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Estancieiros do Rio Grande de São Pedro:

constituição de uma elite terratenente no século XVIII

Helen Osório
Universidade Federal do Rio Grande do Sul*

A comunicação aborda a formação de uma elite local na América portuguesa, a dos


grandes criadores de gado (definidos inicialmente como os proprietários de mais de mil cabeças
de gado vacum), detentores de extensas propriedades fundiárias e de escravos, no extremo
meridional do Império português. Enquanto no restante dos territórios lusos designava-se por
fazenda estas unidades produtivas, utilizou-se, na fronteira sul, uma expressão de origem
espanhola rio-platense: estância.
A palavra fazenda adquiriu o sentido de propriedade agrária em terras americanas. No
dicionário Morais, de 1789, as primeiras definições são: “ação, procedimento, serviço, labutação;
bens, bens que andam em comércio”. Na seqüência, especifica-se: “No Brasil, terras de lavoura
ou de gado: uma fazenda de canas” 1. O mesmo ocorreu em domínios de Espanha. Hacienda
tornou-se sinônimo de grande propriedade agrária em quase toda América. Em português e
espanhol americanos, o termo englobava, simultaneamente, as noções de riqueza em geral e de
extensas terras de cultivo ou pecuária 2.
No sul do continente, no entanto, outra expressão foi utilizada para designar as terras
destinadas à criação de gado: estancia. Em 1778, um militar português explicava, da mesma
forma como ocorreu em inúmeros relatos de viajantes: “os moradores mais ricos e poderosos
deste Continente são os que possuem algumas fazendas que denominam estâncias. Estas
abundam em gados, não tendo estes ali maior valor” 3. O dicionarista antes citado não deixou
escapar, tampouco, este uso particular: “No sul da América, estâncias são terras com criação de
gado vacum e cavalar”4. Estaremos tratando aqui, portanto, dos maiores estancieiros.
O ponto de partida para a análise é a “Relação de moradores que tem campos e animais
no Continente”, elaborada entre os anos de 1784 e 1785, uma verdadeira lista nominativa de
ocupantes de terras e proprietários de rebanhos. A partir dela determinou-se os nomes dos
estancieiros mais abastados. Para compreender a dinâmica da constituição econômica e social do
grupo, analisa-se a naturalidade de seus membros, seu acesso a mercês, especialmente
sesmarias, sua participação em tropas auxiliares e cargos da governança local. Através de

*
Professora adjunta do Departamneto de História e do Programa de Pós-graduação da UFRGS.
1
António MORAIS SILVA, Diccionário de Língua Portuguesa, Rio de Janeiro, Fluminense, 1922. Fac-símile da 2ª ed.,
1813. [A 1ª edição é de 1789, Lisboa]
2
Juan Carlos GARAVAGLIA, «Las “estancias” en la campaña de Buenos Aires. Los medios de producción (1750-
1815)», in Raúl O. FRADKIN (org.), La historia agraria del Río de la Plata colonial. Los establecimientos productivos (II),
Buenos Aires, Centro Editor de América Latina, 1993. p. 185
3
«Observações relativas à agricultura, comércio e navegação do continente do Rio Grande de São Pedro, no Brasil,
por Domingos Alves Branco Muniz Barreto, cavalheiro professo da Ordem de S. Bento de Aviz...», IAN/TT, Manuscritos
do Brasil (Livraria), n.º 47 [1778].
4
António MORAIS SILVA, Diccionário… cit.
Comunicações

inventários post-mortem delineia-se seu perfil econômico e produtivo: montante do patrimônio,


ramos de investimentos, número de escravos, entre outros aspectos. Suas singularidades são
definidas no confronto e comparação de suas características com as do grupo mercantil da
mesma capitania permitindo uma reflexão sobre a constituição de elites em territórios americanos
do Império português.

A fonte

A “Relação de moradores que tem campos e animais no Continente” foi mandada realizar
pelo Vice-rei do Brasil, Luís de Vasconcelos e Souza, ao Provedor da Fazenda do Rio Grande,
Diogo Osório Vieira, no início de 1784 com o objetivo de conhecer a real situação da distribuição
de terras no extremo sul 5. Este documento ímpar constitui-se numa verdadeira lista nominativa
dos possuidores de terras no Rio Grande, ou um “tombo de terras”, para utilizar uma expressão de
época. Através dele podemos estudar o ritmo da ocupação do território, as formas através das
quais os habitantes obtiveram a posse dos terrenos, a ocupação principal a que se dedicavam e o
tamanho do rebanho possuído. Portanto, fornece-nos dados que permitem esboçarmos a
estrutura agrária da região, em um dado momento, que foi o da rápida apropriação de terras, sete
anos depois da reconquista da vila de Rio Grande aos espanhóis. Além disso, possibilita a
discussão da noção de “fronteira aberta”, face às principais formas de acesso à terra verificadas.
As razões da ordem do Vice-rei deviam-se à “grande desordem, com que tem sido
distribuídos os terrenos dos diversos distritos”, e a irregularidade na obtenção e venda de
sesmarias 6. O provedor realizou a relação de cada distrito e freguesias a partir dos títulos
comprobatórios enviados pelos possuidores, após seu requerimento através de edital e, na falta
destes, das informações dos capitães de tropas auxiliares de cada localidade. A “Relação” (como
a denominaremos a partir de agora) de cada freguesia foi sendo enviada, uma a uma, ao Rio de
Janeiro desde agosto de 1784 até fevereiro de 1786. Enquanto os borradores são encontrados no
Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul, os “originais” estão depositados no Arquivo Nacional, Rio
de Janeiro 7. Ocorre que não foram enviados à capital as relações de Conceição do Arroio, Santo
Antônio da Patrulha, Caí e Lombas. Para estas freguesias utilizamos as relações existentes no
primeiro arquivo, o que representou um acréscimo de 272 registros 8 ao universo de 1555,
perfazendo um total de 1827 terrenos. Destes, apenas três não são de “particulares”: há uma
Fazenda Real, do Bojuru, que abrigava animais do exército, um campo pertencente à igreja matriz
da freguesia de Estreito e um campo, utilizado como potreiro da Irmandade do Santíssimo
Sacramento da freguesia de Rio Pardo.
Cada registro especifica o nome do ocupante, os títulos de propriedade que possui, ou
não, o nome de antigos proprietários, a atividade a que se dedica e a espécie e número de
animais que possui. A representatividade da fonte é muito alta, e foi verificada através do
confronto do número de sesmarias listadas na “Relação”, que são 116, com o do conjunto de
sesmarias obtidas em diversos arquivos 9, para o período de 1738 a 1784, que foi de 119.
Estamos, portanto, frente a uma fonte extremamente fidedigna.

