Você está na página 1de 4

Aos 91 anos, Henry Kissinger tem ainda o poder de nos surpreender com um livro magistral

sobre as incertezas da geopolítica no nosso tempo e de nos deliciar com uma


impressionante viagem pela História dos principais blocos de poder do planeta. Mas, por
muito que a reflexão histórica e a análise das encruzilhadas do presente tenham feito desde
sempre parte do seu conceito de diplomacia, Kissinger reconhece que os instrumentos
tradicionais de análise estão em crise neste período em que a China emerge, em que os
estados do Médio Oriente se fragmentam, em que a globalização da economia e o novo
padrão de comportamentos da era da Internet se tornaram norma. A impossibilidade de ter
como ponto de partida uma “ordem mundial” torna os capítulos finais deste livro mais um
repositório de perguntas do que um compêndio de tendências prováveis.

Henry Kissinger, Nobel da Paz em 1973 e secretário de Estado na era Nixon, faz parte de
uma geração de políticos que não dispensava a “sabedoria” e sustentava as suas decisões
num processo que “incorporava tempos de pausa e reflexão”. A sua leitura da ordem
mundial actual exige-lhe o conhecimento das diferentes etapas de relacionamento entre os
estados, seja na Europa, na Ásia ou no Médio Oriente. O seu ponto de partida está na Paz de
Vestefália que pôs termo à Guerra dos Trinta Anos (1618 e 1648). Nesse tratado, ficou
garantida “a igualdade inerente dos Estados soberanos, independentemente do poder ou
do sistema interno”. A soberania do Estado, a inviolabilidade das suas fronteiras e a sua
legitimidade inerente tornaram-se “a parede mestra da ordem europeia”. E garantiram à
França a hegemonia do continente “durante dois séculos e meio — desde que Richelieu
emergiu em 1624 até à proclamação do Império Alemão por Bismark em 1871”.

Essa velha ordem europeia sofreria duros abalos com a Conferência de Viena, organizada
sobre as ruínas da derrota de Napoleão, e seria incapaz de responder à ascensão do poder
alemão em 1871. Metternich, o chanceler da Áustria, e Bismark alteram a ordem
estabelecida ao passarem “da ênfase da legitimidade para a ênfase no poder” e a nova
configuração da ordem europeia levaria às duas grandes guerras do século XX. Hoje, “os
princípios de Vestefália são os únicos que gozam de aceitação geral”, mas o continente
onde nasceram desligou-se do mundo e avançou no sentido de uma organização
supranacional, a União Europeia, que não consegue assumir uma voz assertiva nas
instâncias internacionais. “A Europa vê-se suspensa entre um passado que procura deixar
para trás e um futuro que ainda não definiu”, nota Kissinger.
Afirmando-se na geopolítica mundial essencialmente por interposta nação, os Estados
Unidos, a Europa abdicou do poder militar e “tem poucas capacidades de resposta perante
a violação de normas universais”. Mesmo nesta condição, faz falta aos Estados Unidos. “Os
EUA encontram na história e na geopolítica bons motivos para apoiar a União Europeia e
evitar que propenda para um vácuo geopolítico; separados da Europa em termos políticos,
económicos e de defesa, os Estados Unidos tornar-se-iam uma ilha ao largo do litoral da
Eurásia, e a própria Europa poderia tornar-se um apêndice das vastidões da Ásia e do Médio
Oriente”, escreve Kissinger. A América, na sua definição, tornou-se uma “potência
ambivalente”. Depois de aparecer na ordem mundial com o presidente Theodore Roosevelt
(1901-1909), para quem “a América deveria falar com doçura e brandir um pau grande”,
submete-se aos princípios de Woodrow Wilson, que apresentavam o país como a
consciência do mundo. O seu programa, “com variações de pouca monta, tem sido desde
então o programa americano para a ordem mundial”. O problema deste programa,
considera Kissinger, está no seu excessivo voluntarismo. “A tragédia do wilsonianismo é que
deixou como legado aos decisores do século XX uma doutrina generosa de política externa
que, no entanto, está desligada de qualquer sentido de história ou geopolítica”, explica.
Porque implica valores que não resistiram à crua realidade das guerras da Coreia e do
Vietname. “A Coreia demarcou uma linha divisória no comportamento americano nesse
século. Foi a primeira guerra em que a América renunciou expressamente à vitória como
objectivo último.” Nascera a “ambivalência”, da qual Obama é um lídimo representante.

