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Pois, para ser franco contigo, não estou convencido, e não creio que a
injustiça seja mais proveitosa do que a justiça, mesmo que se tenha a
liberdade de cometê-la e que nada impeça de fazer o que se quer.
Platão – A República, Livro I
Estudar a questão do medo e sua relação com a política não é um assunto recente. A
história da filosofia, ao tentar compreender a gênese das relações entre os homens sentiu a
necessidade de estabelecer em que momento, e, de que forma, abandonamos o estado de
natureza e mergulhamos na condição civil. É na economia do estudo desta passagem que a
questão do medo assume toda a sua força no interior do discurso da filosofia política do
século XVII. Guiado pela premissa de que o ser humano seria essencialmente passional, por
exemplo, o filosofo inglês do século XVII, Thomas Hobbes, reconstrói esta passagem e nos
revela o porquê da necessidade de um Estado forte para que haja a possibilidade de uma vida
produtiva em sociedade. Tal reconstrução é de fundamental importância para que
compreendamos o papel do medo na economia de seu projeto filosófico e de que maneira as
transformações do mundo atual continuam a ter o medo como núcleo central para o
entendimento das relações razoavelmente harmônicas entre os homens. Ao investigarmos a
obra de Hobbes, na busca da compreensão de seu ponto de vista acerca da ‘condição natural
do homem’, podemos fazê-lo, pelo menos a principio, segundo duas ópticas diferentes.
Pressupondo que as características psicológicas do homem descritas nos seis primeiros
capítulos do ‘Leviatã’, representam o que há de mais essencial à condição humana em seu
estado natural. E, ainda, que tais características contém os requisitos básicos para uma
possível demonstração da necessidade de um Estado soberano. Ou, admitindo que, o ‘estado
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de natureza’, não se refere ao homem natural, em oposição ao homem civil, e, sim, a uma
condição hipotética que mostraria a ação humana em face à inexistência de um poder capaz de
impor respeito a todos. Tomaremos esta segunda vertente no desenvolvimento de nossa
argumentação. Nossa posição quanto ao percurso assumido é estratégica. Ela nos livra de
acusações, como as endereçadas por Rousseau aos seus antecessores, quando afirma, em seu
Segundo Discurso enviado à Academia de Dijon, que:
No entanto, qualquer que seja a posição assumida, o ponto de partida para a concepção
do grande autômato (Estado), representado pelo Grande Leviatã (figura que aparece no
capítulo VI do Livro de Jô), será o estudo do homem. O estudo de sua fisiologia, de sua
psicologia, e, principalmente, de suas paixões autênticas, pois, em várias passagens Hobbes
opta pelo método da auto-observação como o mais indicado à compreensão do
desenvolvimento de sua argumentação. Tal posição do filósofo é patente já nos
desenvolvimentos iniciais de sua descrição da pasta humana. Segundo Hobbes:
Poderá parecer estanho a alguém que não tenha considerado bem estas
coisas que a natureza tenha dissociado os homens, tornando-os capazes de
atacar-se e destruir-se uns aos outros. E poderá portanto talvez desejar, não
confiando nesta inferência, feita a partir das paixões, que a mesma seja
confirmada pela experiência. Que seja portanto ele a considerar-se a si
mesmo que quando empreende uma viagem se arma e procura ir bem
acompanhado; que quando vai dormir fecha suas portas; que mesmo quando
está em casa tranca seus cofres, e isso mesmo sabendo que existem leis e
funcionários públicos armados, prontos a vingar qualquer injúria que lhe
possa ser feita. Que opinião tem ele de seus compatriotas ao viajar armado;
de seus concidadãos, ao fechar suas portas; e de seus filhos e servidores,
quando tranca seus cofres? Não significa isso acusar tanto a humanidade
com seus atos como eu o faço com minhas palavras? (HOBBES, 1983: 80).
