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Instituto de Psicologia Fenomenológico-Existencial do Rio de Janeiro

Coordenação editorial
Ana Maria Lopez Calvo de Feijoa
Elaine Lopez Feijoo
Maria Bernadete Medeiros Fernandes Lessa
Myriam Moreira Protasio
Conselho Editorial *
Élida Sigelmann
Uui11ersidade Federal do Rio de Janeiro-UFRJ
Moniquc Augras
U11iversidade Po11tiftcia Carólica-PUC/RJ
Roberto Novaes de Sá
Universidude Federnl Fluminense- UFF
Thclma Donzclli
Universidade do Estado do Rio de Janeira-UERJ
Ued Ma luf
U11iversidade Federal do Rio de Ja11eiro-UFRJ

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Papel & Tinta / Sergio Laks
Jhrstraç,io da capa (linoleogravura)
Va leria Brancafortc
Revisão e padronização de texto
Arnaldo Marques

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA FONTE


SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ,

F328e
2.cd.

Feijoa, Ana Maria Lopez Calvo de, 1952-


A escuta e a fala em psicoterapia: uma proposta fenomenológico-existencial/
Ana Maria Lopez Calvo de Feijoa· 2.ed. · Rio de Janeiro : IFEN, 2010.

Inclui bibliografia
ISBN 978- 85-63850-00- 3

1. Psicoterapia existencial. 2. Existencialismo. 3. Fenomenologia existenc ial


3. Psicologia clínica. 4. Psicoterapeuta e paciente 1. Titulo.

10-4 193. CDD: 616.8914


CDU: 615.851

23.08.1O 25.08.1 O 021042

Índices pnrn coJO/ogo sislemótico:


1. Clicnte-psicolera.peuta : Relação clínica:
Psicologia 150. t95
2. Psico1ern.peu1a.client c : Relação clínica :
Ps ico!ogin 150. 195

• Membros da Banca Examinndora do doutoramento da 011/ora.


CAPÍTULO 3

Uma proposta de psicoterapia


feno men o1ógico-existencia 1

A proposta aqui desenvolvida consiste em pensar a psicote-


rapia em termos do próprio existir. Não se trata aqui de pensar o
homem a partir de fonnu lações teóricas, que postulam o existente
em um sistema explicativo e determinista ou como uma filosofia
idealista ou realista. Neste percurso, substituíram-se os sistemas
científicos e a teorias que consideram o homem a partir de uma
construção em si mesmo pelos fundamentos da hermenêutica fe-
nomenológica e pela filosofia da existência.
O homem passa, então, a ser tomado não mais a partir de
substancialidade do eu e de sua dicotomi zação. Assume-se a
questão pela via dos modos de ser do homem, retornando assim
à ligação originária do homem com o mundo, prescindindo de
um aparato psíquico . Parece necessário abrir um espaço de re-
flexão, para que possamos propor uma psicologia com bases fe-
nomenológico-existenciais, em que se pensa uma psicologia para
um ente dotado de caráter de poder-ser, ou seja, para um ente
desprovido de algo assim como o psiquismo.
Trata-se de um eu na concepção de Kierkegaard (s/d), que se
constitui como movimento, um eterno vir-a-ser, constituindo-se na

101
CAP(TULO 3 Uma proposta de psicoterapia f enom enol ógico-existencia l

relação que a própria relação estabelece consigo mesma e com o


mundo. Esse existir, implica-se com o real e com o imaginário, com
os limites, mas também com as possibilidades; vive no imediato
do presente, como no remoto do passado e no vir-a-ser do futuro.
Implica-se, enfim, consigo próprio e com o outro, co1:n a razão e
com a paixão e, ainda, com o desespero da própria ambiguidade
frente ao fato de existir. Pode assumir posições psicológicas de li-
berdade e de não-liberdade, considerando ainda aspectos como in-
terioridade, ilusão e transparência do eu (KIERKEGAARD, 1968).
Fundamentar-se em Kierkegaard é uma tarefa para a qual ele
mesmo abriu caminho, ao definir duas de. suas obras como des-
tinadas à psicologia : O conceito de angústia e O desespero hu-
mano. Neste livro são desenvolvidas, além de uma proposta de
constituição do eu, considerações sobre a perda do eu. Naquele,
considera a liberdade como um aspecto psicológico , em que a
não-liberdade constitui-se como estado de queda.
Fundamentar uma proposta psico terapêutica na fe nomenolo-
gia hermenêutica de Heidegger abre uma série de discussões
acerca da possibi lidade cujo caminho o próprio Heidegger apon-
tou nos Seminários de Zollikon, ao afirmar que o distúrbio, no
homem, se caracteriza pela sua dificuldade de flexibilização e da
liberdade. À psicoterapia cabe acompanhar aquele que esqueceu
do seu caráter de poder-ser e, no desvelamento de sua situação,
poder resgatar a possibilidade de sua liberdade.
Articula-se uma psicoterapia, considerando o pensamento de
H eidegger acerca da técnica, do método fenomenológico, da her-
menêutica e da estrutura do ser-aí juntamente com as reflexões
de Kierkegaard sobre o modo de acolhimen to quando se queres-
tabelecer uma relação que, pretendendo levar o homem q reco-
nhecer-se a si próprio, desfaz a ilusão de quem acredi ta ser aquilo
que em ato não é.

102
Ana Maria Lopez Ca lvo de Feijoa

Trata-se, então, de estruturar uma prática clínica, fundamen-


tada em uma ontologia do sentido, na abertura do ser-do-ente e
nas reflexões de Kierkegaard , ao sustentar uma relação singular
de "ajuda", em um sentido particular: psicoterapeuta e cliente
em uma situação concreta.
O percurso psicoterapêutico, aqui desenvolvi do, pauta-se no
processo de escuta e fala articul ados na psicoterapia em um a
abordagem fenomenológico-existencial, em que escuta e fala não
se dão na relação dicotômica sujeito-objeto. Ocorre pela herme-
nêutica, desvelando sentidos pela compreensão explicitada, ainda
que ao modo do encobrimento, no discurso. Assim sendo, pode-
se atuar de forma a não cair em uma perspectiva sem fu ndamen-
tos, parecendo, muitas v ezes, uma psico logia do senso comum.
Mas, ao mesmo tempo, não se cai em um excesso de proteção da
naturalidade das relações, refugiando-se em n ormas rígidas
acerca de como se deve dar a relação psicoterap êu tica, pare-
cendo, muitas vezes, tratar-se mais de um jogo de forças do que
de uma relação compreensiva. Trata-se, portanto, de fu ndamentar
uma proposta psicoterapêutica flexível, com princípios filosófi-
cos orientadores - e não lim itadores de uma ação .

