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Parecer

O caso Ellwanger: anti-semitismo como crime da prática do


racismo

Celso Lafer

Sumário
I - Considerações preliminares. II - Positi-
vação, generalização, internacionalização e es-
pecificação como processos de afirmação dos
direitos humanos. III - Interpretação do art. 5o,
XLII, da Constituição - critérios. IV - Interpre-
tação do art. 5o, XLII, da Constituição – o HC
82424-2 e o risco do esvaziamento do conteúdo
jurídico do preceito constitucional. V - Os ar-
gumentos apresentados no HC 82424-2 e os en-
sinamentos de decisões da Suprema Corte dos
EUA e da House of Lords da Inglaterra. VI - Da
raça ao racismo. VII - A prática do racismo e o
seu impacto no Direito Internacional da Pes-
soa Humana – a contribuição do Direito Inter-
Parecer apresentado e aceito pelo STF na
condição de amicus curiae, no julgamento do caso nacional-Público para a exegese do art. 5 o, XLII,
Ellwanger – HC 82424/RS (dezembro de 2002 a da Constituição de 1988. VIII - Amplitude da
setembro de 2003). Em cinco longas sessões, prática do racismo no Brasil. IX - Síntese con-
confirmou-se, por 8 votos a 3, a condenação, pelo clusiva.
Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul em
outubro de 1966, de Siegfried Ellwanger pelo crime
da prática do racismo. Foram votos vencedores o
do Ministro Maurício Corrêa, relator do acórdão
(datado de 17 de setembro de 2003), e os dos I – Considerações preliminares
Ministros Celso de Mello, Gilmar Mendes, Carlos
Velloso, Nelson Jobim, Ellen Gracie, Cezar Peluso e 1 – O Art 5º, XLXII, da Constituição de
Sepúlveda Pertence. O Acórdão foi publicado pelo 1988, diz: “a prática do racismo constitui
STF, com prefácio do Ministro Maurício Corrêa crime inafiançável e imprescritível, sujeito
(Crime de Racismo e Antisemitismo – um julgamento à pena de reclusão nos termos da lei”.
histórico do STF. Brasília, Brasília Jurídica, 2004).
No HC 82424- 2, ora em exame pelo STF,
A professora Anna Maria Villela dedicou-se, alega-se, em síntese, como adiante se discu-
no seu consistente percurso intelectual, ao Direito tirá de maneira circunstanciada, que, não
Internacional, com ênfase no Direito Internacional sendo os judeus uma raça, o crime pratica-
Privado, que tem entre os seus temas básicos o
relacionamento entre distintos ordenamentos jurí- do por Siegfried Ellwanger é o de incitamen-
dicos. Este parecer também examina a interação to contra os judeus e não o da prática do ra-
entre o ordenamento jurídico nacional e o Direito cismo. Dessa maneira busca o impetrante afas-
Internacional dos direitos humanos. Trata, assim, tar a imprescritibilidade do delito cometido.
de uma das categorias do Direito Internacional –
Público e Privado – que é a da recepção, no hori- A matéria objeto deste parecer diz res-
zonte dos interesses de Anna Maria Villela. peito à procedência ou improcedência jurí-
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dica dessa alegação. Em síntese, assim foi helenística, com o fim da democracia e das
formulada a consulta: é o crime cometido cidades-estado, o estoicismo atribuiu ao in-
por Siegfried Ellwanger o da prática do ra- divíduo, que tinha perdido a qualidade de
cismo, nos termos da Constituição e da cor- cidadão para se converter em súdito das
respondente legislação infraconstitucional grandes monarquias, uma nova dignidade
que o tipificou, tal como decidiu o Tribunal de alcance universal. O mundo é uma única
de Justiça do Rio Grande do Sul e o Superior cidade – cosmo-polis – da qual todos partici-
Tribunal de Justiça confirmou quando de- pam como amigos e iguais. À comunidade
negou pedido de HC impetrado com os mes- universal do gênero humano corresponde
mos fundamentos? também um direito universal, fundado num
Como a vis directiva da tipificação do cri- patrimônio racional comum, daí derivando
me da prática do racismo é o art. 5º, XLII, um dos precedentes da teoria cristã da lex
integrante do Título II da Constituição, que aeterna e da lex naturalis, igualmente inspi-
tutela os direitos e garantias fundamentais, radora dos direitos humanos.
sua interpretação requer, por isso mesmo, O cristianismo associa o ensinamento
para o adequado entendimento do alcance judaico e o grego, ao aclimatar no mundo,
da matéria, breve consideração sobre o pro- através da evangelização, a idéia de que
cesso histórico de afirmação e subseqüente cada pessoa humana tem um valor absolu-
positivação dos direitos humanos. to no plano espiritual. Jesus, como ensina
2 – A tutela constitucional dos direitos e São Paulo, chamou a todos para a salvação
garantias fundamentais representa o reco- sem distinção entre judeus e gregos, escra-
nhecimento jurídico do valor da pessoa hu- vos e homens livres, homens e mulheres
mana, que é um dos princípios fundamen- (Epístola aos Romanos 10,12; Epístola aos Gála-
tais que a Constituição de 1988 proclama tas, 3,28). Neste sentido o ensinamento cris-
(art. 1º, III). O que cabe dizer sobre o processo tão é um dos elementos formadores da men-
histórico da afirmação desse valor, que está talidade que tornou possível o tema dos
na raiz da tutela contemplada no art. 5 º, XLII? direitos humanos.
O valor da pessoa humana está presen- 3 – O tema dos direitos humanos adqui-
te no livro do Gênesis (1,26), que afirma que riu expressão normativa na Inglaterra, com
“Deus criou o homem à sua imagem”. Ensi- a Magna Carta (1212), com a lei do Habeas
na assim o Velho Testamento que o homem Corpus (1679) e com o Bill of Rights (1689), e
assinala o ponto culminante da criação, ten- passou a ter um papel de grande relevância
do importância suprema na economia do na doutrina jurídica do jusnaturalismo ra-
Universo. Na elaboração judaica desse en- cionalista da Idade Moderna. Essa doutri-
sinamento isso se traduz numa visão da uni- na difundiu largamente, nos séculos XVII e
dade do gênero humano, apesar da diversi- XVIII, a tese do contrato social, como expli-
dade de nações, que se expressa nas Leis de cação da origem do Estado, da Sociedade e
Noé (Gênesis, 9, 6-17). Essas são um direito do Direito, fundamentado na vontade con-
comum a todos, pois constituem a aliança corde dos indivíduos. O contratualismo tem
de Deus com a humanidade. Representam uma inequívoca dimensão democrática ao
um conceito próximo do jus naturae et gentium, justificar o Estado e o Direito, não como uma
inspirador de ensinamentos do cristianismo emanação de cima para baixo do poder do
e posteriormente de Grócio e Selden, que são soberano ou de Deus, mas sim de baixo para
uma das fontes das Declarações de Direitos cima, através da vontade dos indivíduos,
das Revoluções Americana e Francesa. que estão na base da sociedade.
Na vertente grega da tradição voltada A explicação contratualista, tal como for-
para afirmar a dignidade da pessoa huma- mulada por exemplo por Locke, explicita
na, cabe mencionar o estoicismo. Na época que o Estado e o Direito são um meio termo,

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fruto da celebração de um contrato social, A exigência de estabilidade é a razão de ser
que compatibiliza a liberdade de estado da do art. 60, § 4º, inciso IV, da nossa Consti-
natureza, onde tudo é permitido, com as tuição, que, ao estipular uma cláusula pé-
exigências da vida em sociedade. Daí, como trea, confere aos Direitos e Garantias fun-
diz Locke, a importância capital de settled damentais, contemplados no Título II, a sua
standing laws e o seu argumento de que os dimensão hierárquica de permanência.
homens would not quit the freedom of the state Neste sentido, a primeira conclusão des-
of nature a não ser para preservar their lives, te parecer é a de afirmar que o art. 5º, XLII,
liberties and fortunes; and by stated rules of por estar inserido na sistemática constituci-
right and property to secure their peace and qui- onal dos direitos e garantias fundamentais,
et (John Locke, Of Civil Government, Second tutelado por cláusula pétrea, deve ser apre-
Treatise, Chicago, Gateway, Ed. 1964, Cap. ciado e interpretado com cuidados especi-
11, p. 114). ais. Com efeito, a vis directiva do constituin-
O contratualismo inspirou a tutela dos te foi a de dar estabilidade e permanência a
direitos humanos através da Constituição, um sistema integrado de valores da convi-
pois um dos ingredientes da passagem do vência coletiva, que tem como valor-fonte a
Estado absolutista para o Estado de Direito dignidade da pessoa humana – um valor
foi a preocupação em estabelecer limites ao proclamado pela Constituição de 1988, cujo
poder discricionário do soberano em rela- processo histórico de afirmação e positiva-
ção às pessoas que integram a sociedade. ção apresentei de maneira apenas indicati-
Daí a idéia-força de combinar a divisão de va, porém com o objetivo de dar o alcance
poderes – na lição clássica de Montesquieu hierárquico da matéria em questão (cf. Celso
– com uma declaração de direitos, ambas Lafer, A Reconstrução dos Direitos Humanos –
expressas num texto escrito: a constituição. um diálogo com o pensamento de Hannah Arendt,
É este o sentido do artigo 16 da Declaração São Paulo, Cia. Das Letras, 1988, cap. IV, e as
Francesa dos Direitos do Homem e do Cida- amplas referências bibliográficas indicadas).
dão, de 1789: “Toda sociedade na qual a
garantia dos direitos não é assegurada nem II – Positivação, generalização,
a separação dos poderes determinada, não internacionalização e especificação
tem constituição”.
como processos da afirmação dos
4 – No jusnaturalismo racionalista e se-
cularizado que inspirou o constitucionalis-
direitos humanos
mo, os direitos humanos eram vistos como
direitos inatos e tidos como verdade eviden- 5 – Na sua análise do processo de reco-
te. A sua positivação constitucional através nhecimento jurídico dos direitos humanos,
de Declarações, que se inicia no século XVIII, Norberto Bobbio, endossando a análise de
com as Revoluções Americana e Francesa, Gregório Peces Barba, indica as etapas da
tinha como objetivo conferir aos direitos nela positivação, da generalização, da interna-
contemplados uma dimensão permanente cionalização, a elas agregando a da especi-
e segura. Essa dimensão seria o dado de es- ficação (cf. Norberto Bobbio, A Era dos Direi-
tabilidade, que serviria de contraste e torna- tos, Rio de Janeiro, Campus, 1992, pp.49-65;
va aceitável a variabilidade, no tempo e no Gregório Peces Barba e colaboradores, Cur-
espaço, do Direito Positivo dependente da so de Derechos Fundamentales Teoria General,
vontade do Legislador, em contextos locali- Madrid, Universidad Carlos III de Madrid,
zados e variáveis. Essa variabilidade é ex- Boletín Oficial Del Estado, 1995, pp. 154-
plicável, pois o Direito no mundo moderno 202).
passou a ter a dinâmica de um instrumento A etapa de positivação se inicia com as
de gestão de uma sociedade em mudança. Declarações dos Direitos e sua irradiação

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nos textos constitucionais dos diversos pa- igualdade, não discriminação e fraternida-
íses – (cf. Alphonse Aulard e Boris Mirkine- de, que Cassin considerava os princípios
Guetzevich, Lés Déclarations des Droits de embasadores do pórtico do templo dos Di-
l’homme, Paris, Payot, 1929), em função do reitos Humanos, são a expressão do proces-
que foi acima apontado no item 4 deste pa- so de generalização (Cf. Marc Agi, René Cas-
recer. A etapa da positivação é indispensá- sin, Père de la Declaration Universelle des droits
vel, pois sem ela os direitos humanos não se de l’homme, Mesnil – Sur - L’Estrée, Perrin,
completam. Seriam valores e ideais que não 1998, p.232).
se realizariam plenamente. Assim como os 7 – A Constituição de 1988 explicita de
valores estéticos se realizam no quadro, na maneira inequívoca a afirmação dos princí-
poesia ou numa escultura, assim também o pios inerentes ao processo de generalização,
valor ético dos direitos humanos se realiza, com os seus componentes de igualdade e
como aponta Gregório Peces Barba, medi- não discriminação que acima discuti. Essa
ante sua incorporação ao Direito Positivo explicitação, como aponta José Afonso da
(Gregório Peces Barba, op. cit. p. 160). Silva, é veemente. Ela está presente não ape-
6 – A Declaração de Direitos da Virgínia nas no art. 5º, caput: “Todos são iguais pe-
e a Declaração Francesa de 1789, vincula- rante a lei, sem distinção de qualquer natu-
das à Revolução Americana e à Revolução reza”, mas se vê reforçada, como realça o
Francesa, que dão início ao grande proces- mesmo autor, pela relevância constitucio-
so de positivação, proclamam nas suas aber- nal de não discriminação consagrada no art.
turas, nos seus respectivos artigos iniciais, 3º, IV, que estabelece, entre os objetivos fun-
a dimensão igualitária dos direitos humanos damentais da República Federativa do Bra-
ao afirmar que todos os seres humanos são sil, o de “promover o bem de todos, sem
livres e iguais. É essa dimensão igualitária quaisquer preconceitos de origem, raça,
que caracteriza o processo da generalização. sexo, cor, idade e quaisquer outras formas
Esse processo de generalização adquire de discriminação” (cf. José Afonso da Silva,
dimensão internacional com a Declaração Curso de Direito Constitucional Positivo, 22a
Universal dos Direitos Humanos do Homem ed., São Paulo, Malheiros, 2003, p.222).
de 1948, que afirma no seu artigo 1 º: “Todos 8 – A especificação, observa Bobbio, é
os homens nascem livres e iguais em digni- uma outra etapa do processo de afirmação
dade e direitos. São dotados de razão e cons- histórica dos direitos humanos. Está volta-
ciência e devem agir em relação uns aos ou- da para determinar de maneira mais con-
tros com espírito de fraternidade”. creta – e não de forma abstrata, como no pro-
René Cassin, um dos grandes inspira- cesso de generalização – os destinatários da
dores e redatores da Declaração Universal, tutela jurídica dos direitos e garantias indi-
entendia que o seu artigo 1º, assim como o viduais. É assim que se completa a idéia dos
seu artigo 2º, constituem o pórtico do tem- destinatários genéricos – os seres humanos,
plo dos direitos humanos. Com efeito, o ar- os cidadãos – com a especificação do ser
tigo 2º é o corolário lógico do artigo anterior humano situado – como, por exemplo, a cri-
ao afirmar o princípio da não discrimina- ança, a mulher, o deficiente mental, os ido-
ção: “Art. 2º–1. Todo homem tem capacida- sos. Gregório Peces Barba, na sua elabora-
de para gozar os direitos e liberdades esta- ção, a partir de Bobbio, da etapa de especifi-
belecidos nesta Declaração, sem distinção cação, diz que se trata de um processo de
de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, concreção histórica que não é apenas uma
língua, religião, opinião ou de outra nature- elaboração do já consagrado pelo processo
za, origem nacional ou social, riqueza, nas- de generalização. É uma contribuição que
cimento ou qualquer outra condição”. Em agrega novos elementos ao conteúdo dos
síntese, os princípios gerais da liberdade, direitos humanos, que enriquecem e com-

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pletam o valor da dignidade da pessoa hu- O rigor da tutela penal constitucional-
mana, como o valor-fonte da sua positiva- mente previsto para a prática do racismo
ção (cf. Norberto Bobbio, op.cit., pp. 62-63; demonstra a importância que o constituinte
Gregório Peces Barba, op.cit., pp. 180-182). atribuiu à sua repressão, cabendo igualmen-
A Constituição de 1988 exprime de ma- te mencionar que a preocupação do consti-
neira muito nítida o impulso do processo tuinte com o tema também se expressa no
de especificação. É o que se depreende, por art. 4º, VIII, que estabeleceu como um dos
exemplo, da substanciosa análise que fez princípios que regem as relações internaci-
José Afonso da Silva, do Direito de Igualda- onais do Brasil o repúdio tanto do racismo
de, no seu Curso de Direito Constitucional Po- quanto do terrorismo – dois delitos para os
sitivo. Com efeito, ao princípio genérico da quais a Constituição prevê tutela penal ri-
não discriminação – a igualdade perante a gorosa.
lei sem distinção de qualquer natureza –, con- Assim, a segunda conclusão deste pare-
sagrado no caput do artigo 5º, o articulado cer é a de que o art. 5º, LXII, da Constituição
constitucional positiva especificações do ser exprime a etapa de especificação do processo
humano. Daí a afirmação da igualdade sem histórico de positivação dos direitos huma-
distinção de sexo; a igualdade sem distin- nos e a de que, nesse processo, o constituinte
ção de origem, cor e raça; a igualdade sem atribuiu à prática do racismo uma excepcio-
distinção de idade; a igualdade sem distin- nal gravidade, daí advindo o extraordinário
ção de trabalho; a igualdade sem distinção rigor da tutela penal nele contemplada.
de credo religioso; a igualdade sem distin-
ção de convicção filosófica, examinados por III – Interpretação do art. 5º, XLII, da
José Afonso da Silva (op.cit., pp.222-228). Constituição – critérios
O art. 5º, LXII, da Constituição de 1988 é
uma faceta constitucionalmente inovadora 8 – A interpretação é inerente à vida do
em nosso País do processo de especificação direito e os seus métodos um assunto muito
que tem como nota própria atribuir à práti- conhecido e debatido. Entendo, no entanto,
ca do racismo uma tutela penal. Essa tutela útil apresentar algumas observações sobre
penal é mais rigorosa do que a prevista no peculiaridades que cercam a interpretação
inciso anterior do mesmo artigo. Com efeito, dos direitos e garantias fundamentais. In-
o inciso XLI determina que “a lei punirá terpretar o art. 5º, LXII, significa dotar de
qualquer discriminação atentatória dos di- significado o conteúdo jurídico nele previs-
reitos e liberdades fundamentais”; já o inci- to. A particularidade da operação de inter-
so XLII estabelece que “a prática do racismo pretar os direitos humanos deriva, como
constitui crime inafiançável e imprescrití- observa Gregório Peces Barba, tanto da sua
vel, sujeito à pena de reclusão nos termos relevância hierárquica no sistema constitu-
da lei”. Essa tutela penal tem, portanto, ca- cional quanto do fato que numa democra-
racterísticas próprias que não são idênticas cia, que se baseia na perspectiva ex parte
a outras igualmente rigorosas presentes no populi, a ação de interpretar os direitos e
Título II, como a do art. 5º, XLIII (prática de garantias fundamentais deve partir da com-
tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e preensão de que os direitos são os legitima-
drogas afins, o terrorismo e os definidos dores do sistema. Essa visão de Peces Barba
como crimes hediondos), mas que coincidem se coaduna com a Constituição de 1988 à
com a do art. 5 º, LXIV, que também constitui luz da cláusula pétrea que os cerca (art. 60,
como “crime inafiançável e imprescritível a § 4º – inciso IV); dos objetivos da República
ação de grupos armados, civis ou militares, Federativa do Brasil entre os quais está o de
contra a ordem constitucional e o Estado de promover o bem de todos sem quaisquer dis-
Direito”. criminações (art. 3º, IV); do fundamento da

