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Abordagens 4 ciéncia e tecnologia da cognicao . Francisco J. Varela CREA (Centre de Recherche Epistemologie et Autonomic), Ecole Polytechnique, Paris Abstract. Approaches tothe science and technology of cognition. The science and technology of cogni- tion is a hybrid of several disciplines including: neuroscience, linguistics, cognitive psychology, episte- mology and artificial inteligence. The purpose of this paper is to outline the current state of affairs in cn nyvnid Ftd of interests, This we do according to four different conceptions of cognition which have arsed in roughly successive moments of time over the last 40 years, starting with the foundational years of cybernetics, passing through the cognitivist and the (neo)connectionist perspectives, to reach the perspective we prefer and call enactive. ‘Resumo.A clénciae tcnolggia da cognicdo € um hibrido de vrias dsciplinas, incluindo: neurobialo- gia, lingilistica, psicologia cognitiva, epistemologia ¢ inteligéncia artificial. O objetivo deste trabalho 4 deinear a siouagdo atl deste campo deinteresses, Into feito através de describes de quatro cife- ‘entes concepeSes do Que veaha a seta cognjelo, que se sucederam nos iltimos 40 anos, comejando com o trabalho dos fundadores da cibernética,passando pelas perspctvas cogntivista (neo) cone- nists, para ating a pespestiva que preferimos ¢ que denominamos configurativa (ou enaciv). Introdugio MON iP O que denominarei citacia ¢ tecnologia da cognicdo (CTC) é um hibrido de varias discipl ‘nas, cada qual com seu préprio sabor ¢ compro- rmetimentos, em forte ressondncia com as demais (Gigura 1) A CTC tem um pouco mais de 40 anos de ida- de. Nao se estabeleceu ainda como uma ciéncia madura, nem se projetou em uma diregdo defi- rida, com um grande mimero de pesquisadores constituindo uma comunidade, como é 0 caso, digamos, da fisica atémica ou da biologia mole- cular. Assim, o futuro da CTC esta longe de ser claro; seu progresso est baseado em algumas apostas conceituais bastante temerdrias’ — algo assim como colocar tm homem na Lua... sem saber ao certo onde a Lua esta. © objetivo deste texto & esbogaro estado atual de problemas de CTC. Farei isto apoiado em quatro pontos que so conceitualmente bem di- ferentes e que emergiram em etapas sucessivas do desenvolvimento da CTC nos uiltimos 40 anos. Estes quatro estagios sdo os seguintes: 1° esidgio: 0s anos de fundagdo (1943-1953), que nao abordaremos%; 2° estdgio: 0 paradigma cognitivista; 3 estdgio: a alternativa a manipu- lagdo simbélica; 4? estdgio: a altemativa as re- presentacées. Através destas etapas examinarei as bases de um paradigma jé claramente definido (I? e estégios)¢0 fato de que este paradigma esta dan- do lugar a perspectivas novas, emergentes (3° ¢ 4° estdgios) com potencial para causar profun- das modificagdes na CTC. 22 estigio: a hipétese cognitivista Os cognitivistas Assim como 1943 foi claramente o ano do nascimento da fase cibernética®, 1956 foi o ano ‘em que nasceu 0 2° estagio da CTC. Neste ano, em duas reunides cientificas, em Cambridge e em Dartmouth, vozes novas, como as de Herbert Si- ‘mon, Noam Chomsky, Marvin Minsky e tam- ‘bém John McCarthy, expuseram as idéias que se tornariam os fios condutores da CTC moderna}. A intuigdo central é de que a celigéncia (in- cluindo a inteligéncia humana) é ro semelhante ‘a.um computador em seus aspectos essenciais que 1 cognigdo pode ser definida como a computa- gio de representacdes simbélicas. Claramente, sta orientagdo ndo surgiria sem os alicerces lan- gad0s no 1? estagio, mas a idéia original, antes. ‘entativa, era agora algada ao starus de uma hi- 7 ppotese plena, com uma forte tendéncia a se iso- lar de suas raizes interdisciplinares, mais amplas ¢ indefinidas, implantadas nas ciéncias sociais © biolégicas. Cognitivismo é um rétulo adequado para esta orientacdo ampla mas bem delineada, que motivou muitos desenvolvimentos cientifi- cos ¢ tecnoldgicos desde 1956, em areas da psi- cologia cognitiva, da lingiifstica, em uma gran- de parte das neurociéncias