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Modernidade, Economia e Filosofia

Todo nós acreditamos na lei de oferta e procura. Ela é uma lei válida. O senso comum
se refestela com tal sabedoria. Entre o final do século XIX e início do século XX, ela se
instaurou na academia. Hoje em dia, é o que é ensinado nas escolas de economia. Virou parte
de uma teoria! A teoria marginalista em economia acredita que, com ela, pode explicar quase
tudo, e até mesmo o valor das mercadorias.
A ideia básica dessa teoria aparece nos manuais a partir de um apego ao desejo
humano. Se tenho sede, meio copo de água ganha tanto valor para mim quanto teria um copo
cheio, caso eu tivesse menos sede. É uma nítida teoria em que o comportamento humano é
que determina o valor, num favorecimento claro de uma diretriz dos tempos modernos tardios:
o subjetivismo e seu corolário, o psicologismo.
A subjetivação do mundo e seu penduricalho, o psicologismo, são notados por várias
visões filosóficas, que a própria economia, enquanto disciplina acadêmica atual, por estar
demais mergulhada nisso, nem sempre percebe. Os alunos de cursos de economia, não raro,
não sabem que um dia existiu outra teoria do valor, gerada a partir de uma visão menos
psicológica. A teoria do valor vinda dos clássicos, vigente até o final do século XIX, era a
teoria do valor-trabalho. As mercadorias possuem valor por conta do trabalho abstrato nelas
contido, o que Marx chamou de trabalho socialmente necessário. Marx aprendeu tal coisa de
Adam Smith e David Ricardo, mas ele foi muito além deles. E não só por conta da sua teoria
da mais-valia, mas também por recompor a teoria do valor-trabalho gerando uma
caracterização estupenda da sociedade capitalista como sociedade do fetiche.
A filosofia pode bem explicar essa passagem da preferência entre a teoria do valor-
trabalho para a teoria marginalista. Podemos, por exemplo, sacar de uma história da
modernidade criada por Heidegger, ou mesmo ficar no próprio marxismo, que após Marx
também forneceu uma explicação para tal desdobramento.
Se olhamos por Heidegger, por exemplo, entendemos a modernidade como a “época
das imagens de mundo”. O filósofo alemão nota o advento de Descartes e Kant como sendo o
tempo da instauração do vocabulário que contém os termos sujeito e objeto em um sentido
humano. Ao contrário dos antigos, que não viam sujeito e objeto com sendo o homem, mas
como substância e base gramatical, os tempos modernos criaram uma “metafísica da
subjetividade”, uma teoria filosófica que fez do homem a substância, o fundamento de tudo,
uma vez que o Cogito cartesiano seria a base para a primeira certeza. Assim, sendo função do
homem, o próprio mundo passou a ser uma representação – representar é uma atividade
humana. O mundo se tornou algo para o homem, sendo este, agora, o sujeito. Tudo se fez
tendo o homem como palco e ator, e esse, em sua inteireza, uma vez posto pelo subjectum, se
fez objectum. Assim, o homem teria adquirido força manipuladora sobre tudo. A metafísica da
subjetividade se fez a metanarrativa das narrativas científicas. A ciência moderna, altamente
manipuladora, abriu seu ventre para a técnica. Somos objetivamente o mundo da técnica ao
mesmo tempo que somos propensos a tudo subjetivar e, numa virada decisiva para o
humanismo, a psicologizar.
Por essa filosofia, entendemos todas as ciências como tendentes à psicologização. Por
que a economia escaparia disso? Ela, de fato, não escapou.
Mas, enfim, se quisermos recorrer ao próprio marxismo, também ele fornece uma
explicação para a psicologização da economia. O marxismo possui duas maneiras de explicar
isso. Essa dupla maneira advém, inclusive, de podermos fixarmo-nos mais na formulação do
Manifesto comunista ou na primeira parte do livro I de O capital.
Pela ótica do Manifesto, a luta de classes nos mostra uma burguesia revolucionária, em
busca de enxergar o mundo objetivamente, para desvendar as ideologias e romper com
amarras feudais. Mas mostra também a burguesia se tornando reacionária, e voltada a lidar
antes com a criação e divulgação da ideologia que com a verdade. É a época em que o
liberalismo deixa de ser libertador para se fazer de teoria que apela para direitos formais
exatamente para negar direitos mais amplos. O psicologismo da teoria econômica seria uma
parte dessa ideologia. As tramas sociais seriam esquecidas, e o indivíduo rei surgiria como o
grande determinante do jogo social. Não à toa, portanto, ele, o indivíduo humano, seria único
elemento responsável pela valoração, em especial o valor das mercadorias.
Todavia, pela leitura de O capital, teríamos de adentrar a própria teoria do valor de
Marx, ver a sociedade pela ótica da consequência dessa teoria na teoria do fetiche, e então
entender em que medida o próprio capitalismo, pela sua dinâmica, gerou sua ideologia, o que
conduziu ao psicologismo e à hegemonia da teoria marginalista.
Se pegamos uma tal via, temos então de recordar alguns elementos da teoria marxista
do valor.