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dignidade humana afirmado no art. 1º, III, eles está o da prevalência dos direitos hu-
todos já referidos no correr deste parecer. É manos (art. 4º, II). Devem ser aplicados le-
por esse motivo, como realça Peces Barba, vando-se em conta suas implicações no pla-
que na interpretação dos direitos humanos no interno, não só por uma questão de coe-
deve-se favorecer siempre y em todo caso, de la rência, mas pelo fato de que nesta era de
mejor forma posible el contenido del derecho globalização vem-se diluindo a diferença
(Gregório Peces Barba, op. cit., p. 577). entre o “interno” e o “externo”. No caso em
Registro que foi dessa maneira que pro- questão, que envolvia a cooperação inter-
cedi na interpretação, no âmbito do Execu- nacional em matéria de combate ao terroris-
tivo, do princípio constitucional do repú- mo, isso era evidente, pois o tema passava
dio ao terrorismo e ao racismo (art. 4º, VIII), pelas cidades brasileiras de Chuí e Foz do
que é um dos princípios que regem as rela- Iguaçu. Daí o vínculo entre o art. 4º, VIII e o
ções internacionais do nosso País. Com efei- art. 5º, XLII, e a ênfase atribuída ao risco da
to, como Ministro de Estado das Relações prática discriminatória do racismo e das te-
Exteriores, e com a responsabilidade jurídi- orias e preconceitos que a sustentam em
ca que essa condição me atribuía, afirmei relação a palestinos e muçulmanos e não,
que a iniciativa brasileira de invocar o Tra- realço, em raça, palavra que não está conti-
tado Interamericano de Assistência Recípro- da nem no art. 4º, VIII, nem no art. 5º, XLII.
ca, em função dos ataques terroristas aos (Sobre princípios constitucionais a reger as
EUA em 11 de setembro de 2001, significa- relações internacionais, cf. Antonio Ramiro
va aplicar o art. 4º, VIII – repúdio ao terro- Brotons, La acción exterior del Estado, Madrid,
rismo – de maneira congruente com o senti- Tecnos, 1984, pp.92-115; Pedro Dallari, Cons-
do, no plano interno, do art. 5º, LXIII. Da tituição e Relações Exteriores, São Paulo, Sa-
mesma maneira, afirmei que o trato do tema raiva, 1994, que também analisa o repúdio
da segurança e da cooperação internacio- ao terrorismo e ao racismo, vinculando-os
nal no combate ao terrorismo, na tríplice ao art. 5º, XLII e XLIII, ver pp. 175-178. No
fronteira da Argentina, do Paraguai e do meu prefácio ao livro de Pedro Dallari, exem-
Brasil, que inclui as cidades de Chuí e Foz plifiquei várias situações de aplicação a situ-
do Iguaçu, nas quais vivem numerosas pes- ações concretas dos princípios constitucio-
soas de origem árabe, palestinos e fiéis mu- nais que regem as relações internacionais.)
çulmanos, exigia uma atitude do Executivo, Ao conferir o maior conteúdo possível
inequivocamente firme na oposição ao pre- ao art. 5º, XLII, ou seja, à prática do racismo,
conceito e à discriminação. Fundamentei interpretei-o em consonância com a visão
essa posição tanto no princípio do repúdio internacional da matéria. Lembro, neste
ao racismo no plano internacional (art. 4º, sentido, a Resolução 623 da Assembléia
VIII) quanto na vis directiva constitucional, Geral da ONU de dezembro de 1998 que, no
para o plano interno, de uma sociedade plu- seu item 17, insta todos os governos a
ralista, voltada para afirmar o bem de todos cooperar com o relator especial da Comissão
(art. 3º, IV). Neste sentido, dei, na linha de dos Direitos Humanos incumbido de
Peces Barba, o maior conteúdo possível ao examinar as formas contemporâneas de
art. 5º, XLII (cf. Celso Lafer, Mudam-se os Tem- racismo, discriminação racial, xenofobia e
pos – Diplomacia Brasileira - 2001-2002, Bra- outras formas correlatas de intolerância.
sília, Funag-Ipri, 2002, pp. 53-69). Essa colaboração tem como objeto, nos
Passo a explicitar a minha linha de raci- termos do item 17, o exame de incidents of
ocínio. Os princípios constitucionais que contemporary forms of racism and racial
regem as relações internacionais estabele- discrimination, inter-alia, against blacks, Arabs
cem padrões de comportamento, estímulos and Muslins, xenophobia, Negrophobia, anti-
e limites à conduta externa do Brasil. Entre semitism and related intolerance.

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O item 17 da Resolução 623/98 da As- manos e o Brasil, 2 a ed., Brasília, Editora Uni-
sembléia Geral, que sustenta minha inter- versidade de Brasília, 2000, p. 26 e passim).
pretação sobre a prática do racismo atingin- Como adiante se verá, para o objeto des-
do árabes e muçulmanos, refere-se igual- te parecer, voltado para discutir o conteúdo
mente ao anti-semitismo. Daí a relevância do crime de racismo suscitado pelo HC
de se examinar qual é a contribuição que o 82424-2, não será necessário analisar as
Direito Internacional Público pode oferecer múltiplas dimensões e as controvérsias ju-
como critério de interpretação do art. 5 º, XLII, rídicas em torno do alcance dessa interação
no caso ora em apreciação, pelo STF. entre o Direito Internacional e Direito Inter-
9 – A Constituição de 1988 é explicita- no no sistema da Constituição de 1988. É
mente receptiva ao Direito Internacional relevante, no entanto, apontar que o Direito
Público em matéria de direitos humanos não Internacional dos Direitos Humanos pode
só pelo princípio de sua prevalência nas re- contribuir para a interpretação e o reforço
lações internacionais (art. 4º, II), como em da imperatividade dos direitos constitucio-
especial pelo § 2º do art. 5º, que estabelece: nalmente garantidos.
“Os direitos e garantias expressos nesta Esse é um entendimento que o STF reco-
Constituição não excluem outros decorren- nheceu ao julgar o HC 7384, em 23/6/1994,
tes do regime e dos princípios por ela adota- em fundamental acórdão relatado pelo emi-
dos, ou dos tratados internacionais em que nente Ministro Celso de Mello e substanti-
a República Federativa do Brasil seja par- vamente analisado por Flávia Piovesan. Na
te”. Se a referência ao caráter não exaustivo discussão sobre a existência jurídica do cri-
ou supressivo da enumeração de direitos me de tortura contra crianças e adolescen-
tem antecedentes em nosso direito constitu- tes, tipificado na época pelo art. 233 da Lei
cional, é novidade a menção explícita aos nº 8.069/90 com fundamento no art. 5º,
tratados internacionais de que o Brasil é XLIII, da Constituição, o Ministro Celso de
parte, como aponta Antonio Augusto Can- Mello ressaltou: “o tipo penal em causa é
çado Trindade. Ela assinala, constitucional- passível de complementação, à semelhança
mente, a identidade de objetivos do direito do que ocorre com tipos penais abertos, bas-
internacional e do direito público interno tando, para esse efeito, que o aplicador da
quanto à proteção da pessoa humana (cf. norma proceda à integração do preceito pri-
Antonio Augusto Cançado Trindade, A Pro- mário incriminador mediante a utilização
teção Internacional dos Direitos Humanos – Fun- dos meios postos à sua disposição. Cumpre
damentos Jurídicos e Instrumentos Básicos, São destacar, pois, dentro dessa perspectiva, a
Paulo, Saraiva, 1991, p. 635). É essa identi- existência de diversos atos internacionais
dade que leva Cançado Trindade a afirmar que, subscritos pelo Estado brasileiro, se
que, longe de operarem de modo estanque acham formalmente incorporados ao nosso
ou compartamentalizado, o Direito Interna- sistema jurídico. O Brasil, consciente da ne-
cional e o Direito Interno, por força da Consti- cessidade de prevenir e reprimir os atos ca-
tuição de 1988, passaram efetivamente a inte- racterizadores de tortura, subscreveu, no
ragir em matéria de direitos humanos, caben- plano externo, importantes documentos in-
do lembrar, como ele documenta em livro re- ternacionais de que destaco, por sua inques-
cente, que o Brasil participou do processo de tionável importância, a Convenção contra a
elaboração normativa do direito internacio- Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cru-
nal da pessoa humana, tanto no plano glo- éis, Desumanas ou Degradantes, adotada
bal, no âmbito das Nações Unidas, quanto pela Assembléia Geral das Nações Unidas
no plano regional, no âmbito do sistema ame- em 1984, a Convenção Interamericana so-
ricano (cf. Antonio Augusto Cançado Trin- bre Direitos Humanos (Pacto de São José da
dade, A Proteção Internacional dos direitos hu- Costa Rica) adotada no âmbito da OEA em

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1969. Esses atos internacionais já se acham sim o de incitamento contra o judaísmo.
incorporados ao plano do direito positivo Busca, assim, ilidir a imprescritibilidade do
interno (Decreto nº 40/91, Decreto nº delito a que seu paciente foi condenado.
98.386/89 e Decreto 678/92) e constituem, O pedido de HC perante o Superior Tri-
sob esse aspecto, instrumentos normativos bunal de Justiça tinha como objeto o subs-
que, podendo e devendo ser considerados tancioso acórdão da 3 a Câmara Criminal do
pelas autoridades nacionais, fornecem sub- Tribunal de Justiça do Estado do Rio Gran-
sídios relevantes para a adequada compre- de do Sul que condenou Sigfried Ellwanger
ensão da noção típica do crime de tortura, ao imprescritível crime de racismo, com
ainda que em aplicação limitada, no que se amparo no art. 20 da Lei nº 7.716/89, com a
refere ao objeto de sua incriminação, “ape- nova redação dada pela Lei nº 8.081/90,
nas às crianças e adolescentes” (cf. Flávia tendo o desembargador José Eugenio Tedes-
Piovesan, Direitos Humanos e o Direito Cons- co sublinhado no seu voto “a supremacia
titucional Internacional, (5 a ed., revista, am- valorativa do dever de não discriminar” con-
pliada e atualizada), São Paulo, Max Limo- sagrada na Constituição de 1988.
nad, 2002, pp.111-115 e passim; cf. igual- O Superior Tribunal de Justiça, em de-
mente Valério de Oliveira Mazzuoli, Direi- cisão majoritária da sua 5a Turma presi-
tos Humanos, Constituição e os Tratados Inter- dida pelo Ministro Felix Fischer, rejeitou
nacionais, São Paulo, Editora Juarez de Oli- as alegações do impetrante, tendo sido
veira, 2001, cap. VII). relator do feito o Ministro Gilson Dipp. Este,
Em síntese, e esta é a terceira conclusão no seu preciso voto, deu, no meu entender
deste parecer, o critério da interpretação do com toda razão, ênfase na interpretação do
art. 5º, LXII, deve favorecer de maneira am- art. 5º, LXII, ao artigo 20 da Lei 8.081/90 que
pla e não restritiva o conteúdo do direito foi acréscimo à Lei nº 7.716 de 5 de janeiro
nele contemplado, dada a relevância que a de 1989. Diz o art. 20, que trata dos crimes
Constituição atribui aos direitos e garanti- e penas aplicáveis aos atos discriminató-
as fundamentais, entre as quais se inclui a rios ou a preconceito de raça, cor, religião,
rigorosa inaceitabilidade da prática do ra- etnia ou procedência nacional, praticados
cismo. Nessa interpretação, o Direito Inter- pelos meios de comunicação ou por pu-
no e o Direito Internacional interagem e não blicações de qualquer natureza:
são estanques com vistas a reforçar a impe- “Praticar, induzir ou incitar, pelos mei-
ratividade do direito constitucionalmente os de comunicação social ou por publica-
garantido, voltado para impedir a prática ções de qualquer natureza, a discriminação
do racismo. ou preconceito de raça, religião, etnia ou pro-
cedência nacional.
IV – Interpretação do art. 5º, LXII, da Penas: reclusão de 2 (dois) a 5 (cinco)
Constituição – o HC 82424-2 e o risco anos”.
Entendeu o Ministro Gilson Dipp que o
do esvaziamento do conteúdo jurídico
crime praticado por Siegfried Ellwanger é
do preceito constitucional daqueles classificados na categoria de mera
10 – O impetrante alega no HC 82424-2, conduta, ou seja, não se exige a realização
perante o Supremo Tribunal Federal, como de resultado material para a sua configura-
antes alegara perante o Superior Tribunal ção, e que não cabe fazer a diferenciação en-
de Justiça, que, não sendo os judeus uma tre as figuras de prática, incitação ou de in-
raça, o crime perpretado por seu paciente duzimento “para fins de configuração de
ao editar e vender livros que fazem a apolo- racismo, eis que todo aquele que pratica uma
gia de idéias preconceituosas contra os ju- destas três condutas discriminatórias ou
deus não foi o de prática do racismo, mas preconceituosas é autor do delito de racis-

60 Revista de Informação Legislativa


mo, inserindo-se, em princípio, no âmbito to da discriminação, condenada pelo art. 5º,
da tipicidade direta”. LXII, da Constituição de 1988. É por esta ra-
O Ministro Jorge Scartezzini, no seu im- zão que o impetrante comete uma falácia
portante voto, no qual acompanha o Minis- argumentativa ao afirmar que o crime de
tro Relator, trouxe à colação a doutrina bra- Siegfried Ellwanger não se subsume como
sileira que comenta o art. 5º, LXII, da Cons- prática de racismo nos termos do art. 20
tituição, ao examinar os pontos de vista ex- da Lei 8.081/90, uma vez que os judeus
postos por Manoel Gonçalves Ferreira Fi- não são uma raça e por isso mesmo o de-
lho, Celso Ribeiro Bastos e José Cretella Jr. lito cometido pelo seu paciente é o do in-
Agrega o Ministro Jorge Scartezzini elemen- citamento contra o judaísmo e não o da
tos adicionais no seu voto, ressaltando que a prática do racismo.
Constituição de 1988, ao dispor sobre o tema No seu arrazoado, o impetrante invo-
da prática de racismo, “pretendeu que tal prá- ca publicação da UNESCO que afirma que
tica fosse abolida e reprimida em todas as suas os judeus não formam uma raça. Omite,
formas e não só pela tez da pele”. no entanto, que a UNESCO foi uma das
O Ministério Público Federal, em pare- primeiras entre as organizações interna-
cer de autoria de Cláudio Lemos Fonteles, cionais do pós-Segunda Guerra Mundi-
Subprocurador-Geral da República, opinou al, em função dos próprios termos de sua
pelo indeferimento do pedido de HC pelo ata de constituição, que se dedicaram a
Supremo Tribunal Federal, afirmando que é demonstrar e condenar o conteúdo racis-
“injurídico o argumento que, pelo texto cons- ta da ideologia nazista (cf., por exemplo,
titucional, reduz a prática do racismo à Juan Comas, Kenneth I. Little, Harry I.
raça”. Em seu parecer, Cláudio Lemos Fon- Shapiro, Michel Leiris, Claude Lévi-
teles se baseia na Lei 8.071/90 e realça que Strauss, Raça e Ciência I, São Paulo, Perspec-
hoje, pela Lei 9.458/97, ex-vi do novo pará- tiva, 1970, e muito especialmente, para os pro-
grafo 2º do artigo 20, o meio – “valendo-se pósitos deste parecer, a apresentação, pp. 7-
dos meios de comunicação social de qual- 9). É essa ideologia que Siegfried Ellwanger
quer natureza” – passou a constituir-se em vem-se dedicando a divulgar por publica-
forma qualificada, com apenação autônoma ções, ao arrepio do art. 20 da Lei 8.081/90.
mais grave do crime da prática do racismo. Foi por se preocupar desde suas origens
Conclui que a legislação infraconstitucio- com a prática do racismo que a UNESCO
nal, ao definir a prática do racismo, tipifi- adotou e proclamou, em 27 de novembro de
cou várias figuras penais e que esses crimes 1978, na vigésima sessão de sua conferên-
são todos imprescritíveis. Afirma assim cia geral, uma importantíssima Declaração
Cláudio Lemos Fonteles que não há extra- sobre Raça e Preconceito Racial. Essa De-
vasamento na interpretação do texto consti- claração, igualmente omitida no arrazoado
tucional quando se conclui que Siegfried do impetrante, contesta frontalmente a sua
Ellwanger, ao infringir o art. 20 da Lei nº argumentação.
8.081/90, cometeu o crime de prática do ra- Diz o art. 1 – 1 da Declaração da UNES-
cismo. CO que todos os seres humanos pertencem
11 – O crime de prática do racismo, como a uma única espécie, o que não exclui, como
concluiu o acórdão do Superior Tribunal de afirma o inciso II do artigo 1, o direito à di-
Justiça, confirmando o entendimento do Tri- versidade de indivíduos e grupos. No seu
bunal de Justiça do Rio Grande do Sul, não se artigo 2 – 1, a Declaração afirma que quais-
baseia no termo “raça”, que tem conotação quer teorias que contemplem a reivindica-
pseudocientífica – como adiante se verá com ção de que grupos raciais ou étnicos são ine-
o devido rigor – mas sim nas teorias e concep- rentemente superiores ou inferiores não têm
ções que atribuem ao termo raça o fundamen- fundamento científico e são contrárias aos