3.1 - As refl exões de l(i erkegaa rd e a psicote rapia


A propos ta de uma psicoterap ia em uma perspectiva fenome-
nol ógico-ex istencial vai procurar, nas reflexões de Kierkegaard,
a possibilidade de se estabelecer uma relação ps icoterapêuti ca
na busca da transparência do eu, a qual se constitui como reto-
mada do movimento do existir. A proposta deste pensador torna
viável uma psicoterapia que consiste em ajudar o outro a reco-
nhecer-se em suas escolhas . Vale ressaltar uma discussão de
Kierkegaard (1 846) de grande relevância para a psicologia, seja

103
CAPÍTULO ·i Uma proposta de psicoterapia fenomenológico-existencial

no âmbito do social, seja do particular. Aliás, a questão do indi-


víduo e da multidão em Kierkegaard já aponta para uma tentativa
de <li ssolução desta dicotomiai.

3 . .l.1. O indivíduo e a mult idão


Kierkegaard em A época presente (2001 ), texto datado de
1846, mostrou sua preocupação com o despontar da sociedade de
massa e a dissolução da tradição europeia. Atualmente, pode-se
assistir à sedimentação da sociedade de massa. Testemunha-se,
hoje, o início da sociedade globalizada
., e a dissolução de qualquer
tradição, seja europeia, asiática.ou americana. Tem-se, agora, uma
sociedade de massa hegemônica. Observa-se, pacificamente, o
total desaparecimento da tradição : dos valores, da ética, das cren-
ças. As essências se perdem e aparece a extrema valorização da
aparência, tomada como realidade e que consiste nos critérios a
serem seguidos. As modificações na cultura engendram mudanças
exteriores que, pouco a pouco, vão transformando a interioridade
do homem: o pensar sobre as coisas, os sentimentos, as atitudes.
Kierkegaard (Op. cil.), a todo o momento, declarava a sua fé no
homem, no sentido de resgatar sua individualidade, por dois moti-
vos. Primeiro, já que a multidão é formada por indivíduos, há o
poder em cada homem de chegar a ser o que é: o indivíduo singular,
exceto se esse homem não desejar assim e preferir escolher excluir-
se a si mesmo, e continuar mantendo-se como multidão. Segundo,
por acreditar que a interioridade é possibilidade para todo homem .
O homem, como indivíduo fiel à singularidade, não precisa se
encaixar em nenhum enquadramento ou reduto . Não precisa, para
tanto, atacar nem criticar um determinado grupo, e sim proceder a
uma análise sincera e poder assumir que não se identifica. A sub-
jetividade se constihii incorporando existencialmente as verdades

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Ana Maria Lopez Calvo de Feijoa

objetivas na singularidade. Manter-se no singular implica não se


perder no geral, porém sem abandoná-lo. A singularidade se for-
talece no geral, mantendo a verdade objetiva e assumindo as ne-
cessidades. É preciso, no entanto, não confundir a necessidade
com a moda ou com o universal. No entanto, quanto mais enfra-
quecida a consciência, mais fácil é perder-se na multidão. Na atua-
lidade, através da fo rte expressão da publicidade, a multidão se
articula de modo que o indivíduo tenda a cauterizar a consciência,
fortalecendo o impulso inconsciente. E o homem sem consciência
torna-se presa fácil da multidão 1 Só na singularidade o indivíduo
torna-se responsável por sua ação, compromete-se com a sua obra,
assina a sua autoria. Para este, os meios não justificam nenhum
fim. O indivíduo massa é a multidão, em que a verdade toma-se
uma abstração, portanto ninguém é responsável, ninguém àssume
a autoria e, ainda, os meios justificam o fim.
A exemplo da Ilíada e da Odisséia, tem-se, no político, o
homem da massa, com a valorização da astúcia, da sofística na qual
importa a palavra, e não a ação. Não precisa haver comprometi-
mento, faz-se necessário o convencimento. Frente à astúcia do po-
lítico, o indivíduo singular tem que estar muito preparado para
posicionar-se frente aos argumentos do outro, deve poder contra-
argumentar sem recon-er à in-itação ou a uma resposta inflamada.
No senso comum, costuma-se afirmar que o que diz a multi-
dão é a verdade. Para Kierkegaard, a multidão é a mentira, pois
considera o numérico como critério que decide o que é verdade.
A multidão atua como instância decisiva segundo os asp eétos
temporal, terrestre e mundano. " Do ponto de vista ético e/ou
ético-religioso, a multidão é m entira, se dela se pretende fazer a
instância que julga acerca do que é a verdade." (Id., p. 97). A
multidão é a verdade em relação ao finito e ao sensível. Em re-
lação ao eterno, um único atinge a meta.

105
CAPÍTULO 3 Urna proposta de psicoterapia fenornenológico-existencial

Com relação ao eterno, tem-se uma discussão do filósofo di-


namarquês em O desespero humano. Neste manuscrito, Kierke-
gaard refere-se ao desespero como doença do eterno, descoberta
pelo cristianismo ao inserir o eterno na existência. O desespero
é a doença do eterno pela impossibilidade do homem de justifi-
cação da existência no temporal. Doença muito peculiar, pois
afeta o temporal e acontece quando o homem não encontra mais
sentido no temporal. Então, o que constitui o homem? É o pró-
prio desesperar, já que este se constitui no jogo do eterno e do
temporal. Trata-se de uma energia viva, autodeterminante, que
em abertura ambígua e indeterminada, em total ausência de sín-
teses, no ato de existir, constrói a verdade de sua existência.
Cabe, então, ao psicólogo acompanhar aquele que o procura no
sentido de saber do que ele desespera. Seria a enfermidade psí-
quica a doença que o cristianismo anuncia? i
1
3.1.2 - A constituição do eu: movimento e queda
Kierkegaard refere-se ao eu como se constituindo em movi- 1
!
mento, movimento do existir. A escassez deste movimento con-
siste na perda do eu, que seria o homem em estado de queda. O
1
1
eu se perde quando se paralisa em uma tentativa de resolver o
inevitável, ou seja, a situação paradoxal da existência humana.
O movimento dialético do existir humano, o "ir e vir", é o que
constitui o eu. O eu é, portanto, atividade, eterno movimento.
A proposta de psicoterapia consistirá em mobilizar os para-
doxos da existência, uma vez que aquele que está em desespero
- no sentido de lutar para resolver as ambiguidades da existência
- encontra-se paralisado. Debate-se contra si mesmo. Cabe,
então, ao psicoterapeuta reconhecer a estagnação do cliente e,
através do desvelamento, facilitar o reconhecimento da ausência

