Discover millions of ebooks, audiobooks, and so much more with a free trial

Only $11.99/month after trial. Cancel anytime.

A Comunidade Ética de Kant: Como Unir os Homens Mediante Leis de Virtude
A Comunidade Ética de Kant: Como Unir os Homens Mediante Leis de Virtude
A Comunidade Ética de Kant: Como Unir os Homens Mediante Leis de Virtude
Ebook384 pages5 hours

A Comunidade Ética de Kant: Como Unir os Homens Mediante Leis de Virtude

Rating: 0 out of 5 stars

()

Read preview

About this ebook

Para investigar e trazer ao debate atual o conceito de comunidade ética, temática por Kant desenvolvida na terceira parte do escrito A religião nos limites da simples razão, o trabalho de Letícia Machado Spinelli direciona-se no sentido de, por um lado, reconstruir as bases teóricas que forjaram a reflexão kantiana acerca de comunidade ética e, por outro, investigar o que denomina de desdobramento do conceito de comunidade ética. Kant, conforme indica a autora, não se serve ou aponta explicitamente para algo semelhante a um desdobramento conceitual da noção de comunidade ética. Com efeito, a sua argumentação permite que tal tese seja proposta, uma vez que há, relativamente à noção de comunidade ética, uma visível sobreposição de definições. Kant serve-se de três definições para designar a comunidade ética, a saber: a comunidade ética enquanto uma união sob leis de virtude, a comunidade ética enquanto um povo de Deus sob leis de virtude e, por fim, a comunidade ética como uma igreja. União moral, legislação divina e igreja compõem, portanto, o repertório com o qual Kant discorre acerca do conceito de comunidade ética, e são dessas definições, quer associadas aos meandros argumentativos inerentes a cada uma em particular, quer na articulação de todas numa perspectiva de unidade, que este livro se ocupa.
LanguagePortuguês
Release dateApr 2, 2020
ISBN9788547331283
A Comunidade Ética de Kant: Como Unir os Homens Mediante Leis de Virtude

Related to A Comunidade Ética de Kant

Related ebooks

Education Philosophy & Theory For You

View More

Related articles

Reviews for A Comunidade Ética de Kant

Rating: 0 out of 5 stars
0 ratings

0 ratings0 reviews

What did you think?

Tap to rate

Review must be at least 10 words

    Book preview

    A Comunidade Ética de Kant - Letícia Spinelli

    Let_ciaMachadoSpinelli_0006686.jpgimagem1imagem2

    Editora Appris Ltda.

    1ª Edição - Copyright© 2019 dos autores

    Direitos de Edição Reservados à Editora Appris Ltda.

    Nenhuma parte desta obra poderá ser utilizada indevidamente, sem estar de acordo com a Lei nº 9.610/98.

    Se incorreções forem encontradas, serão de exclusiva responsabilidade de seus organizadores.

    Foi feito o Depósito Legal na Fundação Biblioteca Nacional, de acordo com as Leis nºs 10.994, de 14/12/2004 e 12.192, de 14/01/2010.

    COMITÊ CIENTÍFICO DA COLEÇÃO CIÊNCIAS SOCIAIS

    Miguel e Pedro Miguel:

    afeto, estímulo e risos!

    APRESENTAÇÃO

    Em seu conjunto, esta obra foi concebida sob o objetivo bem delimitado de apresentar o desdobramento do conceito de comunidade ética, relativo ao qual, por se tratar de um tema ainda pouco estudado, estamos certos de que restam, sob tal motivação, umas quantas arestas a aparar. As dificuldades se apresentam, sobretudo, quando se pretende confrontar as teses do escrito sobre a religião com algumas outras já consolidadas por Kant em obras anteriores. Com efeito, tal confronto requer o trabalho inicial de entender o que de fato ele pretendeu teoricamente promover no escrito da religião, e isso em particular no que diz respeito ao conceito de comunidade ética. Em muitos momentos dessa empreitada, o texto fluiu com autonomia, seguindo os passos trilhados por Kant; em outros, foi, digamos, necessário forçá-lo a dar algumas respostas ou pelos menos indicações relativas à razão de ser de determinados argumentos. Foi, com efeito, promovendo esse jogo, quase que dialético, que nasceu e se desenvolveu este estudo. O principal é que sempre o direcionamos no sentido de justificar Kant por ele mesmo, a partir de suas declarações e de seus argumentos, tarefa que, em certos pontos, resultou bastante árdua. Ocorre que confrontar certas ideias apresentadas por Kant com a ideia que fazemos dele gerou e gera, por vezes, grande embaraço, mas também promove a seguinte questão: como entendê-lo senão a partir de suas ideias, ou seja, do que ele efetivamente declarou ou escreveu?