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igualdade entre os homens, reine a guerra de todos contra todos; guerra esta motivada pela
esperança do homem de conseguir a satisfação desenfreada de seus desejos, levando, por
simetria, cada homem a tornar-se inimigo de seu igual. Esta igualdade é comprovada nos
parágrafos iniciais do capítulo XIII do Leviatã no qual já existe a suposição de que há uma
relação entre os homens, e, portanto, o que for demonstrado neste capítulo será algo que não
muda com a passagem para o convívio no estado civil, será algo inerente ao humano, algo que
diz respeito ao homem de sempre e não somente daquele que precede o cidadão. A
compreensão desta lógica hobbesiana que parte da igualdade entre os homens para provar a
desarmonia deste estado de igualdade, desarmonia esta representada pelo estado de guerra de
todos contra todos, exige a compreensão do homem enquanto um ser ambicioso, um ser que
coloca sua capacidade a serviço de seu desejo e da busca de sua satisfação, ou, como afirma
Hobbes:
Porém, não é somente ao homem que possui uma ganância desenfreada que Hobbes se
refere no fragmento supra citado, Hobbes fala de todos os homens, pois, segundo o autor,
mesmo aquele que se contenta com suas posses será obrigado a participar deste estado de
contendas e estará sempre à mercê, sempre ameaçado pelos que nada tem e almejam suas
posses ou pelos que as possuem e desejam mais por sua ganância de riqueza e poder. Dessa
forma, a guerra não nasce, portanto, da escassez somente mas, também, da singularidade do
objeto de desejo, conforme anuncia Macpherson em sua obra, A Teoria do Individualismo
Possessivo de Hobbes até Locke (1979). Esse autor também afirma que, associando essa
ganância ao capitalismo burguês, no qual, o detentor do capital tem sempre que almejar mais
poder para que possa progredir em sua acumulação e garantir seu status atual, utilizando
como meio para atingir este fim a exploração da ‘mais-valia’ excedente do trabalho
assalariado. Segundo o autor:
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Mas, se ainda não estivéssemos suficientemente convencidos de que a ganância seria o
móvel principal desta guerra generalizada, poderíamos nos apoiar na argumentação de Leo
Huberman, em sua obra História da riqueza do homem (1976) no interior da qual (Capítulo
22 intitulado: Desistirão eles do açúcar?) aparece a seguinte alegoria no que tange à ganância
capitalista. Segundo Huberman:
(...) durante o tempo que os homens vivem sem um poder comum capaz de
os manter a todos em respeito, eles se encontram naquela condição a que se
chama guerra; e uma guerra que é de todos os homens contra todos os
homens. Pois a guerra não consiste apenas na batalha, ou no ato de lutar,
mas naquele lapso de tempo durante o qual a vontade de travar batalha é
suficientemente conhecida. Portanto a noção de tempo deve ser levada em
conta quanto à natureza da guerra, do mesmo modo que quanto à natureza
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do clima. Porque tal como a natureza do mau tampo não consiste em dois
ou três chuviscos, mas numa tendência para chover que dura vários dias
seguidos, assim também a natureza da guerra não consiste na luta real, mas
na conhecida disposição para tal, durante todo tempo em que não há
garantia do contrário. Todo o tempo restante é de paz. (HOBBES, 1983:79 e
80).
Temos então o medo como centro de sua argumentação. Mesmo em sua biografia
pessoal o medo ocupou um lugar central. Segundo o autor, ao parir, sua mãe pariu gêmeos ele
e o medo. Tal afirmação representa o núcleo de sua argumentação. Se nos reportarmos à
abertura do texto de Renato Janine Ribeiro, em sua tese de doutoramento, saberemos o
porquê. Vejamos:
Tal solução, ratificadora do uso do medo e da força, proposta por Hobbes, no intuito
de por os homens em respeito, enfrenta hoje um entrave, que aparecia como uma questão de
somenos na Inglaterra de seu tempo. Este entrave liga-se à uma questão de escala. Sigamos
um pouco mais os desdobramentos do pensamento do autor nos momentos imediatamente
seguintes aos de nossa última citação. Segundo Hobbes:
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Em todos os lugares onde os homens viviam em pequenas famílias, roubar-
se e espoliar-se uns aos outros sempre foi uma ocupação legítima, e tão
longe de ser considerada contrária à lei de natureza que quanto maior era a
espoliação conseguida maior era a honra adquirida. Nesse tempo os homens
tinham como únicas leis as leis da honra, ou seja, evitar a crueldade, isto é,
deixar aos outros suas vidas e seus instrumentos de trabalho. Tal como
então faziam as pequenas famílias, assim também fazem hoje as cidades e
os reinos, que não são mais que famílias maiores, para sua própria
segurança ampliando seus domínios e, sob qualquer pretexto de perigo, de
medo de invasão ou assistência que pode ser prestada aos invasores,
legitimamente procuram o mais possível subjugar ou enfraquecer seus
vizinhos, por meio da força ostensiva e de artifícios secretos, por falta de
qualquer outra segurança; e em épocas futuras por tal são recordadas com
honra.(HOBBES, 1983: 107).