106
Ana Maria Lopez Calvo de Feijoo

de movimento do eu. O cliente deverá vir a reconhecer que a sua


existência se estabelece na dialética do finito e infinito, do eterno
e do temporal, do necessário e dos possíveis, e mais: da razão e
da paixão, do singular e do universal, do acaso e do autodeter-
minado. E que nem ele, nem nenhum homem se constituem como
um eu fechado: existir sempre implica abertura, fechar-se implica
deix ar de exis tir - nas palavras de Kierkegaard, em perda do eu.
Na dialética do finito e infinito, a estagnação ocorre quando o
eu se perde no finito, e sua ação se torna uma eterna repetição das
realizações do impessoal. O eu se perde no infinito e atua no ima-
ginário, que não realiza. Restabelecer o movimento consistiria na
fluidez finito e infinito que se constitui como realização, no mo-
vimento em que o imaginado se faz real e, então, o eu realiza.
No mqvimento das necessidades e possibilidades, o homem
atua em liberdade. Quando preso ao necessário, este homem não
se assume livre e costuma dizer: "A Deus tudo é possível" ou,
então, justifica o não-fazer no mundo, nos pais, enfim, na ameaça
do externo. Por outro lado, quando preso aos possíveis, acredita
que para ele tudo é possibilidade, esquece-se dos seus limites,
pensando que nada no mundo o detém. Reconhecer seus limites
e arriscar nos possíveis constitui-se no eu em liberdade .
Na fluidez do eterno e do temporal, a existência se dá em uma
síntese entre passado, presente e futuro, em que o imediato se
constitui como eterno e temporal. O eu qu e se perde no eterno
acredita-se imortal, portanto, é especial : o que ocorre ao outro,
por certo não lhe ocorrerá. Aquele que se perde no temporal teme
o tempo, se previne de todas as formas possíveis, por acreditar
que, através de uma atitude de proteção extremada, poderá evitar
ou adiar a sua morte. Em movimento, o eu se constitui, justifi-
cando no eterno o existir no temporal. Só assim a existência
torna-se totalmente justificável.

107
À psicoterapia caberia, então, buscar o que afinal justifica
aquela existência em termos de eterno e necessário . O apelo para
a justificação no temporal revela a ausência de necessidade - o
que também é desespero, doença mortal. Em Migalhas filosófi-
cas (1991), Kierkegaard diz que a transformação se dá no ins-
tante - logo, no âmbito do eterno da existência temporal e do
n ecessário da existência frente aos possíveis .

'3.1.'3 - A angústia e as posições psicológicas de liberdade


A angústia revela o caráter de indeterminação da existência
que abre ao homem o pecado. Daí o homem, saindo do estado de
ignorância, poder reconhecer-se corno pecador - ou seja, na pos-
sibilidade para as possibilidades. Aí se encontra no seu poderes-
colher-se: Kierkegaard vai descrever as posições psicológicas da
liberdade, dentre elas a da não-liberdade. Na não-liberdade, o
homem não se reconhece como pecador, aquele que se escolhe.
Revela-se, então, corno determinado por condições alheias a si
mesmo, de vários modos. Seja pelas queixas psicossomáticas,
pelas expressões de culpa e de isolamento. Justifica-se no acaso,
no destino e, ainda, deixa que o tempo dê conta daquilo que tem
de decidir.
A presente proposta psicoterapêutica consiste também na
apropriação da condição de pecador, ou seja, da liberdade ine-
rente ao homem. A fala e a ação do cliente serão não só a fonte
reveladora do movimento do seu existir como também.!_expres-
sãodomodo que ele lida ~ sua liberdade. A angústia, que de-
flagra a condição de liberdade, não deve ser amenizada:
experimentá-la e nela emergir é o possível d iberdade.
O homem se constitui como liberdade, daí a angústia frente ao
real e ao futuro, i m que se apresenta o mundo como possibilidades.

108
Hlld 1·1ana Lopez Laivo oe re1ioo

Muitas vezes, no entanto, o homem quer obscurecer a sua situação


de indete1minação, sua liberdade. Para tanto, dissimula a angústia
que lhe é constitutiva, assumindo-se, no mundo, como não-liberdade.
Desta fonna, justifica-se nas determinações do somático, do divino,
do mundo, do acaso. Há, nestes casos, uma falta de interioridade, ou
seja, de obscurecimento da situação que lhe cabe. ~ psicoterapia e]Q.S;.'t
~enFOl.~ -~-~-~~~!J~ritm:..que aquel~~ se justi~ as t
- --
dete1111inações exteriores possam ganhar interioridade. Para que
-
aquele que se diz não-livre possa assumir-se em sua liberdade.

3.1.4 - A psicoterapia e os princípios de uma


"relação de ajuda"

Tanto Kierkegaard quanto o psicoterapeuta existencial pre-


tendem facilitar ao homem o encarar sem temor o seu ser em
abertura e aceitar a condição paradoxal da existência humana. O
psicólogo pode se valer dos princípios da relação de ajuda, a fim
de que o homem reconheça a si mesmo, assumindo a responsa-
bilidade de suas escolhas e daquilo que continua a escolher ser,
em cada momento de sua vida, sabendo-se, ao mesmo tempo,
lançado às contingências do mundo.
Kierkegaard (1988) denomina "ajudante" aquele que pretende
ajudar ao outro a se desembaraçar dos laços da ilusão, a alertar o
ho1pem do perigo de se perder nas determinações do impessoal,
de modo a esquecer-se do caminho de retomo a si mesmo. Afirma
que aquele que quer ajudar deve, antes de tudo, reconhecer que
tem um diferencial em relação ao outro - o que, no mínimo, im-
plica reconhecer o risco de se perder nas orientações demarcadas
pela multidão . E reconhecendo o perigo, pode tentar identificar o
que ameaça o outro. Aquele que ajuda deve saber dialogar através
da comunicação indireta, que consiste em uma forma de se fazer

109
CAPÍTULO 3 Uma proposta de psicoterapia fenomenológico-existencial

chegar ao outro, sem que este perceba que há aí uma intenção de


confrontá-lo, de questioná-lo ou interceptá-lo em suas ações.
A fim de organizar a sua estratégia de comunicação indireta,
Kierkegaard utiliza-se de pseudônimos para assinar o conteúdo de
suas obras, elaboradas de acordo com critérios estéticos, éticos e
religiosos da existência humana. Estabelece tais critérios de acordo
com os referenciais pelos quais o homem estabelece suas escolhas.
Daí, ele organiza suas obras, para poder atingir a todos os leitores.
Com base nos escritos de Kierkegaard em Mi punto de vista,
onde ele descreve de que forma se deve conduzir aquele que pre-
tende levar o homem a reconhecer-se, propõe-se uma descrição
de como deve proceder o psicoterapeuta existencial ao estabele-
cer uma relação libertadora com o seu cliente. Aponta para as di-
ficuldades de destruir uma ilusão por via direta, devendo, então,
fazê-lo por meios indiretos, mas como?
{J Organizando dialética e indiretamente aquilo que pre-
tende dizer ao cliente para, em seguida, retirar-se;
2°) E, assim, não testemunha o autorreconhecimento.
Desta forma, aquele que ajuda não assume para si o reco-
nhecimento que o homem faz de si mesmo, por ter vivido
uma ilusão;
3°) Mantendo-se próximo, permanecendo na situação de
acompanhar aquele que obscurece a sua condição de liber-
dade para as suas ilusões. Quando se pretende ajudar o
outro, deve-se promover a aproximação, acompanhando
~ uele que está sob a ilusão, mas jamais escolhendo por ele;
(J Sendo cuidadoso e paciente para chegar onde o cliente
se encontra e começar por aí. A fim de desfazer a ilusão,
deve-se chegar até ele, para, então, poderem caminhar jun-
tos; mas, no momento da decisão, QJ?.!icoterapeuta dá um
Qasso atrás;
----...
110
Ana Maria Lopez Calvo de Feijoa

