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Sociedade cabocla:

participação e diversidade na
Amazônia
Sustentabilidade Raquel Caribé Grando1
em Debate

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Centro de Desenvolvimento Sustentável, Universidade de
Brasília. Brasília, Distrito Federal, Brasil. Doutoranda do Progra-
ma de Pós-Graduação em Desenvolvimento Sustentável. E-mail:
raquelscg@yahoo.com

Recebido em 10.01.2011
Aceito em 15-3.2011

RESENHA

ADAMS, Cristina; MURRIETA, Rui; NEVES, Walter (Eds.). Sociedades caboclas amazônicas: modernidade e
invisibilidade. São Paulo: Annablume, 2006. 364 p.; 16 X 23 cm. ISBN 85-7419-644-4.

Cristina Adams, professora da Escola de ciedades. O resultado desta reunião, que procu-
Artes, Ciências e Humanidades, e integrante do rou delinear um cenário futuro para a questão
Laboratório de Ecologia Humana da Universi- das sociedades caboclas, concretizou-se em 2002
dade de São Paulo (USP), e os professores do com a realização de um workshop. Os artigos e
Instituto de Biologia desta universidade, Rui resultados deste workshop foram reunidos no li-
Murrieta e Walter Neves, reuniram nesta coletâ- vro aqui resenhado.
nea trabalhos com diferentes abordagens sobre Os editores reuniram textos que procuram
as populações ribeirinhas, rurais e campesinas da desmistificar a tradição generalista de alguns es-
Amazônia, chamadas de sociedades caboclas. tudos antropológicos sobre estas populações. Pe-
Estes trabalhos são apresentados por pesquisa- las discussões do workshop, surgiu a necessida-
dores de diferentes áreas do conhecimento, que de de compilar trabalhos relacionados especifi-
desenvolvem estudos sobre a Amazônia e as suas camente às sociedades caboclas, principalmente
populações humanas. por conta do entendimento equivocado que per-
Em 2000, Adams e Mark Harris, da Uni- siste sobre o povoamento da região amazônica e
versidade de St. Andrews, Escócia, organizaram, sobre como se situa nesse povoamento um gru-
na USP, um fórum de discussão com o objetivo po conhecido como “caboclos”.
de atualizar o conhecimento sobre as sociedades A compilação apresenta 13 artigos, distri-
caboclas amazônicas e fazer uma revisão crítica buídos por cinco seções: “Identidade, História e
da produção antropológica a respeito destas so- Sociedade”, com artigos de Stephen Nugent, Wi-

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lliam Balée, Décio de Alencar Guzmán e Mark tudo da língua ajuda a entender como estas mu-
Harris; “Sustentabilidade e Políticas de Desen- danças foram incorporadas no repertório cogni-
volvimento”, com trabalhos de Henyo T. Barret- tivo das comunidades caboclas. Seu estudo en-
to Filho, Deborah de Magalhães Lima e Fábio de foca o contexto lingüístico sobre o cacau, des-
Castro; “Manejo de Recursos”, com artigos de crevendo como as mudanças econômicas refe-
Eduardo S. Brondízio e Célia Futemma; “Gêne- rentes ao seu cultivo e consumo refletiram nas
ro e Vida Cotidiana”, com trabalhos de Andréa línguas nativas. Guzmán disserta sobre a contri-
D. Siqueira, Rui S. S. Murrieta e Antoinette M. buição do contato interétnico na bacia do Rio
G. A. Winkler Prins; e a seção “Dieta e Saúde”, Negro para o debate sobre a invisibilidade dos
com os autores Cristina Adams, Rui S. S. Murri- caboclos, por meio da abordagem histórica so-
eta, Andréa D. Siqueira, Walter A. Neves, e Ro- bre a influência do contexto político e econômi-
sely A. Sanches, no primeiro artigo da seção, e co na sociedade amazônica do século XVIII. No
Hilton P. Silva, que escreve o segundo artigo. ensaio de Harris, o autor apresenta a visão eco-
Os artigos compilados procuram demons- lógica e cultural do caboclo, afirmando que não
trar, por meio das diferentes abordagens, que há uma cultura cabocla nem uma identidade ca-
embora as populações amazônicas apresentem bocla única, já que eles têm como características
grande diversidade cultural, étnica e de técnicas a flexibilidade e a resiliência em seu modo de vida.
de manejo, compartilham de uma invisibilidade Para o autor “a identidade dos ribeirinhos é pro-
sócio-política. De maneira geral, os artigos tra- duto do que são no presente, e contrasta-se com
zem enfoques multidisciplinares para argumen- o que foram no passado recente” (p. 105).
tar a respeito da complexidade de fatores que A segunda seção inicia com o artigo de
envolvem a questão desta invisibilidade, e o seu Barreto Filho, que apresenta uma análise crítica
papel na economia da região e na formação de em torno do conceito de populações tradicionais,
seu contexto histórico. nas quais geralmente se incluem as sociedades
Na primeira seção, Nugent demonstra que caboclas. O autor alerta para o fato de que se o
o desenvolvimento da sociedade cabocla ocor- conceito não for usado com muito rigor e caute-
reu com o fim do ciclo da borracha, formada prin- la, pode ocasionar usos tendenciosos ou genera-
cipalmente por imigrantes nordestinos. Por este listas. A economia doméstica e as relações de
motivo, estes camponeses amazônicos são mar- parentesco dos moradores da Reserva de Desen-
ginalizados, sendo considerados não autênticos volvimento Sustentável de Mamirauá são apre-
pela literatura antropológica do início do século sentadas no ensaio de Lima. O caboclo, para a
XXI, justamente por causa de sua mestiçagem autora, está relacionado ao campesinato amazô-
recente. Para o autor, estes estudos ainda comen- nico de origem colonial. O artigo trata da orga-
tem o equívoco que retratar a Amazônia como nização social da produção e do consumo em
“um terreno exótico, a-histórico” (p. 34), o que Mamirauá, destacando a importância dos laços
colabora para uma visão idealizada da Amazônia de parentesco no funcionamento da unidade do-
e de seus habitantes. Balée apresenta a aborda- méstica. Seguindo a linha de estudo da econo-
gem da ecologia histórica e a importância da lin- mia familiar, Castro descreve que a formação da
güística histórica no entendimento das mudan- sociedade cabocla se deu a partir da miscigena-
ças na paisagem amazônica. Para o autor, o es- ção entre ameríndios, europeus, e mais tarde,