    Letícia Machado Spinelli

    LISTA DE ABREVIATURAS DAS OBRAS DE KANT

    Sumário

    INTRODUÇÃO

    1

    A COMUNIDADE ÉTICA ENQUANTO UMA UNIÃO DE HOMENS SOB LEIS DE VIRTUDE

    1.1 CORRUPÇÃO MÚTUA E DEGRADAÇÃO MORAL

    1.1.1 A tendência à comparação

    1.1.2 Causas e circunstâncias do mal

    1.1.2.1 Animalidade, humanidade e personalidade: disposições originárias para o bem

    1.1.2.2 Mal, disposição para a humanidade e natureza humana

    1.2 REBELDIA CIVIL E BARBÁRIE MORAL

    1.2.1 O estado de natureza jurídico

    1.2.2 O estado de natureza ético

    1.3 TRANSIÇÃO DA SELVAGERIA PARA A CIVILIDADE

    1.3.1 Do estado de natureza jurídico à sociedade política

    1.3.2 Do estado de natureza ético à comunidade ética

    1.3.2.1 Edificação moral coletiva

    1.3.2.2 A união moral: palco para o progresso do indivíduo

    1.4 COMUNIDADE ÉTICA [ethisches gemeines Wesen]

    1.4.1 Comunidade ética e sociedade civil

    1.4.1.1 Insociável sociabilidade e progresso humano

    1.4.1.2 Civilidade e não isenção da barbárie

    1.4.1.3 O homem enquanto membro de duas legislações

    1.4.1.4 A abrangência da relação política e da união ética

    1.4.2 Comunidade ética e sumo bem

    1.4.2.1 Os postulados: liberdade, imortalidade da alma e Deus

    1.4.2.2 O sumo bem enquanto bem comunitário

    2

    A COMUNIDADE ÉTICA ENQUANTO UM POVO DE DEUS SOB LEIS DE VIRTUDE 1

    2.1 LEGISLAÇÃO DIVINA E COMUNIDADE ÉTICA

    2.1.1 Uma comunidade ética só pode admitir um legislador divino

    2.1.2 As noções de legislação divina e autonomia moral são incompatíveis?

    2.1.3 Deus enquanto fundador da comunidade ética

    2.1.3.1 Assistência divina e dignidade humana

    2.1.3.2 Virtude 128

    2.2 A NECESSIDADE DA SUPOSIÇÃO DE UM LEGISLADOR MORAL DIVINO

    2.2.1 Determinação do arbítrio

    2.2.2 Sumo bem e legislação divina

    2.3 O CONCEITO KANTIANO DE RELIGIÃO SUBJETIVAMENTE CONSIDERADA

    2.3.1 A noção de mandamentos divinos

    2.3.2 O agrado a Deus por meio de uma boa conduta diante dos homens

    3

    A COMUNIDADE ÉTICA ENQUANTO IGREJA

    3.1 REINO DE DEUS NA TERRA [Reich Gottes auf Erden]

    3.1.1 Igreja invisível e Igreja visível

    3.1.2 Comunidade ética: igreja visível ou invisível?

    3.1.2.1 O argumento de Otfried Höffe

    3.1.2.2 O argumento de Allen Wood

    3.1.3 Comunidade ética, igreja visível e igreja invisível

    3.2 A VERDADEIRA IGREJA [die wahre Kirche]

    3.2.1 Fé eclesial e fé religiosa pura

    3.2.2 Entre o pietismo, o iluminismo e o descrédito: a recepção da noção de igreja

    3.2.3 O que significa unir-se em uma igreja e por que Kant se serve de tal noção

    CONSIDERAÇÕES FINAIS

    REFERÊNCIAS

    INTRODUÇÃO

    O escrito A religião nos limites da simples razão causou bem mais incômodo e estranhamento na época de sua edição do que reconhecimento posterior. O incômodo se afigurou em vista de que a época em que essa obra estava para ser editada foi marcada por forte censura por parte do governo vigente. Kant, ao que tudo indica, não tinha o intuito de publicar em forma de livro os textos que vieram a se constituir no escrito sobre a religião, mas na forma de artigos publicados na revista Berlinische Monatsschrift. Foi a censura incidida sobre suas ideias que o levou a mudar de rumo. Ocorre que, assim que ele concluiu o texto Sobre o mal radical na natureza humana¹ – texto que, enfim, veio a se constituir na primeira parte do escrito sobre a religião –, enviou-o, como de praxe, para ser submetido à avalição na Berlinische. Wollner, o encarregado pela regulamentação dos exames, indicou como censor G. F. Hillmer, que aprovou o texto sob a seguinte justificativa: de que teria como público-alvo apenas os eruditos de espíritos mais sábios. O texto foi, em 1792, publicado na Berlinische.