® Entendendo o que o cliente entende e a forma como


entende. Se assim não for, a ajuda de nada lhe valerá. Tudo
começa quando se pode entender o que o outro entende, e
a forma como entende;
6º) Assumindo uma atitude de humildade e colocando-se,
deste modo , na relação. Se, orgulhoso do conhecimento,
-ª.lltes de ajudar o outro, o ql!_e se deseja é ser admirado. O
autêntico esforço para ajudar começa com uma atitude hu-
milde. Aquele que ajuda deve colocar-se como desconhe-
cendo mais do que aquele a quem ajuda;
7º) Assumindo a responsabilidade pela atuação;
8º) Utilizando metáforas, quando estas se fizerem neces-
sárias. Interpretações poéticas, muitas vezes, ajudam
aquele que fala do seu sofrimento;
9º) Deve-se ser um ouvinte que senta e escuta o que o
outro encontra mais prazer cm contar, sem assombro;
10º) Apresentando-se com o tipo de paixão do outro homem:
alegre para os alegres, em tom menor para os melancólicos;
11 º) Não temendo fazer tudo isto , mesmo que na verdade
não se possa fazer sem medo e temor.
Acredita-se que, pelo processo psicoterapêutico, possa o
homem chegar a se reconhecer. Chegar à interioridade, através
da reflexão, significa desembaraçar-se dos laços da própria ilu-
são, o que também é uma modificação reflexiva.
Estabelecida a relação compreensiva, o psicoterapeuta já pode
arriscar mais no processo de comprometimento com sua própria
existência. É o momento de não tentar obscurecer a inquietação
própria da condição de reconhecimento de sua indeterminação
existencial: a angústia. E, assim, tentar manter uma atmosfera
para que o outro possa reconhecer o seu caráter de pecador -
logo, aberto para possibilidades. É o momento de mobilizar o

111
CAPITULO 1 Umil propoSlil cre ps1co1erap1a 1enomeno1og1co-ex1srenc1a1

desfazer da ilusão de que se é determinado quando se é liberdade;


de que as justificativas da existência se encontram no temporal
esquecendo-se da justificação no eterno; de que, no mundo, tudo
é possibilidade obscurecendo o necessário; de qu e a verdade se
encontra naqui lo que se diz e que, na ação, não se faz . E tudo
isto vai se dar no discurso psicoterapeuta-cliente.

'3.2 - O pe nsamento de Heidegger e a psicotera pia


Uma proposta p sicoterapêutica em uma perspectiva fen ome-
nológico-existenci ai articulou-se aqui, tomando em Heidegger
os seus fundamentos, como bem esclarece Sá (1995, p . 47): "Um
diálogo cri terioso com a obra de Heidegger muito tem a contri-
buir para que a clínica alcance uma compreensão m ais profunda
de seus próprios fundamentos."
Urna Analítica do Dasein tal como designada por Heidegger
abre, por sua vez, a possibilidade de uma clínica p sicológica que
trabalhe com as bases ontológico-existenciais a partir da proposta
de t ~ ia sem psiquismo e da tese fundamenta!_pres~te _
n · omenolog1a heideggeriana de que os problemas psíquicos
não são problemas da inte1~orwacfs ~ ão orgân~ _se-

____ __
_:_ da relação
d~ e t o existencial, _:_ ____
mântica interna - enfim, não são problemas do eu. São problemas
-
--,...t:..-----
ser-aí e mundo. A própria da-
seinsanálise, tal como assumida por Boss, consiste em uma ten-
-

ta ti va de pensar todos os problemas ditos psíquicos como


problemas da articulação ser-aí/mundo.

3.2.l - O desve lamento das possib ilidades


do se r-aí e a psicoterapia
Uma questão muito presente no âmbito da psicologia versa
sobre a real possibilidade de se arti cular uma clínica psicológica
a partir da fenomeno logia hermenêutica de Heidegger. A dúvida

112
1-\llcJ l"ldl ld LU~t:"L \...dlVU UC' 1 C' I JUV

acerca de tal possibilidade ocorre uma vez que este filósofo nega
totalmente a existência de um psiquismo. Ele questiona, também,
a pretensão de uma atuação modificadora do comportamento hu-
mano a partir de um posicionamento que toma o homem como
algo da ordem do natural, logo passível de uma modificação pela
ação direta. É o próprio filósofo da daseinsanálise, contudo, que
aponta para a possibilidade de uma clínica psicológica com bases
na fenomenologia hermenêutica; e isso em seus Seminários de
Zollikon (1987/200 1). Heidegger, em Ser e tempo (1927; 1989),
refere-se à analítica do Dasein como a análise ontológica das es-
truturas da existência humana. Os psiquiatras Ludwig Binswan-
ger e Medard Boss , inspirados no filósofo , vão denominar de
daseinsanálise o exercício desta analítica em uma perspectiva ôn-
tica - ou seja, na relação com problemas materiais.

3.2.1. 1 - O método fenomenológico


Husserl apresenta a atitude antinatural, própria à fenomenologia,
como possibilidade de uma visada não comprometida com a postura
ingênua que se deixa levar pela opinião já marcada por um modo
de ver presente no senso comum. Nessa atitude antinatural, ao invés
de se imergir em atos superpostos uns aos outros e de pressupor os
objetos como dotados em si mesmos de sentidos e dete1minações
essenciais acessíveis na pesquisa, o importante seria retomar ao
ponto de gênese dos atos e ao caráter intencional de sua realização.
A atitude antinatural tal como ass umida pela fenomenologia
com seu lema fun damental - "rumo às coisas mesmas" - pode
dar a impressão de que o que está em questão é o empírico, ou
seja, é deixar-se tomar pelas coisas da maneira como elas apare-
cem. No entanto, a questão aí implica a superação de todas as
tendências metafísicas que criam teorias acerca dos entes, esque-
cendo-se do sentido originário do ser. A orientação fenomenoló-

113
CAPÍTULO 3 Urna proposta de psicoterapia fenornenológico·existencia l

gica exige que se saia do campo empírico, que posiciona os ob-


jetos no espaço e no tempo, o que envolve a necessidade de se
deixar o campo emergir num gesto não-teorizante. Para tanto, é
preciso que, uma vez diante do fenômeno, se dê um passo atrás
e se retorne ao seu correlato cooriginário.
Husserl propõe o abandono da atitude natural por uma atitude
antinatural: temos aqui a noção de epoché - a suspensão desta
atitude natural. O que ele nos ensina é que precisamos deixar de
tomar a verdade com referenciais e categorias hipostasiantes,
como se as coisas fossem estruturadas naturalmente, dando a
idéia falsa de que se conhece a verdade.
Heidegger, inspirado por Husserl, adota o método fenomeno-
lógico como atitude de investigação do fenômeno. "Método",
aqui, é entendido no sentido grego, como a busca daquilo que
vem depois do caminho. Na ciência moderna, entende-se como
representação; na fenomenologia é o sentido./). i~ ã o fe-,