5
Ofício do Vice-rei do Brasil ao Provedor da Fazenda Real. Rio de Janeiro, 7/3/1784. Arquivo Nacional, Rio de
Janeiro (daqui em diante, ANRJ) cód. 104, vol. 6, fls. 562-563.
6
“Desta notável irregularidade procede a má fé, com que muitos requerem as mesmas sesmarias e logo as
traspassam e vendem para pretender outras até por interpostas pessoas, de modo que (...) se faz manifesta a insofrível
desigualdade, com que uns cheios de ambição insaciável desfrutam, alienam e traspassam a maior parte dos terrenos,
ficando outros, conseqüentemente, privados dos quais podem cultivar com maior utilidade do Estado e mais conhecida
vantagem dos rendimentos”. Idem.
7
No ANRJ, cód. 104, vols. 6, 7 e 8; no Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul (AHRS), F1198 A e B.
8
Verificamos a repetição de alguns registros, incluídos tanto em Viamão (ANRJ) e Lombas (AHRS), e Triunfo
(ANRJ) e Caí (AHRS), que foram devidamente eliminados.
9
Recolhemos registros de cartas de sesmarias no Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul, Arquivo Nacional e

2 Helen Osório
Actas do Congresso Internacional Espaço Atlântico de Antigo Regime: poderes e sociedades

As ocupações: criadores e lavradores

Iniciaremos a análise pela ocupação declarada para cada um dos proprietários de terrenos.
A base de registros diminuiu para 1564 porque várias pessoas detinham mais de uma propriedade
e consideramos cada nome apenas uma vez.
O Vice-rei ordenara que o provedor indicasse “qual é o negócio em que se empregam os
seus moradores, se na lavoira, se em criação de animais”. Nem sempre os capitães auxiliares que
realizaram as relações, em primeira instância, cumpriram tal determinação. Por isso o número
significativo de ocupações “não informadas”. Por outro lado, como não consta nenhuma outra
referência à agricultura que a declaração de ocupação, optamos por considerar apenas as
grandes categorias e ignoramos os casos de difícil classificação, que demonstram as diferenças
de critérios dos elaboradores das relações. Estes casos estão agrupados em “outros”. De
qualquer forma, as quatro categorias mais frequentes, “lavrador”, “criador”, “criador e lavrador” e
“mais lavoura que criação” - que passaremos a denominar abreviadamente por “mais lavoura” –
abarcam 79,2% dos indivíduos registrados.
Podemos constatar que o termo lavrador é utilizado em seu sentido mais lato, em
consonância com as definições amplas dadas por Bluteau (“aquele que cultiva terras próprias ou
alheias”) e Morais, em sua primeira edição (“o que lavra e cultiva as terras”) 10. Como todos
ocupam terras, são produtores rurais, parece que, da mesma forma que em Portugal setecentista,
aqui está presente, ainda que de forma subsumida, “uma classificação binária elementar” 11:
lavradores em oposição a trabalhadores ou jornaleiros.

Quadro 1
Ocupação dos possuidores de terras, 1784

Ocupação nº %
lavrador 817 (a) 52,2
criador 220 (b) 14,1
criador e lavrador 132 ( c) 8,4
mais lavoura do que criação 70 4,5
outros 72 (d) 4,6
não informados 253 16,2
total 1564 100
Fonte: “Relação de moradores...” ANRJ, cód. 104, vols. 6, 7 e 8; AHRS, F1198 A e B.

a: incluídos 5 casos “vive pobremente”


b: incluídos 10 casos “vive de seu negócio e estância”
c: incluídos 7 casos “criador e planta para seu sustento”
d: incluídos 22 casos “planta para o sustento de sua casa”,
6 “vive da produção de sua fazenda”, 17 “vive de seu negócio”,
10 “vive de sua agência”, 16 vários tipos de artesanato e 1 “capataz”.