Marx considera a mercadoria como sendo algo prosaico, mas só por meio de uma
visão de banalização. Procurando uma visão mais acurada, Marx diz que não poderia deixar
de notar a mercadoria como algo misterioso, por conta de seu caráter sensível e supra sensível
ao mesmo tempo. Ela teria valor de uso, algo bem sensível, concreto; mas também teria valor,
algo que nada seria senão o trabalho abstrato nela contido, ou seja, a quantidade de tempo
nela contida, o tempo de trabalho socialmente gasto para fazê-la reaparecer diante de nós,
consumidores, como objeto sensível.
Essa conclusão Marx tira de sua observação que faz a mercadoria ser algo
efetivamente do mercado, ou seja, o mercado capitalista, em que esta ganha valor de troca.
Mas esse valor de troca é contínuo, faz todas as mercadorias poderem ser trocadas por uma
delas, até poder então requisitar a noção de dinheiro. Cada mercadoria é trocada por dinheiro
e, uma vez nas mãos do consumidor, volta a ter valor de uso, mas de modo imperativo, agora,
pois também nela se insere todo o trabalho humano abstrato das outras mercadorias, que
animam o valor de uso e fazem com que os homens imaginem que o que anima cada
mercadoria não seja essa parte humana que ela guarda, mas algo que é da própria natureza das
mercadorias. A mercadoria é, então, um fetiche: algo material que se move aparentemente por
si só, mas que se move mesmo, realmente, por conta de ser a incorporação da atividade
humana nela contida.
Assim, para Marx, não há uma representação do mundo que, como representação, vem
de uma fonte psicológica, que inverte as coisas. Há sim uma inversão real do mundo. As
mercadorias de fato se insurgem aos homens como o que é criado pelo homem, mas, sem que
eles notem que tal poder vem de si mesmos, enquanto os que lhes deram caráter supra
sensível humano. Assim, a mercadoria se põe diante deles se fazendo de sujeito, e que passa a
submete-los, dando-lhe ordens. Marx chega a usar a ideia da religião para explicar o caso: os
homens criam os deuses que, uma vez criados, submetem os homens. Mas essa metáfora não
é boa. Pois ela apela para uma inversão mental. A inversão do fetiche da mercadoria, e que se
estende ao dinheiro, que é o meio pelo qual o valor se expressa, é uma inversão da realidade.
O homem realmente fica sob o jugo dos desejos da mercadoria – ela adquire desejos e
comando. Ela passa a ser o ser vivo, o sujeito, e o homem é aquele que lhe obedece sentindo
sua força de material e simbólica, como o que lhe impõe vontades por si e pelo dinheiro.
O dinheiro, assim, não tem força sobre o homem por poder comprar coisas, mas
porque ele é a expressão do valor, e este, por sua vez, está incorporado à mercadoria como a
substância imaterial que transpassa todas as mercadorias: o trabalho abstrato, a atividade
humana abstrata. A mercadoria é objeto, mas o seu valor não é valor de uso somente, é, uma
vez como valor de uso, também valor, o humano que perpassa todas as mercadorias. A força
da mercadoria sobre os homens advém da força do valor, objetivo, sobre qualquer indivíduo
psicológico.
Sentimos isso se entramos numa loja e vemos que a mercadoria não está sob nosso
comando, mas ela nos comanda por conta de seu caráter de fetiche: podemos ter dinheiro para
levar uma calça comprada na loja, mas ela, antes disso, nos dará ordens, irá nos fazer nos
adaptarmos a ela. Iremos a uma academia ou mesmo nos cortaremos com algum médico para
cabermos na calça. O morto comanda o vivo ou, melhor, a mercadoria é agora o vivo e nós,
definitivamente, os mortos. Como ainda andamos, então a melhor imagem para nós é a de
zumbis.
Desse modo, o mundo dos homens da sociedade burguesa ou moderna é o mundo dos
zumbis. Seres que possuem uma restrição psicológica. Seres de desejos menores, obsessivos.
Seres assim são de fato muito propensos a um tipo de narcisismo, capazes mesmo de achar
que um copo de água dependa, para ter valor, da sede. Zumbis tem uma forte tendência
narcísica, acham que tudo gira em torno deles. Não se desviam facilmente. A teoria
marginalista é uma teoria para zumbis. Funciona e é lei por causa de que, de fato, somos
zumbis.
Se voltarmos a Heidegger, poderemos dizer que é o homem, pondo-se no mundo como
sujeito, transforma tudo, inclusive a si mesmo, como objeto; gera zumbis dominados pela
ideia de que tudo é feito sem o pensamento, somente com técnicas, e desejos que podem se
tecnicizar – tecnologias do eu! Se ficamos com Marx, podemos dizer que o império da técnica
é parte da ideia da inversão real que faz com que a mercadoria – inclusive aí o conhecimento
e as técnicas – se autonomizem como fetiches.
Paulo Ghiraldelli Jr, 62, filósofo. Centro de Estudos em Filosofia Americana (CEFA),
30/04/2019

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