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princípios morais e éticos da humanidade. political tensions between peoples; it is contrary
Os textos acima referidos, na íntegra, são os to the fundamental principles of international
seguintes: law and, consequently, seriously disturbs
“Art. 1 – 1 All human beings belong to a international peace and security.”
single species and are descended from a common Afirma igualmente a Declaração, no seu
stock. They are equal in dignity and rights and art. 5 – 3, ao falar da cultura e dos meios de
all form an integral part of humanity.” comunicação, que a erradicação do racis-
“Art. 1 – 2 All individual and groups have mo, da discriminação racial e do preconcei-
the right to be different, to consider themselves to racial requer “refraining from presenting a
as different and to be regarded as such. However, stereotyped, partial, unilateral or tendentious
the diversity of life styles and the right to be pictures of individuals and of various human
different may not, in any circumstances, serve as groups.”
a pretext for racial prejudice; they may not justify {(O texto completo da Declaração se en-
either in law or in fact any discriminatory contra na publicação da ONU, Human Ri-
practice whatsoever, nor provide a ground for ghts. A Compilation of International Instru-
the policy of ‘apartheid’, which is the extreme ments, vol. 1 (First Part) Universal Instru-
form of racism.” ments, United Nations, New York and Ge-
“Art. 2 – 1 Any theory which involves the neva, 1994 (ST/HR/1/Rev. 5) vol. 1, Part I,
claim that racial or ethnic groups are inherently pp. 133-134)}.
superior or inferior, thus implying that some Como se vê, a UNESCO de maneira al-
would be entitled to dominate or eliminate others, guma abona a tese do impetrante, pois sub-
presumed to be inferior, or which bases value sume inequivocamente o crime de Siegfried
judgements on racial differentiation, has no Ellwanger na tipicidade da prática do ra-
scientific foundation and is contrary to the moral cismo.
and ethical principles of humanity.” O impetrante, no seu arrazoado, traz à
Prossegue a Declaração, no art. 2 – 2, colação texto da antropóloga Lilia Moritz
para qualificar o que é racismo e substanti- Schwarcz para abonar a tese de que o dis-
vamente realçar que a prática do racismo curso racista no Brasil sempre foi dirigido
reside nas ideologias racistas, nas atitudes contra o negro. Ora, essa mesma antropólo-
preconceituosas, no comportamento discri- ga escreveu livro recente sobre Racismo no
minatório que levam à desigualdade racial, Brasil (São Paulo, Publifolha, 2001). Nele
e não reside no conceito de “raça” que o art. afirma: “Raça é, assim, uma construção his-
1 – 1 da Declaração nega, ao afirmar a uni- tórica e social, matéria-prima para o discur-
dade da espécie humana. Diz o art. 2 – 2, na so das nacionalidades”; ou então, confor-
íntegra, o seguinte: me Thomas Sowell, “antes de um conceito
“Art. 2 – 2 Racism includes racist ideologies, biológico é uma realidade social, uma das
prejudiced attitudes, discriminatory behaviours, formas de identificar pessoas em nossas
structural arrangements and institutionalized próprias cabeças” (p. 35). Afirma, igualmen-
practices resulting in racial inequality as well as te, lastreada em Louis Dumont, conhecido
the fallacious notion that discriminatory estudioso das castas, que “o racismo repre-
relations between groups are morally and senta a hierarquia reinventada em socieda-
scientifically justifiable; it is reflected in des supostamente igualitárias” e que o ra-
discriminatory provisions in legislation or cismo é uma “naturalização das diferenças”,
regulations and discriminatory practices as well “uma tentativa de fazer a diversidade ser
as in anti-social beliefs and acts; it hinders the mais do que é” (p. 81). Por isso, ao apontar
development of its victims, perverts those who que o racismo é um tema da agenda global e
practise it, divides nations internally, impedes ao discutir o racismo brasileiro, entende e
international co-operation and gives rise to afirma que, ao se lidar com ódios históricos,

62 Revista de Informação Legislativa


nomeados a partir da raça, da etnia ou da Lindgren Alves, que integrou a nossa dele-
origem: “O primeiro procedimento a desta- gação e é membro do Comitê para a Elimi-
car, ainda uma vez, o caráter pseudocientí- nação da Discriminação Racial da ONU,
fico do termo ‘raça’, mesmo porque seu sen- relata um caso paradigmático do risco aci-
tido é diverso de lugar para lugar e suas ma apontado, ocorrido na Conferência.
determinações de cunho biológico têm efei- Em Durban, a Índia não aceitava que se
to apenas relativo e estatístico. Não há, por- incluíssem os párias entre as vítimas do ra-
tanto, como imputar à natureza o que é da cismo, alegando que as castas não decorrem
ordem da cultura: a humanidade é una, as da raça, alegação que a Conferência eviden-
culturas é que são plurais” (p. 81). temente não acolheu. Lindgren Alves, que,
A antropóloga citada pelo impetrante, além de suas funções diplomáticas, é um scho-
portanto, entende que a prática do racismo lar no campo dos Direitos Humanas, extrai
provém inequivocamente das teorias que as conseqüências desse tipo de alegação.
reinventam a desigualdade através do con- Observa ele que “todos de boa-fé sabem
ceito pseudocientífico de raças e, desse que ‘raça’ é sobretudo uma construção soci-
modo, contestam os princípios da igualda- al, negativa ou positiva, conforme o objetivo
de e da não discriminação. Esses são os pon- que se lhe queira dar”. Assim, “o problema
tos de partida do processo de especificação não está na existência ou não de raças, mas
que levou, como foi exposto, ao art. 5º, LXII, no sentido que se dá ao termo. Se atribuir-
da Constituição de 1988. Ao tema alegado mos caracteres inerentes, naturais e inesca-
pelo impetrante, de que o racismo no Brasil páveis, às diferenças físicas, psíquicas, lin-
se voltou apenas contra o negro, retornarei güísticas ou etno-religiosas de qualquer
mais adiante neste parecer, para mostrar que população, estaremos sendo racistas, qua-
se trata de uma apreciação incompleta da se sempre para o mal”. Destarte, a legítima
nossa História. O que importa realçar neste não aceitação da noção de raça, que a De-
momento é que nem a UNESCO nem a lite- claração da UNESCO de 1978 afirma, como
ratura antropológica, tal como falaciosamen- foi visto, pode arrastar a um absurdo na con-
te argumentado no HC 82424-2, permitem denação e repressão da prática do racismo.
concluir que o crime praticado por Siegfried “Por uma questão de lógica”, aponta Lind-
Ellwanger não é o da prática do racismo e gren Alves comentando o que ocorreu em
enquanto tal imprescritível de acordo com o Durban, “a inexistência de raças poderia
Direito brasileiro. representar inexistência de racismo, justifi-
12 - As implicações de reduzir o crime cando uma inação, que ninguém ousaria,
da prática do racismo ao conceito de raça na Conferência, suscitar como posição” (J.
são graves e vão muito além do objeto do A. Lindgren Alves, A Conferência de Dur-
HC 82424-2, ora em exame pelo Supremo ban contra o racismo e a responsabilidade
Tribunal Federal. Exemplifico. de todos, Revista Brasileira de Política Inter-
Acompanhei de perto em função das nacional, ano 45, nº 2, 2002, pp. 206 e 208).
minhas responsabilidades na época, como O argumento de Lindgren Alves é um
Ministro das Relações Exteriores, a Confe- argumento, contrario sensu, válido para o
rência da ONU de Durban em 2001 contra o Direito Penal no qual o argumento per ana-
racismo, muito consciente dos princípios logiam é vedado. Tem um estatuto axiológi-
constitucionais que regem as relações inter- co que depende de uma avaliação pelo in-
nacionais que me cabia seguir – no caso o térprete, conforme um juízo de valor. No
art. 4º, II e VIII (prevalência dos direitos hu- caso em questão – o HC 182424-2 –, o valor
manos e repúdio ao racismo). Estes foram o positivado é a exigência constitucional de
ponto de partida das instruções dadas à reprimir penalmente a prática do racismo
delegação brasileira. O Embaixador J. A. (sobre o argumento contrario sensu, cf. Tércio

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Sampaio Ferraz Jr., Introdução ao Estudo do como também os negros, os indígenas, os
Direito, 2a ed., São Paulo, Atlas, 1994, pp. ciganos ou quaisquer outros grupos, religi-
337-339). O argumento contrario sensu é, as- ões ou nacionalidades não formam uma
sim, aplicável na exegese do art. 5º, LXII, da raça, o que não exclui, ressalvo, o direito à
Constituição, e do art. 20 da Lei 7.716/89, diversidade. No entanto, todos são passí-
com a redação dada pela Lei nº 8.081/90. veis de sofrer a prática do racismo. É essa
Com efeito, na inexistência de raça – o que o prática que o Direito brasileiro condena e
seqüenciamento do genoma humano con- reprime e foi por essas bem fundamentadas
firma do ponto de vista biológico –, inter- razões que Siegfried Ellwanger foi conde-
pretar a prática do racismo, a partir da raça, nado pelo Tribunal de Justiça do Rio Gran-
conduz, no limite, ao esvaziamento com- de do Sul e que o Superior Tribunal de Justi-
pleto do que pretendeu a Constituição de ça não acolheu o pedido de HC. Aceitar os
1988 e a correspondente legislação infra- argumentos do impetrante – que, além de
constitucional. Significa, em poucas pa- falaciosos, são incompletos, inclusive na
lavras, em lugar do que recomenda Peces perspectiva da UNESCO e de autores que trou-
Barba, na interpretação dos direitos hu- xe à colação no seu arrazoado – significa, res-
manos, ou seja, favorecer sempre, em todo salto uma vez mais, reduzir o conteúdo jurí-
caso, da melhor forma possível o conteú- dico da Constituição e da lei, o que não é acei-
do do Direito, fazer exatamente o inverso, tável na interpretação dos direitos e garanti-
isto é, contribuir para o seu progressivo as individuais. Significa, também, no limite,
esvaziamento e, no seu limite, para o pró- por força do argumento contrario sensu, que
prio desaparecimento do bem tutelado cabe em matéria penal, o risco de esvaziar o
pelo Direito brasileiro. Em outras pala- bem jurídico tutelado pelo Direito brasileiro.
vras, a conseqüência, numa situação-li- É à confirmação desta quarta e decisiva con-
mite, é converter o crime da prática do ra- clusão, a partir de outros ângulos, que me de-
cismo em crime impossível pela inexistên- dicarei na seqüência deste parecer.
cia do objeto (sobre o crime impossível, cf.
Miguel Reale Jr., Instituições de Direito Pe- V – Os argumentos apresentados no
nal - Parte Geral, vol. I, Rio de Janeiro, Fo- HC 82424-2 e os ensinamentos de
rense, 2002, pp. 305-311). decisões da Suprema Corte dos EUA
Neste sentido é essa a quarta conclusão e da House of Lords da Inglaterra
deste parecer: discutir o crime da prática do
racismo a partir do termo raça nos termos
dos argumentos apresentados no HC 82424- 13 - Numa matéria com a relevância des-
2 em favor de Siegfried Ellwanger é uma ta que está sendo examinada pelo Supremo
maneira de reduzir e, no limite, esvaziar Tribunal Federal, sobre a qual versa este
completamente o conteúdo jurídico do parecer, é sempre útil testar a linha de raci-
preceito constitucional consagrado pelo ocínio que vem sendo desenvolvido, medi-
art. 5º, LXII, devidamente disciplinado ante referências a casos decididos por Tribu-
pela legislação infraconstitucional, con- nais Superiores de outros países, que têm re-
vertendo-o em crime impossível. O art. 5º, levantes pontos de contato com as questões
LXII, não menciona raça e o conteúdo jurí- suscitadas pelo HC 82424-2. Vou, assim, to-
dico do crime da prática do racismo reside mar a iniciativa de apresentar um caso deci-
nas teorias e preconceitos que discriminam dido pela Suprema Corte dos EUA e a seguir
grupos e pessoas a eles atribuindo caracte- outro, pela Câmara dos Lordes da Inglaterra.
rísticas de uma “raça”. Só existe uma “raça” 14 - O caso examinado pela Suprema
– a espécie humana – e, portanto, do ponto Corte dos EUA e decidido em 18 de maio de
de vista biológico, não apenas os judeus, 1987, em voto formulado pelo “Justice”

64 Revista de Informação Legislativa


White, respaldado pela unanimidade da Held
Corte, é particularmente interessante. 1. A charge of racial discrimination within
Tratava-se da sinagoga da Congregação the meaning of 1982 cannot be made out by
Shaare Tefila em Silver Spring, Maryland, alleging only that the defendants were motivated
que tinha sido grafitada com tinta vermelha by racial animus. It is also necessary to allege
e preta e com grandes slogans anti-semitas, that animus was directed toward the kind of
frases e símbolos. A Congregação e alguns group that Congress intended to protect when it
de seus membros moveram ação contra os passed the statute. P. 617.
responsáveis, invocando a legislação norte- 2. Jews can state a 1982 claim of racial
americana de 1982, voltada para o combate à discrimination since they are among the peoples
discriminação racial. Os acusados se defen considered to be distinct races and hence within
deram, alegando, à maneira do impetrante, the protection of the statute at the time it was
que não sendo os judeus um grupo racial passed. They are not foreclosed from stating a
distinto, não estavam cobertos pela tutela cause of action against other members of what
prevista pela legislação norte-americana de today is considered to be part of the Caucasian
1982. Os argumentos dos acusados foram race. Saint Francis College v. Al-Khazraji, ante
acolhidos na primeira e na segunda ins p. 604. Pp. 617-618. The judgement of the Court
tância e revertidos na decisão da Suprema of Appeals is therefore reversed and remanded for
Corte de 18 de maio de 1987. O fundamento further proceedings consistent with this opinion”.
da decisão foi claro: apesar de os judeus (O texto se encontra em http.// laws.lp.
serem, na data da decisão da Corte, parte do findlaw. com/getcase. /US481/615.html).
que é tido como a raça caucasiana, estavam Conforme se verifica, com as peculiari-
tutelados pela legislação norte-americana de dades próprias do direito norte-americano
1982. Esta visava a proteger da discri minação e do seu sistema judiciário, a decisão da
classes identificáveis de pessoas, submetidas Suprema Corte dos EUA procurou dar – e
à discriminação intencional, apenas por conta deu – o maior e não o menor conteúdo jurí-
de sua origem ou carac terísticas típicas. dico ao valor tutelado – a dignidade da pes-
Afirmava a Corte, com base na história soa humana e a repressão à prática do ra-
legislativa da lei de 1982, que árabes e judeus cismo, positivada pela legislação voltada
estavam entre os que, na época, eram tidos para o combate à discriminação racial. Con-
como raças distintas. Por isso estavam por feriu ao termo “raça” uma interpretação con-
ela protegidos. Concluiu assim a decisão: dizente com a intenção do legislador.
“Jews are not foreclosed from stating a cause of 15 - O caso decidido pela Câmara dos
action against other members of what today is Lordes, em 1983 – Mandla and another vs Do-
considered to be part of the caucasian race. The well Lee and another – dirimia, em última ins-
judgement of the Court of Appeals is therefore tância, o tema da discriminação na escola
reversed and the case is remanded for other de um jovem sikh à luz do Racial Relations
proceedings consistent with this opinion”. Act de 1976. Entendia o pai do jovem, que
A ementa do acórdão, Shaare Tefila Con- moveu a ação contra o responsável da Esco-
gregation v. Cobb, U.S 615 (1987) é a seguinte: la, que a proibição de seu filho usar o tradici-
“After their synagogue was painted with anti- onal turbante, por motivos religiosos, era dis-
Semitic slogans, phrases, and symbols, petitioners criminatória nos termos da lei inglesa de 1976.
brought suit in Federal District Court, alleging A Câmara dos Lordes decidiu que se
that the desecration by respondents violated 42 tratava de um caso de discriminação e
U.S.C. 1982. The District Court dismissed examinou longamente o tema de inclusão
petitioners’ claims, and the Court of Appeals ou não dos sikhs como um “grupo racial”.
affirmed, holding that discrimination against Jews No seu voto, equivalente, no sistema inglês,
is not racial discrimination under 1982. ao voto do relator, Lord Fraser of Tullybelton

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relata o argumento da defesa. Esta alegou, tras considerações, a proibição do uso do
de forma semelhante ao impetrante – ainda turbante pelo jovem na Escola era discrimi-
que no caso com outra e muito mais ace natória nos termos do Race Relations Act (o
itável motivação, pois o responsável pela texto é encontrado em http.//www.hrcr.org/
Escola almejava, com a proibição do uso do safrica/equality /Mandla_DowellLee.htm).
turbante, a minimização das distinções Como se vê, a Câmara dos Lordes, ao tra-
religiosas –, que o significado relevante de tar do problema da discriminação racial,
“étnico” na Lei de 1976 não era aplicável atribuiu ao termo raça sua dimensão histó-
aos sikhs “ because they were essentially a rico-cultural, da qual provêm as práticas
religious group, and they share their racial discriminatórias, dela explicitamente exclu-
characteristics with other religious groups, indo sua dimensão biológico-científica. Nes-
including Hindus and Muslins living in the te sentido, a decisão respalda os argumen-
Punjab”. A esta alegação, Lord Fraser of tos deste parecer, de que não é na raça –
Tullybelton contestou, nos seguintes termos: pois só existe uma raça humana –, mas nas
“I recognize that ‘ethnic’ conveys a flavour of práticas discriminatórias do racismo, que
race but it cannot, in my opinion, have been used são histórico-político-culturais, que reside
in the 1976 Act in a strict racial or biological o caminho para a correta interpretação e
sense. For one thing it would be absurd to suppose aplicação do art. 5º, LXII, da Constituição
that Parliament can have intended that member de 1988 e a sua correspondente legislação
ship of a particular racial group should depend on infraconstitucional.
scientific proof that a person possessed the relevant Em síntese, e esta é a quinta conclusão
distinctive biological characteristics (assuming deste parecer, os dois casos decididos, res-
that such characteristics exist). The practical pectivamente, pela Suprema Corte dos EUA
difficulties of such proof would be prohibitive, and e pela House of Lords da Inglaterra, em
it is clear that Parliament must have used the word matéria de prática de racismo, em função
in some more popular sense. For another thing, the da interpretação dada a “raça”, corroem as
briefest glance at the evidence in this case is enough alegações do HC 82424-2 impetrado em fa-
to show that, within the human race, there are very vor de Siegfried Ellwanger. Não permitem
few, if any, distinctions which are scientifically dar curso ao argumento da prescritibilida-
recognised as racial”. de de seu crime. São, assim, indicações ju-
Na discussão do assunto, o juiz inglês, risprudenciais do Direito Comparado que
depois de várias considerações sobre crité- atestam, com base no direito norte-america-
rios de inclusão na legislação de 1976, afir- no e no direito inglês, a lógica da razoabili-
ma que a palavra “étnico” “should be cons- dade da quarta conclusão deste parecer.
trued relatively widely, in what was referred to
by counsel for the apellants as a broad, cultural/ VI – Da raça ao racismo
historic sense”.
Para os propósitos deste parecer, não é o 16 – Qual é a origem da palavra raça, dos
caso de indicar todos os elementos que fun- conceitos de raça, que acabaram levando à
damentaram a decisão de Lord Fraser of prática do racismo que o Direito brasileiro
Tullybelton, endossado pelos demais inte- condena e repudia? No verbete raça, José
grantes da turma do Tribunal que decidiu o Pedro Machado, no seu Dicionário Etimoló-
feito. O que importa realçar é esta sua con- gico da Língua Portuguesa, 2º volume (Lisboa,
clusão: “Sikhs are a group defined by a referen- Editorial Confluência, 1959), diz que a pa-
ce to ethnic origins for the purpose of the 1976 lavra provém do italiano razza, de origem
Act, although they are not distinguishable from obscura, pois as diversas hipóteses apresen-
the other peoples living in the Punjab”. Por esse tadas não parecem convincentes, segundo
motivo, como ele a seguir explicita com ou- Antenor Nascentes (cf. Antenor Nascentes,

