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A polêmica “Bíblia White”

BibliaWhite[Muitas pessoas têm perguntado nas redes sociais se a recém-lançada “Bíblia


White” se trata de uma produção oficial da Igreja Adventista do Sétimo Dia, uma espécie de
tradução particular como a Novo Mundo, das Testemunhas de Jeová. A resposta é “não”, e
quem explica tudo aqui é o jornalista e estudante de Direito Davi Boechat, que investigou o
assunto. Esta é uma análise meramente editorial e acadêmica, feita por um estudioso, como se
poderia fazer com qualquer outra publicação, e nada tem que ver com a vida pessoal das
pessoas citadas. O próprio organizador da “Bíblia White” fez críticas à “Bíblia de Estudos
Andrews”, essa, sim, distribuída oficialmente pela Igreja Adventista.]

Meses atrás, uma parceria entre movimentos dissidentes da Igreja Adventista do Sétimo Dia
resultou no lançamento de um projeto audacioso: a publicação de uma Bíblia de estudos com
notas de Ellen G. White, algo inédito em língua portuguesa. A obra foi nomeada de “Bíblia
White” e é resultado de uma parceria firmada entre o Instituto Bíblico de Capitólio (IBC) e do
Instituto de Agricultura de Evangelismo (IAGE), ambos sediados no interior de Minas Gerais. As
entidades, que andam de mãos dadas também em outros projetos, têm em comum a defesa
enfática da Teologia da Última Geração (TUG), que sustenta ideias heterodoxas sobre os
conceitos de pecado, salvação e perfeição cristã, dentre outros temas teológicos de pouca
flexibilidade para discussão.

A “Bíblia White” é um similar nacional da “Remnant Study Bible”, editada por norte-americanos
alinhados com a TUG e vendida nos Estados Unidos com edições em inglês e espanhol desde
2012. Como Bíblias de estudo, ambas reúnem breves textos explicativos (nesse caso, citações
de EGW) que correspondem a versos bíblicos presentes na mesma página. O projeto
brasileiro, entretanto, conta com uma considerável distinção. Além das notas de White, a obra
traz ainda uma tradução inédita da Bíblia em língua portuguesa.[1] Nomeada Almeida Antiga
(AA), a versão também foi preparada pela coalização IAGE/MV, algo pouco comum quando o
assunto são Bíblias de estudo.[2]

O lançamento da “Bíblia White” aconteceu em 2018, durante o Congresso MV, evento


itinerante que reúne seguidores da TUG no Brasil. A apresentação da novidade, que levou dois
anos para ser preparada, foi feita por Daniel Silveira, organizador do MV, fundador do IBC e um
dos responsáveis pela preparação da “Bíblia White”.

O processo de impressão, realizado em uma gráfica no Paraná, foi narrado ao vivo através das
redes sociais por Silveira. No vídeo, ele chegou a afirmar: “Aulas de homilética, hermenêutica,
exegese […] toda essa sabedoria humana nos impede de encontrar as preciosas gemas da
verdade”, uma indiscutível demonstração de desprezo para com alguns dos conhecimentos
envolvidos na tradução de uma Bíblia.

Com essa frase, Silveira fez uma declaração preocupante para alguém que encabeçou uma
equipe editorial. Em certo sentido, ele parece crer que a ignorância impulsiona a busca pela
verdade. Talvez por essa razão sinta-se habilitado para tal serviço. Para Silveira, o chamado
para a reforma não acontece apesar da incapacidade, mas por causa dela. A falta de
conhecimento, para Silveira, é vantagem. Seguindo essa lógica, o que diríamos de Lutero, um
doutor em línguas bíblicas? Assim, proponho um bom lema para a Almeida Antiga: “E não
conhecereis as técnicas, a ignorância os libertará.”

A citação de Silveira, transcrita acima, me parece suficiente para que sejam levantadas dúvidas
a respeito da lisura e precisão da tradução Almeida Recebida, bem como de toda a “Bíblia
White”. E é pela análise de tal tradução que começo minhas avaliações dessa obra.