A primeira constatação que a “Relação” possibilita é a de que no Rio Grande, região


comumente considerada como o “reino da pecuária”, o número de possuidores de terras
dedicados à agricultura predominavam amplamente sobre os criadores de gado. Se
considerarmos juntamente os “lavradores” e aqueles que se dedicavam “mais à lavoura do que à
criação” de animais, temos um contigente de 56,7% dos censados o que eqüivale dizer, das
unidades produtivas existentes. Eliminando-se os casos não informados do número total de

Arquivo Histórico Ultramarino, o que compôs um corpus de 533 sesmarias, concedidas de 1738 a 1807.
10
Conceição A. MARTINS, Nuno G. MONTEIRO (org.), História do trabalho e das ocupações. A agricultura: dicionário.
vol. III, Oeiras, Celta Editora, 2002, p. 66.
11
Idem, Ibidem, p. 3.

Estancieiros do Rio Grande de São Pedro: constituição de uma elite terratenente no século XVIII 3
Comunicações

registros, este percentual chega a 67,6%, contra 26,8% dos “criadores” e “criadores e lavradores”
somados. A importância numérica deste grupo na configuração da paisagem agrária e produtiva
do Rio Grande fica aqui evidenciada.
O tamanho do rebanho possuído por cada proprietário é o único dado relativo à produção,
além da ocupação declarada, que a “Relação” fornece. Como podemos observar no quadro 2, ele
é bastante elucidativo acerca das denominações das ocupações e da própria estrutura agrária.

Quadro 2

Número médio de animais por ocupação, 1784


Ocupação reses bois cavaloséguas potros burros burras mulas ovelhas
lavrador 61 6 6 1 0 0 0 0 0
criador 852 8 27 344 31 7 6 10 24
criador e lavrador 1.041 16 57 293 40 5 5 16 21
mais lavoura do que criação 104 6 14 51 6 0 0 0 0
Fonte: “Relação de moradores...” ANRJ, cód. 104, vols. 6, 7 e 8; AHRS, F1198 A e B.

Constata-se, inicialmente, ao caráter misto das unidades produtivas. O “lavrador” também


possuía seu rebanho; um rebanho que para outras regiões da América portuguesa não seria nada
desprezível. Por exemplo, na capitania de Paraíba do Sul, Rio de Janeiro, em 1785, com o mesmo
tipo de fonte, um mapa agrário, foi determinado o número médio de vacas parideiras, dos
produtores definidos como exclusivamente criadores, como sendo de 22 cabeças 12. No Rio
Grande, um proprietário que possuísse 61 reses, 6 bois, 6 cavalos e uma égua era considerado
lavrador.
Quanto aos criadores, observamos uma subdivisão. Há os que só vivem de sua criação, e
os que vivem de sua criação e lavouras. Em ambas as ocupações verificamos a criação de todos
os tipos de animais. Mas, surpreendentemente, os “criadores e lavradores” possuem, em média,
22% mais reses que os “criadores”. Possuem também o dobro do número de bois, um indicativo
da prática da agricultura, da mesma forma que um número superior de mulas, utilizadas em
múltiplas tarefas. Os maiores proprietários de rebanho eram portanto, não os especializados, mas
justamente aqueles produtores mistos que combinavam a pecuária com a agricultura, que
diversificavam sua produção. Novamente a comparação com o Rio da Prata pode ser
esclarecedora. Em Buenos Aires, os produtores que praticavam nas mesmas unidades produtivas
pecuária e agricultura eram os mais capitalizados, possuindo o maior número de escravos e os
maiores rebanhos para todos os tipos de animais, além de serem proprietários das terras em um
percentual superior ao da amostra trabalhada 13.
A análise da distribuição do gado vacum entre as unidades produtivas informa-nos sobre
os tamanhos de rebanho mais freqüentes e sobre a concentração da atividade criatória. É um
índice, portanto, da hierarquização econômica e social vigente na região. Em 1784, o estado do
rebanho era o apresentado no quadro 3.

12
Sheila S. de Castro FARIA, A colônia em movimento. Fortuna e família no cotidiano colonial (sudeste, século XVIII),
Niterói, Curso Pós-graduação em História, Universidade Federal Fluminense, 1994. (tese de doutoramento), p. 177.
13
J. C. GARAVAGLIA, «La agricultura del trigo en las estancias», in R. MANDRINI, A. REGUERA (comp.), Huellas en la
tierra, Tandil, IEHS, 1993. pp. 109-111.

4 Helen Osório
Actas do Congresso Internacional Espaço Atlântico de Antigo Regime: poderes e sociedades

Quadro 3
Distribuição do rebanho vacum, por unidade produtiva. Rio Grande do Sul, 1784

nº de cabeças nº unidades produtivas % do total total de gado % total


sem gado 173 11,2 - -
1 a 100 738 47,9 27.509 6
101 a 500 425 27,6 97.206 21,1
501 a 1.000 95 6,2 65.362 14,2
1.001 a 2.000 58 3,8 77.830 16,9
mais de 2.000 51 3,3 192.949 41,8
Total 1540 100 460.856 100
Fonte: “Relação de moradores que possuem campos e animais...” 1784. AN, cód. 104, vol. 6 e 7.