e, ¢ claro, na inteli- sgéncia artificial Um esbogo da doutrina ( programa de pesquisa cognitivista pode ser sumarizado como respostas as seguintes pergun- tas: Questo 1: Que & cognigao? ‘Resposta: £ o processamento de informa (¢0es: a manipulacio de simbolos com base em regras. Questdo 2: Como funciona a cogni¢io? ‘Resposta: Através de qualquer artefato que possa dar suporte ¢ manipular ‘lementos fisicos separaveis: sim- bolos. O sistema interage somen- te com a forma dos simbolos (Geus atributos fisicos) endo com seu significado. Questo 3: Como saber se o sistema cogniti- vo funciona adequadamente? Resposta: Quando os simbolos representam adequadamente algum aspecto do ‘mundo real, eo processamento de informagdes conduz @ solugéo efetiva do problema apresentado ao sistema. [TTELIGENCIA ARTIFICIAL NEUROBIOLOGIA u \ ane ‘TECHOLOGIA BA CocNTGRO pszcovecrA, A \ prstevoecta cognrrzva, ftsntca Principe cscipins que contribuem par CTC. Este programa de pesquisa ndo apenas se ¢s- tabeleceu de forma plena, como também fre- qlentemente € identificado como sendo a pré- pria expressdo da CTC. Poucos dos participan- tes ativos deste paradigma, para néo falar do p\ blico em geral, s40 conscientes quer de suas ori- ‘gens, quer dos desafios que o programa enfren- ta, ou da existéncia de alternativas. “0 eérebro processa informagdes do mundo exterior” é ho- je uma frase trivial entendida por todos. Dizer que esta frase é, na melhor das hipéteses, enga- nadora, parece estranho, ¢ a conversago que s¢- + iniciada entdo imediatamente rotulada de “fi- loséfica”, Isto representa uma cegueira do sen- so comum contemporaneo introduzida em nos- sa cultura pelo paradigma cognitivista, ¢ seu ‘maior perigo consiste na incapacidade de ado- tarmos uma visdo mais ampla para o futuro da ct. Ciéncia da cogni¢ao Em nenhum outro lugar as manifestagdes do cognitivismo so to visiveis quanto no estudo da inteligéncia artificial (LA), que é literalmente a comporificagdo da hipétese cognitivista. Seu al- ‘vo complementar é 0 estudo dos sistemas cogni tivos naturais, especialmente 0 humano. Aqui também representagdes caracterizaveis em ter- ‘mos de computag6es sdo tomadas como se fos- sem 06 eventos ocorrendo em um sistema formal eaatividade da mente seria o que confere a es- tas representagbes suas nuances de atitude: cren- ‘625, desejos, planos e assim por diante. Neste as- pecto, portanto, diferentemente da IA propris ‘mente dita, existe um interesse em saber 0 que ‘0s sistemas cognitivos naturais realmente so & se é possivel admitir que suas representagdes s0 sobre algo para o sistema, do ponto de vista do sistema — isto é, elas so ditas intencionais. Por exemplo: pessoas expostas a figuras ge0- métricas e solicitadas a gird-las mentalmente ale- ‘gam com freqiéncia que a dificuldade da tarefa € proporcional ao niimero de graus de liberdade da rotagdo. Tudo se passa como se tivéssemos ‘um “espago mental”” no qual as figuras sdo gi- radas como em uma tela de televisio. Estas ex- periéncias geraram subseqiientemente uma teo- ria explicita postulando regras de operagao nes- te “espaco mental” semelhantes aquelas usadas em telas de computadores que operam sobre da- dos arquivados. Estes pesquisadores propuseram ‘aexisténcia de interagdes entre operagbes ‘de lin- guagem” (language-like) e ‘de imagem” (picture-like), interagdes estas que gerariamn nos- so “‘olhar interno’’®. Esta interpretagao gerou muitas respostas, tanto a favor como contra”, ¢ interpretagOes alternativas foram oferecidas pa- ra todos os niveis da hipétese proposta. A des- peito disto, 0 estudo da formagao de imagens (imagery) é um exemplo perfeito da abordagem cognitivista aos fenémenos mentais. Processamento de informagdes no cérebro ‘Outro efeito igualmente importante do cog- nitivismo foi a moldagem de nossa visio atual sobre 0 cérebro. Através dos anos, quase toda ‘a neurobiologia (e sua enorme massa de evidén- cias empiricas) foi permeada pela perspectiva do processamento de informagées. Na maioria dos ‘casos, as origens e pressuposigdes desta perspec tiva nio so sequer questionadas*, Um