TRADUÇÃO PRECÁRIA. O maior problema da “Bíblia White” está na tradução, produto de um


trabalho extremamente amador. Como visto acima, Silveira, um dos responsáveis pela obra,
desdenha de métodos e conhecimentos acadêmicos necessários para a tradução de uma
Bíblia. Silverino Kull, diretor do IAGE, segue a mesma linha do parceiro e rejeita também a
validade dos estudos, especialmente os da área de crítica textual, ciência que visa a reconstruir
com o ajuntamento de evidências textos antigos que tiveram os originais perdidos, caso da
Bíblia. Em resposta às objeções levantadas na primeira versão deste texto – que, para minha
surpresa, circulou por todo o Brasil, apesar de inicialmente ter sido publicado em um grupo
fechado –, disse Kull: “Não importa o que a alta crítica ou os estudiosos e linguistas falem, o
que prevalece é a inspiração, e Ellen White disse que a King James foi sim a melhor
tradução.”[3]

A afirmação de Kull, entretanto, encontra conflitos com uma declaração do Centro White a
respeito das traduções bíblicas utilizadas por Ellen: “Mesmo sendo costume de Ellen White
usar a King James Version, ela fez uso ocasional de outras traduções inglesas que estavam se
tornando disponíveis em seus dias. Contudo, ela não comenta diretamente sobre os méritos
dessa ou daquela versão, mas fica claro pela sua prática que ela achava desejável que se
fizesse uso da melhor versão disponível da Bíblia. Por exemplo, em seu livro A Ciência do Bom
Viver, Ellen White empregou oito textos da English Revised Version (ERV), 55 da American
Revised Version (ARV), dois da tradução de Leeser, e quatro de Noyes, além de sete variantes
marginais. Entretanto, em suas pregações, Ellen White preferia usar a linguagem da King
James Version porque era a mais familiar para os seus ouvintes.”[4] Cabe dizer que a ERV e
ARV não são baseadas no Textus Receptus, ardorosamente defendido por Kull e Silveira, e
foram, sim, utilizados por Ellen White. Mais do que isso, diz o Centro White, a preferência de
Ellen pela KJV seria por conta da familiaridade do público, não de sua superioridade.

Kull e Silveira, que admitem não ter domínio ou familiaridade com as línguas bíblicas – e talvez
por isso desdenhem dos conhecimentos técnicos –, exaltam a suposta superioridade de sua
Almeida Antiga (AA) defendendo uma pretensa fidelidade superior, baseada no Textus
Receptus, em detrimento das demais traduções atualmente disponíveis em português. Silveira,
aliás, citou nominalmente em vídeo as versões publicadas pela Sociedade Bíblica do Brasil
(SBB) como não sendo confiáveis. Se considerado o Textus Receptus como balizador para a
qualidade, dentro do catálogo de versões disponibilizadas pela SBB, a Almeida Revista e
Corrigida, seria a mais próxima do ideal. Entretanto, mesmo tendo sido baseada no Textus
Receptus, utiliza-se de outros manuscritos em alguns trechos. Apesar disso, outras opções em
língua portuguesa preenchem tais requisitos. Feita inteira e exclusivamente a partir do Textus
Receptus, a Almeida Corrigida Fiel, da Sociedade Bíblica Trinitariana, seria uma boa opção.
Outra possibilidade seria a tradução King James 1611, da BV Books. Ambas são traduções em
nosso idioma que prezam pelo uso exclusivo do Textus Receptus. Se esse fosse o critério, elas
deveriam ser consideradas opções válidas para a “Bíblia White”. Entretanto, em nenhuma delas
poderia haver qualquer modificação, por mínima que fosse. Assim, as “correções” criativas de
Silveira (como em João 5:32) não seriam admitidas no texto. O uso irrestrito do Textus
Receptus, conforme exposto, não pode ser colocado como uma novidade trazida pela Almeida
Antiga.

Cabe dizer ainda que a AA é resultado de uma comparação entre a tradução de Almeida
(1848) e a King James Version (1611), conforme dito pelo próprio Silveira na apresentação da
Bíblia White, com algumas correções ortográficas e mudanças realizadas por conveniência
teológica, conforme será exposto mais adiante. É possível dizer que a AA se trata de uma
paráfrase, um arremedo de traduções. Não se trata de uma versão proveniente do tão exaltado
Textus Receptus, mas de traduções dele derivadas.

