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Certo dia, um menino fez anos e recebeu de presente uma porção

de soldadinhos de chumbo.
Eram todos irmãos, pois tinham sido fabricados do mesmo
pedaço de chumbo.
Carregavam fuzis e olhavam firmes para frente.
Seus uniformes azuis e vermelhos eram muito vistosos.
A primeira coisa que eles ouviram no mundo, quando tiraram a
tampa de sua caixa foi:
"Soldadinhos de chumbo!"
O menino fez esta exclamação e bateu palmas de contentamento.
Cada soldadinho era perfeitamente igual ao outro, com exceção
de um, que era um pouquinho diferente: só tinha uma perna, por
ter sido o último a ser fabricado, quando o chumbo já estava no
fim.
Não obstante, ele, com sua única perna, era tão valente quanto os
outros com as duas.
É sobre este soldadinho que vou lhes falar.
Na mesa onde os soldadinhos tinham sido colocados, havia
muitos outros brinquedos.
O que mais chamava a atenção era um castelo de papel, com
janelinhas pelas quais se via tudo lá dentro.
Em frente, havia pequenas árvores à volta de um espelhinho que
servia de lago.
Cisnes de cera nadavam nele e se refletiam no espelho.
Tudo era lindo, mas o que mais encantava era a moça que estava
à porta do castelo.
Era feita de papel, mas sua saia era da mais fina gaze.
Uma faixa azul subia pelos ombros, como se fosse um curto
casaquinho.
Arrematando esse casaquinho, na frente, havia uma enorme flor
de lantejoulas.
Seus braços estavam arqueados, em posição de dança, pois ela
era uma dançarina.
Uma de suas pernas estava tão levantada que o soldadinho de
chumbo não podia vê-la. Por isso pensou que ela também só
tivesse uma perna.
"Esta é a esposa que me convém" - pensou ele - "no entanto é
uma dama elegante, mora num castelo, enquanto eu vivo numa
caixa, imprensado no meio de meus irmãos. Apesar disso, não
vou desistir de casar com ela."
Então, ele se deitou ao comprido, atrás de uma caixa de rapé, que
estava em cima da mesa, de lá podia apreciar a graciosa moça
que se mantinha numa perna só sem perder o equilíbrio.
Como estava ficando tarde, os outros soldadinhos foram
guardados na caixa e as pessoas da casa foram dormir.
Os brinquedos, então, começaram a divertir-se, fingindo que
recebiam visitas, que estavam em guerra e que davam bailes.
Os soldadinhos faziam uma grande algazarra na caixa, pois
queriam tomar parte na brincadeira, mas não conseguiam sair de
lá de dentro.
Havia tanto barulho que o canário acordou e começou a recitar.
Os dois únicos que não se mexiam eram o soldadinho e a
dançarina.
Ela continuava firme, na ponta do pé, com os braços arqueados.
Ele, cada vez mais encantado, não tirava os olhos dela um só
momento.
De repente, o relógio deu meia-noite e a tampa da caixa de rapé
se abriu sozinha.
Em vez de rapé havia era um diabinho preto, que fazia
travessuras.
- Soldadinho de chumbo, feche os olhos - disse o diabinho.
O soldadinho fingiu que não tinha ouvido.
- Não quer atender-me, não é?
Espere até amanhã e verá o que vai acontecer! - continuou o
diabinho.
No dia seguinte, quando as crianças se levantaram, o soldadinho
foi posto no peitoril da janela.
De repente, por culpa do diabinho ou do vento, a janela abriu-se e
o pobrezinho caiu de cabeça para baixo.
Ficou apoiado no quepe, com o fuzil enterrado entre as pedras da
calçada e sua única perna apontando para o céu.
A empregada e o menino correram a acudí-lo.
Quase tropeçaram nele, mas não o viram.
Se ele tivesse gritado "estou aqui", certamente o teriam
encontrado, mas ele achava impróprio gritar quando se está
fardado...
Começou a chover.
Os pingos foram aumentando cada vez mais depressa, até que se
transformaram em aguaceiro.
Quando tudo passou, apareceram dois garotos.
- Que bom! - disse um deles - aqui está um soldadinho de
chumbo. Vamos fazê-lo navegar?
Com um pedaço de jornal, fizeram um barquinho no qual