A propriedade do gado era disseminada entre a população rural, mas altamente


polarizada. 11,2% dos ocupantes de terras não possuíam uma cabeça sequer. Quase a metade
dos proprietários tinham rebanhos de até 100 cabeças, o que perfazia apenas 6% do stock total.
Nesta faixa, 82,6% dos proprietários com ocupação declarada são “lavradores”, e possuíam em
média 37 cabeças de gado 14.
Os proprietários de rebanhos de tamanho médio eram aqueles da faixa de 101-500
cabeças, na qual encontra-se o maior equilíbrio entre a proporção de proprietários e de gado:
27,6% dos possuidores detêm 21,1% do rebanho. Três quartos dos proprietários possuíam até
500 cabeças. Somavam 75,5% das unidades censadas, mas detinham somente 27,1% do
rebanho. A média de cabeças de gado deste grupo era de 107, cifra bastante modesta. Já as
duas faixas superiores, que abarcam os detentores de mais de mil cabeças, 7,1% dos
proprietários concentravam 58,7% do rebanho total.
Tal distribuição do rebanho vacum modifica bastante a visão de uma paisagem agrária
composta quase que exclusivamente por grandes estâncias. Existiam sim, grandes unidades
criatórias, que concentravam mais da metade do rebanho existente, mas junto a estas encontrava-
se uma infinidade de pequenas e médias estâncias, com seus rebanhos mais diminutos. Fica
definida claramente, no entanto, uma hierarquia econômica baseada na apropriação do gado: 7%
dos produtores detinham 59% do rebanho existente, delineando-se aí uma elite econômica, em
um momento de expansão territorial e produtiva, oito anos após a reconquista da vila de Rio
Grande aos espanhóis.

Os grandes criadores de gado: atividades produtivas e propriedade da terra

Baseado no número médio de reses por ocupação, recorde-se, 852 para os criadores e
1.041 para os “criadores e lavradores”, e na distribuição do rebanho total entre os produtores na
qual os possuidores de mil cabeças - 7% dos criadores concentravam 59% do rebanho - optou-se
pela delimitação de mil cabeças para definir a elite dos criadores. Como todo número de corte,
possui um certo grau de arbitrariedade, do qual se está consciente mas que, julga-se, estar
suficientemente embasado nas balizas agora referidas.
São 100 os produtores com mil ou mais cabeças de gado, 3 mulheres viúvas e 97 homens.
Sete deles possuíam esta quantidade em mais de uma fazenda 15. 48% deles eram criadores,
14
Além de 464 “lavradores” encontram-se nesta faixa (de até 100 cabeças de gado) as seguintes ocupações: “mais
lavoura que criação” (41); “criador” (21); “planta para o sustento de sua casa” (10); artesão (10); “criador e lavrador” (3);
“vive de seu negócio” (4); “vive de sua agência” (3); “vive pobremente” (4); “vive da produção de sua fazenda” (2). Há
176 casos não informados.
15
Como o critério de elaboração da “Relação” é a terra, as unidades produtivas, encontrou-se 110 unidades com mil
reses ou mais. Sete nomes repetiam-se (possuíam mais de uma fazenda com mil reses): Antônio da Costa Ribeiro,
Antônio Gonçalves Padilha, Cláudio Guterres, João Pereira Chaves, Manuel Bento da Rocha, Rafael Pinto Bandeira,
Vitoriano José Senteno. Três referiam-se a patrimônio de falecidos, constando “filhos de”, casos estes que eliminamos

Estancieiros do Rio Grande de São Pedro: constituição de uma elite terratenente no século XVIII 5
Comunicações

35% “criadores lavradores” e 6% “viviam de seu negócio e estância”. 11% dos casos não tiveram
a atividade informada.

Estancieiros com mais de mil reses, tamanho médio do rebanho

Atividade n° médio reses


criador 2.710
criador e lavrador 2.850
vive de seu negócio e estância 1.530
Fonte: “Relação de moradores que possuem campos e animais...” 1784. AN, cód. 104, vol. 6 e 7.

Na elite de criadores, não há diferença importante entre as atividades de “criador” e


“criador e lavrador”, com relação ao rebanho médio (6%), como foi verificado para o total dos
produtores rurais; o contraste aqui é dado pelos que se dividem entre a criação e são
simultaneamente homens de negócio: sua posse é 42% inferior a dos criadores. Estes produtores
dedicam-se à criação de bovinos, cavalares e muares, mas a criação de ovelhas era ainda rara
em 1784: apenas 20% criavam-nas.
Os maiores produtores eram José Francisco da Silveira Casado com 8 mil reses, o padre
João Diniz Alves de Lima, com 10 mil, Custódio de Souza Oliveira, com 11 mil e Caetano da
Silveira de Matos 12.200.
Quanto à propriedade da terra, observa-se que a elite desenvolveu estratégias para
ampliar seus domínios e constituir extensíssimas estâncias. Apenas 48 proprietários, entre os 100,
possuíam uma única propriedade. A maior parte deles tinha estâncias constituídas por 2, 3 ou 4
terrenos contíguos, adquiridos de diferentes formas, como se vê abaixo:

Posse da terra: formas de concessão primária

troca n°
despacho governador 96
não informado 52
sesmaria 37
posse 13
papel de venda 2
data 1
troca 1
Fonte: “Relação de moradores que possuem campos e animais...” 1784. AN, cód. 104, vol. 6 e 7.