66 Revista de Informação Legislativa


verbete raça no seu Dicionário Etimológico da lhas” (cf. Antônio Moreira, Provérbios Portu-
Língua Portuguesa, Rio de Janeiro, 1955). O gueses, Lisboa, Editorial Notícias, 1966, p.
caráter obscuro da origem de race, em inglês, 136).
raça, em português, raza, em espanhol, ra- Antonio Geraldo da Cunha, no verbete
zza, em italiano, é também afirmado por raça do seu Dicionário Etimológico - Nova Fron-
Walter W. Skeet no verbete correspondente teira da Língua Portuguesa, 2 a ed. (Rio de Ja-
do seu An Etymological Dictionary of the En- neiro, Nova Fronteira, 1986), abona a ori-
glish Language (Oxford, At the Clarendom gem italiana – razza, de raça em português,
Press, 1978). J. Corominas, no seu reputado à maneira de José Pedro Machado, e, na li-
Dicionáro Critico Etimologico de la Lengua Cas- nha de Corominas, faz a derivação do latim
tellana, no verbete correspondente, que está – ratio, rationis.
no vol. III (Madrid, Gredos, 1954), conside- Conforme se verifica, há componentes
ra provável que a origem da palavra prove- aqui obscuros na origem da palavra, como
nha do latim, ratio, rationis, na acepção de obscuras têm sido as conseqüências de seu
índole, modalidade, espécie. Registra que, uso. Além do mais, tanto em português quan-
quando se incorporou no castelhano o es- to em espanhol, o vocábulo raça comporta,
trangeirismo da raça no sentido biológico, a por razões históricas (a reconquista da pe-
palavra se contaminou de um sentido pejo- nínsula Ibérica, a Inquisição), uma dimen-
rativo, tanto mais que sua aplicação a mou- são pejorativo-discriminatória em relação a
ros e judeus a isso se prestava. mouros e judeus que aponta para o tema da
Na edição de 1823 do famoso Dicionário prática do racismo. Em todo caso, se a pala-
da Língua Portuguesa, de Antonio de Moraes vra raça deriva do latim ratio, rationis, qual é a
e Silva, define-se raça como casta: cão, cava- ratio de classificação da espécie humana em
lo de boa ou de má raça, e registra-se que ter raças?
raça é ter sangue de mouro ou judeu. No 17 - A classificação dos seres humanos
verbete raça, da edição portuguesa da Enci- em raças tem sua inspiração em Lineu, que
clopédia Einaudi, de autoria de Clara Quei- no século XVIII estabeleceu um sistema de
roz, esta, comentando o Dicionário de Mo- classificação de plantas e de animais. As-
raes, nota que não há menção às popula- sim “canis familiaris” (cão) e “canis lupus”
ções do império colonial português na defi- (lobo) são duas espécies do gênero “canis”.
nição do étimo raça. Explica essa ausência Para Lineu, o estudo dos seres vivos consis-
porque o Dicionário recompila os étimos tia na taxonomia e a espécie humana – o
impressos até 1823 e pondera que a referên- homo sapiens – dividia-se em seis raças, de
cia apenas a mouros e judeus se explicaria acordo com um critério preponderantemen-
porque eram em Portugal o outro - próximo, te geográfico: européia, ameríndia, asiática,
que estavam na origem de conflitos de vári- africana, selvagem e monstruosa (esta cons-
as ordens, inclusive os psicológicos. Já as tituída por indivíduos com malformações
populações colonizadas não foram referi- físicas).
das porque seriam, na época, o outro - coisifi- No século XIX, com Darwin, a concep-
cado, objeto natural de exploração (cf. Enci- ção fixa das espécies de Lineu é posta em
clopédia Einaudi, vol. 19 - Organismo -Heredi- questão. O tempo, com o evolucionismo, re-
tariedade, Lisboa, Imprensa Nacional, Casa voluciona o sistema classificatório, pois
da Moeda, 1991, pp. 384, 350-351). passou-se a admitir que as espécies não
A dimensão conflitiva, de natureza psi- eram permanentes. Podiam mudar com o
cológica, apontada por Clara Queiroz em andar do tempo.
relação ao outro próximo se reflete no seguinte O interesse na taxonomia e o evolucio-
provérbio português: “Judeu e porco, algar- nismo renovaram, no século XIX, a preocu-
vio e mouro, são quatro nações e oito cana- pação classificatória dos seres humanos em

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raças e, à maneira da ciência da antigüida- do mais triste aspecto” (cf. Georges Raeders,
de – por exemplo o sistema de Ptolomeo –, a O Conde Gobineau no Brasil, Rio de Janeiro,
diferença específica entre as raças acabou Paz e Terra, 1977, p. 39).
sendo formulada a partir do que se via, como Tocqueville, que conhecia bem Gobi-
esclarece Eliane Azevedo. Os múltiplos cri- neau, pois este foi seu chefe-de-gabinete
térios de classificação estavam ligados à quando de sua passagem como Ministro
aparência física (cor da pele, textura dos dos Negócios Estrangeiros da França, a ele
cabelos, forma da cabeça, etc.), cabendo men- escreveu o seguinte, a propósito de suas te-
cionar que, sem dúvida, como indica Clara orias racistas: “elas são provavelmente er-
Queiroz, a distinção inicial coincidia com radas e certamente perniciosas”. Essa pas-
as cores da pele, predominantes nos gran- sagem de Tocqueville, escrita em 1853,
des continentes terrestres. Isto, como hoje se numa época em que o pensamento racista
sabe, deve-se fundamentalmente à distribui- ainda não tinha adquirido maior peso na
ção e concentração diferencial do pigmento história das idéias, é citada por Hannah
melanina, que não tem maior significado no Arendt ao examinar o Imperialismo, no ca-
plano biológico, ou seja, no da estrutura ge- pítulo em que trata do pensamento racial
nética (cf. Eliane Azevedo, Raça - Conceito e antes da prática do racismo, no admirável
Preconceito, 2 a ed., São Paulo, Ática, 1990, pp. Origens do Totalitarismo. Certamente a pas-
16-22; Clara Queiroz, verbete Raça, na edi- sagem confirma a indiscutível capacidade
ção portuguesa da Enciclopédia Einaudi, cit., de antevisão de Tocqueville, como adiante
pp. 335-337, 342-344). se realçará neste parecer, pois como diz
A multiplicidade, a variedade e a não Hannah Arendt: “Historicamente falando,
coincidência dos critérios fizeram do con- os racistas, embora assumissem posições
ceito de raça um conceito impreciso – ten- aparentemente ultranacionalistas, foram os
dencialmente obscuro como aponta a etimo- piores patriotas que os representantes de
logia da palavra. Isso não impediu que a todas as outras ideologias internacionais;
sociologia do darwinismo social servisse de foram os únicos que negaram o princípio
caldo de cultura para teorias racistas, que jus- sobre o qual se constroem as organizações
tificavam a desigualdade com base nas dife- nacionais de povos – o princípio da igual-
renças entre as raças, numa dinâmica con- dade e solidariedade de todos os povos, ga-
trária ao processo de generalização dos direi- rantidos pela idéia de humanidade” (cf.
tos humanos, já examinado neste parecer. Hannah Arendt, As Origens do Totalitarismo
Entre os grandes teóricos racistas, des- - Anti-Semitismo - Imperialismo - Totalitaris-
tacam-se Arthur de Gobineau (1816-1882), mo, São Paulo, Companhia das Letras, 1989,
que fez a distinção entre a raça semita e a pp. 188-189; 191).
ariana, atribuindo a esta última uma supe- As idéias de Gobineau foram retomadas
rioridade física, moral e cultural. Gobineau por Houston Chamberlain (1855-1927), ar-
esteve no Brasil como representante diplo- doroso defensor da superioridade germâni-
mático francês e comentou, na linha de sua ca e do pensamento racista (cf. Eliane Aze-
visão racista: “Trata-se de uma população vedo, Raça, Conceito e Preconceito, cit. p. 25;
totalmente mulata, viciada no sangue e no Maria Luiza Tucci Carneiro, O Racismo na
espírito e assustadoramente feia”, e comple- História do Brasil, 8a ed., São Paulo, Ática,
menta: “Nenhum brasileiro é de sangue 2002, p. 22).
puro; as combinações dos casamentos entre A prática do racismo baseia-se, assim,
brancos, indígenas e negros multiplicaram- no pressuposto da existência de raças hu-
se a tal ponto que os matizes de carnação manas e no conseqüente estabelecimento de
são inúmeros, e tudo isso produziu, nas clas- sua hierarquização. Por esse motivo, o ar-
ses baixas e nas altas, uma degenerescência gumento teórico privilegiado das teorias

68 Revista de Informação Legislativa


racistas e de suas conseqüências sociais re- biológico em qualquer subdivisão racial da
side, como realça Clara Queiroz, no que en- espécie humana e que os critérios das dife-
tendiam ser a incontestabilidade das ciên- renças visíveis, a começar pela cor da pele,
cias biológicas (Clara Queiroz, verbete Raça, são apenas juízos de aparência. As diferen-
na edição portuguesa da Enciclopédia Einau- ças genéticas individuais entre duas pesso-
di, cit. p. 349). as brancas são maiores que a diferença ge-
As teorias racistas fizeram parte do pro- nética média entre brancos e negros e não
cesso de autolegitimação da expansão colo- custa lembrar que a integridade genética da
nial européia e da ausência de freios e limi- espécie humana, como unidade, é compro-
tes ao imperialismo. Um dos frutos disso foi o vada na reprodução entre pessoas de “ra-
racismo institucionalizado do “apartheid” ças” diferentes, gerando descendentes nor-
na África do Sul, em proveito da minoria bran- mais e férteis. Aliás, a mescla da qual resul-
ca, que foi um dos grandes temas da agenda ta a identidade do Brasil, como aponta Elia-
internacional dos direitos humanos da ONU. ne Azevedo, é disso uma comprovação (cf.
Outra terrível conseqüência foi o racis- Eliane Azevedo, Raça - Conceito e Preconceito,
mo biológico institucionalizado da Alema- cit. pp. 15-16, 40).
nha nazista, que afirmava não só a superio- A capacidade de desvendar o genoma
ridade da raça germânico-ariana, mas o im- humano – que é uma revolução coperniqui-
perativo da luta contra as raças inferiores, ana da biologia – permite dizer que conhe-
entre as quais inseriam não só os judeus cer uma espécie reduz-se a conhecer o seu
como também os ciganos e os eslavos. Essa genoma completo (cf. Monica Teixeira, O
luta, para recorrer a Carl Schmitt, que disso Projeto Genoma Humano, 2a ed., São Paulo,
entendia, não tinha apenas a dimensão dos Publifolha, 2001, p.67) e o seqüenciamento
privata odia, voltada contra inimicos, mas era do genoma humano indica que as diferen-
sobretudo uma guerra pública dirigida con- ças existentes no código genético de cada
tra as raças inferiores, identificadas como ser humano – que estão na escala dos mi-
hostes (cf. Carl Schmitt, La notion de politique lhões – não têm maior relação com a sua
- theorie de partisan, Paris, Calmann-Lévy, procedência geográfica ou étnica. No estu-
1972, p. 69 e 200). Daí o alcance avassala- do da variabilidade genética humana, veri-
dor dos ódios públicos do racismo nazista, fica-se que de 90 a 95% dela ocorre dentro
que levou aos campos de concentração, ao dos chamados “grupos raciais”, não entre
Holocausto e ao ineditismo, na História da eles (Sérgio Danilo Pena, Os múltiplos sig-
Humanidade, do crime de genocídio, que nificados da palavra raça, Folha de S. Paulo,
estão na base da grande reflexão de Han- 21/12/2002, p. 3). Em síntese, como diz Sér-
nah Arendt sobre o totalitarismo no século gio Danilo Pena: “há apenas uma raça do
XX e do grande tema do “direito a ter direi- homo sapiens: a raça humana” (cf. Sérgio
tos” como ponto de partida da reconstru- Danilo Pena, Lição de vida do genoma hu-
ção dos direitos humanos (cf. Hannah Aren- mano, Folha de S. Paulo, 23/1/2001, p. 3).
dt, As Origens do Totalitarismo, cit.; Celso Assim está correto, no plano da biologia, o
Lafer, A Reconstrução dos Direitos Humanos - que diz o art. 1 - 1 da Declaração da UNES-
um diálogo com o pensamento de Hannah Aren- CO e evidentemente todos os textos das inú-
dt, cit.). Foram esses fatos que levaram, no meras Declarações de Direitos que partem
pós-Segunda Guerra Mundial, à inclusão do princípio da igualdade dos seres huma-
ampla da agenda dos direitos humanos no nos e afirmam o princípio da não-discrimi-
plano internacional, como adiante se exa- nação. Da mesma maneira confirma-se, no
minará neste parecer. plano do conhecimento, a verdade revelada
18 - O avanço do conhecimento se in- no Velho Testamento sobre a unidade do
cumbiu de mostrar que não há fundamento gênero humano, ponto de partida inicial

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deste parecer sobre o processo de afirmação distintivos ou propaganda que utilizam a
do valor da dignidade da pessoa humana. cruz suástica ou gamada, para fins e divul-
Se o racismo não pode ser justificado por gação do nazismo.
fundamentos biológicos, ele, no entanto, Pena: Reclusão de dois a cinco anos e
persiste como fenômeno social. É esse fenô- multa.”
meno social, e não a “raça”, o destinatário
jurídico da repressão prevista pelo art. 5º, VII – A prática do racismo e o seu
LXII, da Constituição de 1988, e sua corres- impacto no Direito Internacional da
pondente legislação infraconstitucional. Pessoa Humana – a contribuição do
Esta é a sexta conclusão deste parecer, vol- Direito Internacional Público para a
tada para reiterar, como foi dito na quarta
exegese do art. 5º, XLII, da
conclusão, que o conteúdo jurídico do cri-
Constituição de 1988
me da prática do racismo tem o seu núcleo
nas teorias e ideologias e na sua divulga-
ção, que discriminam grupos e pessoas, a 19 - Norberto Bobbio, num, como sem-
elas atribuindo as características de uma pre, límpido texto sobre o racismo, observa
“raça” inferior. É precisamente porque a que ele não se dirige tanto para a pessoa
prática do racismo começa pelo que está na singular, diante da qual se pode ter múlti-
cabeça das pessoas que o Tribunal de Justi- plos sentimentos negativos, quanto para um
ça do Rio Grande do Sul e o Superior Tri- grupo, ou para um indivíduo pertencente a
bunal de Justiça sancionaram, com base no um grupo. Registra que a mais persistente
art. 20 da Lei 7.716/89, com a redação dada forma de racismo conhecida pelos povos
pela Lei 8.081/90, a conduta de Siegfried europeus é o anti-semitismo.
Ellwanger como crime imprescritível. É pra- Esclarece, também, Bobbio que os postu-
ticar, induzir e incitar o racismo a publica- lados do racismo como visão do mundo, que
ção de qualquer natureza que promova a independe da fundamentação científica,
discriminação ou preconceito de raça, cor, como foi visto, são três: (i) a humanidade
religião, etnias ou procedência nacional. está dividida em raças, cuja diversidade é
Cabe destacar que a evolução legislativa em dada por características biológicas e psico-
nosso país confirma esse entendimento. É lógicas. Estas têm elementos culturais que
isso que destacou o Ministério Público, no derivam, porém, das características biológi-
parecer já discutido do subprocurador Cláu- cas, cuja natureza é invariável e se transmi-
dio Lemos Fonteles, quando este mencionou te hereditariamente; (ii) não só existem ra-
que a Lei 9.458/97, através do novo § 2º do ças diversas, mas existem raças superiores
art. 20 acima citado, fez do meio – os meios e inferiores; e (iii) não só existem raças, e
de comunicação social de qualquer nature- estas se dividem entre superiores e inferio-
za, utilizados para promover a discrimina- res, como também as superiores têm o direi-
ção e o preconceito – uma forma qualificada, to de dominar as inferiores (cf. Norberto
com apenação autônoma, do crime da prá- Bobbio, Elogio da Serenidade e Outros Escritos
tica do racismo. A essa observação do Mi- Morais, São Paulo, UNESP, 2002, p. 123, 127,
nistério Público, e para precisar que a di- 128).
vulgação do nazismo é prática do racismo Uma visão racista do mundo leva a con-
também com apenação autônoma, acrescen- dutas que têm distintas escalas de agressi-
to o que determina o novo parágrafo 1º do vidade. São todas caracterizadas pela dis-
art. 20, com a redação dada pela Lei nº criminação, ou seja, pelo não reconhecimen-
9.459/97: to aos “outros” dos mesmos direitos e ga-
“Fabricar, comercializar, distribuir ou rantias. Os princípios gerais da igualdade
veicular símbolos, emblemas, ornamentos, e da não discriminação, que têm destinatá-

70 Revista de Informação Legislativa


rios genéricos, e o processo de especifica- centração e o Holocausto. Representou uma
ção, que cuida do ser humano em situação, resposta política e jurídica ao que foi perce-
que em conjunto tutelam os direitos huma- bido como uma escala sem precedentes do
nos, no Brasil e no mundo, são assim direta- mal.
mente afetados. O mal, como ensina Bobbio, tem duas
À discriminação pode somar-se uma in- dimensões analíticas, relevantes para a
tensidade superior de violência à dignida- matéria deste parecer. O mal ativo, associa-
de da pessoa humana, que é a segregação. do à vontade de poder, à prepotência e ao
Esta consiste, como diz Bobbio, “em impe- ilimitado exercício da violência por parte
dir a mistura dos diversos entre os iguais”. dos governantes, e o mal passivo, que se re-
Pode expressar-se através de obstáculos ju- fere à perspectiva das vítimas, que sofrem
rídicos à miscigenação e pela colocação da uma pena sem culpa. O mal ativo é o mal
“raça inferior” pela “raça superior” num infligido. O mal passivo é o mal sofrido. Na
espaço separado. O apartheid, na África do Bíblia, lembra Bobbio, Caim e Jó são duas
Sul, enquanto perdurou, foi um paradigma figuras paradigmáticas desses dois rostos
da segregação institucionalizada e do que do mal (Norberto Bobbio, Elogio da Serenida-
há de mais nefasto na herança racista do de e Outros Ensaios Morais, cit., p. 182).
colonialismo europeu. A Carta da ONU levou em conta nos seus
O último grau na escala da violência do dispositivos o que foi, na guerra e no pré-
tratamento racista é a agressão física. Esta guerra, tanto o mal ativo da discricionari-
começa de modo esporádico, contra alguns dade das soberanias quanto o sofrido mal
indivíduos – é o que fazem os skinheads – e passivo das vítimas. Neste contexto os di-
chega ao extermínio premeditado e de mas- reitos humanos surgem para tornar presen-
sa. O extermínio premeditado de massa tem te, na agenda internacional, não apenas a
nas câmaras de gás dos campos de concen- perspectiva ex parte principis a ser regida por
tração da Alemanha nazista a sua terrível normas delimitadoras de arbítrios, mas tam-
exemplificação, pois foi o meio técnico por bém a pespectiva ex parte populi, voltada
excelência do Holocausto como crime de ge- para evitar as penas sem culpa.
nocídio. O paradigma deste último grau na A Carta da ONU refere-se aos Direitos
escala da violência é o “Estado racial” no Humanos no seu preâmbulo, nos arts. 1 - 3;
qual se transformou a Alemanha nazista de 13, 1 b; 55 c; 56; 62 - 2; 64; 68; 73; 76 c. Esta
Hitler. A Alemanha de Hitler, realça Bob- multiplicidade de referências contrasta com
bio, foi “um Estado racial no mais pleno sen- o bem mais modesto art. 23 do Pacto da Liga
tido da palavra, pois a pureza da raça devia das Nações e com as delimitadas ativida-
ser perseguida não só eliminando indiví- des da antecessora da ONU nesse campo.
duos de outras raças, mas também indiví- Com efeito, o Direito Internacional da Pes-
duos inferiores física ou psiquicamente da soa Humana, pré-Carta da ONU, viu-se cir-
própria raça, como os doentes terminais, os cunscrito ao que estava na agenda das rela-
prejudicados psíquicos, os velhos não mais ções internacionais, que era uma agenda
auto-suficientes” (Norberto Bobbio, Elogio distinta daquela vivida no plano interno.
da Serenidade e Outros Escritos Morais, cit. pp. Daí, por exemplo: o início da elaboração, no
128-129, pp.125-126). século XIX, do Direito Humanitário – que se
20 - A Carta da ONU foi um direito novo, ocupa das vítimas de conflitos armados e
que resultou da Segunda Guerra Mundial. da regulamentação dos meios e métodos de
Na sua elaboração normativa, teve peso o combate; ou então, no período da Liga, o tra-
ineditismo da experiência totalitária da Ale- tamento de minorias e refugiados. Esse foi
manha nazista, que patrocinou, inspirada um grave problema que surgiu como conse-
pela sua ideologia racista, os campos de con- qüência do desmembramento, no pós-Pri-