S2!§
__.. --
nomenológica em Heideggg_p!QPÕe-se a buscar' o fenômeno nos
m01lõs-de-e:~1~licitação - s.9~aparên_cja, na manifesta~ão
-
~ F l tr errh:rlham-eat-0,,__
Este método também vai consistir no modo de investigação
que se dará na própria relação psicoterapêutica. Parte-se do prin-
cípio de que não é o método com seus parâmetros que conduz:
aquele que se investiga é que traça o caminho da investigação.
O psicoterapeuta, pautado na proposta da fenomenologia, vai
esti ação do homem em relação deixando ue o_
que se mostra, fa a-o a seu modo próprio, e a p,ar.tü:...de si mes~
Este método, em psicoterapia, vai seguir os seguintes aspectos,
propostos por Husserl e adotados por Heidegger:
- "Às coisas em si mesmas": o psicoterapeuta vai se dire-
cionar àquilo que se mostra em si mesmo, que se deixa ver,
a própria revelação do ser. As coisas que se deixam ver.

114
Ana Maria Lopez Calvo ele Feijoo

- Evidência, tal como tomada na acepção de Heidegger


nos Seminários de Zollikon :

Evidente ( 0/fenbar) significa, se tomarmos


seu signifi cado mais claro e o desdobrar-
mos, algo como notório, evidente, que vem
de evideri, deixar-se ver, em grego eva-
pyns, iluminar brilhantemente, mostrar-se
a si mesmo. (HEIDEGGER, 1987, p. 12)

~~ nômeno: o psicoterapeuta vai buscar o que se mos-


tra, sem nenhuma perspectiva de demonstração.
\ ~ As estruturas da experiência: explicitam-se e são com-
~ eendidas, portanto não se explicam, nem se comprovam.
~ A transparência: o psicoterapeuta facilitando que o ser
transpareça e não o deduzindo segundo uma perspectiva
teórica, vai deixar que o sentido se mostre.
-A compreensão da existência : a existência, enquanto fe-
nômeno, é captada indiretamente, mas não por um mundo
interno desconhecido, porém pelo seu modo próprio de
mostrar-se. O "ser em si" não se esconde atrás de aparên-
cias , o fenômeno é apreendido através de perspectivas, na
medida em que se desvela.
Heidegger, atento ao modo de investigação, não pretende ca-
racterizar o objeto, mas buscar o seu modo de expressão. Pre-
tende, ainda, apreender o s entido via interrogação e, então,
desvelar o ser-do-ente, que permaneceria oculto, quanto mais a
preocupação consistisse em aprisioná-lo para conhecê-lo.
A clínica psicológica, nesta proposta, recorre à investigação
do modo de ser do homem, ser-aí o considerando não como uma
unidade fechada, com algumas características que a definam. A
busca se dará na forma do se mostrar do ente, podendo até mos-
trar-se como não é : aparência . Pode mostrar-se, ainda, através de

11 5
,...,..., ,,v1...v .1 v1 , ,u IJIVIJVJIV -.,,.__ p., , ,._..,,.,.,.,..,..,,...., ,.,. , , .., , ,..,..,.,, .... b, ....... .... , .. .,., .... , ... ,~.

indicações de coisas que, em si mesmas, não se mostram, apenas


se anunciam: manifestação. Pode, ainda, mostrar-se e ao mesmo
tempo esconder-se - o que Heidegger denomina "entulhamento".
Heidegger propõe que, na investigação do ser, se p arta da-
quilo que é evidente rumo à fundamentação. Assim procede o
psicoterapeuta, quando tenta elucidar o dito do cliente. Este, em
sua fala, traz evidências do seu sentido e, somente quando tais
evidências são aceitas por ele próprio, o psicoterapeuta pode pro-
ceder às suposições. Pode-se, porém, levantar a seguinte questão :
como explicitar o sentido, para que ele possa ser aceito como
evidente? Heidegger propõe que se deixe h·ansparecer o sentido
do ser através de seus momentos constitutivos: o questionado, o
perguntado e o interrogado.
Em psicoterapia, busca-se o sentido daque le que se apresenta
em estado de queda, tomando-se como algo que é determinado
apenas pelo impessoal: o interrogado. Quanto ao questionado,
ou seja, este homem que se perde de si mesmo, aí se dá a procura.

~ ---tal qual ele se mostra j;jndi_ca_o


O analista desta orientação deve busca!.,9-lnedo própi:io cle ace-sso
ªº ser questionado, pela forma
caminho. Cabe ao analista reconhecer que ele e o analisando
_ estão inseridos no hori zonte histórico em que se encontram .
Logo, partem de visões e posturas prévias, naquilo que consiste
. os seus modos de ser. Interroga-se o próprio ente em seu ser; aqui
se dá a estrutura escuta e fala, assegurando-se um modo propício
de acesso ao sentido articulado pelo analisando. Este modo de
investigação jamais passa por um processo dedutivo, porém des-
critivo. Ao partir da dedução, cons idera-se o não-evidente e o ser
será conhecido por características escondidas. Ao se mostrar, será
conhecido apenas o que se mostra, sem nada existir por tF_ás.

116
3.2 .1.2 - A hermenêutica e o círculo hermenêutico
A hermenêutica, em uma perspectiva metateórica, tomada
como processo de compreensão, constitui-se no círculo herme-
nêutico tal como proposto por Heidegger, em que o próprio su-
jeito da compreensão está inserido no círculo, por sua condição
originária de pré-compreensão.
Heidegger (1990) concorda que a hermenêutica, convenien-
temente ampliada, pode designar a teoria e metodologia de qual-
quer gênero de interpretação. Afirma, ainda, que emprega o
termo hermenêutica em Ser e tempo numa tentativa de determi-
nar a sua interpretação a partir do que é hermenêutico. Continua:

[... ] a denominação 'hermenêutica' é empre-


gada em Ser e tempo em um sentido mais
amplo; porém, mais amplo não significa
pura e simplesmente ampliação do mesmo
significado a um âmbito de validade ainda
maior. 'Mais amplo' significa: procedente
daquela amplitude que brota da essência ori-
ginária. (HEIDEGGER, 1990, p. 89)

No que se refere à hennenêutica , colocar-se-á em cena a noção


de círculo hermenêutico tal corno discutido de forma radical por

---------
Heidegger. Essa noção é aqui introduzida como princípio funda-
mental de uma clínica psicológica. O círculo hermenêutico é a ideia

--
de g~ nunca há _: possibilid~ nterpretativa~ a existência q~ nã~
seja a partir de um horizonte fático sedimentado, no qual sempfe
- -
_,_)
há uma visão prévia, uma conce ~,ãO_Jlrévia e uma posição prévy .
Na análise existencial, o que está em discussão é o como romper
círculo hermenêutico que aprisiona o ser-aí em comportamentos
sedimentados no impessoal. Rompimento que consiste na possibi-
lidade de, diante de uma experiência-limite, suspender o poder
prescritivo do horizonte hennenêutico em que estamos inseridos.