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afro-brasileiros, que foram ocupando as áreas de des caboclas, com ênfase na importância do con-
várzeas, desde a dominação pelos colonizado- sumo da mandioca. Os autores observam que a
res. Para o autor, a economia cabocla baseada mandioca tem um papel central para essas socie-
na pesca, na agricultura e no trabalho assalaria- dades. Embora o seu cultivo apresente uma invi-
do representa uma adaptação que tem gerado fle- sibilidade sócio-econômica, representa a capaci-
xibilidade econômica destas populações frente às dade adaptativa e a resiliência histórica das comu-
alterações políticas e históricas da região. nidades caboclas de várzea. Silva apresenta a con-
Na terceira seção, Brondízio disserta sobre tribuição da abordagem da saúde pública para
a ligação entre os termos “caboclo” e “colono”, entender a invisibilidade das populações caboclas,
fato que colabora para a invisibilidade destas so- enfatizando que as condições ambientais e sócio-
ciedades. O autor analisa os sistemas de produ- econômicas afetam estas populações e as políti-
ção dos caboclos e colonos, para encontrar se- cas públicas de saúde direcionadas a elas.
melhanças no que toca às características de invi- Os editores concluem, em um capítulo ao
sibilidade dos dois grupos. São considerados final das seções, que ainda há muito o que se co-
colonos pelo autor os migrantes assentados, a nhecer e desvendar a respeito da história e da di-
partir da década de 1960; e como caboclos as versidade sócio-ecológica das sociedades cabo-
populações ribeirinhas e interfluviais. Futemma clas. Mesmo que a invisibilidade da sociedade ca-
discorre sobre as redes de relações sociais en- bocla esteja sendo desvelada por inúmeras publi-
volvendo as organizações, instituições, e estra- cações acadêmicas, a partir da década de 1990,
tégias de adaptação dos caboclos aos diferentes ainda é realidade que estas populações não sejam
sistemas naturais, alertando para o fato de que consideradas em políticas públicas e em progra-
os fatores sócio-culturais envolvidos nas redes mas de desenvolvimento social da região. O fato
de relações interferem e se relacionam com as é que os modos de vida diversificados e não-espe-
práticas de uso dos recursos destas populações. cializados dos caboclos, apresentados em diferen-
Na quarta seção, o primeiro artigo de Si- tes enfoques nos artigos compilados, parece ser
queira discute a participação das mulheres na eco- uma das principais características que permite às
nomia familiar cabocla e nos processos domésti- sociedades caboclas sobreviverem no cenário di-
cos de tomada de decisão. A autora enfatiza a im- nâmico de mudanças econômicas e sociais em que
portância feminina na econômica das sociedades estão inseridas. A diversidade cultural e genética
caboclas, mesmo diante de sistemas e regras soci- da formação da sociedade cabocla parece colabo-
ais que tendem a favorecer o gênero masculino. rar para a adaptabilidade cultural que acompanha
Seguindo o enfoque de gênero na análise das so- as mudanças de mercado e políticas. Dessa for-
ciedades caboclas, Murrieta e WinklerPrins pro- ma, as sociedades caboclas podem ser considera-
põem uma abordagem multinivelada para compre- das modernas e dinâmicas em suas práticas e mo-
ender o modo como as mulheres caboclas se rela- dos de vida, construídos nos contextos sociais e
cionam com seu ambiente físico, com enfoque no econômicos da região.
manejo dos jardins e quintais por elas. Para acadêmicos e pessoas envolvidas po-
O artigo de Adams, Murrieta, Siqueira, Ne- lítica ou economicamente com os temas relacio-
ves e Sanches, que abre a quinta seção, discorre nados a Amazônia, o livro Sociedades caboclas
sobre os hábitos alimentares de cinco comunida- amazônicas: modernidade e invisibilidade apre-

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senta abordagens atualizadas, inovando na for-


ma de analisar a questão das populações amazô-
nicas em relação aos seus modos de vida, aos
usos de recursos, e à sua participação na história
do Brasil. O estudo das estratégias de adapta-
ção, resiliência, uso da terra, redes sociais e de
parentesco, e modos de vida das sociedades ca-
boclas, presente nos artigos selecionados para
este livro, pode trazer importantes contribuições
para estratégias políticas e governamentais apon-
tadas para os problemas ambientais que a região
enfrenta na atualidade.

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