    Satisfeito, Kant deu continuidade ao escrito. Mas, nessa sequência, que viria a se tornar a segunda parte do escrito sobre a religião, ele não obteve o sucesso esperado. Além do censor Hillmer, esse segundo texto foi lido e avaliado por outro censor, de nome Hermes, que embargou a publicação. Mas Kant não perdeu o bom ânimo no sentido de prosseguir seu intento em publicar o texto, razão pela qual agiu com bastante ardil e perspicácia. Ele reuniu os dois artigos destinados à Berlinische – aquele já publicado e o que tencionava publicar – com outros dois ensaios que igualmente pretendia que fossem continuação, e os entregou, desta vez em forma de livro à impressão, sob o título A religião nos limites da simples razão.

    Antes, porém, e aqui temos uma mostra de sua perspicácia e presença de espírito, consultou a Faculdade de Teologia de Königsberg. Seu objetivo consistia em saber se sua obra era dotada de teor teológico bíblico, porque, se fosse, então teria que submetê-lo à Faculdade de Teologia. Como recebeu resposta negativa ao seu questionamento, encaminhou seus escritos para a Faculdade de Filosofia de Jena. A expectativa foi boa: ele recebeu um parecer positivo da corporação científica da Faculdade de Jena, que aprovou a impressão dos escritos, que, enfim, foram editados na forma de livro em 1793.

    A publicação do livro não resultou, entretanto, em tranquilidade para Kant: por um lado, Frederico Guilherme II (rei da Prússia de 1786 até sua morte em 1797) fez com que ele se comprometesse a não mais tratar de questões atinentes à religião (fato descrito pelo próprio Kant no prefácio ao Conflito das faculdades); por outro, Kant teve dificuldade quanto à recepção da obra pelos eruditos da época. A temática do texto, acompanhada do modo como é exposta, foi considerada (e ainda se mantém no juízo de muitos) como destoante do conjunto da produção kantiana, sob a alegação, inclusive, da avançada idade do autor, que na ocasião contava 68 anos. Tal estranhamento pode ser justificado em razão de que, mesmo sendo uma obra pertencente ao âmbito da moralidade, A religião nos limites da simples razão tratava da questão da moral de modo diferenciado daquele com o qual Kant se ocupou, por exemplo, na Fundamentação ou na segunda Crítica.

    No prólogo à primeira edição, Kant delimitou os objetivos do escrito sobre a religião sob dois aspectos: um, dizendo que as quatro partes do tratado tinham por objetivo tornar manifesta a relação da religião com a natureza humana, a qual possui em parte disposições boas e em parte disposições más; outra, assegurando que iria representar a relação do bom e do mau princípio tal como de duas causas operantes por si subsistentes e que influem no homem². A partir dessa delimitação expressa por Kant sobressaem alguns pontos essenciais que merecem consideração:

    1) Fica evidente que o seu objetivo consistia em tornar manifesta a relação da religião com a natureza humana, mais especificadamente no que diz respeito aos anseios, às disposições ou às propensões da referida natureza. Disso decorre como importante ressaltar que a religião, em Kant, não se constitui em uma matéria de estudo acerca da divindade, mas em um modo de recepcionar ou abordar os deveres (de virtude) dos homens para consigo mesmos e perante os demais. Nesse sentido, não só no escrito da religião, como também no decorrer de suas obras, quando ele se dedica a conceituar a religião, ele a expressa nos seguintes termos: "a religião (subjetivamente considerada) é o reconhecimento de todos os nossos deveres [Pflichten] como mandamentos divinos"³. A religião subjetivamente considerada diz respeito, sobretudo, a uma anuência interna do indivíduo humano quanto ao modo de considerar os seus deveres (para consigo mesmo e para com os demais) como se fossem mandamentos divinos. Quer dizer: não é, portanto, sobre a religião que recai o estudo acerca da divindade (do que é ou deve ser divino), e sim sobre os deveres humanos;

    2) A natureza humana, concebida por Kant de um ponto de vista moral, está sempre sujeita a disposições boas e a propensões más. Daí que, nesse sentido, ele não só elenca na religião os dois tipos referidos e suas manifestações no ânimo humano, como também se põe a investigar em que termos tais tendências, na medida em que são tidas como más, podem ser dominadas ou retraídas em vista de uma sobreposição ou mesmo de um restabelecimento das boas;

    3) A relação entre a religião e a natureza humana é tratada por Kant a partir do conflito entre o princípio bom e o mau como duas causas operantes da natureza humana.

    Considerando esses pontos, ele organiza o escrito da religião em quatro partes:

    Na primeira, sob o título Da morada do princípio mau ao lado do bom ou sobre o mal radical na natureza humana⁴, Kant avalia a natureza (moral) humana, na qual detecta uma dicotomia, por ele traduzida mediante dois conceitos antagônicos: o de disposição para o bem [Anlage zum Guten] e o de propensão para o mal [Hang zum Bösen]. Foi a partir desses dois conceitos que Kant definiu o que denominou de mal moral, e investigou as circunstâncias em que ele aparece na natureza humana e em que condições do exercício do arbítrio ele se impõe perante a lei moral. Kant, nessa primeira parte, vale-se apenas três vezes da expressão mal radical, por ele empregada no sentido de delimitar certas peculiaridades constatadas no conceito de mal moral, as quais não permitem que ele seja concebido como um simples mal, antes fazem dele o que Kant denomina de mal radical. A radicalidade do mal está associada: a) à conotação de natural concedida à propensão para o mal e à sua relação com o uso do arbítrio; b) ao caráter penetrante do mal, que corrompe o fundamento de todas as máximas, e que, como tal, dificulta ou impossibilita extirpá-lo da natureza humana; c) à mentira, pela qual o homem se engana a si mesmo, mediante uma ação empiricamente constatada como boa para ocultar a sua verdadeira intenção.

    Na segunda parte, sob o título Da luta do princípio bom com o mau pelo domínio sobre o homem⁵, Kant se mantém na descrição de em que termos o bem e o mal moral incidem sobre o ânimo humano e de que modo podem vir a dominá-lo. Porém, em relação à primeira parte, a sua análise é feita com um certo diferencial: nela Kant apresenta a luta do bem contra o mal destacando, por um lado, o conceito religioso da figura do filho de Deus como arquétipo ou modelo de perfeição moral; por outro, pressupondo esse arquétipo, expõe a necessidade de que a humanidade se torne agradável a Deus. Toda essa reflexão de Kant recebe contornos efetivamente religiosos a ponto de conceber a referida luta do princípio bom com o mau em termos de uma redenção moral humana.

    A terceira parte, que tem por título O triunfo do princípio bom sobre o mal e a fundação de reino de Deus na terra⁶, Kant a concebe em consequência da segunda. Nela, ele apresenta de modo preciso e pontuado os meios necessários para o alcance do que ele denomina de progresso moral humano. É nessa parte que Kant disserta e põe em evidência o conceito de comunidade ética. Trata-se, efetivamente, de um conceito, mas não só, visto que Kant o concebe em termos da possibilidade da fundação de uma comunidade concreta. Portanto, o postulado da comunidade ética em Kant se submete a uma tratativa em que sobressaem dois aspectos: o teórico e o pragmático. É, pois, nesse contexto que ele, em favor do que denomina de comunidade ética, concede um grande espaço à religião, em vista da qual pressupõe uma função da própria igreja no aperfeiçoamento moral humano.