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meira Guerra Mundial, dos grandes impé- 21 - O Brasil participou, no plano inter-
rios multinacionais – o austro-húngaro, o nacional, do processo de especificação, vol-
russo, o otomano – e da imprevista dissoci- tado para afirmar o princípio da igualdade
ação entre os direitos do homem e os direi- e da não discriminação, dos seres humanos
tos dos povos. Ainda cabe mencionar o tema em situação afetada pela prática do racis-
do criminoso tráfico transnacional de mu- mo. Evoco, a título de ilustração, pela clare-
lheres e crianças. O novo, instigado pela za do enunciado e também pela satisfação
Carta da ONU, foi fazer dos direitos huma- de trazer à colação uma tradição familiar
nos no plano internacional não um tema na matéria, o discurso do Chanceler Horá-
circunscrito, mas um tema global. cio Lafer na abertura dos trabalhos da As-
A conversão dos direitos humanos num sembléia Geral da ONU em 22 de setembro
tema global e não circunscrito resultou, como de 1960:
diria Miguel Reale, de uma política do Di- “O Governo brasileiro subscreveu este
reito e esta foi axiologicamente sensível ao ano, juntamente com vários outros países, o
horror erga omnes do mal da descartabilida- pedido de inclusão na Agenda desta Ses-
de do ser humano, produto do ineditismo são da Assembléia Geral de item referente à
da violência do racismo nazista (cf. Celso discriminação racial. Tem o Brasil sempre
Lafer, A Reconstrução dos Direitos Humanos - apoiado todas as recomendações que tra-
um diálogo com o pensamento de Hannah Aren- mitaram nas Nações Unidas contra as polí-
dt, cit., Desafios: Ética e Política, São Paulo, ticas de segregação, baseadas em distinções
Siciliano, 1995, pp. 201-243; Comércio, De- de raça, cor ou religião, que repugnam a
sarmamento e Direitos Humanos - reflexões so- consciência do povo brasileiro e são clara-
bre uma experiência diplomática, São Paulo, mente condenadas pela Carta da Organiza-
Paz e Terra, 1999, pp. 141-200; Reflexões so- ção. O Brasil submeteu um projeto de reso-
bre o historicismo axiológico de Miguel Re- lução ao Conselho da Organização dos Es-
ale e os direitos humanos no plano interna- tados Americanos para expressar o repú-
cional, in O Pensamento de Miguel Reale, Ac- dio a toda e qualquer forma de distinção e
tas do IV Colóquio Tobias Barreto, Viana do segregação racial, projeto que contou com a
Castelo, Câmara Municipal, 1988, pp. 167- votação unânime dos países americanos.
174; Miguel Reale, Teoria do Direito e do Esta- Neste sentido, quero lembrar que o Brasil
do; 4 a ed., São Paulo, Saraiva, 1984, pp. 379- assinou e ratificou a convenção internacio-
382). nal contra o genocídio aprovada em 1948
A abrangente positivação dos direitos pela Assembléia Geral das Nações Unidas.
humanos como um tema global da vida in- A perseguição racial é contrária ao espírito
ternacional, fruto dessa política do Direito, e aos fins das Nações Unidas e o Brasil, com
tem como marco inicial a Declaração Uni- o mundo civilizado, a condena de forma
versal de 1948, já mencionada neste pare- mais veemente” (O discurso está reprodu-
cer. Ela se desdobrou nos dois grandes pac- zido in A Palavra do Brasil nas Nações Unidas
tos de 1966: o dos Direitos Civis e Políticos e - 1946-1995, org. e apresentação de Luiz Fe-
o dos Direitos Econômicos, Sociais e Cultu- lipe de Seixas Corrêa, Brasília, FUNAG,
rais. Os dois grandes Pactos se inserem no 1995, e o texto citado está na p. 134).
processo histórico de positivação internaci- A referência do Ministro Horácio Lafer à
onal dos direitos humanos na etapa do pro- Convenção Internacional sobre Prevenção
cesso de generalização. Essa etapa se viu e Punição do crime de Genocídio é muito
acompanhada e desdobrada pelo processo pertinente para a matéria deste parecer em
de especificação, que vou a seguir exami- função dos fatos históricos que levaram à
nar, no que diz respeito à prática do racis- tipificação deste crime, como um crime in-
mo. ternacional, seja em tempo de paz, seja em

72 Revista de Informação Legislativa


tempo de guerra. Com efeito, a elaboração 22 - A Convenção Internacional sobre a
normativa do Direito Internacional sobre o Eliminação de todas as formas de Discrimi-
crime de genocídio teve a sua base no mal nação Racial de 1965, elaborada no âmbito
ativo e passivo que levou ao Holocausto da ONU, consolida na hard-law de um trata-
patrocinado pelo Estado racial em que se do multilateral, como é da natureza do pro-
converteu a Alemanha nazista de Hitler, cesso legislativo internacional, a soft-law,
voltada para destruir, para valer-me da for- inter-alia, da Declaração sobre a eliminação
mulação do caput do art. II da Convenção, de todas as formas de discriminação racial,
“no todo ou em parte, um grupo nacional, proclamada pela Assembléia Geral na Re-
étnico, racial ou religioso”. solução 1.904 de 20 de novembro de 1963.
É importante realçar, como faz Fabio A Convenção, que resultou basicamente
Konder Comparato, que a Convenção de do trabalho da Assembléia Geral, foi insti-
1948 traz uma novidade importante sob o gada pela memória das atrocidades das prá-
aspecto penal. É a punição dos atos de “in- ticas raciais do nazismo, nos anos 30 e 40,
citação direta e pública a cometer o genocí- particularmente as anti-semitas, e pelo de-
dio” (art. III, c). Lembra Comparato que es- senvolvimento da segregação racial institu-
tavam na mente dos elaboradores da Con- cionalizada – o apartheid – na África do Sul
venção os livros e panfletos nazistas e re- (cf. Introdução de Boutros Boutros-Ghali,
gistra que a idéia foi ulteriormente acolhida então Secretário-Geral da ONU à publica-
e desenvolvida no art. 4 da Convenção In- ção The United Nations and Human Rights -
ternacional de 1965, para a eliminação de 1945-1995, N. York, The United Nations
todas as formas de discriminação racial (cf. Blue Books Series, vol. VII, 1995, p. 33; José
Fabio Konder Comparato, A Afirmação His- Augusto Lindgren Alves, A Arquitetura In-
tórica dos Direitos Humanos, 3 a ed., São Paulo ternacional dos Direitos Humanos, São Paulo,
Saraiva, 2003, p. 243). FTD, 1997, pp. 88-89). O seu objetivo foi o da
Ao art. 4 da Convenção de 1965 voltarei definição de normas contrárias à discrimi-
mais adiante, mas neste momento quero re- nação racial e ao fenômeno do racismo em
alçar que tanto este artigo quanto o Direito todas as suas dimensões.
brasileiro, nos termos do art. 20 (Lei 8.081/ O Brasil assinou a Convenção em 7 de
90), na esteira aberta pelo art. III, c, da Con- março de 1966 e a ratificou, sem reservas,
venção sobre a Prevenção e Punição do Cri- em 27 de março de 1968. O Decreto de pro-
me de Genocídio, integram na estrutura do mulgação é o de nº 65.810 de 8/XII/69. A
delito da prática do racismo (art. 5º, XLII, da Convenção entrou em vigor no âmbito in-
Constituição de 1988) a sua propaganda e ternacional a 4 de janeiro de 1969, tendo sua
incitação, pois estas, no limite, podem levar vigência em relação ao nosso país se inicia-
ao genocídio. Esse foi o caso do racismo ide- do trinta dias depois.
ológico nazista. (A Convenção sobre a Pre- O Brasil participou dos travaux preparatoi-
venção e a Repressão do Crime de Genocí- res da Convenção, como de resto tinha anteri-
dio, em nosso País, foi aprovada pelo De- ormente participado das atividades de ela-
creto Legislativo nº 2, de 11 de abril de 1951, boração normativa do direito internacional
e promulgada pelo Decreto nº 30.822, de 6 da pessoa humana (cf. Antonio Augusto Can-
de maio de 1952. A Lei nº 2.889, de 1º de çado Trindade, A Proteção Internacional dos Di-
outubro de 1956, define e pune o crime de reitos Humanos e o Brasil, cit., pp. 23-38).
genocídio. Tratei do genocídio como crime Nas discussões, a delegação brasileira
contra a humanidade em A Reconstrução dos co-patrocinou com os EUA uma emenda (A/
Direitos Humanos - um diálogo com o pensa- C. 3, L1211) com o objetivo de incluir no tex-
mento de Hannah Arendt, cit. cap. VI, pp. 167- to da Convenção uma referência específica
186). ao anti-semitismo. A emenda não prospe-

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rou e a única referência específica, afinal 40. Many representatives had objected to
contemplada pela Convenção, é a da con- reference in the Convention to any specific forms
denação do apartheid (art. 3). Isso se com- of racial discrimination: but the draft already
preende, pois na época, e muito pertinente- included a reference to apartheid.” (cf. A/C. 3/
mente, a condenação do regime então racis- SR 1313, Report of the Third Committee, de
ta da África do Sul estava, e com grande re- 21/10/1965, ONU, Official Records of the
levo, na ordem do dia da agenda internaci- General Assembly (XX Session, 1965, 1313th.
onal do combate ao racismo. É interessante, Meeting p. 125).
no entanto, para os propósitos deste parecer, A razão de fundo apresentada na dis-
reproduzir o que disse a delegação do Brasil, cussão da Convenção para a não aceitação
que inequivocamente afirmou, na defesa da da emenda foi a de que a enumeração de for-
emenda apresentada, o anti-semitismo como mas específicas de discriminação racial nun-
uma forma de discriminação racial. ca conseguiria ser exaustiva. Daí a importân-
“Mr. DAYRELL DE LIMA (Brazil), re cia de enunciados jurídicos de precisão ge-
ferring to observations which had been made ral. É este, assim, o art. 1 - 1 da Convenção:
concerning Brazil’s co-sponsorship of the amen “Nesta Convenção, a expressão ‘discri-
dment in document A/C.3/L.1211, observed that minação racial’ significará qualquer distin-
his delegation had had no chance either to ção, exclusão, restrição ou preferência base-
explain its reasons for co-sponsoring the adas em raça, cor, descendência ou origem
amendment, discussion of which had been nacional ou étnica que tem por objetivo ou
precluded even before the amendment had been efeito anular ou restringir o reconhecimen-
introduced or to express its views before the vote to, gozo ou exercício, num mesmo plano (em
of the Greek-Hungarian draft resolution. igualdade de condição), de direitos huma-
39. He did not agree with those who had said nos e liberdades fundamentais no domínio
that the draft amendment was inopportune. político, econômico, social, cultural ou em
Everyone agreed that anti-Semitism was one of qualquer outro domínio da vida pública.”
the most brutal forms of race prejudice ever (O texto está reproduzido in José Augusto
known in the developed countries and had been Lindgren Alves, A Arquitetura Internacional
the source of nazism, which directly or indirectly, dos Direitos Humanos, cit., p. 99).
had caused the deaths of milllions of human Noto que o art. 20 da Lei 7.716/89, com a
beings. Moreover, that phenomenon did not di redação dada pela Lei 8.081/90, refere-se a
sappear with economic and social advancement “discriminação ou preconceito de raça, cor
as recent history had showed. The United religião, etnia ou procedência nacional”, que
Nations itself had been established as a result of o art. 1º da Convenção, vigente e aplicável
the holocaust that had been caused by anti- no Brasil, qualifica em bloco de “discrimi-
Semitism and nazism. How could the Committee nação racial”. Esse é um elemento adicio-
fail to mention that fact? His delegation had had nal na interpretação do Direito brasileiro, a
no ulterior political motive in sponsoring the invalidar os argumentos do impetrante.
amendment, was not acting under the pressure O art. 4 da Convenção Internacional so-
of any racial minority or outside force and did bre a Eliminação de todas as formas de dis-
not wish to intervene in any political drama being criminação racial, e que partiu da vis directi-
played out anywhere on earth. But Brazil va do art. III, c, da Convenção de 1948 para a
realized that anti-Semitism carried the seeds of Prevenção e a Repressão do Crime de Geno-
war.By what sophistry could the Committee cídio, inclui, como já foi mencionado, na
justify a failure to recognize that fact? Moreover, estrutura do crime da prática do racismo, o
all members of the Committee, even those who incitamento à discriminação. Reza o art. 4:
had opposed the amendment, were opposed to “Os Estados-partes condenam toda pro-
anti-Semitism. paganda e todas as organizações que se ins-

74 Revista de Informação Legislativa


pirem em idéias ou teorias baseadas na su- reito Legislativo nº 226 de 12 de dezembro
perioridade de uma raça ou de um grupo de de 1991 e promulgado pelo Decreto nº 592
pessoas de uma certa cor ou de uma certa de 6 de dezembro de 1992). Argüiram os
origem étnica que pretendem justificar ou opositores do art. 4 º que ele limitaria a liber-
encorajar qualquer forma de ódio e de dis- dade de expressão. O entendimento que pre-
criminação raciais e comprometem-se a ado- valeceu foi o de que essa limitação era am-
tar imediatamente medidas positivas desti- plamente justificada pela experiência his-
nadas a eliminar qualquer incitação a uma tórica já discutida neste parecer. Estava ju-
tal discriminação, ou quaisquer atos de dis- ridicamente respaldado, como aponta Lind-
criminação com este objetivo, tendo em vis- gren Alves, no espírito e na letra do art. 29
ta os princípios formulados na Declaração da Declaração Universal, “que condiciona
Universal dos Direitos do Homem e os di- os direitos e liberdades fundamentais de
reitos expressamente enunciados no artigo cada um aos deveres para com a comunida-
5º da presente Convenção, eles se compro- de, assim como aos direitos e liberdades dos
metem principalmente: outros” (José Augusto Lindgren Alves, A
a – a declarar delitos puníveis por Lei Arquitetura Internacional dos Direitos Huma-
qualquer difusão de idéias baseadas na su- nos, cit., p. 91).
perioridade ou ódio raciais, qualquer inci- Essa mesma linha de raciocínio, sobre a
tamento à discriminação racial, assim como existência de limites à liberdade de expres-
quaisquer atos de violência ou provocação são, foi a seguida pelo STF na vigência da
a tais atos, dirigidos contra qualquer raça Constituição de 1946, no recurso extraordi-
ou qualquer grupo de pessoas de outra cor nário nº 25848/MG, do qual foi relator o
ou de outra origem étnica, como também Ministro Ribeiro da Costa. No acórdão de
qualquer assistência prestada a atividades 2/XII/1954, por unanimidade, o STF, a pro-
racistas, inclusive seu financiamento; pósito da liberdade de imprensa, afirmou
b - a declarar ilegais e proibir as organi- que esta comportava limites lícitos, justifi-
zações, assim como as atividades de propa- cando-se “a interdição de órgão de publici-
ganda organizada e qualquer outro tipo de dade quando se demonstra o incitamento à
atividade de propaganda que incitar à dis- subversão da ordem pública e social ou a
criminação racial, e que a encorajar, e a de- propaganda de guerra ou de preconceitos de
clarar delito punível por Lei a participação raça ou de classe” (grifos meus).
nestas organizações ou nestas atividades; Entendo que esse acórdão de 1954 é per-
c - a não permitir às autoridades públi- feitamente compatível com a Constituição
cas nem às instituições públicas, nacionais de 1988. Com efeito, o art. 5º, II, ao estabele-
ou locais, o incitamento ou encorajamento à cer que “ninguém será obrigado a fazer ou
discriminação racial.” (O texto está repro- deixar de fazer alguma coisa senão em vir-
duzido in José Augusto Lindgren Alves, A tude da lei”, estipula que a extensão da li-
Arquitetura Internacional dos Direitos Huma- berdade está na dependência da lei, vale
nos, cit., p. 100). dizer, como aponta José Afonso da Silva, que
Este artigo, como lembra Lindgren Al- “a liberdade não é incompatível com um sis-
ves, foi objeto de discordância como tinha tema coativo”. O mesmo jurista, na análise
sido o art. 20 do Pacto Internacional sobre da expressão “em virtude da lei”, confere
Direitos Civis e Políticos de 1966, que no ao conceito de lei tanto a sua dimensão de
seu item 2 diz: “Será proibida por Lei qual- legalidade quanto a de legitimidade e, na
quer apologia do ódio nacional, racial ou discussão do standard da legitimidade, in-
religioso que constitua incitamento à dis- voca o art. 3 º, que trata dos objetivos funda-
criminação, à hostilidade ou à violência” mentais da República Federativa do Brasil.
(O Pacto foi ratificado pelo Brasil pelo Di- José Afonso da Silva menciona, explicita-