Trata-se aqui da concessão originária, ou seja, o título que deu origem à propriedade, no
caso de haver um título. Depois estas terras poderiam ser transmitidas de várias formas: herança,
dote, compra, troca, arrematação, etc. Predominaram os despachos do governador, uma
concessão sem estatuto jurídico próprio, o qual, a princípio, obrigava o beneficiário a requerer a
sesmaria. A maior parte destes despachos foram concedidos nos últimos anos da década de 70 e
intensivamente nos primeiros da década de 1780, muito próximo, portanto, ao momento de
realização da “Relação”.
Pode-se considerar os casos não informados como posse, o que somado às 13
declaradas, resultaria em 65 estabelecimentos sem título algum, que tinham sido simplesmente
apossados.
As sesmarias têm uma forte presença. Existem 116 declaradas em toda a “Relação”. Os
grandes estancieiros detém 32% delas, mas constituem apenas 7,4% da população ocupante de

restando 100 nomes.

6 Helen Osório
Actas do Congresso Internacional Espaço Atlântico de Antigo Regime: poderes e sociedades

terras. Tiveram, portanto, um acesso privilegiado a este tipo de propriedade, o que é um traço
distintivo do grupo.
Das 37 sesmarias, 17 tinham sido concedidas diretamente ao estancieiro, enquanto as
restantes vieram parar em suas mãos através de compra (7 ocorrências), herança (9 ocorrências)
e um dote. O fato de 45% das que já não estavam na posse de seu concessionário original ter
sido transmitidas por herança indica um enraizamento familiar importante nestes novos territórios.
Nas décadas seguintes, outros estancieiros do grupo de elite obtiveram sesmarias em
número considerável. Se 17 tinham sesmaria em nome próprio em 1785, até 1801 mais 43
receberam esta mercê, principalmente na década de 1790, no governo do Conde de Resende 16.
Quanto à extensão, 40% dos estancieiros tinham mais de 10.000 ha e o tamanho médio
das propriedades era de 12.095 ha. Recorde-se que a dimensão máxima de uma sesmaria era de
três léguas quadradas, ou 13.068 ha e, portanto, grande parte do grupo possuía estabelecimentos
com dimensões muito próximas a de uma sesmaria. Mas muitas outras extrapolavam largamente
esta dimensão. Encontramos uma única propriedade com 22.869 há; outra, no distrito de Vacaria,
com 43.560 ha, de um proprietário que possuía outra sesmaria em Cachoeira. Caetano da Silveira
de Matos, o maior proprietário de gado (12.200 cabeças vacuns) possuía um campo de 69.969 ha,
mais de 5 léguas quadradas (composto de dois campos adquiridos separadamente)!
Mas nenhum outro se equipara ao cel. Rafael Pinto Bandeira, que tinha 12 campos
diferentes, espalhados pelas freguesias de Anjos, Encruzilhada, Cerro Pelado, Vacaria e Rio
Grande. Apenas em Cerro Pelado possuía 34.848 ha, apesar de ter aí somente 6.000 reses.
Claramente o militar mais prestigiado do Rio Grande estava realizando um processo bem
sucedido de monopolização de terras. Consequência disso é seu patrimônio ao final da vida, em
1796: dos 41 inventários de grandes estancieiros que se localizou, ele é o mais rico 17, possuindo
uma fortuna de 21.000 libras esterlinas ou setenta e cinco contos de réis (75:000$000), o que o
coloca no patamar das fortunas de importantes comerciantes da praça do Rio de Janeiro da
década de 1790.

Participação em tropas auxiliares e cargos da governança local

Em uma região fronteiriça como o Rio Grande da segunda metade do século XVIII o
pertencimento às tropas auxiliares e de ordenanças refletia e dava novas possibilidades de
engrandecimento ao status dos agentes. A historiografia tradicional sempre salientou o papel dos
militares como agentes fundamentais da expansão lusa. Ao mesmo tempo, a maior parte dos
autores trata com descaso a diferenciação entre as tropas de primeira linha, o exército regular, e
as tropas auxiliares 18. No caso desta fronteira viva, ativa e bélica, certamente as tropas auxiliares
tiveram um papel militar real muito mais efetivo do que em outras regiões da América portuguesa,
mas deve-se resgatar a nomeação para os cargos de mando das tropas auxiliares como
expressão de um poder, de um status econômico e social já adquirido, que pode ser reforçado e
potencializado a a partir da função. Em outro trabalho já analisamos o papel fundamental que os
capitães de auxiliares de distritos exerciam na distribuição de terras ao serem os responsáveis
pelas informações dadas ao governador sobre a ocupação de terras 19. Esta é, pois, uma variável
relevante para verificar a posição da elite dos estancieiros no conjunto da sociedade sulina.