    Segue-se a quarta parte por Kant concebida como um complemento da terceira, sob o título: Do serviço e do falso serviço sob o domínio do princípio bom ou da religião e do clericalismo⁷. Esse é o momento em que Kant, no escrito da religião, dedica-se, de um ponto de vista filosófico e religioso, a estabelecer o que o homem deve fazer a fim de se tornar moralmente agradável a Deus. Fato curioso, e que merece ser analisado, está em que ele não inclui nesse dever fazer o que denomina de cultos externos, sob a seguinte justificativa: em razão de que eles se constituem em uma prática que, do ponto de vista moral, não acarreta ou conduz ao mérito ou à virtude. O culto por si só não torna ninguém virtuoso, e tampouco se constitui em requisito primordial do aprimoramento moral humano.

    As quatro partes do escrito sobre a religião estão todas intimamente relacionadas: uma vem como que em consequência da outra. O escrito, no seu conjunto, é permeado pela investigação de duas questões entre si complementares: na primeira e na segunda parte, Kant se dedica à reflexão do que concebe por corrupção moral do homem; na terceira e na quarta, ele se empenha, tendo em vista essa corrupção, em definir o mecanismo mediante o qual o homem pode se restabelecer moralmente. Tais questões são sintetizadas a partir dos conceitos de mal radical e de comunidade ética. O que se impõe a partir da natureza de tais questões se constitui em foco principal e princípio norteador de toda a investigação kantiana no escrito sobre a religião, a saber, a análise dos limites e das possibilidades do humano em face da moral.

    Kant, diferentemente de como procedeu nas suas obras de fundamentação da moralidade (notadamente Crítica da razão prática e Fundamentação da metafísica dos costumes), nas quais teve como primordial preocupação instituir pressupostos racionais de uma conduta adequada à moral, no escrito sobre a religião examina as condições mediante as quais o ser humano poderia agir, ou proceder moralmente, segundo tais pressupostos. Nas obras de fundamentação, como o próprio conceito sugere, Kant idealmente sai em busca dos alicerces ou bases teóricas sobre as quais assentar a conduta moral; nos quatro escritos que compõem obra A religião, ele investiga o oposto, isto é, em que termos o humano pode aderir a tais fundamentos e como assentar a conduta sob tais fundamentos. De um lado, portanto, ele busca os fundamentos universais da ação moral; de outro, investiga as condições e atitudes humanas subjetivas no sentido de como levar ou fazer comparecer tais fundamentos na ação.

    Nesse contexto, Kant dá prevalência a dois conceitos – o de mal radical e o de comunidade ética –, com os quais sintetiza toda a sua investigação, cujo foco não consiste na análise da conduta de um ser racional em geral, mas de um ser racional finito bem específico, o homem [der Mensch] particular. Mediante o conceito de mal radical, Kant descreve a ruína moral humana; sob o conceito de comunidade ética, ele representa a trajetória da edificação e do aperfeiçoamento moral, ou, por assim dizer, afiança a possibilidade da esperança na medida em que propõe meios a partir dos quais o homem pode se adequar aos princípios da moral.

    No contexto da análise do mal inerente ao homem, feita na primeira e segunda parte do escrito da religião, Kant trata da natureza moral humana do ponto de vista individual, de como funciona o mecanismo da influência da lei moral no íntimo humano e em que termos a máxima orientadora do seu agir é acolhida; na terceira e quarta parte ele se concentra na natureza moral humana sob um ponto de vista coletivo, nos termos de definir e explicitar como a adoção e o manejo dos princípios morais e as relações humanas intersubjetivas se influenciam e se determinam mutuamente. Nesse momento argumentativo, toda a investigação kantiana decorre do pressuposto de que é a maneira como as relações entre os homens se estabelecem que gera o mal moral. Isso ocorre na medida em que os homens, receosos de não obter o mínimo na vida coletiva ou de ser objeto de trapaça, antecipam-se no sentido de garantir o máximo e, nessa medida, não só passam a adotar máximas que os blindem dos malefícios da vida em comum, como, sobretudo, passam a se servir dos outros como meios para obter vantagens. Esse ambiente de corrupção moral e desconfiança é por Kant denominado de estado de natureza ético, e é em vista dele, enquanto um corretivo para os seus efeitos, que é suposta a chamada comunidade ética, definida nos termos de uma união sob leis de virtude. Trata-se, mais precisamente, de um pacto de confiança no qual todos os homens se comprometem no sentido de se aprimorar moralmente e, portanto, instaurar um ambiente mais salubre do ponto de vista moral.