Outra afirmação questionável é a de que o Textus Receptus é o mais confiável de todos os


manuscritos disponíveis. Essa informação contraria eruditos da área. Michael J. Gorman, por
exemplo, avalia que a KJV foi baseada em manuscritos sabidamente menos confiáveis nos
dias de hoje: “Desde 1611, muitos manuscritos mais antigos e melhores da Bíblia foram
descobertos, e a pesquisa moderna na área de crítica textual […] nos deu uma base diferente
de textos originais para traduzir do que a usada pelos tradutores da KJV. Isso significa que uma
exegese baseada nessa versão poderá, por vezes, analisar uma ou mais palavras, frases ou
versículos que não aparecem no texto original bíblico.”[5]

O erudito adventista Johannes Kovar, em artigo para o Instituto de Pesquisas Bíblicas da


Associação Geral, destaca a história do Textus Receptus para questionar o valor
superestimado que lhe é atribuído. “Para a publicação de seu texto, Erasmo [de Roterdã (1467-
1536)] confiou em [apenas] seis manuscritos datados dentre os séculos XI e XV [ou seja,
cópias com afastamento superior a mil anos desde que o texto foi escrito], estando bem ciente
de sua qualidade inferior. Nenhum desses manuscritos era completo, e Erasmo mudou o texto
grego aqui e ali, frequentemente de acordo com a Vulgata Latina. Os manuscritos que Erasmo
usou, incluindo as anotações que fez neles, ainda existem, de forma que seu trabalho pode ser
analisado de maneira relativamente fácil.”[6]

Também adventista, o brasileiro Wilson Paroschi afirma que com a descoberta de manuscritos
mais antigos, o trabalho de Erasmo em seu Textus Receptus perdeu espaço: “Apesar de os
críticos ainda divergirem com relação a algumas das teorias textuais, todos buscavam um texto
que estivesse o mais próximo possível do original e, nesse novo período, sob os mais violentos
protestos, romperam definitivamente com o Texto Recebido.”[7]

Em seu livro, Paroshi desmonta ainda algumas das argumentações de Silveira a respeito das
diferenças entre o texto da Almeida Antiga e traduções contemporâneas, tecnicamente
chamadas de variantes textuais. Silveira afirma que as novas traduções estão retirando trechos
bíblicos inteiros e reage dizendo, também em vídeo: “Nós queremos a Bíblia inteira, não
adulterada, não cropada.” Ele dá Mateus 6:13 como exemplo de texto bíblico “depenado” em
versões modernas, mas que se encontra intacto na Almeida Antiga, dizendo que o trecho
“Porque Teu é o reino e o poder, e a glória, para sempre, Amém” desapareceu.

Sobre o verso, entretanto, crítico textual afirma: “Na tradição protestante, a oração termina com
a doxologia ‘pois Teu é o reino, o poder e a glória para sempre. Amém’, que está ausente na
tradição católica. E parece que esta é a que está correta, tanto que as modernas edições
evangélicas da Bíblia já estão omitindo essa leitura. […] As evidências documentais, portanto,
sugerem que a doxologia do Pai-nosso consiste num acréscimo posterior.[8] Em outras
palavras, o trecho que Silveira reivindica, na realidade, não estava presente nos originais
bíblicos. A retirada consiste, portanto, em um texto mais fiel, e não menos, como defendido por
ele.

INTERPRETAÇÕES DENOMINACIONAIS. Outro problema sério da tradução são os trechos


editados de modo a facilitar a utilização de textos-prova.[9] João 5:39 é um bom exemplo da
criatividade mostrada na AA. Nesse verso, houve uma mudança arbitrária no tempo verbal para
favorecer a interpretação de que Jesus teria recomendado o estudo da Bíblia, quando, na
verdade, condenava a deturpação que era feita por intérpretes que, mesmo estudando, não
encontravam a Cristo. Na AA é grafado: “Examinai as Escrituras, porque julgais ter nelas a vida
eterna; e são elas que dão testemunho de Mim.” No vídeo de apresentação da Bíblia, Silveira
chama atenção para a mudança que fez no texto dizendo que sua mudança discorda até
mesmo das edições que ele usou como prova. Entretanto, mais uma vez Silveira errou. No
grego, o verbo se encontra na segunda pessoa do plural do presente do indicativo, não no
imperativo. Jesus chamou Seus ouvintes a constatar seus estudos nEle e não para que eles se
aprofundassem em seus estudos. A fala de Jesus tem que ver com a cegueira e não com a
falta de conhecimento.

Outra mudança lamentável é a de Mateus 28:19. A ordem de Jesus com “Portanto, vão e
façam discípulos de todas as nações” (NVI) é traduzida por “Ide, portanto, ensinai todas as
nações”. Silveira justifica tal mudança dizendo que discipulado “tem a ver com coaching”, e que
a tradução correta é “ensinai”, uma vez que é assim que está na KJV. Mais uma vez Silveira
pisa no Textus Receptus, no qual o verbo grego encontrado aponta para o equivalente em
português a “discípulos” e não “ensino”.