16
Conforme o banco de dados de sesmarias, formado com registros de sesmarias do Arquivo Histórico do Rio
Grande do Sul, Arquivo Nacional e Arquivo Histórico Ultramarino, o que compôs um corpus de 533 sesmarias,
concedidas de 1738 a 1807.
17
Inventário do 1° Cartório de Órfãos de Porto Alegre, 1796, APERGS (Arquivo Público do Estado do Rio Grande do
Sul).
18
Guilhermino CÉSAR, História do Rio Grande do Sul. Período colonial, Porto Alegre, Globo, 1970
19
Helen OSÓRIO, Apropriação da terra no Rio Grande de São Pedro e a formação do espaço platino, Porto Alegre,
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Pós-graduação em História, 1990. (dissertação de mestrado)

Estancieiros do Rio Grande de São Pedro: constituição de uma elite terratenente no século XVIII 7
Comunicações

Dos 100 estancieiros, 48% possuíam patentes militares, mas apenas seis de tropas
regulares: Francisco Barreto Pereira Pinto, Rafael Pinto Bandeira, Patrício Correia da Câmara,
Francisco Álvares de Oliveira, Manuel Marques de Souza e João da Costa Severino. Os outros 42
participavam de tropas auxiliares. Assim, os grandes proprietários de terras e rebanhos não fazia
parte do exército regular, como genericamente sempre se afirmou. O pertencimento às tropas
auxiliares, no entanto, devia ser um fator importante na constituição do seu poder sócio-
econômico, dada a alta incidência constatada. Enquanto apenas 9,3% da população masculina
registrada na “Relação” possuía alguma patente, entre os grandes estancieros temos o percentual
de 48%. Avaliando os inventários destes homens, encontramos um percentual maior, 59%. Esta
ampliação explica-se pelo tipo de fonte, relacionada ao ciclo de vida: o inventário reflete o final de
uma trajetória, de uma carreira, e dos investimentos econômicos e simbólicos realizados, o que só
confirma as patentes como um elemento importante para a distinção do grupo.
O mesmo não parecia ocorrer com os cargos da governança municipal. Nos cargos do
pelouro da Câmara de Porto Alegre, a única existente até 1808, a presença da elite de
estancieiros é muito pequena. De 1767 a 1808, 142 pessoas diferentes ocuparam tais cargos 20.
Apenas 17, ou 12% faziam parte do grupo de estancieiros. E, dentre estes, significativamente dois
eram dos que foram identificados como sendo também negociantes. Ao que parece, foram os
negociantes que dominaram a Câmara no período colonial, semelhantemente ao que foi
constatado para a década de 1810, quando não menos de 78% dos homens listados como aptos
para exercer os cargos da Câmara exerciam o comércio; os criadores eram franca minoria 21.

Estancieiros e comerciantes: dois perfis distintos

Dos 100 nomes de estancieiros que possuíam 1.000 ou mais cabeças de gado, localizou-
se os inventários de 41, ou seja, 41% do total. Para os negociantes tomou-se o Almanack de
Porto Alegre, que arrolou todos os comerciantes existentes na capitania em 1808. De 135 nomes,
obteve-se os inventários de 61, perfazendo 46% do universo 22. Para se proceder à comparação
das elites dos dois grupos ocupacionais, foram eliminados da listagem dos negociantes (que
representa todo o seu universo e não apenas sua elite) aqueles que possuíam um monte-mor em
libras esterlinas inferior ao menor monte-mor encontrado para a elite dos estancieiros. Foram
excluídos 6 nomes, desventurados negociantes fracassados em seus negócios, que possuíam ao
falecer patrimônio inferior a 500 libras. Restaram assim 55 comerciantes, 40% da lista original.
Comparando-se os montes-brutos médios dos dois grupos tem-se:

Quadro 4
Monte-mor e monte-líquido médios (em libras) de negociantes e estancieiros

monte-mor médio em £ monte-líquido em £


negociantes 7.048 5.815
estancieiros 5.323 5.042
Fonte: 41 inventários de estancieiros e 55 de negociantes, APERGS

20
Agradeço a Adriano Comissoli ter cedido a lista por ele organizada com base nas atas do Boletim Municipal de
Porto Alegre.
21 Helen OSÓRIO, Estancieiros, lavradores e comerciantes na constituição da estremadura portuguesa na América.
Rio Grande de São Pedro, 1737-1822, Niterói, Curso Pós-graduação em História, Universidade Federal Fluminense.
(tese de doutoramento inédita). 1999. p. 255, nota 15.
22
«Relação de moradores que possuem terras e animais neste Continente»,1784. Códice 104 (Vice-reinado), vols. 6
e 7. ANRJ. Almanack da Vila de Porto Alegre, com reflexões sobre o estado da Capitania do Rio Grande do Sul, de
Manoel de Antônio Magalhães, 1808. Códice 807 (Memórias) vol. 1, ANRJ.

8 Helen Osório
Actas do Congresso Internacional Espaço Atlântico de Antigo Regime: poderes e sociedades

O monte-bruto médio dos estancieiros representa 75,5% do dos negociantes. No monte-


líquido médio esta diferença diminui para 86,7%, pois os comerciantes possuem mais dívidas
passivas 23. De qualquer forma, o patrimônio bruto dos homens de negócio é 30% superior aos
dos estancieiros. Ainda, estratificando as fortunas de cada um dos grupos, tem-se que as fortunas
acima de 10.000 libras representam 24,1% dos negociantes da amostra (lista de 1808) e eles
detêm 57,5% do total dos montes-brutos, enquanto apenas 14% dos estancieiros estão neste
patamar, detendo 38,6% do total dos montes-brutos de seu grupo (lista de 1784).
Se havia dúvidas acerca de estancieiros e negociantes comporem grupos sociais distintos,
exercendo diferentes atividades econômicas e consequentemente com perfis de fortuna também
variados, o quadro 5 as dirime.