    A partir desse conceito inicial de comunidade ética, invocado no sentido de sanar o que é denominado de estado de natureza ético, Kant é forçado ainda a desdobrar a sua proposição em mais duas perspectivas ou estágios conceituais de compreensão. O que denominamos de desdobramento do conceito kantiano de comunidade ética diz respeito justamente a um recurso argumentativo do qual Kant se serviu em sua investigação. Ocorre que à medida que a sua exposição foi fluindo, e também se orientando pelo pressuposto de definir em que termos é possível estabelecer uma união moral pública entre os homens, Kant acabou por carecer de introduzir mais dois momentos argumentativos, os quais foram apresentados ou para melhor esclarecer a problemática ou para responder a questões que se impuseram à argumentação.

    O que se observa na análise de Kant é uma contínua reconstrução, como se fosse um desdobramento feito por ele, do conceito de comunidade ética. Ele, em três momentos, retoma o conceito de comunidade ética sob novas perspectivas teóricas ao modo de quem tende a aprofundar a mesma questão desenvolvendo-a sob outras e novas perspectivas. Em vista disso, ou seja, desse desdobramento, o que ainda relativo à análise de Kant se observa, é a necessidade que ele teve de, para cada momento de reflexão em que desdobra o conceito de comunidade ética, argumentar em favor de sua própria retomada e aprofundamento em nova perspectiva do conceito. De um lado, pois, ele se ocupa em continuamente desdobrar o conceito; de outro, em justificar o desdobramento desse novo estágio conceitual concebido por ele. Em síntese, são, efetivamente, três estágios, dentro dos quais Kant desdobra o conceito de comunidade ética sob as seguintes arguições: uma, em termos de que a comunidade ética diz respeito a uma união dos homens sob leis de virtude; a segunda, em termos que dizem respeito a um povo de Deus sob leis de virtude; a terceira, que diz respeito a uma igreja igualmente regida sob leis de virtude.

    Kant inaugura a sua exposição invocando a corrupção mútua entre os homens a partir do que ele denomina de estado de natureza ético, um estado de permanente combate ao princípio bom, uma vez que nele os indivíduos adotam máximas de se sobrepor uns aos outros, antecipando-se no sentido de evitar qualquer possível ameaça ou malefício. Esse ambiente de medo e receio na vida coletiva só pode ser sanado, conforme indica Kant, por meio de um pacto de confiança entre os indivíduos, em que cada um se comprometa a buscar, em conjunto, o aperfeiçoamento moral. Daí a inserção do que ele denomina de comunidade ética nos termos de uma união de todos os homens sob leis de virtude.

    As noções de estado de natureza ético e de comunidade ética se estabeleceram segundo o modelo político de estado de natureza e de sociedade civil⁸ na medida em que dizem respeito, respectivamente, a um suposto estado de barbárie e a um estado civilizado. Com efeito, o diferencial dos conceitos kantianos perante esses dois conceitos tradicionais diz respeito à alçada a que pertencem, a saber, à da moralidade. Por um lado, o estado de natureza ético, diferentemente do tradicional (entendido em sentido político), não diz respeito a um estado sem leis, visto que a lei moral já está nele presente, mas concerne a uma condição em que a lei moral não é adotada de modo a produzir ações moralmente boas; por outro lado, não há uma correspondência entre o aperfeiçoamento social-político e o aperfeiçoamento moral, resultando que no âmbito dito civilizado o homem permaneça bárbaro do ponto de vista moral.

