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5.ARedacao 5.1. A QUEM NOS DIRIGIMOS ‘A quem nos dirigimos a0 escrever uma tess? Ao examinador? A todos os estudantes ou estudiosos que tert oportunidade de consultéla depois? Ao vasto pablico dos nfo-especiaizados? Deve. ‘mos imaginé-la como um livro, a andar nas maos de milhares de let tores, ou como uma comunicago erudita a uma academia cientifica? ‘Sfo_problemas_importantes_na_medida_em_que dizem respeito antes de tudo forma expositiva a dar a0 trabalho, mas também £0 nivel de Glareza intema que se pretende obter. Eliminemos desde jd um equivoco. Ha quem pense que um texto de divulgafo, onde as coisas sfo explicadas de modo’ a que | todos compreendam, requer menos habilidade que uma comunicagdo ientifica especializada, as vezes expressa por formulas apenas aces. sivels a uns poucos iniciados. ss0 de moda nenhium & verdade. Coro, 3 a descoberta da equaggo de Einstein, E = mc, exigia muito mais 2 wt engeaho do que qualquer brilhante manual de Fisica Mas em geral 98 textos que nJo-explicam com gran iliardade os termos que 5 -¢mpregam deixam_a_suspeita_de_que_seus_autores sf0 muito mais_ z inseguros_do_que_aqueles que expliitam cada referénciae cada pas. 2 Sagem. Se vocé ler os grandes cientstas ou os grandes ciflicos, verd ° que, com rarissimas excegies, eles sf0 sempre claros ¢ ndo se emven sonham de explicar bem as coisas. Digamos entfo que uma_tese & um trabalho que, por razses casionals, se dirige a0 examinador, mas presume que possa ser . 6 consultada, de fato, por muitos outros, mesmo estudiosos ndo ver ECO, Umberto. A redacao. In;__. Como se faz uma tese. S30 Paulo: Perspectiva, 1986. P. sados ditetarente naquela sciplina 113-442. Assim, numa tese de filosofis, néo seré preciso comesar expli cando 0 que 6 filosofia, nem, numa de vuleanologia, ensinar o que ‘ na ‘CONOSE FAZ UMA TESE fo vuleses, Mas, imediatamente abaixo desse nivel Obvio, ser sempre conveniente fomecer ao leitor todas as informagSes de que ele precisa. De infcio, definem-se os termos usados, a menos que se trate de térmos consagrados e indiscutiveis pela disciplina em causa. Numa tese de logica formal, ngo precisarei definir um termo como “impli cago" (mas numa tese sobre a implicacdo estrita de Lewis, terei de definir a diferenca entre implicagio material implicagao estrita), Numa tese de linguistica nfo terei de definir a nogdo de fonema (mas devo fazélo se 0 assunto da tese for a definigso de fonema em Jakobson). Porém, nesta mesma tese de linguistica, se empregar’ a palavia “signa” seria conveniente definila, pois d-se 0 caso de que © temo se refere a coisas diversas em autores diversos. Portanto, teremos como regia geral: definir todos os termas téenicos usados ‘como categorias-chave em noi discurso. Em segundo lugar, no & necessirio partir do principio que 0 Ieitor tenha feito 0 mesno trabalho que nés. Se nossa tese versar sobre Cavour, & possivel que ele saiba de quem se trata, mas se versar sobre Felice Cavallotti convém recordar, embora sobriamente, quando este autor viveu, quando nasceu e como morrea. Enquanto escrevo tenho sob os olhos duas teses de uma faculdade de letras, uma sobre Giovan Battista ‘Andreini ¢ outra sobre Pierre Rémond de Sainte. AAlbine. Posso jurar que, arrebanhando cem professores. univers tirios, todos até de letras ¢ filosofia, so uma pequena fraglo deles conhecerd algo sobre esses dois autores menores. Ora, a primeira tese ccomega (mal) com: A historia dos extudos sobre Giovan Battista Andreini comega com uma lists de suas obras claborada por Leone Allacc,teologo e eradito de oxigem seen (Quios 1586-Roma 1659) que control pata a historia do teatro.» ete E desapontador para qualquer pessoa ser informada com tama- sha presisto sobre Allaccl, que estudou Andtcini,e nfo sobre o pr6- prio Andreini, Mas — dird 0 autor ~ Andreini € 0 herbi de minha tese! Justamente, se & seu herbi a primeira coisa a fazer & tornélo familiar « quem’ quer que va ler sua tese; nfo basta que o examina dor 0 conheya. Vocé nfo esté escrevendo uma carta pessoal a0 ex minador, mat um livio potenciaimente enderegado 2 toda a hums nidade A segunda tese, com mais propriedade, principia assim: 0 objeto de nosso estudo é um texto pubicado na Franca, em 1747, fexerito por um autor gue nlo deixou