Quadro 5
Composição méda (%) das fortunas de negociantes e estancieiros

Padrão de vida 1,8 1,4


Dinheiro 7,6 3,5
Jóias 1,1 1,1
Prédios urbanos 22,4 4,4
Bens comerciais 5,6 0,1
Bens rurais 19,8 58,9
Escravos 13,5 16,5
Dívidas ativas 27,4 14
Dívidas passivas 16 8

Fontes: 41 inventários de estancieiros e 55 de negociantes, APERGS

Há similitude no que diz respeito a padrão de vida, jóias e escravos. Mas os percentuais
para prédios urbanos, bens comerciais e dívidas ativas definem bem o perfil do grupo dos
negociantes, da mesma forma que bens rurais para os estancieiros. O fato de se encontrar 19,8%
de bens rurais na composição média da fortuna dos negociantes indica que uma parcela deles, ao
fim de suas vidas, tinha conseguido diversificar seus negócios. Tendência esta que responde a
uma das características do mercado pré-industrial europeu e do colonial também: rapidez das
mudanças conjunturais e instabilidade dos ramos de negócio 24. Assim, alguns negociantes
sediados no Rio Grande conseguiram diversificar seu raio de atuação, característica comum entre
os grandes comerciantes do Rio de Janeiro, Salvador, cidade do México, Buenos Aires e Lisboa25.
Comparando a naturalidade dos dois grupos, através dos testamentos anexos aos
inventários, temos, para o grupo mercantil que 60% eram portugueses, 32,5% oriundos da
América portuguesa e 7,5% dos Açores. Entre os grandes estancieiros, 38% eram portugueses,

23
Eliminando-se dois comerciantes cujos montes-brutos estão na faixa de 2 a 5 mil libras, mas os montes-líquido
são negativos (possuem mais dívidas que o seu patrimônio total), as diferenças dos montes médios seriam ainda
maiores: os dos estancieiros corresponderiam, a 72,9% e 81,5% dos montes-brutos e líquidos, respectivamente, dos
negociantes.
24
João Luís Ribeiro FRAGOSO, Homens de grossa aventura: acumulação e hierarquia na praça mercantil do Rio de
Janeiro (1790-1830), Rio de Janeiro, Arquivo Nacional, 1992. p. 267
25
J. L. Ribeiro FRAGOSO, Homens de grossa aventura… cit., p. 267; Rae FLOURY, David G. SMITH, «Bahian
merchants and planters in the early seventeeth and eighteenth centuries», Hispanic American Historical Review, 58 (4),
Nov., 1978, p. 571-594; Susan SOCOLOW, Los mercaderes del Buenos Aires virreinal: familia y comercio, Buenos Aires,
Ediciones de la Flor, 1991, pp. 71-90; D. A. BRADING, Mineros y comerciantes en el México Borbónico 1763-1810),
México, FCE, 1991, p. 139; John E. KICZA, Empresarios coloniales. Familias y negocios en la ciudad de México durante
los Borbones, México, FCE, 1986, p. 42 e p. 183; Jorge Miguel Viana PEDREIRA, Os homens de negócio da praça de
Lisboa de Pombal ao Vintismo (1755-1822). Diferenciação, reprodução e identificação de um grupo social, Lisboa,
Universidade Nova de Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, 1995. Tese de doutorado p. 317

Estancieiros do Rio Grande de São Pedro: constituição de uma elite terratenente no século XVIII 9
Comunicações

46% oriundos da América portuguesa e 16% das ilhas atlânticas 26. O peso dos americanos e do
processo de colonização açoriana reflete-se no perfil dos estancieiros, diferentemente de outras
regiões do império português na América, em que o peso dos portugueses é maior, mesmo nas
elites terratenentes.
A carreira de um comerciante poderia terminar em uma estância, mas o inverso não é
verdadeiro 27. Basta ver os percentuais de bens comerciais, prédios urbanos e dívidas ativas dos
estancieiros. De resto, nenhum dos 100 membros da elite dos estancieiros do censo de 1784
aparece na lista de comerciantes de 1808 - ainda que 49% dos quais se obteve inventário
tivessem morrido após 1808.
Portanto, pode-se identificar os negociantes como a elite econômica do Rio Grande de São
Pedro e como grupo ocupacional diverso dos grandes proprietários de terra e gado. Esta
configuração é semelhante a do grupo mercantil de Buenos Aires, como demonstraram trabalhos
como os de Socolow para os comerciantes, e o de Mayo para os estancieiros 28.
Algumas trajetórias ilustram muito bem esta transição dos comerciantes para as atividades
agrárias, em busca de mais status e reconhecimento social numa sociedade de Antigo Regime e
escravista, simultaneamente.
Antônio Alves Guimarães é identificado como “criador” na “Relação” de 1784. Possuía uma
sesmaria a ele concedida em 1780, e mais uma chácara, sem nenhum título, com mera posse.
Criava 2.000 reses, cavalares e muares, na freguesia de Triunfo. No entanto, outras fontes nos
revelam sua vida anterior a 1784 e o seu estabelecimento como estancieiro. Antônio Alves
Guimarães saiu em 1750 de Portugal para o Rio de Janeiro “para ali estabelecer algum comércio”;
passou com seu negócio de fazendas para o porto de Rio Grande e depois para a povoação de
Rio Pardo e “continuou com o mesmo modo de vida para as Missões do Uruguai na Expedição
que então fazia o Conde de Bobadela”. Foi, portanto, um comerciante que acompanhou o exército
português na campanha de demarcação de limites e na guerra guaranítica. Acabada esta, voltou
com seu negócio ao quartel do Rio Pardo 29. Vinte anos depois da expedição de Gomes Freire,
Antônio tinha abandonado definitivamente sua atividade mercantil, e tornara-se um dos membros
da elite de estancieiros do Continente.
Da mesma forma, Francisco Correia Pinto transitou do comércio para a criação, mas após
ser registrado na “Relação” em 1784 como vivendo de seu negócio e estância, em Rio Grande.
Naquele momento, este português nascido no Bispado de Braga e que morrerá solteiro, possuía
campos situados no Cerro Pelado, mas sem nenhum título de propriedade Nos campos
apossados ele criava 1.500 reses, além da cavalares. Já possuía a patente de capitão de
auxiliares e fora vereador em 1771, 75 e 1778. Quando falece, em 1793, o único vestígio de sua
origem mercantil em seu patrimônio, avaliado em inventário, será uma grande soma em dinheiro30.
Ele não possuía mais nenhuma dívida ativa, nem estoques de mercadorias. No entanto, sua
criação multiplicara-se: das 1.500 reses de nove anos atrás agora ele possuía 7.600, além da
criação de cavalares, muares e 600 ovelhas! Sua propriedade, medida, tinha 3 léguas quadradas,
com casas, árvores de frutos, cercas, potreiro, lavouras, 10 arados e 14 foices, e um plantel de 37

