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Celso Lafer
Sumário
I - Considerações preliminares. II - Positi-
vação, generalização, internacionalização e es-
pecificação como processos de afirmação dos
direitos humanos. III - Interpretação do art. 5o,
XLII, da Constituição - critérios. IV - Interpre-
tação do art. 5o, XLII, da Constituição – o HC
82424-2 e o risco do esvaziamento do conteúdo
jurídico do preceito constitucional. V - Os ar-
gumentos apresentados no HC 82424-2 e os en-
sinamentos de decisões da Suprema Corte dos
EUA e da House of Lords da Inglaterra. VI - Da
raça ao racismo. VII - A prática do racismo e o
seu impacto no Direito Internacional da Pes-
soa Humana – a contribuição do Direito Inter-
Parecer apresentado e aceito pelo STF na
condição de amicus curiae, no julgamento do caso nacional-Público para a exegese do art. 5 o, XLII,
Ellwanger – HC 82424/RS (dezembro de 2002 a da Constituição de 1988. VIII - Amplitude da
setembro de 2003). Em cinco longas sessões, prática do racismo no Brasil. IX - Síntese con-
confirmou-se, por 8 votos a 3, a condenação, pelo clusiva.
Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul em
outubro de 1966, de Siegfried Ellwanger pelo crime
da prática do racismo. Foram votos vencedores o
do Ministro Maurício Corrêa, relator do acórdão
(datado de 17 de setembro de 2003), e os dos I – Considerações preliminares
Ministros Celso de Mello, Gilmar Mendes, Carlos
Velloso, Nelson Jobim, Ellen Gracie, Cezar Peluso e 1 – O Art 5º, XLXII, da Constituição de
Sepúlveda Pertence. O Acórdão foi publicado pelo 1988, diz: “a prática do racismo constitui
STF, com prefácio do Ministro Maurício Corrêa crime inafiançável e imprescritível, sujeito
(Crime de Racismo e Antisemitismo – um julgamento à pena de reclusão nos termos da lei”.
histórico do STF. Brasília, Brasília Jurídica, 2004).
No HC 82424- 2, ora em exame pelo STF,
A professora Anna Maria Villela dedicou-se, alega-se, em síntese, como adiante se discu-
no seu consistente percurso intelectual, ao Direito tirá de maneira circunstanciada, que, não
Internacional, com ênfase no Direito Internacional sendo os judeus uma raça, o crime pratica-
Privado, que tem entre os seus temas básicos o
relacionamento entre distintos ordenamentos jurí- do por Siegfried Ellwanger é o de incitamen-
dicos. Este parecer também examina a interação to contra os judeus e não o da prática do ra-
entre o ordenamento jurídico nacional e o Direito cismo. Dessa maneira busca o impetrante afas-
Internacional dos direitos humanos. Trata, assim, tar a imprescritibilidade do delito cometido.
de uma das categorias do Direito Internacional –
Público e Privado – que é a da recepção, no hori- A matéria objeto deste parecer diz res-
zonte dos interesses de Anna Maria Villela. peito à procedência ou improcedência jurí-
Brasília a. 41 n. 162 abr./jun. 2004 53
dica dessa alegação. Em síntese, assim foi helenística, com o fim da democracia e das
formulada a consulta: é o crime cometido cidades-estado, o estoicismo atribuiu ao in-
por Siegfried Ellwanger o da prática do ra- divíduo, que tinha perdido a qualidade de
cismo, nos termos da Constituição e da cor- cidadão para se converter em súdito das
respondente legislação infraconstitucional grandes monarquias, uma nova dignidade
que o tipificou, tal como decidiu o Tribunal de alcance universal. O mundo é uma única
de Justiça do Rio Grande do Sul e o Superior cidade – cosmo-polis – da qual todos partici-
Tribunal de Justiça confirmou quando de- pam como amigos e iguais. À comunidade
negou pedido de HC impetrado com os mes- universal do gênero humano corresponde
mos fundamentos? também um direito universal, fundado num
Como a vis directiva da tipificação do cri- patrimônio racional comum, daí derivando
me da prática do racismo é o art. 5º, XLII, um dos precedentes da teoria cristã da lex
integrante do Título II da Constituição, que aeterna e da lex naturalis, igualmente inspi-
tutela os direitos e garantias fundamentais, radora dos direitos humanos.
sua interpretação requer, por isso mesmo, O cristianismo associa o ensinamento
para o adequado entendimento do alcance judaico e o grego, ao aclimatar no mundo,
da matéria, breve consideração sobre o pro- através da evangelização, a idéia de que
cesso histórico de afirmação e subseqüente cada pessoa humana tem um valor absolu-
positivação dos direitos humanos. to no plano espiritual. Jesus, como ensina
2 – A tutela constitucional dos direitos e São Paulo, chamou a todos para a salvação
garantias fundamentais representa o reco- sem distinção entre judeus e gregos, escra-
nhecimento jurídico do valor da pessoa hu- vos e homens livres, homens e mulheres
mana, que é um dos princípios fundamen- (Epístola aos Romanos 10,12; Epístola aos Gála-
tais que a Constituição de 1988 proclama tas, 3,28). Neste sentido o ensinamento cris-
(art. 1º, III). O que cabe dizer sobre o processo tão é um dos elementos formadores da men-
histórico da afirmação desse valor, que está talidade que tornou possível o tema dos
na raiz da tutela contemplada no art. 5 º, XLII? direitos humanos.
O valor da pessoa humana está presen- 3 – O tema dos direitos humanos adqui-
te no livro do Gênesis (1,26), que afirma que riu expressão normativa na Inglaterra, com
“Deus criou o homem à sua imagem”. Ensi- a Magna Carta (1212), com a lei do Habeas
na assim o Velho Testamento que o homem Corpus (1679) e com o Bill of Rights (1689), e
assinala o ponto culminante da criação, ten- passou a ter um papel de grande relevância
do importância suprema na economia do na doutrina jurídica do jusnaturalismo ra-
Universo. Na elaboração judaica desse en- cionalista da Idade Moderna. Essa doutri-
sinamento isso se traduz numa visão da uni- na difundiu largamente, nos séculos XVII e
dade do gênero humano, apesar da diversi- XVIII, a tese do contrato social, como expli-
dade de nações, que se expressa nas Leis de cação da origem do Estado, da Sociedade e
Noé (Gênesis, 9, 6-17). Essas são um direito do Direito, fundamentado na vontade con-
comum a todos, pois constituem a aliança corde dos indivíduos. O contratualismo tem
de Deus com a humanidade. Representam uma inequívoca dimensão democrática ao
um conceito próximo do jus naturae et gentium, justificar o Estado e o Direito, não como uma
inspirador de ensinamentos do cristianismo emanação de cima para baixo do poder do
e posteriormente de Grócio e Selden, que são soberano ou de Deus, mas sim de baixo para
uma das fontes das Declarações de Direitos cima, através da vontade dos indivíduos,
das Revoluções Americana e Francesa. que estão na base da sociedade.
Na vertente grega da tradição voltada A explicação contratualista, tal como for-
para afirmar a dignidade da pessoa huma- mulada por exemplo por Locke, explicita
na, cabe mencionar o estoicismo. Na época que o Estado e o Direito são um meio termo,