11 7
CAPÍTULO 1 Uma proposta de psicoterapia fenomenológico-existencial

Desta forma, pode, então, a hermenêutica ser utilizada em psi-


coterapia, substituindo a interpretação psicodinâmica da psica-
nálise e a explicação behaviorista. Nas palavras de Sá:

No caso da clínica, apesar de muitos prin-


cípios da hermenêutica terem aplicação di-
reta, isto não significa que ela deva
constituir-se em uma nova teoria clínica ao
lado de outras. Seu papel deve ser, antes de
tudo, fornecer um apoio metateórico para
que o psicoterapeuta tenha uma relação
mais livre, isto é, mais crítica e transdisci-
plinar com seu campo propriamente teó-
rico. (SÁ, 1998, p. 31)

Na própria afirmativa de Heidegger (1990, p. 113), "é a fala


que dá voz à hermenêutica." E ainda: "A fala é o traço fundamental
da relação hermenêutica do homem com a duplicidade do ser-aí e
do que é presente." O processo de escuta e fala em psicoterapia
vai tomar a hermenêutica como modalidade de compreensão.
Compreensão como originariamente constitutiva da existência hu-
mana e que precede qualquer interpretação . "Interpretar é elaborar
e tematizar o previamente compreendido." (SÁ, 1998, p. 30)
O psicoterapeuta, assim como Hermes na mitologia grega,
atuará como mensageiro da palavra. Da mesma forma que Her-
m es, o psicoterapeuta não vai ocupar a casa do outro, morada do
ser, mas vai habitá-la para, então, poder entender o que o outro
en tende. Acompanhará aquilo que o cliente revela na sua fala,
mesmo quando silenciar. Direcionar-se-á de acordo com aquilo
que lhe é dado, agindo em um espaço de expressão livre. O psi-
coterapeuta compreende o outro e isto consiste em captar a in-
terpretação de mundo que o outro é. Abre, então, possibilidades
para o próprio se questionar em seu ser mais próprio. O psicote-
rapeuta, ao se permitir pensar sobre o "modo do diálogo", possi-

118
Ana Maria Lopez Calvo de Feijoo

bilita o emergir do ser-do-ente, de forma que a fala se dê em li-


berdade, como possibilidade do ente.

3.2 .1. 3 - A questão da técnica


A psicoterapia, entendida em uma perspectiva prática, na qual
as pessoas que buscam esta modalidade de tratamento acreditam
dele extrair resultados , não poderia ser tomada como técnica, no
sentido moderno? "Sim" e "não".
"Sim", quando a psicoterapia se pauta em uma perspectiva
positivista, humanista, subjetivista, que consiste em técnicas,
cujos resultados visam à produtividade, à adequação com a exi-
gência da "public-idade", do impessoal. "Sim", quando a psico-
terapi a se pauta na extração dos recursos de que o homem dispõe
para atingir o sucesso socialmente determinado com o tal. E
"sim" com a psicoterapia estru turada como utilidade prática.
"Não", quando se trata da técnica em uma perspectiva de
apreensão daquilo que se produz a si mesmo , deixando que o ser-
aí venha à presença tal como se constitui no seu modo de ser.
Trata-se, aqui, da psicoterapia como um tornar manifesto o que
é presente. Não importam, nesta perspectiva, os resultados, em-
bora se pense em consequências, pelo modo de articular o mundo
em liberdade, assumindo suas próprias escolhas, seu caráter de
poder-ser. O psicoterapeuta vai atuar como um facilitador, cuja
produção vai consistir em deixar aparecer o que se oculta, tal
com o um escultor - no mármore - deixa aparecer uma forma,
constituindo a arte de desvelar o oculto . ·
A psicologia clínica em uma perspectiva fenomenológico-
existencial possibilita um pensamento meditante, abrindo a pos-
sibilidade àquele qu e, em angústia, clama pelo seu p oder-ser
mais próprio, de reconhecer-se como ser-p ara-a-morte pois, ao

119
1• ~,. , _ .,,,.. l"',#'"''' "''VJ•' '-'' ICIIVlllt:IIVl\..,b,\,. V 1..Ãl~i\.:'JI\.IQI

encontrar-se perdido no impróprio, obscurece a sua possibilidade


mais própria . Neste querer-ter-consciência, pode descobrir-se em
sua liberdade, tanto no que se refere à utilização das coisas, como
no seu próprio fazer-se no mundo. Pode, ainda, descobrir sua se-
renidade no "inútil", e não ansiar para se tornar um objeto de uti-
lidade, para adequar-se às exigências do mundo do das Man
Nesta perspectiva, a psicoterapia - como pensamento medi-
tante e não-calculante - seria ela própria uma meditação, mesmo
sendo apontada pela sociedade atual como um processo "inútil".
O psicoterapeuta, no lugar de artesão, atuaria como tal na criação
de um discurso libertador, no qual residiria sua criação, permitindo
que aquele que deseje se reencontrar dê-se a conhecer.

3.2 .Z - A ontologia de Heidegger e os fundamentos de


uma proposta em psicoterapia
Trata-se de uma psicoterapia como um remeter-se a uma aná-
lise do existir na dimensão da analítica da existência. A proposta
consiste, então, em trazer a ontologia de Heidegger para uma re-
lação dialogal. Em Zollikonner Seminaire, que resultou de semi-
nários coordenados por Medard Boss, Heidegger permite pensar
na possibilidade de trazer sua filosofia para a psicoterapia:

Empregamos a psicologia, a sociologia e a


psicoterapia para ajudar o homem a ganhar
adaptação e liberdade em seu sentido mais
amplo. Isso diz respeito à medicina e à so-
ciologia, porque todo o distúrbio socioló-
gico e patológico é um distúrbio da
adaptação e da liberdade do homem singu-
lar. (HEIDEGGER, 1987, p. 199)