exemplo notvel sio as duas décadas de estudo sobre 0 cértex visual, uma area do cére- bro onde se pode facilmente detectar respostas clétricas de neurénios quando, ao animal, ¢ apre- sentada uma imagem visual. Cedo se relatou que cera possivel classificar neurdnios corticais como “detectores de aspects” (feature detectors), res- pondendo apenas a certos atributos do objeto apresentado, tais como: sua orientasao, contras- te, velocidade, cor e assim por diante. De acor- do com a hipdtese cognitivista, estes resultados dio substrato biolégico & nogdo de que o cére- bro coleta informagées visuais na retina através dos “*detetores de aspectos" especificos no c6r- tex, € que a informacdo & entio passada a ou- tras dreas do cérebro para processamento (cate- gorizagio conceitual, meméria associativa e, eventualmente, ago). Um breve esboco da discordancia ACCTC, enquanto cognitivismo, é um progra- ma bem definido de pesquisas, conduzido em instituigdes cientificas de prestigio, contando ‘com miiltiplos periédicos especializados, tecno- logia aplicada e muitos interesses do comércio internacional. Regra geral, as pessoas que tra- balham em inteligéncia artificial (e na teoria da formacio} subserevem — conscientemente ou ndo — o credo cognitivista. Afinal, se a rotina diaria de um pesquisador consiste em escrever cédigos em Lisp (uma “linguagem”” de compu- tagdo como a Basic ou a Fortram), ou em iden- tificar neurénios envolvidos em tarefas especifi cas, como poderia ser de outra maneira? Quero ‘chamar a atenclo aqui para a profundidade deste ‘comprometimento social de uma grande parce- la da comunidade cientifica em CTC. Minha orien- tagdo ¢ examinar os fundamentos da CTC cog- nitivista, de forma a tornar também evidentes as ‘bases para argumentos discordantes. As formas essenciais de discordncia com as visbes estabe- lecidas da CTC atual sio, essencialmente, duas: a) a critica de que computagbes simbélicas se- jam as portadoras apropriadas das representa ‘60s; eb) acritica da adequago da nogdo de re- presentagio como o elemento essencial em CTC. estigio: a alternativa da auto-organizagao ‘Motivos para procurar alternativas ‘A motivacdo para dar uma segunda olhada (a primeira abordagem auto-organizacdo foi feita no perfodo fundador (cibernética)?) nos principios da auto-organizagao se baseia em duas, fraquezas do cognitivismo. Primeiro, a informa- 4o simbélica ¢ baseada em um processamento Segiiencial, onde regras so aplicadas uma a uma. Este “engarrafamento de von Neumann” constitui uma limita¢ao dramatica quando a ta- refa em questéo requer um niimero elevado de coperagdes seqlienciais — como na analise deima- gens ou na previsio meteorol6gica. Muitos es- forgos de pesquisa para desenvolver algoritmos para o processamento paralelo de informagées tém progredido muito lentamente porque toda a filosofia computacional ¢ diametralmente posta a esta idéia. ‘A segunda limitagdo importante é que 0 pro- cessamento simbélico é localizado: a perda ou enguico de qualquer parte do sistema cognitivo implica um colapso total do sistema. Uma ope- racdo distribuida, por sua vez, seria altamente desejvel, pois conferiria ao sistema uma equi- potencialidade relativa de diversas partes ¢ uma imunidade relativa a mutilagdes. Estes dois desapontamentos com 0 cognitivismo podem ser vistos como um tinico: as arquitetu- ras € 0s mecanismos que operam nos sistemas ar~ tificiais sio muito diferentes dos biolégicos. Na verdade, as operagées visuais mais triviais, rea- lizadas mesmo por mintisculos insetos, slo rea- lizadas mais rapidamente do que ¢ possivel quando simuladas de maneira seqUencial. Similarmente, a resisténcia (resiliéncia) do cérebro & mutlaclo sem comprometer toda a sua competéncia é re- conhecida ha muito tempo pelos neurologistas. O que é auto-organizagdo? Na abordagem da auto-organizacio, em vez de partirmos de simbolos, partiremos de com- ponentes simples que se conectam uns 0s ou tos de maneira densa. Nesta abordagem, cada ‘componente opera somente em seu ambiente lo-

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