26
Em números absolutos, 6 açorianos, 9 portugueses majoritariamente minhotos, 1 madeirense, contra 11 nascidos
na América: 3 na Colônia de Sacramento, 3 no Rio de Janeiro e cinco no próprio Rio Grande.
27
Sheila S. de Castro FARIA chega a esta mesma conclusão em relação aos senhores de engenho de Campos de
Goitacazes, no século XVIII: comerciantes abandonam o comércio e tornam-se senhores de engenho, mas o contrário
não ocorre. Cf. A colônia em movimento. Fortuna e família no cotidiano colonial (sudeste, século XVIII), Niterói, Curso
Pós-graduação em História, Universidade Federal Fluminense, 1994. Tese de doutorado.
28
Susan SOCOLOW, Los mercaderes del Buenos Aires virreinal: familia y comercio, Buenos Aires, Ediciones de la
Flor, 1991 e Carlos MAYO, «Landed but not Powerful: The colonial Estancieros of Buenos Aires (1750-1810)», Hispanic
American Historical Review. 71:4, Durham, 1991.
29
AHU, RG, cx. 17, doc. 20 - Petição de Antonio Alves Guimarães anterior a 2/9/1806. As referências a documentos
do Arquivo Histórico Ultramarino são apresentados com a cota anterior ao Projeto Resgate.
30
Inventário post-mortem de Francisco Correia Pinto, 1° cartório órfãos, Rio Grande, 1793. APERGS.

10 Helen Osório
Actas do Congresso Internacional Espaço Atlântico de Antigo Regime: poderes e sociedades

escravos, entre campeiros e roceiros. O valor de seus escravos equivalia a quase 3 vezes o valor
de suas terras. Enfim, uma fortuna de 7.765 libras, sem dívidas passivas ou ativas. Toda esta
transformação levada a cabo em nove anos! Parece que o estancieiro, ex-comerciante, quis legar
a seu sobrinho, herdeiro universal, um patrimônio de terras, homens cativos e animais, sem
nenhum rastro ou herança de sua atividade mercantil pregressa, através da qual amassara sua
fortuna.
Estes dois exemplos, na escala modesta de uma capitania da estremadura portuguesa,
expressam comportamentos sócio-econômicos comuns a áreas importantes do Império português.
Escala modesta pois os membros desta elite possuía em média 24 escravos31, quantidade
compatível com as atividades pecuárias, e que, com a exceção de dois de seus membros, não
eram comendadores da Ordem de Cristo 32.
Como demonstrou Fragoso 33, em seu estudo da comunidade mercantil do Rio de Janeiro,
boa parte da elite mercantil acabava deslocando-se para atividades menos lucrativas, mas
merecedoras de maior prestígio na sociedade colonial: propriedades rurais, sesmarias, escravos.
Pudemos verificar tal percurso ao inverso, a partir do ponto de chegada, ou seja, o de
pertencimento à elite dos proprietários rurais, criadores de grandes rebanhos.

31
Dado obtido a partir de 41 inventários de estancieiros.
32
Dos 100 nomes, só foram encontradas as habilitações da Ordem de Cristo de Rafael Pinto Bandeira, como mercê
por seus serviços militares, e Antero Ferreira de Brito, por serviços prestados por um tio. Hoc, IAN/TT – Lisboa.
33
João Luís Ribeiro FRAGOSO, Homens de grossa aventura: acumulação e hierarquia na praça mercantil do Rio de
Janeiro (1790-1830), Rio de Janeiro, Arquivo Nacional, 1992

Estancieiros do Rio Grande de São Pedro: constituição de uma elite terratenente no século XVIII 11

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