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A QUESTÃO DO MEDO:

DO MEDO CENTRALIZADO AO DIFUSO MEDO PÓS-MODERNO

Pois, para ser franco contigo, não estou convencido, e não creio que a
injustiça seja mais proveitosa do que a justiça, mesmo que se tenha a
liberdade de cometê-la e que nada impeça de fazer o que se quer.
Platão – A República, Livro I

O verdadeiro fundador da sociedade civil, foi o primeiro que tendo


cercado um terreno, lembrou-se de dizer isto é meu e encontrou
pessoas suficientemente simples para acreditá-lo. Quantos crimes,
guerras, assassínios, misérias e horrores não pouparia ao gênero
humano aquele que, arrancando as estacas ou enchendo o fosso,
tivesse gritado a seus semelhantes: “Defendei-vos de ouvir esse
impostor; estareis perdidos se esquecerdes que os frutos são de todos
e que a terra não pertence a ninguém!
Rousseau – Discurso sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os Homens

Estudar a questão do medo e sua relação com a política não é um assunto recente. A
história da filosofia, ao tentar compreender a gênese das relações entre os homens sentiu a
necessidade de estabelecer em que momento, e, de que forma, abandonamos o estado de
natureza e mergulhamos na condição civil. É na economia do estudo desta passagem que a
questão do medo assume toda a sua força no interior do discurso da filosofia política do
século XVII. Guiado pela premissa de que o ser humano seria essencialmente passional, por
exemplo, o filosofo inglês do século XVII, Thomas Hobbes, reconstrói esta passagem e nos
revela o porquê da necessidade de um Estado forte para que haja a possibilidade de uma vida
produtiva em sociedade. Tal reconstrução é de fundamental importância para que
compreendamos o papel do medo na economia de seu projeto filosófico e de que maneira as
transformações do mundo atual continuam a ter o medo como núcleo central para o
entendimento das relações razoavelmente harmônicas entre os homens. Ao investigarmos a
obra de Hobbes, na busca da compreensão de seu ponto de vista acerca da ‘condição natural
do homem’, podemos fazê-lo, pelo menos a principio, segundo duas ópticas diferentes.
Pressupondo que as características psicológicas do homem descritas nos seis primeiros
capítulos do ‘Leviatã’, representam o que há de mais essencial à condição humana em seu
estado natural. E, ainda, que tais características contém os requisitos básicos para uma
possível demonstração da necessidade de um Estado soberano. Ou, admitindo que, o ‘estado

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de natureza’, não se refere ao homem natural, em oposição ao homem civil, e, sim, a uma
condição hipotética que mostraria a ação humana em face à inexistência de um poder capaz de
impor respeito a todos. Tomaremos esta segunda vertente no desenvolvimento de nossa
argumentação. Nossa posição quanto ao percurso assumido é estratégica. Ela nos livra de
acusações, como as endereçadas por Rousseau aos seus antecessores, quando afirma, em seu
Segundo Discurso enviado à Academia de Dijon, que:

Os filósofos que examinaram os fundamentos da sociedade sentiram todos a


necessidade de voltar até o estado de natureza, mas nenhum deles chegou
até lá (...) todos, falando incessantemente de necessidade, avidez, opressão,
desejo e orgulho, transportaram para o estado de natureza idéias que tinham
adquirido em sociedade; falavam do homem selvagem e descreviam o
homem civil. (ROUSSEAU, 1973: 241 e 242).

No entanto, qualquer que seja a posição assumida, o ponto de partida para a concepção
do grande autômato (Estado), representado pelo Grande Leviatã (figura que aparece no
capítulo VI do Livro de Jô), será o estudo do homem. O estudo de sua fisiologia, de sua
psicologia, e, principalmente, de suas paixões autênticas, pois, em várias passagens Hobbes
opta pelo método da auto-observação como o mais indicado à compreensão do
desenvolvimento de sua argumentação. Tal posição do filósofo é patente já nos
desenvolvimentos iniciais de sua descrição da pasta humana. Segundo Hobbes:

Poderá parecer estanho a alguém que não tenha considerado bem estas
coisas que a natureza tenha dissociado os homens, tornando-os capazes de
atacar-se e destruir-se uns aos outros. E poderá portanto talvez desejar, não
confiando nesta inferência, feita a partir das paixões, que a mesma seja
confirmada pela experiência. Que seja portanto ele a considerar-se a si
mesmo que quando empreende uma viagem se arma e procura ir bem
acompanhado; que quando vai dormir fecha suas portas; que mesmo quando
está em casa tranca seus cofres, e isso mesmo sabendo que existem leis e
funcionários públicos armados, prontos a vingar qualquer injúria que lhe
possa ser feita. Que opinião tem ele de seus compatriotas ao viajar armado;
de seus concidadãos, ao fechar suas portas; e de seus filhos e servidores,
quando tranca seus cofres? Não significa isso acusar tanto a humanidade
com seus atos como eu o faço com minhas palavras? (HOBBES, 1983: 80).

Ao inquerir-se acerca do Estado de Natureza, Thomas Hobbes estuda, portanto, a


condição natural do homem, antes que a formação do Estado Civil ponha freio em suas
pulsões originais. Antes que um contrato posto acima dos desejos individuais, cerceiem o
direito natural de cada homem “reclamar qualquer benefício a que outro não possa também
aspirar.” (HOBBES, 1983: ). Assim, não seria de se estranhar que, no estado de total

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igualdade entre os homens, reine a guerra de todos contra todos; guerra esta motivada pela
esperança do homem de conseguir a satisfação desenfreada de seus desejos, levando, por
simetria, cada homem a tornar-se inimigo de seu igual. Esta igualdade é comprovada nos
parágrafos iniciais do capítulo XIII do Leviatã no qual já existe a suposição de que há uma
relação entre os homens, e, portanto, o que for demonstrado neste capítulo será algo que não
muda com a passagem para o convívio no estado civil, será algo inerente ao humano, algo que
diz respeito ao homem de sempre e não somente daquele que precede o cidadão. A
compreensão desta lógica hobbesiana que parte da igualdade entre os homens para provar a
desarmonia deste estado de igualdade, desarmonia esta representada pelo estado de guerra de
todos contra todos, exige a compreensão do homem enquanto um ser ambicioso, um ser que
coloca sua capacidade a serviço de seu desejo e da busca de sua satisfação, ou, como afirma
Hobbes:

Desta igualdade quanto à capacidade deriva a igualdade quanto à


esperança de atingirmos nossos fins. Portanto se dois homens
desejam a mesma coisa, ao mesmo tempo que é impossível ela ser
gozada por ambos, eles tornam-se inimigos. (HOBBES, 1983:74).

Porém, não é somente ao homem que possui uma ganância desenfreada que Hobbes se
refere no fragmento supra citado, Hobbes fala de todos os homens, pois, segundo o autor,
mesmo aquele que se contenta com suas posses será obrigado a participar deste estado de
contendas e estará sempre à mercê, sempre ameaçado pelos que nada tem e almejam suas
posses ou pelos que as possuem e desejam mais por sua ganância de riqueza e poder. Dessa
forma, a guerra não nasce, portanto, da escassez somente mas, também, da singularidade do
objeto de desejo, conforme anuncia Macpherson em sua obra, A Teoria do Individualismo
Possessivo de Hobbes até Locke (1979). Esse autor também afirma que, associando essa
ganância ao capitalismo burguês, no qual, o detentor do capital tem sempre que almejar mais
poder para que possa progredir em sua acumulação e garantir seu status atual, utilizando
como meio para atingir este fim a exploração da ‘mais-valia’ excedente do trabalho
assalariado. Segundo o autor:

Aqueles que querem aumentar seus níveis de produtos ou de poder e que


tiverem, ou mais posses do que podem usar como capital (e habilidades para
usá-los lucrativamente), ou uma superioridade de energia e de qualificações
com a qual acumular capital procurarão empregar mão de obra alheia por
um preço, na expectativa de obter, do trabalho que empregam, um valor
maior de que o seu custo. ( MACPHERSON, 1979: 318).