Em Ser e tempo, Heidegger refere-se ao ser-aí como uma tota-


lidade estrutural que se mostra na cotidianidade mediana, imprópria

120
e impessoal, porém sempre como abe1iura para possibilidades de
outras formas de expressão, quais sejam pessoais, próprias e sin-
gulares. Ser-aí constitui-se em um ente aberto às possibilidades -
Jogo, em liberdade em seu modo de ser. Constitui-se, então, no jogo
do impróprio e do próprio. Na verdade, nada se estmtura como de-
finitivo, pois é o próprio caráter de abertura, que abre sempre às
possibilidades - tanto em direção à autenticidade como à inauten-
ticidade. Ao modo da impessoalidade e da inautenticidade, o ser-aí
tende ao fechamento. Os limites de sua abertura para o mundo res-
tringem suas possibilidades. Em fechamento, o homem esquece-se
do seu poder-ser e reconhece-se como presença à vista.
Na duplicidade "ente e ser", ser-aí pode esquecer-se do ser e
tomar-se como ente. Perdido no ente, escolhe o modo como o im- i/
pessoal determina que deva escolher. No mundo do das Man,
perde-se no impessoal, no impróprio e no inautêntico. Esquece-
se de sua liberdade de escolha das possibilidades e passa a viver
no "É". ·"É" apenas as propriedades que o mundo lhe atribui. "É",
apenas no conformismo da massa, mais uma "ovelha no rebanho."
Ser-aí, no movimento do ser e ente, clama, tomado pela an- 1
gústia por ser si próprio, pessoal e autêntico, que implica, em úl- \
tima instância, reconhecer-se como um poder-ser que ruma \
sempre para a finitude. Tal clamor ocone, mesmo que na forma
de estorvo e inquietude, mesmo que silencioso ou disfarçado nos
afazeres cotidianos. Incomoda, mas abre a possibilidade de uma
escolha singular. Muitas vezes, ainda esquecido de sua liberdade,
o homem justifica-se pelas situações exteriores: o governo, os
pais, o inconsciente, enfim. Outras vezes, no entanto, o incômodo
o mobiliza, e aí vai em busca de sua possibilidade mais própria\
seu poder-ser.
Na busca de cuidado, pode-se procurar um médico, um feiti-
ceiro ou um psicólogo. O médico, normalmente, confere o mal

121
CAPÍTULO 3 Uma proposta de psicoterapia fenomenológico-existencial

ao corpo, exime o que o procura da responsabilidade e dele se


preocupa no modo substitutivo. O feiticeiro também vai se preo-
cupar deste mesmo modo. O psicólogo, por sua vez, pode modi-
ficar as contingências e o comportamento, ou ainda atrelar a
questão trazida aos motivos inconscientes. Pode também, na an-
gústia, buscar a questão que ali se encontra. Nas duas primeiras
modalidades de atuação, ocorre sob a tutela do psicólogo, que
substitui o cliente decidindo pór ele; na última, a relação se es-
tabelece de modo que o psicólogo dê um passo atrás e devolva
ao cliente o cuidado de si.

3.2 .2. l - O ser-em: a escuta e a fala em psicoterapia


Nos Seminários de Zollikon, Heidegger refere-se à psicologia
como uma proposta para ajudar o homem a ganhar sua liberdade.
Diz, ainda, que é a angústia que lança o ser-aí frente a frente com
sua liberdade e responsabilidade, tentando romper com o circulo
hermenêutico em que este se encontra.
Ao se tomar o eu como abertura, ausência dinâmica em jogo
com o mundo, e ao se assumir a fenomenologia hermenêutica
como atitude interpretativa frente ao fenômeno, passa-se a esta-
belecer uma outra articulação para a psicologia a partir da feno-
menologia e da hermenêutica. Inaugura-se, então, uma outra
atuação clínica, ou seja, um novo comportamento clínico que,
inspirado em Heidegger, recebe a denominação de daseinsaná-
lise. Para se proceder a uma clínica fenomenológica, parte-se do
pressuposto de que toda e qualquer teoria acerca da existência
humana deve ser suspensa para que, assim, seja possível se apro-
ximar do fenômeno - no caso, a questão trazida pelo paciente,
atendo-se a todo o detalhamento de como se dá o acontecimento
em questão.

122
Ana Maria Lopez Calvo de Feijoa

Em uma postura hermenêutica, consideramos os horizontes


hermenêuticos que estarão sempre presentes na situação clínica,
e o que de fato se interpreta são os encontros de horizontes, que
consistem precisamente no que se fala e ~e escuta. Este choque
de horizontes é o horizonte mesmo de apreciação do que acon-
tece no encontro clín ico, ou sej a, da apari ção da coisa.
A tarefa de uma clínica "daseinsanalítica" consiste, primeira-
mente, no fato de que o anal isando precisa ser o mais preciso
possível em suas descrições e o analista deve, incessantemente,
atentar para as interpretações do paciente, tentando, assim, al-
cançar uma compreensão daquilo que está em jogo na descrição
do analisando. Em continuidade a esta tarefa, precisamos, tam-
bém, quebrar ou destruir os comportamentos onto lógicos presen-
tes nas descrições do analisando. Esta clínica consiste em abrir
m espaço para que o outro se conquiste em sua alteridade. Abrir
espaço, sem conduzir; traduzir, sem mapear um caminho que leve
a algo como uma conscientização.
Em uma visada hermenêutico-fenomenológica, o problema
consiste no aprisionamento em nossas histórias, nos modos como
vamos sufocando não o problema que temos, mas o problema
que "nós" somos. A tarefa de uma clínica fenomenológica con-
siste em quebrar o aglomerado de vivências que se dão na mis-
tura de campos intencionais e que provocam a quebra do fluxo
do tempo do eu. E, assim, possibilitar que o instante e lugar do
acontecimento se deem. Levamos o analisando a aperceber-se
das suas vivências próprias e a co locar-se diante do campo in-
tencional em que o fenômeno se constituiu. O caminho da feno -
menologia, como atitude de investigação dos modos de ser do
homem, na hermenêutica de Heidegger, busca o modo como este
homem articula sentidos, que se mostram em sua fala. A escuta
do psicoterapeuta vai se dar no desvelar desses sentidos, atuando

123
CAPÍTULO J Uma proposta de psicoterapia fenomenológico-existencial

de forma a captar a expressão do ser-em em seu falatório, curio-


sidade e ambiguidade.
A investigação de si por si mesmo pode ocorrer na relação
psicoterapêutica, em que o psicoterapeuta vai assumir o lugar de
mensageiro do discurso do cliente, em um processo mútuo de
corresponder e "des-prender", tal como entendidos por Heideg-
ger (1990) em sua perspectiva ontológica. No corresponder, a
fala se desprende quando escuta. No des-prender, a escuta se dá
simultaneamente com o responder. Compreende-se que é assim
que se dá o processo de "escutas e falas" do psicoterapeuta e do
cliente.
Em uma psicoterapia na perspectiva. ora proposta, a articula-
ção se dá na busca do sentido do homem que se mostra em sua
fala. Na escuta do psicoterapeuta, vai se dar a investigação desse
sentido, atuando de forma a captar a expressão do ser-em em seu
falatório, curiosidade e ambiguidade. Ao modo da disposição, da
compreensão e do discurso, ser-aí em sua impropriedade revela-
se como ambiguidade, curiosidade e falatório. Através da articu-
lação do processo psicoterapêutico, o psicoterapeuta poderá
então, através de sua fala, facilitar o reconhecimento do poder-
ser. O processo psicoterapêutico consiste no tecer das palavras
(CANCELLO, 1991), segundo um corresponder, como entendido
por Heidegger: um falar que se des-prende quando escuta, e em
um des-prender - escuta, ao mesmo tempo em que responde
(HEIDEGGER, 1990).
Heidegger diz em Ser e tempo que a conexão do discurso com
a compreensão e sua compreensibil idade torna-se clara a partir
de uma possibilidade exis tencia l iminente ao próprio discurso,
qual seja, a escuta. Discurso e escuta se fundem na compreensão
e o homem se mostra como ente que é no discurso .

