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ito tempo tive vergonha e me sentia suja pelo fato de ter sido ee ae Nao cna falar disso com ninguém e tinha "eg de ir ao ginecologista com medo dele contar pra minha mae que eu po aa nao ser mais virgem. Que valores fodidos os da nossa socedede oe freira, para que nenhum homem jamais voltasse a me machucar. a mi ens. Tinha nojo de mim. eae aos nove ae fui utilizada como brinquedo pelo nomoredo.de minha mae. Ele chegava em casa muito nervoso. Nunca soube por qut 5 ce dia, quando tinha uns oito anos, limpei o prato na hora do oie : : primeira vez que comi toda a comida. Quando ele chegou em bee a porta da cozinha e me viu ali, junto a empregada, sorrindo. Die e, al ee “olha, comi tudo!”. Ele sorriu e nao disse mais nada. Pes nae Ee acompanha-lo até o quarto dele, onde dormia com minha mae. Bu jé sal ee que se tratava. Mas eu fui, com a esperanca de que poderia nao mai a aquele horror de novo. Ele poderia estar me chamando para jogar we ee quem sabe? Trancou a porta, escondeu a chave e despiu-me como aa ea : ultimos anos. Eu tremia de medo dos pés & cabeca, e Se =I como um pai. Entregava-me completamente, dominada pelo medo ae fragilidade. Ele no era grosseiro. Nao quando me despia, sempre at Comegou a me dar tapas no rosto, muito, muito fortes. Ele tinha uma | ie monstruosa, como se pudesse derrubar uma casa com um ae a bragos. Batia minha cabeca contra a parede, e eu sentia meu cérebro ari r dor. Colocava as maos no rosto pra chorar e ele as afastava da mn ee = batendo ainda mais. Depois, infinitos, infinitos socos de mao fec! MY a estémago (meu deus, nao consigo parar de chorar ao escrever isso...). oe que fariam um adulto da idade dele se curvar de dor. Sentia a : insuportével. Afinal, tinha comido o prato todo naquele dia. Ele ae aie mamilos, uma dor horrivel! Eu nem tinha seios. Ele fingia oh eu a a sei porque, mas ele nunca tocou na minha vagina. Ao ine isso, ue _ penetrando com os dedos, por trés. Morria de rir da min! ta oes ma desespero, e em seguida metia na minha boca os dedos que ele : oo iS Eu nao tinha coragem de encostar a lingua naquele oe ee pgs le queria, entao encostava o maximo que conseguia: os ee se ad pequenos de crianga abocanhavam aquele dedo sujo e ele a ve ia aq He vdrias, varias vezes, intercalando com socos Cele) em to oe ase meu corpinho nu. Quando ele decidiu que a “sessao’ havia es lo ee tims abriu a porta, levou-me ao meu quarto onde cle havia colocado a: roupas, vestiu-me com mao de pai dedicado, e disse Deixa eu te dar mais um soco?”, com uma voz delicada e um leve sorriso no rosto. Eu dizia com a cabega que ndo, com as tiltimas forcas que me restavam. Nao conseguia falar. “Ah, 86 mais um soquinho, vai?’. “ ldo”, acenava eu, “nao”. “Nao, por favor...", pensava. Ele entéo me deixou descer pra brincar. Como se eu Conseguisse, Corri pra casa da minha melhor amiga. Nunca contei nada a ela. Ela sabia que eu sempre chegava chateada naquelas tardes na casa dela. Mas crianga nao funciona que nem adulto. Crianga funciona como crianga, entao, quando eu chegava triste na casa dela, ela me fitava por um momento, sentada no chao as voltas com seus brinquedos, dizendo “Nao fica triste, vem aqui brincar com o meu brinquedo novo!” ou “Vamos ver fita de video!”