Para Kissinger, o vazio de poder e a falta de guardiões da ordem internacional são


problemas que se agravam a cada ano que passa. “Todos os principais centros de poder
adoptam elementos de ordem vestefaliana, mas nenhum se considera o defensor natural do
sistema”, observa. Na sua percepção, há um caldo cultural perigoso no islamismo que o
Ocidente tem de considerar. Um “conceito binário de ordem mundial, entre o dar-al-Islam
(a casa do islão) e as terras situadas além, o dar al-harb, o reino da guerra” que urge
conquistar, e que “ainda é doutrina oficial constitucionalmente consagrada no Estado do
Irão, o grito das minorias armadas do Líbano, da Síria, da Líbia, do Iémen, do Afeganistão e
do Paquistão, e a ideologia de diversos grupos terroristas em todo o mundo,
nomeadamente no Estado Islâmico do Iraque e Levante”. No extremismo islâmico, nota, há
“uma rejeição fundamental do pluralismo e da ordem internacional secular” que tornam
difícil a diplomacia. Ainda mais quando “o conflito na Síria e no Iraque e nas regiões
limítrofes [se] tornou símbolo de uma tendência terrível: a da desintegração da soberania
em unidades tribais e sectárias, extravasando muitas delas as fronteiras actuais”. Cria-se
assim um cenário de anarquia, em que “parte substancial do território e da população
mundial está a ser atirada para fora do sistema internacional de Estados”.

Para agravar a instabilidade e o desequilíbrio num Médio Oriente em convulsão, persiste o


problema iraniano — um problema tão candente que merece por si só um capítulo. O Irão
reconhece-se como República Islâmica, “o que indicia uma entidade cuja autoridade
transcende os limites territoriais”, levando a que qualquer compromisso de paz obedeça a
“um requisito prévio, como o presidente Ahmadinejad escrevia ao presidente Bush, em
2006: a submissão mundial à doutrina religiosa correcta”. Esta intransigência ameaça
exercer-se a curto prazo com a força das armas nucleares, um perigo que o Ocidente não
tem sido capaz de deter. “O que tem acontecido é o constante progresso da capacidade
nuclear iraniana enquanto a posição ocidental se torna progressivamente mais branda.”

Ao contrário do que se verifica no Médio Oriente, “o Estado na Ásia é encarado como


unidade nuclear da política interna e externa”. O redespertar do continente, porém, implica
uma nova correlação de forças e “representa um risco para a ordem mundial”. Sem o
mencionar explicitamente, Kissinger acredita que o nó górdio dessa reorganização está na
relação entre a China e o Japão. “Um estudo de Harvard concluiu que, nos 15 casos
históricos em que uma potência emergente e uma potência estabelecida interagiram, dez
acabaram em guerra”, recorda Kissinger. A China “nunca foi uma nação missionária no
sentido ocidental da expressão”; nunca procurou exportar o seu sistema político,
“expandiu-se não por conquista mas por osmose”. Mas o seu estatuto hoje é distinto: “A
China reassumiu a estatura que lhe fora reconhecida ao longo dos séculos da sua influência
de longo alcance. A questão, hoje, é que papel desempenhará na busca contemporânea de
ordem mundial e, em particular, qual será a sua relação com os Estados Unidos.” Essa
relação é para Kissinger “o factor essencial para a edificação de uma ordem mundial
construtiva”.

Saber como todas estas incertezas serão resolvidas num tempo em que o poder militar não
vale o que valeu há poucas décadas, em que na luta contra facções extremistas “a
supremacia tecnológica se transfigurou em impotência política”, em que a proliferação
nuclear arrisca sair da esfera dos estados, em que “um indivíduo portador de
umsmartphone está hoje em posse de mais informação e capacidade analítica do que
muitas das agências de inteligência de há uma geração”, é tarefa ciclópica. “A ordem que o
Ocidente implementou e declarou universal encontra-se numa encruzilhada”, adverte
Kissinger. Mas na transição entre a ordem mundial que conhecemos e outra (se houver
outra) que nos escapa, ler uma obra com esta densidade, com esta sabedoria e com esta
inteligência vale mais do que qualquer certeza.

Você também pode gostar