Brasília a. 41 n. 162 abr./jun. 2004 75


mente, os incisos I e III do art. 3º, aos quais sição econômica, nascimento de qualquer
agrego, para os propósitos da matéria ver- outra condição social” (art. 1º). Esta Con-
sada neste parecer, o inciso IV: “promover o venção, à qual o Brasil aderiu, estabelece um
bem de todos, sem preconceitos de origem, aparato de monitoramento de seus disposi-
raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras for- tivos, integrado pela Comissão Interameri-
mas de discriminação” (cf. José Afonso da cana de Direitos Humanos e pela Corte In-
Silva, Curso de Direito Constitucional Positi- teramericana, às quais o Brasil também está
vo, cit. pp. 235, 420-424). É precisamente o vinculado (cf. Decreto nº 678, de 6/11/92;
caráter relacional da liberdade que tem um Decreto Legislativo nº 89, dezembro 1998;
limite no dano que pode produzir à liberda- Decreto nº 4463 de 11/11/2002. Para um
de de outro (cf. Tércio Sampaio Ferraz Jr., preciso relato do aparato de monitoramen-
Estudos de Filosofia do Direito, São Paulo, to do Pacto de São José, cf. Flávia Piovesan,
Atlas, 2002, p. 104), quando esta está tutela- Direitos Humanos e o Direito Constitucional
da pelos objetivos maiores do País, preconi- Internacional, cit. pp. 333-249).
zados pelo art. 3º, que me leva a apontar o O artigo 4 da Convenção, sobre a Elimi-
acerto do comentário de Alexandre de Mo- nação de todas as formas de discriminação
raes. Este, ao discutir o acórdão relatado racial, acima reproduzido, insere como de-
pelo Ministro Ribeiro da Costa no contexto lito punível e, portanto, no âmbito do Direi-
da análise do combate ao racismo, apontou to Penal Internacional, a difusão de idéias
que as liberdades públicas não podem ser baseadas na superioridade ou ódios raciais
utilizadas para acobertar finalidades ilíci- e no seu caput estabelece o compromisso dos
tas, como a veiculação de propagandas pre- Estados-partes de promulgar legislação in-
conceituosas a determinadas raças, etnias, terna com esse objetivo. (Sobre a inclusão
religiões ou procedências nacionais (cf. Di- da discriminação racial no Direito Penal In-
reitos Humanos Fundamentais,2 a ed., São Pau- ternacional, cf. Stefan Glaser, Droit Interna-
lo, Atlas, 2000, pp. 227-228). Aponto que, tional Pénal Conventionnel, Bruxelas, 1970,
no caso sobre o que versa este parecer, não pp. 130-132 e Celso D. de Albuquerque Me-
se trata de censura prévia, mas da respon- llo, Direito Penal e Direito Internacional, Rio
sabilidade penal de quem, como Siegfried de Janeiro, Freitas Bastos, 1978, pp. 157-162).
Ellwanger, exerceu a sua liberdade com fi- O rigor da tutela penal previsto pelo art. 5º,
nalidades ilícitas. LXII, da Constituição de 1988 e da sua cor-
Lembro que, no plano regional, a Con- respondente legislação infraconstitucional,
venção Americana de Direitos Humanos – nela incluída a imprescritibilidade do cri-
o Pacto de São José, à semelhança do art. 20 me da prática do racismo, exprime, assim, o
do Pacto Internacional sobre Direitos Civis cumprimento de uma obrigação internacio-
e Políticos, e pelos mesmos motivos, estabe- nal do Brasil e a já referida identidade de
lece no seu art. 13 - 5 que “a lei deve proibir objetivos do direito internacional e do direi-
toda propaganda a favor da guerra, bem to público interno quanto à proteção da pes-
como toda apologia ao ódio nacional, racial soa humana, apontada por Antonio Augus-
ou religioso que constitua incitamento à dis- to Cançado Trindade (cf. A Proteção Interna-
criminação, à hostilidade, ao crime ou à vi- cional dos Direitos Humanos – Fundamentos Ju-
olência”. Lembro, igualmente, que por essa rídicos e Instrumentos Básicos, cit, p. 635).
Convenção os Estados-partes comprome- A importância que o Brasil atribui a essa
tem-se a garantir os direitos e liberdades nela Convenção – que reitera a identidade de ob-
reconhecidos “sem discriminação alguma, jetivos entre o direito internacional e o direi-
por motivo de raça, cor, sexo, idioma, reli- to público interno – viu-se reforçada pelo
gião, opiniões políticas ou de qualquer ou- reconhecimento de Competência do Comitê
tra natureza, origem nacional ou social, po- para a Eliminação da Discriminação Raci-

76 Revista de Informação Legislativa


al, para receber e analisar denúncias de vio- preocupação o aumento do anti-semitismo
lação dos direitos humanos. Tal reconheci- e da islamofobia em diversas partes do mun-
mento, previsto no art. 14 da Convenção, do, assim como o aparecimento de movi-
integra o sistema de monitoramento inter- mentos raciais e violentos baseados no ra-
nacional de seus dispositivos, criado na cismo e em idéias discriminatórias contra
Parte II. O Decreto Legislativo nº 57, de 26 as comunidades judia, muçulmana e ára-
de abril de 2002, aprovou o ingresso do Bra- be”. Ora, é precisamente a divulgação de
sil nesse sistema, que se completou com a idéias discriminatórias contra a comunida-
Declaração do governo brasileiro, feita pelo de judia, que é parte integrante do crime de
Presidente Fernando Henrique Cardoso e prática do racismo, a atividade a que se de-
por mim referendada como Ministro das dica Siegfried Ellwanger. Aponto, igualmen-
Relações Exteriores, em 13 de maio de 2002. te, sobre a dimensão penal dessa atividade,
Em ato normativo interno posterior, atri- no plano internacional, que a Declaração e
buiu-se ao Comitê Nacional de Combate à o Programa de Ação de Durban no seu item
Discriminação (criado pelo Decreto n º 3.952 86, relembram, que a disseminação de idéi-
de 4/8/2001) competência para atuar como as baseadas na superioridade ou no ódio
instância focal, no Brasil, para receber de- racial devem ser declaradas como delitos
núncias com base na faculdade prevista no puníveis pela lei, como institui a Conven-
art. 14 da Convenção. ção Internacional para a Eliminação de to-
O anti-semitismo como racismo conti- das as formas de Discriminação Racial (cf.
nua na ordem do dia na visão internacional J. A. Lindgren Alves, A Conferência de Dur-
da agenda voltada para afirmar a Igualda- ban contra o Racismo e a responsabilidade
de, Dignidade e Tolerância e nesse proces- de todos, in loc. cit. p. 211).
so combater o racismo, a discriminação ra- Finalmente, acho relevante mencionar,
cial, a xenofobia e outras formas de intole- sobre a visão internacional da matéria, o que
rância. É o que diz a Resolução 623 da As- disse recentemente o Alto Comissário da
sembléia Geral da ONU de dezembro de ONU para Direitos Humanos, Sérgio Vieira
1998, já mencionada no item 8 deste pare- de Mello. Sérgio Vieira de Mello – um dos
cer, que faz menção específica ao anti-semi- mais respeitados brasileiros exercendo fun-
tismo como parte das formas contemporâ- ção de alta responsabilidade no sistema da
neas e não apenas históricas do racismo e ONU – em seu pronunciamento de 21 de
da discriminação racial. Sobre a atualidade novembro de 2002 no Instituto Internacio-
do tema do anti-semitismo como racismo, cabe nal de Imprensa em Viena, ao tratar da li-
igualmente trazer à colação o que está dito na berdade de imprensa, disse: “ There is no lack
Declaração e no Programa de Ação da Confe- of examples of the media being misused to whip
rência de Durban, que tornou os seus resulta- up hatred and fanaticism”; e logo adiante, no
dos mais positivos do que os das conferênci- mesmo parágrafo: “There are international le-
as internacionais anteriores sobre racismo. gal obligations a majority of status have accep-
Com efeito, na parte que trata das víti- ted that prohibit incitment to racial, religious
mas do racismo e da discriminação racial, a and ethnic hatred – not least anti-Semitism –
Declaração de Durban afirma , no seu item and they must be adhered to” (o texto integral é
58: “Recordamos que o Holocausto jamais acessível no website www.unhchr.ch).
deverá ser esquecido”. Ora, negar o Holo- 23 - Em síntese e encaminhando a séti-
causto e considerá-lo a mentira do século é ma conclusão deste parecer, os direitos hu-
precisamente uma das atividades a que se manos, como tema global e não circunscri-
dedica Siegfried Ellwanger. to, na agenda internacional, têm como uma
O item 61 da Declaração de Durban diz das suas causas o ineditismo do mal trazi-
igualmente: “Reconhecemos com profunda do pelo estado racial nazista. Este, lastrea-

Brasília a. 41 n. 162 abr./jun. 2004 77


do na teoria de uma “raça superior”, pro- estipulam os Tratados Internacionais em
moveu ódios públicos e conduziu uma que a República Federativa do Brasil é par-
“guerra pública” contra os judeus como te. No caso da Convenção de 1965, sua vi-
uma “raça inferior” a ser exterminada. Daí gência e aplicação em nosso país antecede
o Holocausto que se insere, ex vi de Conven- a Constituição de 1988 e o seu regime é in-
ção internacional à qual o Brasil aderiu, na teiramente compatível com o texto constitu-
tipificação de crime de genocídio. cional e a sua correspondente legislação
A inclusão dos Direitos Humanos como infraconstitucional. Neste sentido, pode se
um tema global levou a uma abrangente dizer que a Convenção de 1965 integra o
política do Direito Internacional Público, da “bloco da constitucionalidade” à maneira
qual resultou a positivação, a generaliza- do que observa Valério de Oliveira Mazzuoli
ção e a especificação do Direito Internacio- invocando Bidart Campos. Esta integração
nal da Pessoa Humana. da Convenção de 1965 ao “bloco da consti-
No que diz respeito à especificação, no tucionalidade” não é problemática, pois não
que tange à discriminação racial, o grande suscita nem o problema das antinomias nem
tratado, de cuja elaboração o Brasil partici- a discussão sobre a mudança da Constitui-
pou, é a Convenção para a Eliminação de ção, de forma distinta da prevista para as
todas as Formas de Discriminação Racial emendas constitucionais, temas com os
de 1965, vigente no Brasil. A Convenção quais se preocuparam os Ministros Moreira
teve, entre as razões que instigaram a sua Alves e Gilmar Mendes e também, no cam-
redação, a memória das atrocidades das prá- po doutrinário, o Prof. Manoel Gonçalves
ticas racistas do nazismo, nos anos 30 e 40, Ferreira Filho (cf. Valério de Oliveira Ma-
particularmente as anti-semitas. zzuoli, Direitos Humanos, Constituição e os Tra-
A Convenção, no seu art. I, estabelece que tados Internacionais, cit. p. 244; German J. Bi-
discriminação racial significa qualquer dis- dart Campos, El Derecho de la Constitucion y
tinção, exclusão, restrição ou preferência su fuerza normativa; Buenos Aires, EDIAR,
baseadas em raça, cor, descendência ou ori- 1995, pp. 264-267, 399-401; José Carlos Mo-
gem nacional ou étnica. No seu art. 4, a Con- reira Alves in Ives Gandra da Silva Martins,
venção considera que está no âmbito do di- coord. Simpósio sobre imunidades tributárias,
reito penal e na estrutura da prática do ra- Revista dos Tribunais, 1998, pp. 22-23, 25;
cismo a difusão de idéias baseadas na su- Gilmar Ferreira Mendes, Jurisdição Constitu-
perioridade ou ódios raciais. Neste sentido cional - O controle abstrato de normas no Brasil
a Convenção de 1965 incorporou, na sua e na Alemanha, São Paulo, Saraiva, 1996, p.
concepção de delito, o previsto no art. III, c, 178; Manoel Gonçalves Ferreira Filho, Co-
da Convenção de 1948 para o crime de ge- mentários à Constituição brasileira de 1988, 2a
nocídio. ed. atualizada e reformulada, vol. 1, Sarai-
O Brasil, nos trabalhos preparatórios da va, 1997, p. 85).
Convenção de 1965, co-patrocinou emenda, O STF, no acórdão relatado pelo Minis-
com o objetivo de incluir no texto da Con- tro Celso de Mello, em 23/6/94 (HC 7384),
venção uma referência específica ao anti- examinado no item 9 deste parecer, realça
semitismo. O anti-semitismo, como tema atu- que, entre os meios à disposição do intér-
al da agenda internacional voltada para o prete para aplicar o Direito no Brasil, estão
combate ao racismo e à discriminação raci- os atos internacionais que, subscritos pelo
al, tem sido objeto de reconfirmada preocu- Estado brasileiro, se acham formalmente in-
pação nos textos emanados da ONU. corporados ao nosso sistema jurídico. É o
O § 2º do art. 5 º da Constituição de 1988 caso da Convenção de 1965 sobre a Elimi-
determina, em matéria de direitos e garanti- nação de Todas as Formas de Discrimina-
as, a recepção, pelo Direito brasileiro, do que ção Racial.

78 Revista de Informação Legislativa


Destarte, entendo que o Direito Interna- o menor, conteúdo da garantia do direito
cional Público contribui para confirmar a tutelado, como foi ainda discutido ao longo
quarta conclusão deste parecer. A Conven- deste parecer. Mas também não é isso o que
ção de 1965 integra o bloco da constitucio- revela a História do Brasil.
nalidade dos direitos e garantias e reforça a 25 - Com efeito, a História do Brasil se
interpretação voltada para assegurar a im- inicia com o que atualmente denominamos
peratividade da tutela constitucional da práticas racistas e, como estipula o art. 5º,
condenação da prática do racismo como cri- LXII, da Constituição, puni-las obedece à
me imprescritível. Ela qualifica, no seu art. intenção do Constituinte, consignada no
1º, como discriminação racial qualquer dis- Preâmbulo da Constituição de 1988, que afir-
tinção, exclusão, restrição ou preferência ba- ma, como vis directiva da sua interpretação,
seadas em raça, cor, descendência ou ori- “os valores supremos de uma sociedade”
gem nacional ou étnica e estipula, no seu que hoje se deseja “fraterna, pluralista e sem
art. 4º, como parte da estrutura de delito, a preconceitos, fundada na harmonia social”.
difusão de idéias baseadas na superiorida- No seu livro, O Racismo na História do
de ou ódios raciais ou qualquer incitamento Brasil (8 a ed., cit.), Maria Luiza Tucci Car-
à discriminação racial. A prática do racismo neiro mostra que, do século XVI até o século
inclui, assim, o anti-semitismo, que é um fe- XVIII, essas práticas racistas se davam pela
nômeno social, que independe de um inexis- distinção entre os que eram limpos de san-
tente e impreciso conceito de “raças”. O con- gue e os que não eram, uma distinção inspi-
teúdo jurídico do art. 5º, LXII, da Constitui- rada pelo Édito de Toledo de 1449. Limpos
ção de 1988, e sua correspondente legislação de sangue eram os que não tinham na famí-
infraconstitucional, insere no delito de práti- lia nenhum membro pertencente às raças
ca do racismo a divulgação de idéias anti- ditas impuras, cujo sangue manchava. Daí
semitas, cuja publicação constitui o crime im- a expressão “raça infecta” que aparece nos
prescritível de Siegfried Ellwanger. documentos coloniais. Eram, no Brasil co-
lônia, considerados de raça impura, os ne-
VIII – Amplitude da prática do gros, os mestiços, os indígenas e os judeus,
racismo no Brasil inclusive os convertidos, que eram qualifi-
cados de cristãos-novos, para diferenciá-los
24 - O impetrante alega que o discurso dos cristãos-velhos, limpos de sangue. Aos
racista no Brasil foi sempre dirigido contra de raça impura eram vedados o acesso a
o negro e, por essa razão, desde a lei Afonso cargos de responsabilidade na administra-
Arinos, o que o Direito brasileiro tutela é a ção pública. Daí a importância dos atesta-
proibição da discriminação pela cor da pele. dos comprobatórios da “limpeza do san-
Assim, o art. 5º, LXII, da Constituição de gue” e os esforços de encobrir a presença da
1988, e a sua correspondente legislação in- “raça infecta” no sangue de figuras de proa
fraconstitucional – o art. 20 da Lei 7.716/89 no Brasil colonial, como relata o historiador
com a redação dada pela Lei 8.081/90 – foi Evaldo Cabral de Mello, no seu importante
elaborado em conformidade com as carac- livro, O Nome e o Sangue, (2 a ed., revista, Rio
terísticas do racismo imperante na socieda- de Janeiro, Topbooks, 2000).
de brasileira e, como tal, deve ser interpreta- Em relação aos cristãos-novos, o proble-
do e aplicado. Não é isso, no entanto, o que ma da pureza ou impureza do sangue era
está no texto das normas, nem é esse o único especialmente ameaçador. Era ameaçador
valor nelas positivado, como foi visto no em função da Inquisição estabelecida em
correr deste parecer. Não é esse, igualmen- Portugal em 1536, que fazia do critério da
te, o critério de interpretação dos direitos hu- impureza do sangue um elemento compro-
manos, que deve sempre visar o maior, e não batório de um judaísmo oculto e de uma fé