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Mas, se ainda não estivéssemos suficientemente convencidos de que a ganância seria o
móvel principal desta guerra generalizada, poderíamos nos apoiar na argumentação de Leo
Huberman, em sua obra História da riqueza do homem (1976) no interior da qual (Capítulo
22 intitulado: Desistirão eles do açúcar?) aparece a seguinte alegoria no que tange à ganância
capitalista. Segundo Huberman:

Haverá uma moral para os capitalistas, na história de como os indianos


pegam macacos, contada por Arthur Morgan? (in Power and the new deal;
The Fórum. Março, 1935); Segundo a história, tomam de um coco e abrem-
lhe um buraco, do tamanho necessário para que nele o macaco enfie a mão
vazia. Colocam dentro torrões de açúcar e prendem o coco a uma árvore. O
macaco mete a mão no coco e agarra os torrões, tentando puxá-los em
seguida. Mas o buraco não é suficientemente grande para que nele passe a
mão fechada, e o macaco, levado pela ambição e gula, prefere ficar preso a
soltar o açúcar. (HUBERMAN, 1976: 303).

Desta forma, a competição ligada à esperança de êxito, e, o agravante da ganância,


disparam uma série de assimetrias na esfera social fazendo com que os homens, após obterem
os fins pretendidos, sejam obrigados a perpetuar o Estado de Guerra no afã de garantir as
posições alcançadas. A contenda, porém, não se resume a esses aspectos somente, os homens,
segundo Hobbes, não brigariam apenas devido a escassez, ou para garantir a própria
conservação. Muitas vezes o estopim deste desentendimento é uma ninharia, como uma
palavra, um sorriso, uma diferença de opinião, e, esta busca de reconhecimento passa a ser a
peça que faltava para completar o quadro sobre o qual se desenrola o desentendimento
generalizado, típico de uma sociedade na qual não exista um poder garantido do respeito
mútuo. A inexistência de leis, a ausência do Estado, enquanto poder supra pessoal, e, por
conseguinte, a inexistência de uma fronteira nítida e fixa entre o meu e o teu, expulsam da
consciência as noções de justiça e de respeito, fazendo com que o homem abandone as
virtudes da condição civil, substituindo-as pela tríade da guerra, da força e da fraude. E é
somente em virtude do medo da morte, não de uma morte qualquer, natural, mas da morte
violenta é que os homens abrem mão de sua esperança e de sua liberdade ilimitada em nome
de um poder que ponha todos em respeito, pois:

(...) durante o tempo que os homens vivem sem um poder comum capaz de
os manter a todos em respeito, eles se encontram naquela condição a que se
chama guerra; e uma guerra que é de todos os homens contra todos os
homens. Pois a guerra não consiste apenas na batalha, ou no ato de lutar,
mas naquele lapso de tempo durante o qual a vontade de travar batalha é
suficientemente conhecida. Portanto a noção de tempo deve ser levada em
conta quanto à natureza da guerra, do mesmo modo que quanto à natureza

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do clima. Porque tal como a natureza do mau tampo não consiste em dois
ou três chuviscos, mas numa tendência para chover que dura vários dias
seguidos, assim também a natureza da guerra não consiste na luta real, mas
na conhecida disposição para tal, durante todo tempo em que não há
garantia do contrário. Todo o tempo restante é de paz. (HOBBES, 1983:79 e
80).

Temos então o medo como centro de sua argumentação. Mesmo em sua biografia
pessoal o medo ocupou um lugar central. Segundo o autor, ao parir, sua mãe pariu gêmeos ele
e o medo. Tal afirmação representa o núcleo de sua argumentação. Se nos reportarmos à
abertura do texto de Renato Janine Ribeiro, em sua tese de doutoramento, saberemos o
porquê. Vejamos:

Comecemos pelas imagens feitas. Existiu na Inglaterra um grande medo de


1588: a nação protestante aguardando a invasão espanhola, as povoações
ribeirinhas espreitando o desembarque da armada que se temia invencível.
Não faltaram alarmes falsos: especialmente na finisterra inglesa, a
Cornualha; num desses pânicos, nasceu Thomas Hobbes, de parto
prematuro – minha mãe pariu gêmeos, eu e o medo, como recordará,
autobiógrafo, daí a noventa anos. O medo, gêmeo de um pensador,
marcando-o desde o nascimento, enlaçado com ele feito herança ou gem,
como seu direito ou natureza; a vida e obra de Hobbes são pontuadas por
esta paixão. (RIBEIRO, 1984: 11).