. Era tudo © que eu precisava. Nao queria mesmo que ninguém me perguntasse “Mas o que aconteceu? O que fizeram com vocé? Como foi2”. Os brinquedos e o video me bastavam. Que amiga ela foi, sem ao menos saber! Acho que até hoje ela nao sabe. Eu nao tentava fugir, nunca havia tentado, entéo ficava inerte. E, sim, revoltante que eu nao tenha tentado lutar pela minha dignidade. Mas eu vivia sob ameaga de morte. Naqueles momentos onde ele me espancava, me dizia, no final, sempre, a mesma frase: “Se vocé contar pra alguém, vai morrer, Entendeu? Vai morrer”. Isso jé bastava pruma garotinha manter-se calada e assustada, Como ele queria. Mesmo quando a gente tava em momentos familiares, ou passeando, seja l4 onde fosse, ele reforcava: “Nao conta pra ninguém sende vocé morte. Jé sabe”, Uma vez, acordei bem cedo de manha, uma manha bem fria, tinha que ir a escola, Acho que eu tava no pré ou na 1. série. Minha irma ¢ minha mae jé tinham ido pra cozinha tomar café e eu tinha ficado um Pouco pra tras, colocando minha blusa. Minha mae me chamava ld da cozinha, e, quando eu tava no corredor, senti que ele pegou meu braco e ent&o comecou a me estapear. E eu ouvindo a minha mae me chamar. Tinha apenas um impulso eletrénico de ir em diregao a cozinha, como se ele fosse apenas um obstéculo que eu tinha que ultrapassar. Tao acostumada que eu estava com aquilo. E minha mae me chamando. Ele prendeu-me contra a parede pelo pescogo e me deixou ali, prensada na parede, e eu tentava apenas me desvencilhar. Estava suspensa pelo pescoco, e sentia o ar indo embora. Tentava Tespirar, e ele ria. Minha mae me chamava. Naquela hora, pela primeira vez, senti uma agonia profunda por nao poder dizer o que tava acontecendo comigo naquela hora, Por nao poder chorar no ombro dela. Ela me chamava, e eu tentava dizer “ja vou” mas nao conseguia. Ele me soltou ld de cima, e eu despenquei em direcao ao chao. Fui em direcao a escada, seguindo a voz da minha mie, e ele me empurrou dali. Rolei o primeiro lance todo. Como é que minha mae nao ‘ouviu? Ele entaéo me acompanhou até a cozinha como um pai zeloso, dizendo i algo do tipo “ela se confundiu com as roupas do uniforme, hehe...” ¢ minha mae compartilhou do “hehe...” e fui a escola toda roxa naquele dia, como em varios outros eu fui. Minha mae via uns milhdes de hematomas e cortes e ralados pelo meu corpo, meu nariz que vivia “estranhamente” sangrando e perguntava pra ele o que acontecia, porque ela trabalhava o dia todo e ele, 86 meio-periodo, ficando em casa de tarde. Ele dizia sempre que eu cai da escada, da bicicleta, e eu ouvia isso da minha mae depois com a maior sensacao estranha. Nao pensava coisas do tipo, “mas é mentirall! Nao cai da escada!”, Pensava “ué, quando eu cai da bicicleta? Nem eu sei!”. Era crianga, era ingénua, inocente, violada e medrosa. : Quando a gente viajava, era a mesma coisa. Era sé 0 pessoal me deixar 86 com ele que ele me atacava de todas as maneiras possiveis. Uma vez, na praia, me deixou um tempao sustentada pelos pés. Ele segurava meus pés, me balancava, depois chutava meu rosto com seu joelha. E eu sempre nua. Ele me punha na cama e fazia comigo o que quisesse. Ele me lambia. Enfiava a lingua na minha orelha, e o cheiro da saliva dele me dava Ansia de vémito. Ele interpretava as lambidas de uma maneira “erética”; pra mim, era uma coisa nojenta, uma lingua amarela, rachada e fedorenta que eu nao entendia porque ele passava em mim. Ele me perguntava se eu queria ver seu pénis. Eu dizia que nao. Os anos foram se passando, e ele me espancava e violava mais ou menos cinco vezes por semana. Um ano, dois, trés, quatro, cinco... No ultimo ano, no ano em que ele foi embora, um dia eu tava vendo tv até mais tarde, sozinha na sala, e ele chegou. Achei que era do trabalho, mas era muito tarde pra ser trabalho, Ele chegou e eu fiquei com arrepio s6 de vé-lo entrando por aquela porta. Ele entrou, e eu fui andando em direg&o ao meu quarto. Ele me chamou, me estendeu um pacote, ainda na sala escura, na penumbra. Eu