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Bruno Daniel Gomes de Sena Martins! a deficiéncia a: A angistia da transgressio corpor: im pensada Resumo: Com propésito central de compreender a complexa relaglo entre as Tepresentagées culturais da cegueira e as vidas daqueles que a conhecem na came, ha anos que verho realizando investigario em Portugal sobre questdes relacionadas com © tema da deficiéncia. Partindo do meu itinerdrio etnografico, pretendo aqui convocar algumas questdes teéricas que se erigitam particularmente significativas a medida que fu sendo confrontado com os limites postos as formas convencionais de apreender a experiéncia nas ciéncias sociais. Tentando inquirir o lugar dispar que © sofrimento ‘ccupa, enquanto referente, nas histérias de vida das pessoas cegas ¢ nos valores dominantes acerea da ceguzira, deparei-me com dimensdes da experiéncia humana em ‘que centralidade das emopoes, do corpo ¢ da imaginagdo se foi gradualmente insinwando, No sem agonismo, tudo se sucedeu, diria, como se uma visits no convidada principiasse a habitar no meu quarto. Vim a consentir tal presenga forjando como leito de acolhimento “a angiistia da transgresstio corporal”, 0 conceito que proponho neste texto. Representagées incapacitantes Num primeiro momento, importa denotar como as pessoas cegas esto sujeitas a fortissimas condigdes de opressao social ¢estigmatizagao cultural, Fstamos perante ‘uma moldura de inteligibilidade social que muito deve ao modo como a modemidade reinventou a exclusio das pessoas cegas através do idioma da medicina. Sob 0 J conceit de deficiéncia, no achado parentesco com outras condigaes fisicas € Mentais, a cegueira ficou objectificada como uma exterioridade da norma biomédica’ tum topos de desvio corporal onde © horizonte de restituigéo da normalidade esta } Doutorando de Sociologia da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, bolseiro da Fundagao para a Cigucia ¢ Tecnologia, Venced.r em 2005 do Prémio CES para Jovens Cientistas Sociais de Lingua Oficial Portuguesa com a Dissertagto de Mestrado “A C-gueira ¢ as Narrativas Silenciadas: Para além da Tragédia, paa li do Infortinio” (Martins, 2004), Este texto baseia-se numa ‘comunicagio apresentada em Julho de 2005, com o apoio da FCT, no congresso da Associagao Europeia de Sociologia decorrido em Torum, na Poténia. \ habitualmente usente. N&o obstante, desde entdo, numa espécie de trae coreografado, os movimentos normalizantes da medicina nao cessaram de informar constrangendo, as respostas sociais que se vieram a dirgir as pessoas identificadas com a deficiéneia, Recpostas alojadas numa aboriagem reabilitacional, centiada no individuo, ostensivamente negligente a0 imperativo de transformagbes sociais mais amplas, respostas que vém eorroborando ~ivamente a reflexto de Col al, 1999: 60). “0 efeito despolitizagio” (minka traducdo). Bames (er sdicalizagio dos problemas sociais € a sua Consequentemente, 0 sacro caminho para a integragdo social = a luz dessoutra abordagem reabilitacional ~ ganhou a consisténcix de uma miragem aa ‘esmagadora maioria das pessvas com deficiéncia. No que a deficiéneia diz respeito as nossas sociedades estio estruturadas para a integragao social daqueles que Ervin Goffman chamou de “herdis de adaptago” (Goffman, 1990: 37). Isto é tdo mais problemético € perturbante quando sabemos que, se_conferidas as condigSes adequadas, apenas uma reduzida pereentagem de pessoas com deficiéneia ficaria impedida de participar na vida conémica e social. O facto ¢ que até este dia as Pessoas com deficigncia encontram na maioria das sociedades un quadro em que a desigualdade de oportunidades caminha de par em par com forte discriminagto institucional e vigorosa estigmatizagao cultural. Este mesmo estado de