Abre-se assim a possibilidade da paz através da instituição da lei e do Grande Leviatã


(o Estado), instituição que funciona como uma barreira de contenção da personalidade
humana que, com sua essência supra pessoal, garante a solvência das contendas, propiciando,
assim ao homem, a indústria, a convivência pacífica e a prosperidade social. Ou como afirma
Hobbes:

Porque as leis de natureza (como a justiça, a eqüidade, a modéstia, a


piedade, ou, em resumo, fazer aos outros o que queremos que nos façam)
por si mesmas, na ausência do temor de algum poder capaz de levá-las a ser
respeitadas, são contrárias a nossas paixões naturais, as quais nos fazem
tender para a parcialidade, o orgulho, a vingança e coisas semelhantes. E os
pactos sem a espada não passam de palavras, sem força para dar qualquer
segurança a ninguém.(HOBBES, 1983: 107).

Tal solução, ratificadora do uso do medo e da força, proposta por Hobbes, no intuito
de por os homens em respeito, enfrenta hoje um entrave, que aparecia como uma questão de
somenos na Inglaterra de seu tempo. Este entrave liga-se à uma questão de escala. Sigamos
um pouco mais os desdobramentos do pensamento do autor nos momentos imediatamente
seguintes aos de nossa última citação. Segundo Hobbes:

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Em todos os lugares onde os homens viviam em pequenas famílias, roubar-
se e espoliar-se uns aos outros sempre foi uma ocupação legítima, e tão
longe de ser considerada contrária à lei de natureza que quanto maior era a
espoliação conseguida maior era a honra adquirida. Nesse tempo os homens
tinham como únicas leis as leis da honra, ou seja, evitar a crueldade, isto é,
deixar aos outros suas vidas e seus instrumentos de trabalho. Tal como
então faziam as pequenas famílias, assim também fazem hoje as cidades e
os reinos, que não são mais que famílias maiores, para sua própria
segurança ampliando seus domínios e, sob qualquer pretexto de perigo, de
medo de invasão ou assistência que pode ser prestada aos invasores,
legitimamente procuram o mais possível subjugar ou enfraquecer seus
vizinhos, por meio da força ostensiva e de artifícios secretos, por falta de
qualquer outra segurança; e em épocas futuras por tal são recordadas com
honra.(HOBBES, 1983: 107).

O problema está, em que, quanto maior o território e a população que o Grande


Leviatã tem que manter em respeito, maior é a distância entre este poder e a periferia de seu
domínio, acarretando uma possível perda de controle sobre seus subordinados, ou, como
afirmaria Bauman, sociólogo contemporâneo, quanto mais nos afastamos do sentido de
comunidade, mais ampliamos nossa liberdade, minimizando, necessariamente, nossa
segurança. Tal equação, impossível de ser solucionada pelo autor, nos leva ao centro de nossa
discussão a cerca do medo difuso pós moderno.
Se abandonarmos as utopias de Platão, More, Bacon e tantos outros, para enfrentarmos
a realidade da comunidade realmente existente, esta equação, supracitada, emerge com todas
as suas contradições. Tais utopias, segundo Bauman não enfrentam satisfatoriamente o teste
de Realidade. Segundo ele:

A “comunidade realmente existente”, se nos achássemos a seu


alcance, exigiria rigorosa obediência em troca dos serviços que presta
ou promete prestar. Você quer segurança? Abra mão de sua liberdade,
ou pelo menos de boa parte dela. Você quer poder confiar? Não
confie em ninguém de fora da comunidade. Você quer entendimento
mútuo? Não fale com estranhos, nem fale línguas estrangeiras. Você
quer essa sensação aconchegante de lar? Ponha alarmes em sua porta
e câmeras de tevê no acesso. Você quer proteção? Não acolha
estranhos e abstenha-se de agir de modo esquisito ou de ter
pensamentos bizarros. Você quer aconchego? Não chegue perto da
janela, e jamais a abra. O nó da questão é que se você seguir este
conselho e mantiver as janelas fechadas, o ambiente logo ficará
abafado e, no limite, opressivo. Há um preço a pagar pelo privilégio
de “viver em comunidade” – e ele é pequeno e até invisível só
enquanto a comunidade for um sonho. O preço é pago em forma de
liberdade, também chamada “autonomia”, “direito à auto-afirmação”
e “à identidade”. Qualquer que seja a escolha, ganha-se alguma coisa

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e perde-se outra. Não ter comunidade significa não ter proteção;
alcançar a comunidade, se isso ocorrer, poderá em breve significar
perder a liberdade. A segurança e a liberdade são dois valores
igualmente preciosos e desejados que podem ser bem ou mal
equilibrados, mais nunca inteiramente ajustados e sem atrito. De
qualquer modo, nenhuma receita foi inventada até hoje para esse
ajuste. O problema é que a receita a partir da qual as “comunidades
realmente existentes” foram feitas torna a contradição entre segurança
e liberdade mais visível e mais difícil de consertar. (Bauman, 2003:
12).

