela, que caminhou de
ao centro da roda com mar- mãos dadas com a educadora.
telinhos sonoros. As crianças A próxima foi Amanda, auxilia-
pegaram os martelinhos e a da por Gabriela que lhe deu as
criança Pedro trouxe alguns mãos juntamente à educado-
para os adultos presentes. Ao ra. Depois as demais crianças
reproduzirem o som do grilo, também caminharam de mãos
bateram os martelinhos no dadas com a educadora e, em
chão. Cantaram com entona- seguida, duas caminharam
ção fraca e o objeto foi baƟdo juntas e outras preferiram
no chão de forma fraca e, caminhar sozinhas. (Diário de
quando cantou-se forte, este Campo, 9 de junho).
objeto foi baƟdo de modo forte.
Nessas prá cas musicais com as
(Diário de Campo, 8 de maio).
crianças, ocorreram o aprimoramento
Na brincadeira a seguir, um tape- de noções musicais básicas, como altura,
te com notas musicais permi u que as intensidade, timbre e duração, como
crianças caminhassem e conhecessem também o conhecimento do mundo mu-
cada tom rela vo a cada uma das notas. sical e das tradições culturais da música.
No brincar, uma criança que já havia pas- Destaca-se que, nesses encontros de
sado pela experiência de caminhar no musicalização, também foram u lizados
tapete, auxiliou outra que não conhecia vários instrumentos de pequena percus-
o percurso, desencadeando um processo são (chocalhos, guizos, pandeiros, casta-
de ampliação de conhecimento das no- nholas, claves, etc.), violão, flauta doce,
tas musicais, de movimentos e relação piano e xilofones, que revelaram outras
espaço e corpo. aprendizagens que não foram objeto de

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destaque nas categorias apresentadas de Sommerhalder e Alves (2012) quan-
neste texto. do apontam que é di cil imaginar uma
Ao longo dos encontros, as crian- criança que não goste de brincar, dado o
ças cantaram, dançaram, tocaram e prazer com o qual se entrega a suas a -
brincaram. Em muitas canções, os vidades lúdicas. Aliás, é da nossa huma-
objetos sonoros forneceram suporte nidade esse interesse para o lúdico. Fica
para estímulo do interesse infantil, claro que esses dois grupos de crianças
percepção de ritmos, produção de sons vivenciaram experiências musicais que
interessantes em determinadas músicas geraram processos educativos cons-
e incen varam danças. As aprendizagens truídos por elas próprias, nas relações
produzidas nas relações humanas nessas estabelecidas com os adultos, entre elas
prá cas musicais, tendo como apoio os e nas interações com os brinquedos.
brinquedos, aproximam-se daquelas
destacadas por Brito (2009): 3 Considerações finais
(As) crianças são seres brin- Nessas prá cas de musicalização,
cantes, musicais, recep vos à os processos educativos identificados
energia que emana das forças
foram brincar, cantar, dançar, tocar,
sonoras. Conectando a escuta
(do entorno, de sonoridades
conhecer músicas; explorar, perceber
e obras musicais diversas) e e produzir sons; explorar ritmos; apri-
os gestos produtores de sons morar noções músicais básicas (altura,
– vocais, corporais ou com ma- intensidade, mbre e duração); ampliar
teriais diversos, o fazer musical conhecimento de tons musicais; co-
infan l integra uma gama de nhecer o ambiente sonoro e tradições
possibilidades: cantar, tocar, culturais musicais; experimentar, desco-
movimentar-se, desenhar e brir, par lhar e inventar objetos lúdicos
registrar sons, improvisar, etc. e brincadeiras; ampliar relações sociais,
(BRITO, 2009, p. 12). aprofundar vínculos afe vos e aprender
Esta autora anuncia ainda que, du- a conviver em grupo; ter inicia va, esco-
rante o período de desenvolvimento da lher e tomar decisões; explorar espaço
primeira infância, as crianças sonorizam e materiais; desenvolver imaginação;
sensações, percepções e pensamentos. compreender regras e uso cole vo de
Experimentar se sobrepõe à técnica brinquedos e objetos sonoros; aprender
musical, e fazer música aproxima-se a negociar materiais e compreender a
da vontade, do desejo e da conquista ro na. Esses processos de ensinar e de
(BRITO, 2007). aprender ocorreram das relações entre as
Compreende-se ainda que o prazer próprias crianças e delas com os adultos.
das crianças em estar nesse espaço de Na presença de um novo instru-
musicalização aproxima-se das ideias mento musical, por exemplo, as crian-

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ças primeiramente puderam conhecer ches, cavalos de pau, bichos de pelúcia,
o material, explorando-o (observando bonecas de pano e livros de histórias
formato e cores, assoprando, apertando) infantis, incentivaram a participação
e interagindo com este, buscando emi r das crianças em brincadeiras, cantos e
algum som. As crianças ainda observa- danças, ampliaram as relações entre as
ram como outras crianças, e os adultos crianças e com os adultos. A pesquisa
usavam os objetos sonoros e buscaram indica que esses materiais pedagógicos
tocar o instrumento, conforme suas per- se mostram como importantes recursos
cepções. Durante as canções em roda, a para serem u lizados em propostas de
distribuição espacial dos par cipantes educação musical com crianças, a par r
em círculo permi u que as crianças se da compreensão de apoios lúdicos cola-
olhassem, observassem e relacionassem boradores na acolhida, na produção de
por meio de gestos e falas. cultura lúdica e musical, na convivência
Os objetos sonoros, considera- das crianças e fortalecimento de víncu-
dos nesta pesquisa como brinquedos los afe vos, sobretudo na promoção de
(como chocalhos, tambores, guizos, momentos prazerosos, sensíveis e mais
castanholas), assim como lenços, fanto- humanizadores na educação musical.

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Recebido em março de 2015


Aprovado para publicação em agosto de 2015

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