colocaram o soldadinho. Carregaram o barco e fizeram-no
navegar numa enorme poça de água.
Os dois garotos corriam ao lado dele, batendo palmas.
- Você já viu que não há ondas nesta poça? Que tal a correnteza?
- perguntou um deles.
- Ora, não se esqueça de que choveu por paus e por pedras -
respondeu o outro.
O barco de papel dançava para lá e para cá e, algumas vezes,
girava tão depressa que o soldadinho era sacudido da cabeça
aos pés.
No entanto, ele continuava firme, olhando para frente e de arma
ao ombro.
De repente, o barco passou embaixo de uma prancha que cobria
a sarjeta.
Estava tão escuro lá embaixo, que o coração do soldadinho
começou a bater com força. O pobrezinho pôs-se a pensar:
"Para onde estarei indo? Se ao menos aquela linda moça
estivesse aqui, eu não me importaria com o escuro.Aposto que é
o diabinho que quer divertir-se, outra vez, assustando-me.
Nesse instante, apareceu um rato grande que morava debaixo da
prancha.
- Mostre-me seu passaporte - disse ele.
O soldadinho nada disse, mas apertou seu fuzil com mais força
que nunca.
O barco continuou pela sarjeta e o rato o seguiu de perto,
rangendo os dentes e gritando:
"Pare! Pare! Você não pagou entrada, nem mostrou o
passaporte."
A corrente foi-se tornando cada vez mais forte.
O soldadinho pensou que já fosse ver a luz do dia, mas ouviu um
barulho assustador.
Justamente onde a prancha terminava, a água se precipitava num
vasto canal.
A situação ficou ainda pior para ele.
Ele procurou segurar-se o mais que podia, com toda a coragem
que lhe restava.
O barco rodopiou três ou quatro vezes e ficou cheio de água.
O papel foi ficando cada vez mais mole e o soldadinho foi
afundando.
Então, muito triste, ele pensou na pequena dançarina que nunca
mais veria. Aos seus ouvidos chegaram, então, as palavras de
uma velha canção:
"Adeus, minha querida. Não tornarei a te ver. Despeço-me da
vida, pois agora vou morrer."
O papel desfez-se em pedaços e o soldadinho foi, imediatamente,
tragado por um grande peixe. Céus! Como era escuro lá dentro!
Pior do que embaixo da prancha! Além disso, como era apertado!
Ele procurou deitar-se ao comprido. O peixe soltou à volta,
fazendo as mais espantosas contorções e, finalmente, ficou
imóvel. Depois de muito tempo, alguma coisa como um jato de
luz passou sobre ele e alguém reclamou:
- Olhem o que achei dentro do peixe!
O peixe tinha sido pescado, levado ao mercado e vendido.
Estava agora na cozinha, onde a cozinheira o tinha aberto com
uma faca.
Dentro dele, ela encontrou o soldadinho, que apanhou para
mostrar às pessoas da casa.
As crianças o seguraram e colocaram em cima da mesa.
Por uma extraordinária coincidência, ele tinha vindo parar na
mesma casa de onde saíra. Viu as mesmas crianças e os mesmos
brinquedos em cima da mesa. O bonito castelo com a formosa
dançarina continuava no mesmo lugar. A bailarina ainda estava
na mesma posição, equilibrando-se numa perna só. Isso
comoveu o soldadinho quase até as lágrimas. Ele olhou para ela
com muita ternura, mas nada lhe disse.
Nesse instante, um dos garotos agarrou o soldadinho e, sem
mais nem menos, atirou-o à lareira.
Não havia razão para isso, pois o pobrezinho nunca lhe fizera
mal. Com certeza, o diabinho da caixa de rapé era o culpado
dessa maldade.
O soldadinho permaneceu ali, quieto, sentindo um calor horrível.
Aos poucos foi sentindo que ia-se derretendo, mas continuava
firme, segurando o fuzil. Então, sem ninguém esperar, a porta se
abriu e o vento carregou a dançarina para junto do soldado, na
lareira.
Num instante ela se queimou e desapareceu. O soldadinho
derreteu-se.
No dia seguinte, quando a empregado foi apanhar as cinzas,
encontrou-as sob forma de um coração.
Da bailarina, nada sobrara, exceto as lantejoulas, que estavam
pretas como carvão.

Hans Christian Andersen

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