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Rueem Aves oiveo pum ine Ed. Asa esif Gvro Originalmente “contra o método” Estou ficando com raiva deste livro. Embora eu me tenha esforcado durante trés meses, no consegui acres- centar ao manuscrito uma tinica palavra. Fui atingido pela I “sindrome da centopeia”. » Sobre a As ideias nao me faltam. Ao contririo, elas brotam a Saeens e. todo o momento. Jé tenho centenas de paginas cheias 20 captulo Vi de anotagdes. Mas nao consigo colocé-las em ordem, "Os ibe500 Sto pegas de um quebra-cabecas espalhadas pela mesa. Tento encaixé-las umas nas outras para formar um pa- dro tinico. Mas elas se rebelam. Wittgenstein passou por uma experiéncia idé Ele relata 0 acontecido no prefé loséficas. Bis 0 que ele diz: “Os pensamentos que eu pu- *™eeations, blico no que se segue sto o precipitaido de investigagdes filosoficas que me ocuparam por pelo menos dezasseis anos. (...) Depois de varias tentativas mal-sucedidas de fundir meus resultados numa pega tinica, percebi que eu nunca haveria de ser bem-sucedido. © melhor que eu poderia escrever seria nada mais que anotag6es filos6fi- cas; 0s meus pensamentos ficavam logo paralisados se eu tentava forga-los numa tinica direcedo contra a sua in- clinagao natural’ Wittgenstein, a: um livro normal de filosofia, as ideia sistematicamente umas nas outras. Os fios, ele os tinha. Mas nao conseguiu tricotar 0 pullover. Seu livro aparece, entio, como uma série de “anotagées" soltas. Essas ano- tagdes, todas elas numeradas, eu tenho a impressdo de corpo 7 que eram originalmente fichas onde ele registava os seus pensamentos. Incapaz de juntar as pegas do quebra-ca- becas, ele simplesmente as publicou, da forma como es- tavam espalhadas sobre a mesa, Wittgenstein explica 0 seu fracasso como sendo de- vido ao facto de que ele, como filsofo, procurava onga~ nizar as ideias numa “nica direcg20", mas as ideias pen- savam diferente. A *inclinagio natural” das ideias era outra. As ideias tém ideias proprias ~ sao dotadas de vida, resistem, lutam, determinam direcgdes. Entdo, ha que se considerar a possibilidade de que o acto pelo qual as ideias se organizam nao seja fruto das decisoes do eu que pensa. Forcadas a marchar numa direcgao tinica, elas se rebelam. Minhas ideias fizeram greve. Recusaram-se a mexer- -se. Coisa estranha, porque as minhas ideias nao se com- /portam assim normalmente. Ao contririo, explodem e dangam sem parar, numa orgia incontrolével. Se vocé nao sabe © que isso significa, transcrevo um paragrafo sa de Octavio Paz: oiviten¢ 1 *Diariamente as palavras chocam-se entre si e emi- aufz._ tem chispas metélicas ou formam pares fosforescentes. céu verbal povoa-se sem cessar de novos astros. Todos os dias afloram & superficie do idioma palavras e frases, minando ainda humidade e siléncio por entre suas frias escamas. No mesmo instante outras desapare- cem. De repente, 0 terreno baldio de um idioma fati- gado cobre-se de stibitas flores verbais. Criaturas lumi- nosas habitam as espessuras da fala...” Eu, normalmente, quando estou escrevendo, sinto- -me no meio desta orgia deliciosa - 0 que torna o acto de escrever um prazer torturante. f torturante porque me sinto sempre possuido pelo medo de que eu nao seja capaz de colocar no papel a danga das palavras. £0 medo de que o filho nao nasca belo como eu o vi Escrever € uma das minhas maiores alegrias. E 0 cu- 80 € que a “sindrome da centopeia” esteja agindo de 18 maneira selectiva: ela s6 me paralisa quando tento escre- ver este livro. Escrevendo coisas leves, cr6nicas, miniaturas, as palavras saem-me faceis, brincantes, felizes. Experi- mento 0 “acriangamento das palavras”, Mas basta que eu “bra o arquivo do computador onde esta este livro para que as palavras virem chumbo. Este livro tornou-me im- potente, Que coisa mais triste: ser potente com todas as mulheres menos com aquela que mais amo. Daf a minha raiva. J se tornou rotina: Nietzsche me salva J Aqulaigo neapendo acon sempre. A razio? Ele era mais livre do que eu: eu: sem nenhuma exgén aD i (a previa de coerencl, sem © que 0 seu compo Ihe dizia, ele escrevia, sem $2.Pee's $e sostene®. sem dar explicagdes ou oferecer fundamentos. Ele hums justficativa metodo- ee na Topica, meu rio de pensa- sabia que argumentos € raz6es no conven- /oB\ men Ho oe pooss. cem. @ A razao nao funciona sem evidéncias _ um peixe dourado que, re- © provas. Quem diz ¢ escreve tem de contar Pensamens. sito Seder: ‘© caminho que foi seguido. Disse algum fil6- poems os poemas moran 1 Sempre no fondo das gus, 1 Cujo nome esquect AUE © porexigéncia de estilo eu sofo da cién sentido de um conceito cientifico € 0 pro- cesso da sua produgio. Conceitos valem pelo _felano’ “Assim