Com os exemplos supramencionados, pode-se ver que tais adaptações de conveniência


adotadas nos textos lembram muito a tradução Novo Mundo, das Testemunhas de Jeová.
Temos, portanto, elementos abundantes para reprovar essa tradução da “Bíblia White” com
veemência.

PODERIA SER DIFERENTE. Acredito que uma alternativa que daria algum ar de legitimidade
ao trabalho do IAGE/MV com a “Bíblia White” seria a publicação de um volume de comentários
separados dessa tradução trágica, como já foi feito no passado pela extinta Review and Herald
(se bem que a publicação de textos de Ellen White em novos volumes deve contar sempre com
a aprovação dos Depositários do Patrimônio Literário White). Ainda hoje esse material é
vendido nos Estados Unidos.[10] Isso não daria margem para interpretações incorretas no que
diz respeito à falsa equidade entre os escritos de White e a Bíblia.

Por fim, a Bíblia White apresenta-se com falhas graves provenientes de um trabalho editorial
ineficaz. Lamentavelmente, essa obra será recebida com tapete vermelho por alguns
adventistas desavisados. Mal sabem que se trata de um “cavalo de Troia”. Se não podemos
confiar na tradução, o que dizer da compilação dos Testemunhos realizada? Mas isso é
assunto para outra oportunidade.

Davi Boechat trabalhou no Correio da Lavoura, Jornal de Hoje e Conecta Baixada, veículos da
Baixada Fluminense, na região metropolitana do Rio de Janeiro; atualmente cursa Direito na
Universidade Iguaçu (UNIG)

Referências:

“Daniel Silveira, agricultor em Capitólio MG, começou seus trabalhos na “Bíblia White” em
2016, partindo da versão Almeida Recebida, de domínio público. […] Em seguida foi feito um
trabalho de comparação e igualação à versão em inglês King James (KJV) de 1611 em
grandes extensões do texto bíblico, especialmente nos profetas do Antigo Testamento, por
Daniel Silveira. Onde EGW lança luz sobre um texto em que mesmo na King James de 1611
está errado, também foi efetuada a correção.” Disponível em: http://bibliawhite.org/sobre
Em geral, editoras que lançam Bíblias para estudo optam por traduções consagradas e
conhecidas no mercado editorial, geralmente com o reconhecimento de sociedades bíblicas. A
“Bíblia de Estudos Andrews”, publicada pela Casa Publicadora Brasileira, por exemplo, utiliza a
versão Almeida Revista e Atualizada, da Sociedade Bíblica do Brasil. A própria “Remnant Study
Bible” é disponibilizada em duas versões: além da clássica King James Version, que está em
domínio público, conta ainda com uma edição que utiliza a New King James Version, licenciada
pela Thomas Nelson Publishers.
Esse texto é parte de uma mensagem enviada por Kull a Reginaldo Castro.
Centro White. “Ellen White usou outras traduções de Bíblia além da King James Version?”
<disponível em: http://www.centrowhite.org.br/perguntas/perguntas-sobre-ellen-g-white/os-
ensinos-de-ellen-g-white/>
Introdução à Exegese Bíblica, p. 71, Thomas Nelson Brasil.
“O ‘Textus Receptus’ e as traduções modernas da Bíblia.” <Disponível em:
https://adventistbiblicalresearch.org/pt-br/materials/bible-canon-and-versions/o-
%E2%80%9Ctextus-receptus%E2%80%9D-e-tradu%C3%A7%C3%B5es-modernas-da-
b%C3%ADblia>
Crítica Textual do Novo Testamento, p. 123, 124, Edições Vida Nova.
Para uma definição de hermenêutica texto-prova e sua influência no meio adventista, consulte
o artigo de Isaac Malheiros “Dicta Probantia: Uma Reflexão sobre o uso de ‘textos-prova’ na
hermenêutica adventista” <Disponível em: http://www.seer-
adventista.com.br/ojs/index.php/hermeneutica/article/view/495>
Ellen G. White Comments from the Seventh-day Adventist Bible Commentary <Disponível em:
https://www.adventistbookcenter.com/ellen-g-white-comments-from-the-seventh-day-adventist-
bible-commentary.html>
https://www.adventistbookcenter.com/ellen-g-white-comments-from-the-seventh-day-adventist-
bible-commentary.html

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