muitos Outros tragos de sua existénci Pierre Rémond de Sainte-Albine, ap6s o que se comesa a explicar de que texto se trata e qual a sua importincia. Parece-me um comego correto, Sei que Sainte-Albine viveu no século XVIII ¢ que, se tenho pouquissimas idéias a seu rey peito, iss0 se justifica pelo fato de haver deixado poucos tragos de sua vida AREDACAO us 5.2. COMO SE FALA Uma vez decidido a quem se escreve (a humanidade, nfo 20 examinador), cumpre resolver como se escreve, Problema dificil se houvesse a espeito regras cabas, serianios todos exeritores de proa. Pode-se recomendar escrever a tese varias vezes, ou escrever outras coisas antes de atacéla, pois escrever é também quest De qualquer forma, € possivel dar alguns conselhos muito” gerais. ‘Nao imite Proust. Nada de periodos longos. Se ocorrerem, regis. 410-03, mas_depois desmembre-os. NiO receie_repetir_duas vezes o sujeito, Flimine o excesso de pronomes e subordinada. Néo escreva © pianists Witigenstein, que era iemfo do famoso filisofo que escreven © Tractanis Logico-Philosophicus, que muitos consideram holes obs=prims 4a fllosofia contemporines, teve 2 sorte de ver esctto especialmente para ele, ppor Ravel, o concerto para mio exquerda, uma vez que, perdera @ deta na fuer. mas © piansta Witigenstein era imo do flbsofo Ludwig. Tendo perdido 4 mio direlt, Ravel estreveu para cleo concerto para mio exquerda pianista Wittgenstein era irmo do flsofo autor do edletne Tracttut. Perdera «mio dieita, © por iso Ravel Ihe escreveu um concerto pars m0 ‘squerda, io escreva: © escritor ilandés havia enunciado 3 famflia, 2 pétria e &igrfa 6 con ‘fava em seu propésito. Daf ndo te pode conciut que fosse um esertor engs- jtdo, embora alguns the descubram. propensSes fabianas © “socialist”. Ao elod a Sepunda Guerra Mundial, tende a ignorar debberadsmente 0 drama gue sicode Europa © preocpivase unicimente com a redaio dese Mas; Joyce tinha renunciado & famfia, a pétria © & ire, B mantevee fel 0 designio. Ndo se pode der que Joyce fosse um eseritor “engajado™, embora haja quem tonha falado de um Joyce fabiano e “socialists” Quando eclode a Segunda Guerra Mundial, Joyce tende a jgnorar deliberadamente o drama {que convulsiona «Europa, preocupindorse unicamente com a redagio. do Finnegans Wake “terdcio™: Por favor, ndo escreva, ainda que pareca mai Quando Stockhausen fala de “grupos nfo tem em mente a série de ‘Schoenberg, nem tampouco a de Weber. O misico alemio, fente 2 exigéncia de nso repetir nenhurma das doze notas antes da série terminay, nf0 2 acet fara E a'no5f0 mesma de “easter” que € mais Kenta esraturaimente que & 16 COMO SE FAZ UMA TESE do, Webem também ao sepuia os egidos prineipios do te de Varsbria, for de Manire vai mais além. Quanto a0 primeito, cabe dist: ius faces do sun obra, Tambérn Ber Sera esse autor um sens dogmético. Verificase que, a certa altura, nfo se sabe mais de quem se fala. E definir um autor por meio de uma de suas obras nfo € logicamente _ comreto, verdade’ que os criticos menores, para se referiem a Manzoni (¢ temendo repetitem o nome multas vezes, 0 que parece ser altamente desaconselhado pelos manuais de “bem eserever”) dizem “o autor dos Promess spas". Mas 0 autor dos Promest!spost rnéo & 0 personage biogréfico Manzoni em sis totalidade: tanto rmais que, mum certo contexto, podemos afirmar que existe uma dife- renga senivel ene o autor dos Promess sposi e-0 autor de Adelch, apetar de biogrfica e anagraficamente falando tratarse sempre do ‘mesmo persoragem. Por isso, eis como eu escrevera 0 trecho nupra. citado Quando Stockhausen fala de “grupos”, nfo tom om mente nom a sé ‘de Schoenberg nem 2 de Weber. Stockhausen, frente exigSnca de mio reps: te nenhurma dat doze nolas antes de a série tenminar, nfo a acetaia, Ea nogto ‘mesma de "cluster", que € estruturalmente mals Isonta do que a de série, Pot fut lado, Webern’ também ndo sepuia 0s rigidos principios de Schoenberg (Ora, Stockhausen vai mais além. E quanto a Websm, € preciso dstinguiy vinas fhses de sua obra. Também Berio afirma que nfo se pode consilerae ‘Webern un seriaista dogmitice, Nao pretenda ser e.e. cummings. Cummings era um poeta ame- ricano que assinava com as iniciais mindsculas. E, naturalmente, usava vingulas € pontos com muita parciménia, cortava os versos, em suma, fazia