Brasília a. 41 n. 162 abr./jun. 2004 79


cristã inautêntica, merecedora das penas in- Na “Genealogia Geral para desvanecer
quisitoriais. Essas, com freqüência, levavam a opinião dos senhores fidalgos portugue-
aos autos-de-fé e à morte das vítimas na fo- ses que se dizem puritanos”, que Jaime Cor-
gueira. tesão situa em torno de 1747, Alexandre de
O Pe. Antonio Vieira, que foi um grande Gusmão, no dizer do mesmo eminente his-
defensor da “gente de nação” – a denomi- toriador do Tratado de Madri: “... vinga toda
nação dos judeus e cristãos-novos portu- a comunidade dos cristãos-novos e dos sus-
gueses na época –, a isso faz referência na peitos da raça infecta. Forçando com ironia
proposta de 1646 a D. João IV, na qual reco- a lógica ele demonstra por absurdo a inani-
menda a mudança dos estilos do Santo Ofí- dade e o ridículo das pretensões dos purita-
cio e do Fisco. Além de tratar da mudança e nos, que todos, ao arrepio das gerações pas-
da moderação dos ministros da Inquisição, sadas, podiam e deviam ter, em maior ou
propunha Vieira “que todo o homem de na- menor grau, circulando nas veias e macu-
ção seja hábil para qualquer ofício, honra lando sua pureza azul, algumas gotas de
ou mercê dos que não requerem exame e lim- sangue hebraico” (Jaime Cortesão, Alexandre
peza” e “que nos que requerem exame e lim- de Gusmão e o Tratado de Madrid- Parte I - tomo
peza, se faça o exame pelo que toca a fé, e II - 1735-1753, Rio de Janeiro, Ministério das
não pelo que pertence ao sangue” (o texto se Relações Exteriores/Instituto Rio Branco,
encontra em Pe. Antonio Vieira, Escritos His- 1958, p. 213; Alexandre de Gusmão, Obras,
tóricos e Políticos, São Paulo, Martins Fontes, São Paulo, Ed. Cultura, 1943, pp. 75-78).
1995, p. 324). Na história da literatura luso-brasileira,
As práticas racistas baseadas no precon- a mais conhecida vítima das fogueiras da
ceito de pureza do sangue em relação aos Inquisição é Antonio José da Silva – o Ju-
judeus e seus descendentes, do ponto de vis- deu, nascido no Rio de Janeiro em 1705 e
ta jurídico, só foram eliminadas por legisla- cuja família se viu forçada a seguir sob pri-
ção portuguesa, válida para as colônias, são para Lisboa em 1712, por força de de-
inclusive o Brasil, promulgada pelo Marqu- núncias à Inquisição. Antonio José da Sil-
ês de Pombal entre 1768 e 1774. Nessa legis- va, grande amigo de Alexandre de Gusmão
lação, destaca-se a Carta-Lei de 1773, que e a maior figura do teatro português que se
proibia o emprego das expressões cristão- seguiu a Gil Vicente, estudou em Coimbra,
novo e cristão-velho, ditas ou escritas (cf. advogou e teve sucesso literário. Enfrentou
Maria Luiza Tucci Carneiro, op. cit. pp. 9- dois processos da Inquisição e, no segundo,
14; cf. também Anita Novinsky, Cristãos No- foi condenado a morrer na fogueira, num
vos na Bahia , São Paulo, Perspectiva – auto-de-fé, em 1739. (Cf. Alberto Dines, Vín-
EDUSP, 1972). culos do Fogo, vol. I, São Paulo, Cia. das Le-
Um documento importante, que contri- tras, 1992; Anita Novinsky, Cristãos-Novos
buiu para a legislação pombalina, é um juí- na Construção do Brasil, in Arnaldo Niski-
zo do escritor e diplomata Alexandre de er, coord., Contribuição dos Judeus ao Desen-
Gusmão. Nascido em Santos, muito prova- volvimento Brasileiro, Rio de Janeiro, Acade-
velmente de uma família de cristãos-novos, mia Brasileira de Letras, 1998, pp. 29-40).
é ele considerado o avô da diplomacia bra- Domingos José Gonçalves de Magalhães,
sileira, pois foi o principal negociador, pela a quem devemos o esforço de criar uma lite-
Coroa Portuguesa, do Tratado de Madri de ratura brasileira diferenciada da portugue-
1750, celebrado entre Espanha e Portugal, sa e que deu início, com a sua obra e ação, à
no qual foram consagrados os princípios, especificidade do Romantismo nas nossas
entre eles o uti possidetis, da delimitação das letras, foi sensível às camadas discrimina-
fronteiras, nas quais se fundamentou, com su- das da sociedade, entre elas os judeus. É o
cesso, a diplomacia do Brasil Independente. que se vê na sua peça de 1838, “Antonio

80 Revista de Informação Legislativa


José da Silva ou o Poeta e a Inquisição”, que Um dia cheio de contrariedade é ‘um dia-
assinala o início do Romantismo no teatro de-judeu’; e um dia triste, de sol entre nu-
nacional. Assim coloca na boca de seu he- vens e de amiudado cantar do galo, se diz
rói cristão-novo, no quinto e último ato, no que ‘morreu judeu’”. (Pereira da Costa, Fol-
diálogo de Antonio José com frei Gil que clore Pernambucano, 116). Quem cospe em
antecede a fogueira da Inquisição, as seguin- cristão é judeu. Quem promete e falta é ju-
tes palavras: deu. Quem come carne em dia da Paixão é
“Co’o labéo de Judeu, com que me judeu. Judeu bebe sangue de gente. Judeu
infamam, come carne de menino novo.”
Fica minha memória nodoada” 27 - A experiência histórica brasileira de
(cf. Domingos J. G. de Magalhães, Tragédias, discriminação e preconceito, acima relata-
Rio de Janeiro, Garnier, 1865, p. 112; cf. tam- da, tinha evidente compatibilidade com o
bém Kathe Windmüller, O Judeu no Teatro caldo de cultura mais amplo das teorias ra-
Romântico Brasileiro, São Paulo, FFLCH/ cistas que foram parte da História das Idéi-
USP – Centro de Estudos Judaicos, 1984, pp. as e das mentalidades nos séculos XIX e XX,
89-95) discutidas na parte VI deste parecer. Essa
26 - O preconceito racial em relação aos mentalidade racista teve sua irradiação no
judeus, baseado na “impureza de sangue”, Brasil. Está presente, por exemplo, em Var-
a nódoa de que fala Domingos José Gonçal- nhagen, na sua construção da História do
ves de Magalhães e que o Dicionário de Brasil, em Silvio Romero, em Nina Rodri-
Moraes registra, como foi visto no item 16 gues, em Oliveira Viana, que enxergaram na
deste parecer, não desapareceu. Persistiu na mestiçagem entre brancos, negros e índios –
memória da língua portuguesa tal como a mescla maior da identidade brasileira –
usada em nosso país. É o caso dos vocábu- uma das razões daquilo que emperrava o
los judiar e judiaria e da representação do desenvolvimento do Brasil. Daí, em função
judeu no folclore brasileiro, que atestam em de uma hipotética e equivocada divisão en-
surdina a força que ainda tem esse precon- tre “raças” superiores e inferiores, a afirma-
ceito discriminatório, em função da experi- ção da superioridade dos brancos e a inferi-
ência histórica do Brasil. oridade dos demais e o “branqueamento”
Luís da Câmara Cascudo, no seu repu- como caminho para o país.
tado Dicionário do Folclore Brasileiro (3 a ed., Na década de 30, no Brasil, o caldo de
1972, Ediouro), no verbete judeu, a seguir cultura desta mentalidade explicativa de
reproduzido, confirma essa asserção: práticas sociais racistas foi receptivo às vi-
“Judeu. Como reminiscência religiosa sões do racismo anti-semita que o racismo
permanece no espírito popular a figura do alemão propagou pela Europa e difundiu
judeu como símbolo da malvadez absoluta, no mundo. Ele também encontrou ressonân-
alegrando-se com o sofrimento alheio, ego- cia na memória das “impurezas de sangue”
ísta, insensível, imperturbável de orgulho. do período colonial, que a língua portugue-
No vocabulário ficavam esses elementos sa no Brasil e o folclore brasileiro preserva-
longínquos da impressão coletiva contra o ram, como foi visto acima.
israelita. Judiar é maltratar, torturar, mago- Esse dado cultural contribui para expli-
ar. Judiaria não é a reunião de judeus, mas o car a existência, no aparelho do Estado, das
ato, a ação de judiar. Comum apontar-se o circulares-secretas e outras medidas volta-
gesto mau como natural no judeu: das para restringir a imigração de judeus
‘Quem matou meu passarinho para o Brasil na década de 30 e durante a
Foi judeu, não foi cristão; Segunda Guerra Mundial. Essas restrições
Meu passarinho tão manso têm uma fundamentação implícita ou explí-
Que comia em minhas mãos’ cita de natureza racista como documentou,

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de forma abrangente, Maria Luiza Tucci revela, através de documentos que funcio-
Carneiro no seu livro O anti-semitismo na Era navam como as “circulares secretas” do Ita-
Vargas - 1930-1945, (São Paulo, Brasiliense, maraty, a maneira pela qual, durante o Es-
1988). Com efeito, são inúmeros os documen- tado-Novo, impedia-se o acesso ao Colégio
tos contidos nos arquivos do Itamaraty, em Militar e à Escola Militar, e, portanto, à car-
outros arquivos públicos, na documentação reira no Exército, de brasileiros judeus (cf.
preservada no CPDOC da Fundação Getú- José Murilo de Carvalho, Forças Armadas e
lio Vargas, apresentados por Maria Luiza Política, 1930-1945, in A Revolução de 30,
Tucci Carneiro, que argumentam, com ine- Seminário Internacional, (org. CPDOC-FGV),
quívoca visão racista, contra a imigração e Brasília, Ed. Universidade de Brasília, 1983,
a presença judaica no Brasil. p. 128, p. 183).
Um paradigma dessa visão racista, que Essas políticas racistas se viram instiga-
atribuiu aos judeus uma dimensão de san- das pela propaganda contra o judeu conti-
gue – um jus sanguinis às avessas –, é um da nas obras anti-semitas publicadas na
Projeto de lei que Maria Luiza Tucci Carnei- época. Entre elas, O Judeu Internacional, de
ro encontrou nos arquivos do Itamaraty e Henry Ford; A História Secreta do Brasil de
reproduziu no anexo 9 do seu livro (p. 524). Gustavo Barroso; Os Protocolos dos Sábios do
Diz o art. 1º desse projeto: “Para efeitos da Sião apostilado por Gustavo Barroso; Brasil
entrada no território brasileiro, os indivídu- Colônia de Banqueiros de Gustavo Barroso.
os de origem semita, nascidos em quaisquer Esses livros estão entre aqueles publicados
países estrangeiros, serão considerados, glo- e divulgados por Siegfried Ellwanger e cons-
balmente como pertencentes à nacionalida- tituem o núcleo da propaganda doutrinária
de judaica” (sobre o jus sanguinis às aves- anti-semita dos anos 30, analisada por Ma-
sas, nesta matéria, estranho à Constituição ria Luiza Tucci Carneiro, (O Antisemitismo
brasileira e às leis do Brasil, cf. Avraham na Era Vargas, cit, cap. 6).
Milgram, Arthur Hehl Neiva e a Questão da Não é o caso de uma discussão de maior
Imigração Judaica no Brasil, in Em nome da amplitude sobre o pensamento de Gustavo
Fé, Estudos in Memoriam de Elias Lipner, Na- Barroso (sobre a matéria, ver: Marcos Chor
chman Falbel, Avraham Milgram, Alberto Maio, Nem Rotschild nem Trotsky: o pensamen-
Dines, organiz., São Paulo, Perspectiva, to anti-semita de Gustavo Barroso, Rio de Ja-
1999, pp. 145-156). Esse projeto de lei lem- neiro, Imago, 1992, cap. 3; Maria Luiza Tuc-
bra o tema da “impureza de sangue” do pe- ci Carneiro, A Trajetória de um Mito no Bra-
ríodo colonial. Ecoa o espírito da legislação sil: Os Protocolos dos Sábios de Sião; Roney
racial nazista – as leis de Nuremberg de Cytrynowicz, A América do Sul e o Anti-
1935, voltadas para “a proteção do sangue semitismo na Visão Integralista de Gustavo
e da honra alemã” – e da legislação italiana Barroso e de Plínio Salgado; Marcos Chor
fascista que, a partir de 1938, definia quem Maio, Marcas de uma Trajetória: A Militân-
era de razza ebraica, com o objetivo de estabe- cia Anti-semita de Gustavo Barroso, in Ibé-
lecer misure contra chi attenta al prestigio della ria-Judaica: Roteiros da Memória, Anita No-
razza nel territorio dell’Impero. (cf. verbete, Ra- vinsky e Diane Kuperman, org., Rio de Ja-
zzismo, de Arturo Colombo, in Novissimo neiro, São Paulo, Expressão e Cultura/
Digesto Italiano, 3a ed., Torino, UTET, 1982, EDUSP, 1996, respectivamente, pp. 487-514;
vol. XIV, pp. 914-916). 514-525, 527-539), mas acho relevante, para
Essa postura governamental brasileira os propósitos deste parecer, lembrar o que,
redundou em práticas racistas que não se nas suas Memórias, diz Miguel Reale sobre
restringiram à política migratória. José Mu- o papel de Gustavo Barroso na Ação Inte-
rilo de Carvalho, em estudo sobre as Forças gralista Brasileira. Aponta Miguel Reale que
Armadas e a Política no período 1930-1945, a AIB não era compacta do ponto de vista

82 Revista de Informação Legislativa


doutrinário. Nela atuaram três grandes cor- CPDOC, 2001; Aspásia Camargo e colabo-
rentes de opiniões diversificadas. A mais radores, O Golpe Silencioso, Rio de Janeiro,
numerosa, liderada por Plínio Salgado, Rio Fundo Ed., 1989, pp. 214-215).
“fundada na doutrina social da Igreja e na 28 - Assim, e esta é a oitava e última con-
exaltação nacionalista”; outra “que dava ên- clusão deste parecer, não é factualmente
fase especial aos problemas sociais e sindi- correta a alegação do impetrante de que o
cais, assim como problemas jurídicos-insti- discurso racista, em nosso país, foi sempre
tucionais do Estado”, e “uma terceira, mais dirigido contra o negro e de que o tema da
preocupada com os valores tradicionais da discriminação racial se coloca exclusiva-
história pátria, a que acrescentava um anti- mente em torno da cor da pele.
semitismo de frágil mas espalhafatosa fun- O discurso racista e as práticas racistas
damentação, com Gustavo Barroso à fren- que ele ensejou, no Brasil, lamentavelmente
te” (Miguel Reale, Memórias, vol. I, Destinos tiveram amplitude. Voltou-se contra o ne-
Cruzados, 2 a ed. revista, São Paulo, Saraiva, gro, o mulato, o índio, o cigano e o judeu,
1987, p. 80). que em muitos momentos da nossa História
É precisamente a divulgação do anti-se- foram tidos como “seres inferiores”, como
mitismo “de frágil mas espalhafatosa fun- conclui no seu livro, O Racismo na História
damentação” de Gustavo Barroso, que ins- do Brasil (cit. p. 62) Maria Luiza Tucci Car-
tigou práticas de racismo anti-judaico no neiro.
Brasil dos anos 30, parte integrante do cri- É relevante, neste sentido, para explicar
me pelo qual foi condenado Siegfried a amplitude das modalidades dessas práti-
Ellwanger. Não acho irrelevante mencionar, cas racistas, trazer à colação uma distinção
neste contexto em que estou discutindo o conceitual elaborada por Oracy Nogueira,
impacto do anti-semitismo no Brasil nos num pioneiro estudo de 1954 sobre relações
anos 30, que o pretexto para o golpe de 1937 raciais no Brasil. Na análise do preconceito
tenha sido o “Plano Cohen”. Esse plano foi racial, identifica Oracy Nogueira tanto o que
elaborado pelo então Capitão Olympio qualifica de preconceito de marca – que é o
Mourão Filho, lotado no Estado Maior do preconceito de cor que tem como pretexto,
Exército, mas que era simultaneamente che- para as suas manifestações, os traços físi-
fe do Serviço Secreto da Ação Integralista cos, ou seja, a aparência – quanto o precon-
Brasileira e chefe do Estado-Maior de sua ceito de origem, para o qual o pretexto do pre-
Milícia, dirigida por Gustavo Barroso. O conceito é a suposição de que o indivíduo
“Plano” não se baseava em informações. descende de certo grupo (cf. Oracy Noguei-
Fazia parte da “pedagogia integralista” que ra, Tanto Preto Quanto Branco: Estudos de Re-
naquele momento associava anti-semitismo lações Raciais, São Paulo T. A. Queiroz Ed.,
e anti-comunismo e foi denominado de “Pla- 1985, pp. 78-79).
no Cohen” por Gustavo Barroso. Era uma As práticas racistas, cuja condenação
fraude, como se revelou depois de 1945, mas prevê o art. 5º, LXII, e a sua correspondente
foi, no entanto, apropriado pelo Estado- legislação infraconstitucional, não resultam
Maior do Exército como peça de retórica e apenas da cor da pele, como alega o impe-
propaganda para sustentar e justificar a ins- trante – o que configuraria, de forma restri-
tauração do Estado Novo (cf. Paulo Brandi, tiva, apenas a tutela contra o preconceito de
verbete Plano Cohen in Dicionário Histórico- marca. Incluem o preconceito de origem, para
Biográfico Brasileiro pós 1930, vol. IV (2 a ed. valer-me da distinção proposta por Oracy
revista e atualizada) coordenação Alzira Nogueira. Este está presente na nossa expe-
Alves de Abreu, Israel Beloch, Fernando riência histórica, como foi visto, e retém atu-
Lattman-Weltman, Sérgio Tadeu de Nie- alidade. Disso é exemplo a conduta de Sie-
meyer Lamarão, Rio de Janeiro, Ed. FGV/ gfried Ellwanger – uma conduta que é con-

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trária à vis directiva do Preâmbulo da Cons- critível. As razões e os fundamentos jurídi-
tituição de 1988, que “deve ser levado em cos nos quais se baseia este parecer estão
conta quando da interpretação das normas sumariadas abaixo, na forma de uma sínte-
constitucionais”, na lição de Manoel Gon- se conclusiva.
çalves Ferreira Filho (Comentários à Consti- 28 - Na Conferência Mundial de Direi-
tuição Brasileira de 1988, vol. 1, cit., p. 15), tos Humanos de Viena de 1993, o Ministro
como é o caso do HC 82424-2, ora em exame Maurício Corrêa, que chefiava a Delegação
pelo STF. brasileira na sua condição, à época, de Mi-
Por essas razões todas, também não é nistro da Justiça, em discurso no plenário,
nem histórica nem juridicamente correta a em 14/6/93, fixou a linha geral da posição
afirmação do impetrante que a lei Afonso brasileira, invocando a indivisibilidade dos
Arinos teve como destinatários exclusivos direitos humanos (cf. Antonio Augusto Can-
da sua tutela o ser em situação, vítima da çado Trindade, A proteção internacional dos
discriminação, em função da cor da sua pele. direitos humanos e o Brasil, cit., p 105). A Con-
A lei Afonso Arinos, (Lei nº 1.390, de 3/ju- ferência de Viena, na sua Declaração e Pro-
lho/1951) foi pioneira, em nosso País, na grama de Ação, agregou a noção de indivi-
positivação, como contravenção penal, de sibilidade ao seu item 5, esclarecendo-a ao
práticas discriminatórias, dando, assim, afirmar que todos os direitos humanos são
início à etapa da especificação do processo universais, interdependentes e inter-relaci-
de afirmação dos direitos humanos. A Lei onados. Por isso mesmo a Conferência, no
1.390/51 se refere, em todos os sete artigos item 32, reafirmou a importância de se ga-
que tipificam a contravenção penal, ao pre- rantir universalidade, objetividade e não
conceito de raça ou cor. A sua tutela contem- seletividade na consideração de questões
plou, conseqüentemente, tanto o preconcei- relativas a direitos humanos. (A Declaração
to de marca quanto o preconceito de origem, e Programa de Ação de Viena está reproduzi-
não cabendo uma interpretação restritiva de da no apêndice do livro de J. A. Lindgren Al-
seu conteúdo, por força do próprio texto da ves, Os Direitos Humanos como tema global, São
lei. A Lei 7.716/89 e o seu artigo 20, com a Paulo, Perspectiva, 1994; os itens 5 e 32, estão
redação dada pela Lei 8.081/90 e outras respectivamente, nas páginas 153 e 162).
mudanças legislativas subseqüentes, na es- Indivisibilidade e, por via de conseqü-
teira do processo de especificação iniciado ência, universalidade, interdependência,
com a lei Afonso Arinos de 1951, definem inter-relacionamento e não-seletividade foi
os crimes resultantes de preconceito de raça a posição assumida pelo Ministro Maurício
ou de cor. Abrangem, portanto, em conso- Corrêa em Viena. Ela corresponde inteira-
nância com a tradição do direito brasileiro mente ao que estipula, para o plano interno
ex vi de tipificação determinada pelo art. 5 º, e externo, a Constituição de 1988, e foi essa
LXII da Constituição de 1988, tanto o pre- posição o ponto de partida deste parecer.
conceito de marca quanto o de origem. Sub- 29 - O art. 5º, LXII, está inserido na siste-
sume, assim, na sua tutela, o anti-semitis- mática constitucional dos direitos e garan-
mo como prática de racismo e é, portanto, tias individuais, tutelada por cláusula pé-
inteiramente aplicável à conduta criminosa trea, o que significa que a vis directiva do
de Siegfried Ellwanger. constituinte foi dar estabilidade e perma-
nência a um sistema integrado de valores
IX – Síntese conclusiva de convivência coletiva, que tem como va-
lor-fonte a dignidade da pessoa humana,
Respondo, assim, à consulta formulada: ao qual a Constituição atribuiu supremacia
o crime cometido por Siegfried Ellwanger é axiológica. Deve, por isso mesmo, o art. 5º,
o da prática do racismo e, como tal, impres- LXII, ser apreciado e interpretado com os

