de 90 do século passado, podemos Umberto Eco. Quase a mesma dizer que a tradução é uma pre- coisa: experiências de tradução. sença constante, direta ou indire- São Paulo: Record, 2007, 458 pp. tamente, em seus escritos, de Ope- Tradução de Eliana Aguiar. ra aperta [Obra aberta], de 1962, a I Limiti dell’interpretazione [Os limites da interpretação], de 1990. É, contudo, a partir dos últi- A Itália sempre produziu autores mos anos do século 20 que Eco múltiplos, que ora se ocuparam de começou a abordar mais de perto a prosa, ora de verso, ora de ensaio; tradução em cursos, palestras e en- basta pensarmos em Dante, saios. Por isso, as observações do Macchiavelli, Leopardi, Pasolini autor italiano sobre o assunto são, e Calvino. Além disso, são muitos como ele mesmo diz, “ocasionais”. os escritores italianos que Convém antecipar que Eco não refletiram sobre a prática da é, estritamente, um teórico da tradução. área, mas um bom crítico de tra- Umberto Eco não foge a esta dução, como fica mais evidente regra. Apesar de a tradução ser neste livro, e é nas entrelinhas de uma de suas facetas menos conhe- suas críticas, principalmente nos cidas, são vários os ensaios do comentários sobre suas obras autor de O nome da Rosa dedica- traduzidas para outras línguas, que dos ao tema e que culmina com a já se pode perceber sua preferên- publicação do livro Dire quase la cia pela dita “fidelidade”. Isso fica stessa cosa: Esperienze di bastante claro quando, ao final do traduzione [Quase a mesma coi- seu livro, ele diz: “a conclamada sa: experiências de tradução], pela “fidelidade” das traduções não é Bompiani de Milão em 2003. um critério que leva à única tra- Embora Eco afirme que come- dução aceitável (...). A fidelida- çou a se ocupar teoricamente de de é, antes, a tendência a acredi- tradução em 1983 (p. 11), ao ter tar que a tradução é sempre possí- de explicar como havia traduzido vel se o texto fonte foi interpreta- Exercícios de estilo de Raymond do com apaixonada cumplicidade, Queneau (que ele retoma neste li- é o empenho em identificar aqui- vro, pp. 354-8), e que tenha vol- lo que, para nós, é o sentido pro- Resenhas 173
fundo do texto e é a capacidade pode servir para quem quer ser
de negociar a cada instante a solu- bom escritor, como já notava ção que nos parece mais justa” (p. Leopardi (l798-1837) numa carta 426), porque, continua o profes- de 29 de dezembro de 1817, sor de semiótica na conclusão do endereçada ao amigo e também es- livro, “se consultarem qualquer critor Pietro Giordani, quando afir- dicionário, verão que entre os si- ma que traduzir “é útil e necessá- nônimos de fidelidade não está a rio para os que querem tornar-se palavra exatidão. Lá estão antes escritores insignes; mas para tor- lealdade, honestidade, respeito, nar-se um grande tradutor convém piedade” (p. 426). antes haver composto e ter sido Vale lembrar que Eco também bom escritor” (1998: 172). atuou como tradutor, e, em 1983, A carreira de ficcionista de Eco traduziu Esercizi di stile (Exercí- inicia-se apenas em 1980, com O cios de estilo), de Queneau, e nome da Rosa, ou seja, depois da Sylvie, de Gerard d.e Nerval. Ape- publicação de seus livros mais sar de sua experiência como tra- importantes de semiótica e crítica dutor ser limitada, o autor de O literária. É, portanto, um desabro- pêndulo de Foucault sabe que o char tardio. O interesse explícito exercício da tradução é útil e aju- pela tradução também é tardio e da a teorizar ou criticar. Não por aparecerá mais claramente em AlIa acaso, Eco observa: “Muitas ve- ricerca della lingua perfetta (Em zes alguns textos de tradutologia busca da Língua perfeita, Bauru: deixaram-me insatisfeito justamen- Edusc, 2001, tradução de Antonio te porque uma riqueza de argu- Angonese), de 1993. Aqui o autor mentos teóricos não se fazia acom- de Baudolino reflete sobre a ques- panhar por [...] exemplos. [...] tão da “língua perfeita” e respon- Em muitos outros casos vinha-me de à pergunta: “A diversidade de a suspeita de que o teórico da tra- línguas é uma maldição ou uma dução nunca tivesse traduzido e, bênção?”