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e perde-se outra. Não ter comunidade significa não ter proteção;
alcançar a comunidade, se isso ocorrer, poderá em breve significar
perder a liberdade. A segurança e a liberdade são dois valores
igualmente preciosos e desejados que podem ser bem ou mal
equilibrados, mais nunca inteiramente ajustados e sem atrito. De
qualquer modo, nenhuma receita foi inventada até hoje para esse
ajuste. O problema é que a receita a partir da qual as “comunidades
realmente existentes” foram feitas torna a contradição entre segurança
e liberdade mais visível e mais difícil de consertar. (Bauman, 2003:
12).
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Diferenciações e segmentações que se apresentam sob várias vertentes.
Através, por exemplo, da origem e do padrão socioeconômico, ou mesmo
através dos laços de consangüinidade e tradição. Esta diferenciação
pulverizada do uso da cidade parece criar, deste modo, duas entradas de
ordenamento social, econômico e espacial, entre os habitantes do lugar. De
um lado, uma espécie de ordem hierárquica que organiza as diferentes
entradas e vivências na urbe. Do outro, processos individualistas que levam
a segregação, estigmatização e montam uma estrutura de estranhamento
para o outro habitante do lugar. (KOURY, 2008: 31).
Cidade fechada, principalmente junto aos setores de classe média e média alta
local e de difícil acesso a quem não tenha nela nascido. Lugar de redes de
conhecimento restrito e que, nos últimos quarenta anos se sente perdida,
confusa e com receio dos outros que começaram a invadir seu espaço. Muito
embora, de forma ambivalente, se encontrem também sob o júbilo do
‘crescimento’ e ‘progresso’, visto como necessários, mas que precisam ficar
sob o controle dos pessoenses: afinal o medo do outro faz parte de uma
modernidade ansiada, apesar de causar estranhamento e de ampliar
imaginariamente ou não os cenários de violência. (KOURY, 2008: 82).
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Concluímos, portanto, que a expansão da cidade, e, o fim do sentimento de
comunidade, finda por diminuir a crença na força do Grande Leviatã, que poria as pessoas em
respeito. O Grande Medo passa a ser substituído por uma infinidade de medos menores, reais
ou imaginários, que ameaçam o sentimento de comunidade. Este medo difuso corrói, por
dentro, qualquer enfrentamento político do desconforto gerado pela simples proximidade com
o outro. Com o fim desta possibilidade política de enfrentamento do medo, tendemos a
resvalar, novamente, para o reino da guerra generalizada. Voltando ao nosso sustentáculo
teórico, Bauman afirma que um possível enfrentamento a este medo difuso pós-moderno
passa por uma investigação do significado de vida em comum. Citando Henning Bech,
Bauman afirma que:
(...) como as cidades em que a maioria de nós vivemos nestes dias são
“conjuntos grandes, densos e permanentes de seres humanos heterogêneos
em circulação, lugares em que estamos fadados a vaguear numa ‘grande
multidão de estranhos diversos em contínua mudança”, tendemos a “nos
tornar superfícies para os outros – pela simples razão de que essa é a única
coisa que uma pessoa pode notar no espaço urbano com grande quantidade
de estranhos”. O que vemos “na superfície” é a única medida disponível
para avaliar um estranho. (BAUMAN, 2003: 131 e 132).
Como única solução plausível para o impasse entre liberdade e comunidade, e portanto
entre o medo e a confiança passa por duas tarefas a serem executadas:
As duas tarefas que deveriam ser invocadas pela comunidade para enfrentar
diretamente as patologias da sociedade atomizada de hoje num campo de
batalha verdadeiramente relevante são a igualdade dos recursos necessários
para transformar o destino dos indivíduos de jure em indivíduos de facto, e
um seguro coletivo contra incapacidades e infortúnios individuais. O valor
da comunidade original, quaisquer que fossem seus deméritos, residia nessa
duas intenções. (BAUMAN, 2003: 133).
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
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BAUMAN, Z. Comunidade: a busca por segurança no mundo atual. Rio de Janeiro, Jorge
Zahar Editor, 2003.
HUBERMAN. Leo. História da Riqueza do Homem. 11. ed. Rio de Janeiro, Zahar, 1976.
KOURY, M. G. P. De que João Pessoa tem medo? Uma abordagem em Antropologia das
Emoções. João Pessoa, Editora Universitária/UFPB, 2008.
RIBEIRO, Renato Janine Ao Leitor sem Medo. São Paulo, Brasiliense, 1984.
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