Assim, impossibilitados de ascendermos até o Ideal, necessitamos encontrar saídas


para os impasses da convivência e é no enfrentamento desses impasses que a questão do medo
aparece em toda a sua plenitude. Para que não fiquemos no domínio das idealidades, tragamos
para nossa discussão um estofo de Realidade. Em um estudo realizado por Mauro Guilherme
Pinheiro Koury, acerca da questão do medo na cidade de João Pessoa, esta equação insolúvel,
proposta por Bauman aparece em sua concretude. Na abertura de sua pesquisa o autor já
reconhece que o estudo de uma cidade, e eu complemento que, o estudo de qualquer
comunidade, passa pela compreensão das redes conflituais e de solidariedade que nascem da
proximidade entre as pessoas, e mais, afirma que este exercício intelectual impõe o
reconhecimento da cidade como práxis. Nunca é demais, o resgate dos termos centrais de
nossa análise. Tal resgate empresta à tessitura do texto maior rigor. Segundo Chauí,
Aristóteles estabelece uma distinção entre, “(...) poiesis, ação fabricadora (o trabalho e as
técnicas), e práxis (a ação livre do agente moral e do sujeito político)” (CHAUÍ, 2003: 390). É
neste sentido que Koury tenta recuperar antropologicamente as emoções dos moradores de
João Pessoa, como agentes morais e sujeitos políticos, e entende a categoria medo como:

(...) um fenômeno histórico e social, porque construído, e as formas


possíveis que assume o faz ser sempre singular a cada relação, não sendo,
deste modo, o mesmo para todos. Embora possa ser constituído como uma
categoria lógica de pensamento e através dela estabelecer critérios
comparativos de cada singularidade social e sua eficácia formativa entre os
seus membros. (KOURY, 2008: 15).

Para o autor, os conflitos e as solidariedades supracitadas passam pelo crivo da escala.


A expansão desenfreado da cidade de João Pessoa, analisada no primeiro capítulo, finda por
modificar, de modo sensível, os hábitos e os costumes da cidade, esgarçando as relações de
vizinhança, de compadrio, de confiança no outro. Tal esgarçar estaria vinculado, segundo o
autor, à expansão da cidade e a possibilidade de contato entre uma diversidade maior de
indivíduos. Tal diversidade permitiria um duplo uso da cidade:

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Diferenciações e segmentações que se apresentam sob várias vertentes.
Através, por exemplo, da origem e do padrão socioeconômico, ou mesmo
através dos laços de consangüinidade e tradição. Esta diferenciação
pulverizada do uso da cidade parece criar, deste modo, duas entradas de
ordenamento social, econômico e espacial, entre os habitantes do lugar. De
um lado, uma espécie de ordem hierárquica que organiza as diferentes
entradas e vivências na urbe. Do outro, processos individualistas que levam
a segregação, estigmatização e montam uma estrutura de estranhamento
para o outro habitante do lugar. (KOURY, 2008: 31).