coisas comegou a ser denunciado no inicio dos anos (19)70, quando os movimentos de pessoas com deficiéncia, inspirados pela agitagdo social do final da década anterior, denunciaram um sistema discriminatorio tenazmente vigiado por valores ¢ atitudes subaltemnizantes, barreiras arquitzct6nicas ¢ comunicacionais, obstéculos no acesso | 808 transportes, auséncia, insuficiéncia ou inadequagao do apoio no sistema regular ~de educagao, critérios excludentes para a educagao superior e para o emprego, ete. A ssituagtio social das pessoas com deficiéncia, marcada por exclusée silenciamentos, instiga de sobremaneira a uma “cpister logia das auséncias”. A Propria emergéncia histérica do conceito de deficiéncia, produtora de um estreitamento das vozes avalizadas e das priti Sbvio produto de uma moderna “razio metonimiea” (Santos, 2002). Estamos, pois, Perance uma “logica de classificago” que tem operado como fiel pajem de uma “monocultura da naturalizagao das diferengas” (ibidem). sociais pensdveis, surge como A angistta da trenspressBo corporal: A deficéncta asin pens Entendo que o elemento mais resistente na marginalizagao das pessoas com det icigncia reside no modo como este processo social de exclusdo se articula com 0 Tatalismo dos valores culturais dominamees que encarceram a experiéneia des pessoas com deficigneia nas ideias de tragédia e incapacidade. Ao centrar-me na cegueira, 3 experiéncia de deficiéncia” que elegi para recolher historias de vida © para acompanhar vivéncias quotidianas ¢ associativas, pude partir de uma condigao que sintetiza de modo flagrante os valores incapacitantes com que_a_sociedade hegemonicamente se divige para a expe deficientes. Nasfrepresentagdes culturais hegemonicas da cegucira ncia daqueles a que aprendemos a chamar condigao esta fortemente eingida pelos conceitos de tragédia,lesgraca eine spacidade. ‘Uma tal conceptualizagao da cegueira esta bem preseute nos nossos artefactos culturais. Podemos evocar, por exemplo, o filme Scent of a Woman*, em que Al Pacino desempenha 0 papel de Frank Slade, um militar que ficou na reserva na sequéncia do rebentamento acidental de uma granada que o deixou cego. O didlos: central do filme ocorre quando Frank Slade € surpreendido preparando 0 seu suicidio. Charlie, o rapaz que 0 acompanhou numa viagem a Boston, procura deté-Lo, clamando a certa altura: “Va para a frente com a sua vida!” Ao que Frank responde: “Que vida?! Eu nao tenho vida! Eu estou aqui na escuridio! Sera que ppercebes, eu estou na escuridao!” (minha tradugao, minba énfase). Como o pude atestar nalgumas experiéneias de cegueira subitamente inflixida, a resposta gritada por Al Pacino pode obviamente expressar © sofrimento ¢ a dissolugio sentidos por alguém que cegou recentemente num acidente. Mas o que eu pretendo enfitizar € 0 modo como esta enunciagdo, numa té sonante aparigao mediatica da cegueira,* largamente reflecte os tenuos por que esta condigao € socialmente entendida: uma a deseraga. qu que assola 0 valor da propria vida, Fates mesmos valores estéo presentes em Ensaio sobre a Ceguetra, de José Saramago. Neste romance, a siibita cegucira de toda uma populagiio emerge como uma riquissima metifora para simbolizar a desgraga humana, a ignorancia ¢ a alienagio, Significados que esto brilhantemente resumidos na voz de uma das personagens de * Tradusido para portugués como “Perfume de Mulher”. Hsta pelicula € uma adaptagio da obra Profomo di Donna, sealizada em 1974 por Dino Risi ? Se é verdade que este ariefacto cinematogrifico constitu uma evidente emanagio ovidental, ele toma _parte de um nexo econdmien-cultaral cujo alcance tendencialmente global nos remete para o Ampito das mediascapes de que fe Arjun Appa wai (1998)

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