. Em sua resposta, Eco portanto, falasse de uma coisa so- transita por diferentes autores, exi- bre a qual não tinha experiência bindo sua erudição, mas também direta (p. 13). certa prolixidade, traço, aliás, pre- Podemos ainda acrescentar que sente em muitos de seus escritos. a experiência como tradutor para Entre 1997 e 2002, período Eco também é importante porque que coincide com o fortalecimen- 174 Resenhas
to da área dos Estudos da Tradu- ses exemplos provam, com luxo
ção, os escritos esparsos de Eco de detalhes, como a difícil tarefa sobre tradução são agrupados de do tradutor não é “dizer a mesma forma sistemática no livro Dire coisa em outra língua, mas dizer quase la stessa cosa: esperienze quase a mesma coisa”, isso tudo di traduzione. Quatro anos depois, depois de uma intensa negociação. em português, Quase a mesma E esta é a questão central do li- coisa: experiências de tradução vro, que é dividido em 14 partes. reúne uma série de palestras e co- Embora cite muitos autores e municações apresentadas em To- traga referências importantes no ronto, Oxford e Bolonha e é uma campo da teoria da tradução, como ampliação do livro Experiences in o clássico After babel (Depois de Translation de 2001 e dos textos BabeI), de George Steiner, A ta- elaborados para as comunicações, refa do tradutor, de Walter Ben- e “com inúmeras novas divagações jamin, “Aspectos lingüísticos da e com exemplos” (p. 12). tradução”, de Roman Jakobson, a Assim, neste livro, Eco discu- Routledge Encyclopedia of te problemas teóricos a partir de Translation Studies (Enciclopédia sua experiência de autor traduzi- de estudos da tradução), organi- do, revisor de traduções e tradu- zada por Mona Baker em 1998, a tor. A prática, aliás, é vista como bibliografia apresenta muitos tex- algo necessário para a elaboração tos sobre semiótica e poucos da teórica. Segundo ele, é preciso ter vasta literatura especializada pro- revisado traduções, ter traduzido, duzida nos últimos anos. ter sido traduzido ou ter colabo- Lamenta-se, particularmente, rado com seu próprio tradutor para Eco não ter tratado com mais de- poder refletir com propriedade talhes da polêmica questão da tra- sobre o tema (p. 13). dução intersemiótica, setor em que Os inúmeros exemplos tirados sua contribuição poderia ser mais de traduções de suas obras e de substantiva. Na realidade, Eco, de outros importantes escritores, que maneira diplomática, tenta mos- podem irritar o leitor pela trar que a famosa divisão triádica minúcia, são sempre úteis não ape- proposta por Jakobson em “Aspec- nas aos tradutores, mas para qual- tos lingüísticos da tradução” ten- quer estudioso e também para todo de a ser limitada porque o lingüista amante da literatura. De fato, es- russo, seguindo as idéias de Pierce, Resenhas 175
que fala na “interpretação como volvida por importantes autores
tradução”, conduz a pensar que “a italianos ao longo dos séculos. tradução é uma espécie de inter- Embora menos difundida, as con- pretação”. Essa discussão vai siderações sobre tradução feitas acontecer, principalmente, ao lon- por autores como Monti, go da parte 10, intitulada “Inter- Leopardi, Foscolo e tantos outros pretar não é traduzir”. fazem da Itália um lugar onde tra- A publicação de um livro de duções práticas de qualidade (tan- Eco, um dos autores italianos mais to das línguas clássicas quanto de traduzidos e lidos no Brasil, é sem- algumas línguas modernas como pre bem-vinda. Apesar de não ser as eslavas) se acompanham de re- tradutólogo, Eco parece continuar flexões que nada ficam a dever às uma sólida, embora assistemática realizadas na Inglaterra, França e tradição de reflexão sobre os pro- Alemanha. blemas da tradução literária desen- Andréia Guerini UFSC