perguntei “por que presente? Nao é meu aniversario”. Ele pediu que eu abrisse. Era uma bonequinha daquelas Moranguinhe, com cheirinho. Pequena e bonita. Ele disse, com uma voz suave e paternal, “eu prometo que nunca mais vou te bater, Nunca mais”. Nao podia ser! Nao dei pulos de alegria, mas senti uma alegriazinha no coracao, um certo alivio ao ouvir aquilo. Fui dormir. Na mesma semana, minha mie tava fora e eu brincava sozinha pela casa e aconteceu alguma coisa de errado na cozinha e ele veio atras de mim, na sala. Quando o vi chegando perto de mim, enfezado, minhas pernas comecaram a bambear, quase cai, e comecei a mijar nas calgas. Um montdo de xixi, um montao de medo. Ele comecou a me espancar ali mesmo. Batia minha cabega na parede, me chutava, me socava. Nesse momento, lembrei da boneca, A garantia de que eu viveria como uma menina feliz da minha idade pra sempre. Nao entendi porque ele tinha me dado, entao, Nao entendi nada. Um dia, ele foi embora. E eu cresci muito devota do catolicismo, sem nunca eu ter sabido porque era vitima daquilo. Eu era a mais quieta das criancas. Foi entao que, aos quatorze anos, conheci o feminismo, e vi gente que tinha sofrido igual a mim, crescido confusa e medrosa quando poderia ter crescido normal. Foi tornando-me feminista que consegui superar tudo. Era ou 0 feminismo ou 0 catolicismo. Esse cretino fodeu com a minha cabega, ¢ levei doze anos pra me por no lugar. Tive problemas em relacionamentos afetivos mas aos poucos, com 0 passar dos anos, 0 feminismo me ajudou a questionar meu papel de mulher e de ser sexual. Mas imagino se eu nao tivesse me tomado feminista. Iria _precisar de alguém para me valorizar que ndo fosse eu. Anos e anos guardando isso. Uma vez eu contei pra minha mae, hd una nove anos atrés, chorando, morrendo e tremendo de vergonha. Foi na mesa de jantar. Ela riu. E, é claro, nao acreditou. Nao contei duas vezes. Eno, hoje, ela nem sabe de nada. Nao quis acreditar. Sozinha. Pra quem mais eu iria contar? Sem sentir vergonha? Sem me sentir nojenta? Essa é a minha histéria. Voltava para casa. Nao me lembro direito de onde, acho que da casa de uma amiga minha. Nao prestava muita atengao as pessoas. Estamos muito acostumados a no olhar para o rosto das pessoas com quem cruzamos na rua. Ja tava escuro, mas nao era muito tarde, Vinha pensando na vida. A mulher na minha frente andava muito rapido e notei que um homem se aproximou dela perguntando-lhe o caminho do metr6, ela por medo ou desconfianca ignorou- ©. Achei-a muito mal educada. Ai ele se dirigiu a mim e me fez a mesma pergunta. Virei-me para indicar-Ihe a direcéo, explicando-a, quando me voltei para perguntar-lhe se tinha entendido ele me apontava uma arma escondida numa sacola plastica. Sua expresso era de desespero. Meu coragao bateu muito rapido, mas na hora tentei parecer calma. Ele me disse que tinha fugido da priso, roubado @ posto do final da rua e precisava fugir. Precisava ter alguém com ele, caso a policia chegasse, Eu gelei, mas me acalmei ao pensar que era s6 levé-lo até o metré. Fomos andando. Em vez de virar na rua que levava ao metré, ele virou e foi andando na diregao da estagao de trem. Eu temi muito que ele me levasse para 14, eu ja tinha ouvido um monte de histérias de minas que so estupradas/mortas nas linhas de trem. Entao ele comegou a falar que a culpa de tudo era do governo, que nao se tinha trabalho, dinheiro nada, Sim. Eu quase gritei que concordava, O mundo ja comegou a me parecer tao errado. Passamos por ruas movimentadas e eu olhava desesperada para a cara das pessoas, mas ninguém percebia nada. Qu

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