    Ora, a comunidade ética concebida por Kant, porquanto seja um análogo moral da sociedade civil, não a acompanha ou dela deriva, e isso em vista do pressuposto kantiano segundo o qual a ação moral genuína diz respeito a um ato [Tat] interno de incorporação da lei moral, e não a uma ação externa meramente conforme a essa lei. Kant recorrentemente se vale do modelo de sociedade civil para trilhar os rumos da comunidade ética, e isso é justificado em vista de que ele pretende estabelecer no domínio moral (salvaguardando as devidas diferenças) um modelo público de convivência semelhante àquele construído no âmbito da civilidade política. Quer dizer: assim como, na vida cívica, cabe ao cidadão se dar a obrigação que a lei externamente lhe impõe sobre o ânimo independentemente de sua boa ou má vontade, na convivência ética lhe cabe igualmente se dar, mas mediante pura boa vontade, o dever que a lei moral internamente o incita ou compele.

    O fundamental e mais característico da noção inicial de comunidade ética (e que será norteador dos desdobramentos que seguem) é a ideia de um operar coletivo. Kant supôs a noção de comunidade ética enquanto uma união sob leis de virtude a partir do que chamou de estado de natureza ético e, assim como definiu o mal como advindo da vida em conjunto, passou a estabelecer a sua superação mediante uma união dos agentes morais. O operar individual, tão enfatizado por Kant em suas obras anteriores, cede espaço ao operar individual perante a coletividade, em que não se põe mais em questão a reabilitação do indivíduo isoladamente, mas o aperfeiçoamento do gênero humano conjuntamente. Daí que é somente sob a perspectiva de um pacto de confiança – pacto que envolva todo o gênero humano – que Kant pressupõe um ambiente salubre no sentido de favorecer um progresso moral possível do indivíduo humano e de sua coletividade cívica e convivial.

    Dada a abrangência conferida à comunidade ética, pois ela diz respeito a uma união de todos os homens, Kant é levado a estabelecer um princípio de adesão e de reconhecimento ou identificação mútua, que, de fato, permita que os indivíduos se unam em uma comunidade ética. O estado de natureza ético, que se pretende superar, é um estado de total estranhamento entre os indivíduos: não há clareza ou limpidez nos propósitos, o que gera, por um lado, especulação acerca das intenções alheias e, por outro, em consequência disso, a noção de antecipar em direção aos outros os possíveis males que se pode sofrer por parte deles. Essa situação, com efeito, não se coaduna com a comunidade ética, e a simples noção de um pacto coletivo em prol do aperfeiçoamento moral parece não dar conta de inaugurar um novo ambiente convivial. Dá-se que o conceito inicial de comunidade ética satisfaz a necessidade de se pensar uma condição antagônica ao estado de natureza ético, com efeito, ela ainda carece de esclarecimento no que tange aos mecanismos mediante os quais possa ser fundada.

    Sob essa limitação para a fundação da comunidade ética, Kant insere a figura do legislador divino, e passa a definir tal comunidade nos termos de um povo de Deus sob leis de virtude. A inserção da figura divina na esquematização da noção de comunidade ética se justifica, sobretudo, pelo aspecto legislativo de Deus, ou melhor, pelas características a Ele inerentes que excedem àquelas de um legislador humano. O ponto de partida de Kant é que a comunidade ética, assim como a sociedade política, carece de um legislador. A partir disso, Kant discorre (tal como já fez em outras obras) sobre a ineficiência de um legislador humano quando a sua atribuição é avaliar moralmente. Tal ineficiência se explica em vista de que o homem só tem acesso às ações, e não aos seus princípios moventes, os quais se constituem em matéria de avaliação moral. Daí que, quando se pretende justificar o desdobramento da comunidade ética nos termos de um povo de Deus sob leis de virtude, a questão principal não se assenta em perguntar por que Deus?, mas sim por que a comunidade ética carece de um legislador?. A figura divina só foi inserida porque apenas Deus, ou um ser tal semelhante a Ele, detém os requisitos necessários para legislar moralmente.

    A necessidade de um legislador, conforme veremos, está intimamente ligada à finitude humana. Os agentes morais têm dificuldades em conceber e, portanto, atuar em vista de uma comunidade ética, porque tal pede pela concepção de um dever de ordem coletiva, no qual todos os agentes têm de atuar conjuntamente. Estando imerso num ambiente de depravação moral, tal como o estado de natureza ético, os agentes não se reconhecem como capazes de se unir em um dever em que

    Enjoying the preview?
    Page 1 of 1