tudo aquilo que um poeta de vanguarda pode e deve fazer. Mas vocé no é um poeta de vanguarda, Nem sua tese versa sobre poesia de vanguarda. Se escrever sobre Caravaggio, porse-a de sibito a pintar? Portanto, a0 falar do estilo dos futurstas, evite eserever como, um deles. Esta & uma recomendago importante, pois hoje em dia muita gente se mete a fazer teses “de ruptura”, onde no se res peltam as regras do discutso critico, A linguagem da tese € uma meta- inguagem, isto 6, uma linguagem que fala. de outras linguagens. Um Psiquiatra’ que descreve doentes mentais nfo se exprime como os doentes mentais. Nao quero dizer que seja errado exprimir-se como cles: podese, razoavelmente, estar convencido de que os doentes ‘mentais 40 0s Gnicos a exprimir-se como deve ser, Mas entdo terd dduas alternativas: ou nio fazer uma tese e manifestar 0 desejo de ruptura recusando 0s titulos universitirios e comegando, por exemplo, 4 tocar guitarra; ou fazer a (ese, mas explicando por que motivo a Tinguagem dos doentes mentais ndo € uma linguagem “de loucos”, e para tal precisard empregar uma metalinguagem critica compreen- sivel a todos. O pseudopoeta que faz sua tese em vorsos é um palerma (¢ com certeza mau poeta). De Dante a Eliot e de Eliot a Sanguineti, (08 portas de vanguarda, quando queriam falar de sua poesia, faziam-no AREDACAO 7 fem pros ¢ com clareza. Quando Marx falava dos opertrios, nso escrevia como um operirio de sua época, mas como um flésofo, Mas quando, de pareeria com Engels, redighu 0 Manifesto de 1848, empre- ou um estilo jomalistico, de periodos curtos, muitissimo eficaz © provocatério. Diferente do estilo de O Capital, destinado a eco- nomistas e politicos. Néo diga que a violencia postica “brota de deritro” de vor’ e que se sente incapaz de submeterse as exigéncias 4da simples e banal metalinguagem da critica. E poeta? Nao se forme, Montale no se formou nem por isso deixa de ser um grande poeta, Gadda (formado em engenharia) escrevia como escrevia, tudo regio. nalismos © rupturas estilisticas; porém, quando precisow elaborar um decélogo para quem redigia noticias de ridio, saivse com um del cioso, agudo e reto receitudrio em prosa clara e compreensivel a todos. ‘Quando Montale escreve um artigo critica, procede de maneira que todos 0 entendam, mesmo aqueles que nfo entendem sua poesia. || _Abra_panigrafos com freqiéncia. Quando for necessirio, para jaro texto, mas quanto mais vezes melhor. rent o que Me vier & eabers, mas apenas em rascunho, Depo perceberé que 0 impeto The arrebatou a mfo e 0 afastou do nicleo ! * do tema, Elimine entao as partes parentéticas e as divagagées, colo- candoas em nota ou em apéndice (vet) A fnalidade da tese & demons. trar uma hipétese que se elaborou iniciaimente, e nfo provar que se sabe tudo. Use 0 orlentador como cobaia. Faga-o ler os primeitos capi tulos (e depois, 20s poucos, o resto) com boa antecedéncia antes da centrega da tese, As reagGes dele poderso ser de grande utilidade. Se © orientador for uma pesso muito ocupada (ou preguigosa) recorra a um amigo. Verifique se qualquer pettoa entende 0 que voc8 escre- veu. Nao se faga de genio solitiio, ‘Nao se obstine em iniciar no primeiro capitulo. Talvex esteja mais preparado e documentado para o quarto capitulo, Comece por ai, com a desenvoltura de quem jé pés em ordem os capitulos ante riores. Ganharé confianga. Naturalmente voeé conta com um ponto de apoio no indicehipétese, que vai urientély desde v comeyd (ver 41). _Ndo_use reticéncias ou pontos de exclamagao, nem faga irons. {| x{ Podese falar uma linguagem absolutamente referencial ou uma linguagem figurada. Por linguagem referencial entendo uma lingua gem onde todas as coisas sfo chamadas pelo seu nome mais comum, © mais reconhecivel por todos € que nfo se presta a equivocos. “O trem VenezaMilfo” indica de modo referencial aquilo que “a flecha dda laguna” indica de modo figurado, Mas este exemplo mostra-nos que mesmo numa comunicago “cotidiana” se pode empregar uma linguagem parcialmente. figurada. Um enssio eritico ou um texto cientifico deveriam de preferéncia set esoritos em Tnguager_rele- Fencial (com todos os termos bem definidos © unfvocos), mas is vezes & til empregar uma metifora, uma ironia ou uma litotes. Eis

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