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cuidados especiais exigidos pela indivisi- espécie humana – e, portanto, do ponto de
bilidade dos direitos humanos. vista biológico, não apenas os judeus, como
30 - O art. 5º, LXII, exprime a especifica- também os negros, os índios, os ciganos ou
ção do princípio geral da igualdade e da quaisquer outros grupos, religiões ou naci-
não discriminação. O seu destinatário é o onalidades não formam raças distintas. É o
ser em situação vitimado pela prática do ra- que diz a Declaração da UNESCO de 1978
cismo. O artigo é uma inovação da Consti- sobre Raça e Racismo; é o que dizem auto-
tuição de 1988 e é parte do processo mais res citados pelo impetrante, que mostram
amplo da especificação dos direitos huma- que “raça” é uma construção histórico-so-
nos, que caracteriza o nosso texto constitu- cial, voltada para justificar a desigualdade.
cional. Tem como nota própria o rigor da Essa omissão é o ponto de partida da falaci-
tutela penal, indicativa da importância que osa argumentação do impetrante. Com efei-
a Constituição atribui à repressão da práti- to, os judeus não são uma raça, mas tam-
ca do racismo. bém não são raça os negros, os mulatos, os
31 - O critério de interpretação dos direi- índios e quaisquer outros integrantes da
tos humanos deve favorecer, pela importân- espécie humana que, no entanto, podem ser
cia a eles atribuída pela Constituição de vítimas da prática do racismo. É o caso, por
1988, de maneira ampla, o conteúdo do di- exemplo, dos párias na Índia, discutido na
reito contemplado. Entre os direitos e garan- Conferência de Durban sobre Racismo, víti-
tias individuais, inclui-se, ex vi do art. 5º, mas de um preconceito de origem e não de
LXII, a rigorosa inaceitabilidade da prática marca, para recorrer à distinção de Oracy
do racismo. A Constituição de 1988 é expli- Nogueira. Interpretar o crime da prática do
citamente receptiva ao Direito Internacional racismo a partir do conceito de “raça”, como
Público em matéria de Direitos Humanos, o argumenta o impetrante, exprime não só
que configura uma identidade de objetivos uma seletividade que coloca em questão a
do direito internacional e do direito público universalidade, interdependência e inter-re-
interno, quanto à proteção da pessoa hu- lacionamento, que compõem a indivisibili-
mana. Por isso mesmo, como decidiu o STF dade dos direitos humanos, afirmada, em
no acórdão de 23/6/1994 (HC 7384), do nome do Brasil, pelo Ministro Maurício Cor-
qual foi relator o Ministro Celso de Mello, rêa em Viena. Representa, sobretudo, redu-
na interpretação em matéria de Direitos zir o bem jurídico tutelado pelo Direito bra-
Humanos, o Direito Interno e o Direito In- sileiro, o que não é aceitável como critério
ternacional não são estanques. Interagem de interpretação dos direitos e garantias
com vistas a reforçar a imperatividade do constitucionais. No limite, essa linha de in-
direito constitucionalmente garantido. Este terpretação restritiva pode levar à inação ju-
é, conseqüentemente, também um critério re- rídica por força do argumento contrario sen-
levante para a interpretação do art. 5º, LXII, su, que cabe em matéria penal. Com efeito,
da Constituição de 1988. levadas às últimas conseqüências, ela con-
32 - O conteúdo jurídico do preceito cons- verteria a prática do racismo, por maior que
titucional consagrado pelo art. 5º, LXII, do fosse o esmero na descrição da conduta, em
crime da prática do racismo, tipificado pela crime impossível pela inexistência do obje-
legislação infraconstitucional, reside nas to: as raças.
teorias e preconceitos que estabelecem dife- 33 - O acerto da não interpretação do cri-
renças entre grupos e pessoas, a eles atribu- me da prática do racismo a partir do concei-
indo as características de uma “raça” para to de “raças”, à maneira do que preconiza o
discriminá-las. Daí a repressão prevista no HC 82424-2 impetrado em favor de Siegfri-
art. 20 da Lei 7.716/89, com a redação dada ed Ellwanger, confirma-se por dois casos
pela Lei 8.081/90. Só existe uma “raça” – a decididos por eminentes Cortes Superiores

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de outros países, que comportam aproxima- nos. A taxonomia tornou-se dinâmica com
ção com o HC 82424-2 ora submetido ao jul- o evolucionismo de Darwin e, no que diz
gamento do STF. Tanto o caso da Shaara Te- respeito aos seres humanos, os múltiplos
fila Congregation v Cobb, decidido pela Su- porém imprecisos critérios de classificação
prema Corte dos EUA em 1987, quanto o das raças estavam ligados à aparência.
caso Mandla and another v Dowell Lee and ano- No século XIX, a taxonomia das raças
ther, decidido pela House of Lords da Ingla- acabou induzindo o racismo. Com efeito, a
terra em 1983, interpretam e aplicam a le- classificação das raças levou às teorias ra-
gislação dos seus respectivos países em ma- cistas – por exemplo, as de Gobineau – que
téria de discriminação racial. O caso decidi- justificaram a desigualdade com base na
do pela Suprema Corte dos EUA diz respei- diferença entre raças superiores e inferio-
to à prática do racismo em relação a judeus. res. Essas teorias vicejaram no caldo de cul-
O caso decidido pela House of Lords diz tura do darwinismo social e passaram a fa-
repeito à prática do racismo em relação aos zer parte da História das mentalidades.
sikhs. Em ambos, essas duas Cortes Superi- As teorias racistas buscaram sua funda-
ores decidiram, não obstante as alegações mentação nas ciências biológicas. Justifica-
dos réus semelhantes às do impetrante, que, ram a prepotência da expansão colonial eu-
apesar de os judeus e de os sikhs não serem ropéia e foram a base do racismo biológico
uma “raça”, foram vítimas de práticas ra- institucionalizado da Alemanha nazista.
cistas, cabendo assim, respectivamente, a Esta instigou ódios públicos e conduziu uma
tutela da legislação norte-americana de guerra pública em relação aos que a lide-
1982 e da legislação inglesa de 1976, que rança nazista considerava raças inferiores,
tratam da discriminação racial. Nesses dois com destaque para os judeus.
casos que julgaram em matéria de discrimi- O avanço do conhecimento e o desven-
nação racial, atribuiu-se ao termo “raça” sua dar do seqüenciamento do genoma huma-
dimensão histórico-cultural, da qual pro- no se incumbiram de mostrar que não há
vém as práticas discriminatórias. fundamentação biológica em qualquer sub-
34 - A etimologia da palavra raça, no divisão racial da espécie humana e que os
entender de vários filólogos é obscura, como critérios de diferenças visíveis, a começar
obscuras vieram a ser as conseqüências do pela cor da pele, são apenas juízos de apa-
seu uso social. Em português, na sua ori- rência. Neste sentido as ciências biológicas
gem, além de ser utilizada para diferenciar, são um elemento adicional para a afirma-
cão, cavalo, de boa ou má raça, adquiriu ção do princípio da igualdade e da não dis-
outro significado. Ter raça é ter sangue de criminação, que resultaram da positivação
mouro ou judeu. Essa mesma acepção de do valor do ser humano.
cunho negativo se encontra em espanhol e As teorias racistas não têm fundamenta-
a origem desse emprego, nas duas línguas, ção biológica. Persistem, no entanto, como
reside nas tensões provenientes da Recon- fenômeno social. É por essa razão que é este
quista pelos cristãos da Península Ibérica, fenômeno, e não a “raça”, o destinatário ju-
dominada por séculos pelos árabes e nos rídico da repressão prevista pelo art. 5 º, LXII,
conflitos religiosos que posteriormente le- da Constituição, e da sua correspondente
varam ao estabelecimento da Inquisição. legislação infraconstitucional. É precisa-
Alguns filólogos derivam raça do latim, mente porque a prática do racismo está na
ratio, rationis, na acepção da modalidade, cabeça das pessoas que o art. 20 da Lei
espécie. Foi essa acepção que prosperou 7.716/89, com a redação dada pela Lei
quando, no século XVIII, teve início, pela obra 8.081/90 e também sua evolução legislati-
de Lineu, não só a classificação das plantas va, tipifica na estrutura do delito o praticar,
e animais como também dos seres huma- induzir ou incitar por publicações e pelos

86 Revista de Informação Legislativa


meios de comunicação a divulgação de teo- venção que está em vigor no plano internaci-
rias que discriminam grupos ou pessoas, a onal foi recepcionada pelo Direito brasileiro.
elas atribuindo as características de “raças São relevantes na discussão do HC
inferiores”. Essa divulgação é crime de prá- 82424-2, ora em exame pelo STF, o art. 1-1
tica de racismo. Foi por essas bem fundamen- da Convenção, que dá uma definição abran-
tadas razões que o Tribunal de Justiça do Rio gente da expressão “discriminação racial”,
Grande do Sul condenou Siegfried Ellwan- e o art. 4, que insere na tutela penal a difu-
ger e o Superior Tribunal de Justiça confir- são de idéias baseada na superioridade ou
mou o acerto jurídico do Tribunal gaúcho. ódios raciais.
35 - As teorias e visões do mundo racis- A Convenção de 1965 antecede em vi-
tas partem do princípio que existem raças; gência e aplicação a Constituição de 1988;
que essas se dividem entre superiores e in- não suscita o problema das antinomias nem
feriores e que as superiores têm o direito de a discussão sobre a mudança da Constitui-
dominar as inferiores. Uma visão racista do ção de forma distinta da prevista para as
mundo leva a distintas escalas de agressi- emendas constitucionais – temas com os
vidade, lastreada pelo não reconhecimento quais se preocuparam os Ministros Moreira
aos “outros” dos mesmos direitos e garanti- Alves e Gilmar Mendes. É, portanto, um
as, cujo fundamento é o princípio da igual- meio válido, à disposição do intérprete, para
dade e o corolário da não discriminação. A a aplicação do Direito no Brasil em matéria
escala de agressividade se intensifica com a de Direitos Humanos, nos termos da Cons-
violência da segregação de que é exemplo o tituição de 1988, como decidiu o STF no acór-
que foi o apartheid na África do Sul. O paro- dão relatado pelo Ministro Celso de Mello
xismo da violência é o extermínio físico, tal em 23/6/94 (HC7384).
como tipificado pelo crime do genocídio. O O Direito Internacional Público é um ele-
paradigma desse paroxismo foi o Holocaus- mento adicional a confirmar que o crime
to levado a efeito pelo Estado Racial em que cometido por Siegfried Ellwanger é o da prá-
se converteu a Alemanha nazista, que con- tica do racismo. Com efeito, a Convenção de
duziu uma guerra pública contra as raças 1965 qualifica, no seu art. 1, como discrimi-
inferiores, com destaque para o extermínio nação racial, qualquer distinção, exclusão, res-
de judeus. trição ou preferência baseadas em raça, cor, des-
A Carta da ONU procurou responder ao cendência ou origem nacional e estipula, no seu
ineditismo da escala sem precedentes do art. 4, como delito, a difusão de idéias baseadas
mal, da experiência da Segunda Guerra na superioridade ou ódios raciais ou qualquer
Mundial e de seus antecedentes. Nesta res- incitamento à discriminação racial, tal como de-
posta, deu realce para o que representou o finido no art. 1º. A prática do crime de racis-
genocídio como afronta ao valor da digni- mo inclui, assim, o anti-semitismo, que é um
dade da pessoa humana. Fez, assim, da tu- fenômeno social, que independe de um ine-
tela dos direitos humanos no plano inter- xistente e impreciso conceito de “raças”.
nacional, não um tema circunscrito, mas um A história legislativa da Convenção de
tema global. 1965 comprova também que as práticas anti-
Na etapa da especificação, do processo semitas do nazismo foram uma das causas
de positivação dos Direitos Humanos no de sua elaboração e que o Brasil, nos tra-
âmbito do Direito Internacional Público, em vaux preparatoires, foi explícito nesta maté-
matéria de discriminação racial, o grande ria. Na agenda internacional da ONU, o
texto jurídico é a Convenção Internacional anti-semitismo como prática de racismo tem
para a Eliminação de Todas as Formas de sido considerado um tema de preocupação
Discriminação Racial de 1965. O Brasil parti- atual e não apenas histórica. É o que afirma,
cipou de sua elaboração normativa e a Con- por exemplo, a Resolução 623/98 da Assem-

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bléia Geral e o item 61 da Declaração da tória das Mentalidades voltadas para justi-
Conferência de Durban sobre Racismo de ficar e legitimar a desigualdade com base
2001, cabendo igualmente lembrar que a na distinção entre “raças” superiores e in-
Declaração de Durban reitera, no seu item feriores. Na década de 30, teve irradiação
58, que o Holocausto jamais deverá ser es- em nosso País o racismo nazista alemão, que
quecido. Aponto, neste sentido, que negar o tinha no anti-semitismo o seu foco prepon-
Holocausto e considerá-lo a mentira do sécu- derante. Isso contribuiu para a existência
lo é parte do crime da prática do racismo pelo de práticas racistas no aparelho do Estado,
qual foi condenado Siegfried Ellwanger. em especial no que tange às restrições da
36 - As práticas do racismo, na experiên- imigração de judeus para o Brasil na déca-
cia histórica do Brasil, em oposição ao que da de 30 e durante a Segunda Guerra Mun-
alega o impetrante, tiveram uma amplitude dial, justificadas por critérios raciais. A pos-
de destinatários que foram vitimados pela tura governamental, que não era ostensiva
discriminação. Negros, mulatos, índios, ci- mas é documentada, viu-se facilitada pela
ganos, judeus foram, em diversos momen- propaganda contra o judeu contida nas
tos da nossa História, considerados “raças obras anti-semitas publicadas na época, em
inferiores” e, como tal, discriminados. especial as de Gustavo Barroso. É a reedi-
No período colonial, as práticas racistas ção das obras do espalhafatoso anti-semi-
se davam pela distinção entre os limpos de tismo de Gustavo Barroso parte integrante
sangue – os brancos, portugueses, cristãos- do crime pelo qual foi condenado Siegfried
velhos – e os de raças ditas impuras, cujo Ellwanger.
sangue manchava – os negros, os mestiços, A legislação brasileira, desde a lei Afon-
os indígenas e os judeus, inclusive os con- so Arinos de 1951, que dá início ao proces-
vertidos, qualificados de cristãos-novos. so de especificação da tutela penal para pro-
Para os cristãos-novos, a impureza de san- teger as vítimas da discriminação racial, não
gue era uma ameaça onipresente em função tem como destinatários exclusivos o ser em
da Inquisição, que fazia do critério da im- situação, vitimado pela cor de sua pele,
pureza de sangue um elemento comproba- como argumenta sem base histórica e jurí-
tório de judaísmo oculto, que poderia con- dica o impetrante. O Direito brasileiro con-
duzir à morte nas fogueiras dos autos-de-fé. templa tanto o preconceito de raça – que o
O teatrólogo Antonio José da Silva – o Ju- sociólogo Oracy Nogueira qualificou de pre-
deu, nascido no Rio de Janeiro, é a mais no- conceito de origem – quanto o preconceito
tória vítima, na História da literatura luso- de cor – por ele qualificado de preconceito
brasileira, condenado a morrer na fogueira, de marca. Essa é a interpretação correta a
num auto-de-fé ocorrido em Lisboa em 1739. ser dada ao art. 5º, LXII, da Constituição de
A distinção entre cristãos-novos e cristãos- 1988, e à sua correspondente legislação in-
velhos, no Brasil, só foi eliminada pela Car- fraconstitucional, inclusive por força da vis
ta-Lei de 1773 promulgada ao tempo do directiva do Preâmbulo da Constituição que
Marquês de Pombal. afirma os valores supremos de uma socie-
O preconceito racial em relação aos ju- dade que se quer fraterna, pluralista e sem
deus, baseado na “impureza de sangue”, preconceitos, fundada na harmonia social.
persistiu na memória da língua portugue- 37 - Uma palavra final sobre a impres-
sa, tal como usada em nosso País com os critibilidade, pois o impetrante, na petição
vocábulos judiar e judiaria e na representa- do HC 82424-2, não nega a existência de
ção do judeu no folclore brasileiro, como um delito cometido por Siegfried Ellwanger.
atesta Luís da Câmara Cascudo. Busca afastar a imprescritibilidade, argu-
O Brasil recepcionou, nos séculos XIX e mentando não tratar-se de crime de prática
XX, teorias racistas que foram parte da His- de racismo.

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Existe um nexo estreito entre a impres- O crime de Siegfried Ellwanger é o da
critibilidade, esse tempo jurídico que se es- prática do racismo, crime de que nos quere-
coa sem encontrar termo, e a memória, ape- mos livrar, em todas as suas vertentes, para
lo do passado à disposição dos vivos, triun- construir uma sociedade digna. Tem a es-
fo da lembrança sobre o esquecimento, como pecificidade de querer preservar, por meio
explica Alain Laquièze (Le Debat de 1964 de publicações, viva, a memória de um anti-
sur l’imprescriptibilité des crimes contre semitismo racista. Foi esse anti-semitismo
l’humanité, in Droits, 31, 2000, p. 19). que levou, no Estado Racial em que se con-
A memória das práticas racistas que di- verteu a Alemanha nazista, à escala sem
ficultaram, na História do Brasil, a criação precedentes o mal representado pelo Holo-
de uma sociedade fraterna, pluralista e sem causto. O Holocausto é a recusa da condi-
preconceitos – valores supremos do País ção humana da pluralidade e da diversida-
consagrados no Preâmbulo da Constituição de, que contesta, pela violência do extermí-
– é o que o Constituinte quis preservar, para nio, os princípios da igualdade e da não
impedir sua reincidência. Por isso conferiu, discriminação, que são a base da tutela dos
no art. 5º, LXII, ao crime da prática do racis- direitos humanos. O crime de Siegfried
mo o peso e a gravidade da imprescritibili- Ellwanger, por apontar nessa direção do
dade. mal, não admite o esquecimento.

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