Reconhecidamente, o que se depreende do texto de Koury é problema insolúvel,


apontado por Bauman, acerca da equação entre comunidade e liberdade. A expansão da cidade
de João Pessoa, devido a problemas de escala, paulatinamente, reforçou as reações de
estranhamento entre os habitantes com fim do sentimento de comunidade e vizinhança. Por
sentirem-se distante das possibilidades reais de intervir num cotidiano cada vez mais
complexo, devido à ampliação da cidade, seus moradores enfrentam o preço da liberdade
conquistada. O acesso às benesses que um grande centro oferece, quais sejam, às liberdades
de escolha, às opções de relacionamentos diversificados e a equipamentos dos mais diversos
tipos, finda por aproximar estranhos, e, esta aproximação, faz nascer o medo como irmão
gêmeo da alteridade. Tal escala não foi contemplada no pensamento hobbesiano. Com a
expansão dos centros urbanos o poder público finda por perder o controle sobre as periferias
criadas pela sua própria forma de organização das distribuições de suas contra partidas.
Quanto menor o sentimento de pertencer a uma comunidade, maior o sentimento de
insegurança e medo. Tal sentimento de medo cria bolsões de pobreza e riqueza, que,
convivendo frente à frente, aumentam a sensação de mal estar, dando origem à “uma outra
cidade no interior da cidade”. Em oposição às suas periferias, a:

Cidade fechada, principalmente junto aos setores de classe média e média alta
local e de difícil acesso a quem não tenha nela nascido. Lugar de redes de
conhecimento restrito e que, nos últimos quarenta anos se sente perdida,
confusa e com receio dos outros que começaram a invadir seu espaço. Muito
embora, de forma ambivalente, se encontrem também sob o júbilo do
‘crescimento’ e ‘progresso’, visto como necessários, mas que precisam ficar
sob o controle dos pessoenses: afinal o medo do outro faz parte de uma
modernidade ansiada, apesar de causar estranhamento e de ampliar
imaginariamente ou não os cenários de violência. (KOURY, 2008: 82).

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Concluímos, portanto, que a expansão da cidade, e, o fim do sentimento de
comunidade, finda por diminuir a crença na força do Grande Leviatã, que poria as pessoas em
respeito. O Grande Medo passa a ser substituído por uma infinidade de medos menores, reais
ou imaginários, que ameaçam o sentimento de comunidade. Este medo difuso corrói, por
dentro, qualquer enfrentamento político do desconforto gerado pela simples proximidade com
o outro. Com o fim desta possibilidade política de enfrentamento do medo, tendemos a
resvalar, novamente, para o reino da guerra generalizada. Voltando ao nosso sustentáculo
teórico, Bauman afirma que um possível enfrentamento a este medo difuso pós-moderno
passa por uma investigação do significado de vida em comum. Citando Henning Bech,
Bauman afirma que:

(...) como as cidades em que a maioria de nós vivemos nestes dias são
“conjuntos grandes, densos e permanentes de seres humanos heterogêneos
em circulação, lugares em que estamos fadados a vaguear numa ‘grande
multidão de estranhos diversos em contínua mudança”, tendemos a “nos
tornar superfícies para os outros – pela simples razão de que essa é a única
coisa que uma pessoa pode notar no espaço urbano com grande quantidade
de estranhos”. O que vemos “na superfície” é a única medida disponível
para avaliar um estranho. (BAUMAN, 2003: 131 e 132).

Como única solução plausível para o impasse entre liberdade e comunidade, e portanto
entre o medo e a confiança passa por duas tarefas a serem executadas:

As duas tarefas que deveriam ser invocadas pela comunidade para enfrentar
diretamente as patologias da sociedade atomizada de hoje num campo de
batalha verdadeiramente relevante são a igualdade dos recursos necessários
para transformar o destino dos indivíduos de jure em indivíduos de facto, e
um seguro coletivo contra incapacidades e infortúnios individuais. O valor
da comunidade original, quaisquer que fossem seus deméritos, residia nessa
duas intenções. (BAUMAN, 2003: 133).

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
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BAUMAN, Z. Comunidade: a busca por segurança no mundo atual. Rio de Janeiro, Jorge
Zahar Editor, 2003.

CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. 13 ed. São Paulo, Ática, 2003.

HUBERMAN. Leo. História da Riqueza do Homem. 11. ed. Rio de Janeiro, Zahar, 1976.

KOURY, M. G. P. De que João Pessoa tem medo? Uma abordagem em Antropologia das
Emoções. João Pessoa, Editora Universitária/UFPB, 2008.

MACPHERSON, C. B. A Teoria Política do Individualismo Possessivo de Hobbes até Locke.


Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1979.

RIBEIRO, Renato Janine Ao Leitor sem Medo. São Paulo, Brasiliense, 1984.

ROUSSEAU, Jean Jacques. Discurso sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade


entre os Homens. São Paulo, Abril, 1973. Coleção “Os Pensadores”, v. XXIV.

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