pensiva bel pedigree. Um artigo cientifico € isso: 0 relato fads disso, s6 vou escrever do caminho que se seguiu para se ir do ponto 9° que aconteceu, do jeito de onde se partiu até ao ponto aonde se che- Some *cprecs ° Bene gou. Isso chama-se método. Mas © corpo nfo entende a linguagem do Lind método. Métodos sao procedimentos racio- _lavras de Walt Whitman (Fo- ‘ais. Mas 0 corpo € um ser musical. Ele s6 [4p dasJothas de relua, entende a linguagem da estética. “O orga- nismo é uma melodia que se canta”, diz Merleau-Ponty, citando o bidlogo Uexkill. Também Bachelard tinha consciéncia da textura musical do corpo. E ele observa que, muitas vezes, é “no inverso da causalidade”, “na re- percussao (refentissement)” que se encontram “as ver- dadeiras medidas do ser de uma imagem poética”. Nessa epercussio, 1 “a imagem poética tera uma sonoridade? Qawiode de ser". O corpo, tocado por uma imagem poética, reper ‘ cute, ressoa, vibra. Que estranho poder esse da imagem poética, coisa etérea, de mover o corpo! Fernando Pessoa descreve esse acontecimento num poema maravilhoso - combinagio de misica ¢ saber, 0 mais completo resumo que conhe¢o da teoria psicanalitica: bre pstca,« 179, 1 Cessa 0 teu canto! Cessa, que, enquanto Oouvs, ouvia Uma outra vox ‘Como que vindo Nos intersticios Do brando encanto Com que 0 teu canto Vinba até nds. Ouvi-te e ouvia-a No mesmo tempo E diferentes Juntas cantar, Eamelodia Que nao bavia Se agora alembro Faz-me chorar. As citaras indianas possuem duas camadas de cordas. A camada superior € tocada pelo artista. A camada infe- rior nunca € tocada por ele. Ela vibra harmonicamente pelo poder do toque da melodia que sai da camada su- ‘STodas as wadugdes das cobras de Nietsche, excepto quando indicado, tomam or base os textos de Fried: rich Nietzsche Werke, Karl Schlechta, Verlag Ullstein, rankfurt am Main-Bei Wien, 1976, que aparecerio. assim indicadas, FN, seguido, do nimero do volume, em algarismos romanos, do i ‘mero da seeeo, em alga ‘mos romanos entre parente- ses, do ndimero da pagina e perior. Metéfora do corpo. O poeta fala. Sem argumentos ou provas, 0 corpo vibra. Essa vibracdo € a evidéncia de que o poeta falou a verdade que dormia dentro do corpo. Amo Nietzsche por causa disto. Quando ele fala, meu corpo vibra. E diz: “E isso mesmo”. “Eu s6 poderia crer num deus que pu- desse dangar. E quando eu vi o meu demé- nio, eu encontrei-o sério, rigoroso, profundo, e solene: era 0 espirito de gravidade ~ atra- vés dele todas as coisas caem. Nao se mata por meio do édio, mas por meio do riso. Ve- nham, matemos o espirito da gravidade!"& 20 OR QUE Nho CONSEGLTTERMINAR ESTE LIYRO Meu corpo ficou paralisado, enfeitigado pelo demo- nio da gravidade, vestido com vestes académicas. Nao se assustem com a palavra “feitigo". Nao me converti a uma seita pentecostal exética. A palavra “feitigo” é Wittgenstein quem usa para definir a filosofia como 1 contra 0 feitigo da nossa inteligéncia por meio da lingua- gem’. No Livro azul, ele repete a mesma ideia com uma ligeira modulagao: 1 “Filosofia, como usamos a palavra, €> The Blue and uma luta contra o fascinio que formas de expressao. exercem sobre nds”. A bruxa falou “sapo” e o principe virou sapo. O de- mdénio académico falou “livro” e eu fiquei paralisado. Na ‘Verdade, nao € bem “livro”. Se ele tivesse falado Livro sobre nada, escrito por Manoel de Barros, ou A chama de uma vela, escrito por Bachelard, eu teria ficado mais leve. © deménio falou livro sério, as ideias umas depois das outras. Ele falou livro e eu me vi escrevendo livro para ser lido por habitantes do “Pais dos Saberes”. No “Pais dos Saberes’, ha regras precisas que regulam a fala a escrita. Regras claras, rigorosamente definidas. Quem tropega € expulso. Para se entrar no “Pais dos Saberes” ha-de passar-se por rituais de exame de linguagem. Tais rituais tm 0 nome de “defesas de tese”. Nas defesas (evidentemente deve haver um ataque), seja de mes- trado, seja de doutoramento, nao se presta atengdo no que 0 postulante A admissio diz. Mas se prestara rigo- rosa atengao no como ele o diz. Qualquer que é permi- tido desde que 0 como seja obedecido. Nao importa 0 que 0 postulante escreveu; importa o seu dominio da da linguagem do saber, cientifico ou filos6fico. Lewis Carroll era um gozador. Dizia suas coisas sob a forma de est6rias infantis absurdas. Se tivesse dito de forma clara, num artigo de jornal, teria sido expulso de Oxford. Escreveu um poema incrivel, totalmente sem sentido, Mas, ao lé-lo, o leitor tem impressao de que esta lendo algo que faz sentido, porque as regras da gram4- tica sto obedecidas. O poema nao tem sentido porque the Brown Books, p. 27,

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