124
Ana Maria Lopez Laivo de re1Joo

Convém lembrar que, na psicologia, a fala é considerada o


instrumento fundamental na tarefa do psicólogo. Alguns teóricos
desta área do saber enfatizam a importância daquilo que é ver-
balizado. Monique Augras afirma ser a linguagem o instrumento
de que o homem dispõe para explicitar sua situação. Diz, ainda:

A fala, pelo seu caráter físico e abstrato, in- '


terpretativo e manipulador, concentra em
si todas as modalidades de formulação e
atuação do ser no mundo. Para atender ao
objetivo inicialmente proposto, qual seja o
de encontrar na situação existencial subsí-
dios para estabelecer uma compreensão in-
dividual, o questionamento da linguagem
afirma-se como meio necessário à investi-
gação. (AUGRAS, 1981, p. 146)

3.2.2.2 - Testemunho. débito. angústia e ser-para-a-


rnorte
Constitui-se como próprio do ser-aí o estar-em-débito. A de-
cisão antecipadora reconhece o estar-em-débito como algo que
a constitui, quando ser-aí se reconhece na transparência e na
abertura do seu ser mais próprio.
Ser-aí, na decisão antecipadora, responde ao clamor da cons-
ciência do seu "poder estar-em-débito" como mais próprio e irre-
missível. Na fuga desta situação, de si mesma, frente ao caráter
ameaçador daquilo de que se foge, ser-aí cai no impessoal, no
mundo das ocupações. Foge da estranheza de si mesmo que, no
entanto, não se firma pois na estranheza, no modo de angústia,
ser-aí singulariza-se, retirando-se da de-cadência, alerta para o
impróprio e clama para o mais próprio . Ser-aí, no entanto, precisa
do testemunho de um "poder-ser-si-mesma" que, enquanto pos-
sibilidade, é sempre si mesma. A consciência pode tornar-se tes-
temunho de si mesma, e assim se faz no seu clamor "voz da

125
CAPÍTULO 1 Uma proposta de psicoterapia fenomenológico-exisrencial

consciência", abrindo a possibilidade de escuta. Tem-se o querer-


ter-consciência, onde transparece a totalidade estrutural: cuidado.
O querer-ter-consciência. como modo_de abertu_r.a, s~c_o ~ i
na disposição, compreensão e disc~so. A psicoterapia deve, no
mínimo, não atuar para dissipar esta tonalidade afetiva para que,
uma vez o analisando se abrindo para sua estranheza, possa per-
mitir o surgimento de uma escolha singular, retirando-se, nem que
seja por um momento, da compreensão di tada pelo "impessoal"
que, obscurecendo as possibilidades, ser-aí dá-se ao modo do es-
paçamento, medianidade e nivelamento . Modos pelos quais ser-
aí se encontra no início e na maioria das vezes. No espaçamento,
o ser-com se constitui com os outros; na medianidade, o ser-com
desconhece a s i e aos outros; no nivelamento, suas possibilidades
nivelam-se com as de todos. Em uma narrativa fenomenológica,
importa o modo como uma hermenêuti ca-fenomenológica vai se
dando, em um horizonte fundido, abrindo espaço para que o ana-
lisando apareça para si mesmo. Ao se abrir para o ser-para-a-
rnorte, suas possibilidades mais próprias são assumidas. Desta
forma, não encobre nem foge da morte, porém compreende sua
própria possibilidade, como certeza de seu ser-para-o-fim .
A compreensão existenciária, que proj eta o ser-aí para as pos-
sibilidades cada vez mais próprias do "poder-ser-no-mundo",
constitui-se no humor da estranheza de sua singularidade. ~
querer-ter-consciência na dispos ição da angústia, que se abre
--
-- - - --
para o discurso originário. O silêncio, retirando a palavra do fa-
--
latório, mostra o estar-em-débito, conduzindo o si-mesmo à com-
preensão, afastando-o da curiosidade do impessoal.

3.2.2 .3 - O cuidado: a relação psicoterapêutica


O cuidado constitui-se como a totalidade da unidade estrutu-
ral do ser-aí, constitui-se no pôr-se para fora, movimento do exis-

126
Ana Maria Lopez Calvo ele Feijoa

tir. O cuidado como processo de constituição do ser-aí se dá no


acontecer, isto é, no tempo. Cuidar constitui-se no exercício da
pre-ocupação com o acontecer. Portanto, pode-se falar do ocu-
par-se do acontecer no seu sentido mais próprio do "pre" - ou
seja, do ser como cuidado.
A psicoterapia aqui proposta se dá no sentido do acompanhar
esse acontecer. T.!_ata-se de uma psicotcr11pia-cg;i_que_o-..115_ic.ote.ra-
-peuta pa1ticipa do acontecer do cliente. O ser do ser-aí se constitui
como um ser-com. Neste modo de ser, já está presente a condição
de compreensão dos ouh·os. O modo originário de ser-com possibi-
lita ao ser-aí o conhecimento e o reconhecimento do outro. E é este
mundo compa1tilhado que abre espaço para a psicoterapia. Encon-
h·a-se aí o círculo hermenêutico - consiste na idéia de que nunca há
a possibilidade interpretativa da existência que não seja a partir de
um horizonte fático sedimentado, no qual sempre há uma visão pré-
via, uma concepção prévia e uma posição_Q!'évia. Na daseinsanáli~
!? que está em discussão é o como romper o círculo hennenêutico
que aprisiona o ser-aí em cornp01tamentos sedimentados no impes-
~l. Rompimento que consiste na possibilidade <le, diante de uma
experiência-limite, suspender o poder prescritivo do horizonte her-
menêutico em que estamos inseridos. A questão que se impõe é:
como se dá a relação psicoterapêutica na perspectiva fenomenoló-
gico-existencial? Toda e qualquer relação é cuidado. E, à relação
que o ser-aí estabelece com outros providos do mesmo caráter de
abertura, Heidegger denomina preocupação. A pre-ocupação se
apresenta também em duas possibilidades: pre-ocupação substitu-
tiva e anteposição libertadora. Sá ( 1999) refere-se a essas duas for-
mas de pre-ocupação como possíveis na atuação psicoterapêutica.
Na pre-ocupação substitutiva ou substituição dominadora, a psi-
coterapia se daria através do domínio do outro. As técnicas, neste
caso; visariam a resultados, e o cliente seria dominado e submisso

127
CAPÍTULO '3 Uma proposta de psicoterapia ienomenológico-existencial

à técnica, no sentido moderno de recursos a serem explorados. Neste


modo de preocupação, o psicoterapeuta assume a tutela do outro,
onera-se do cuidado do outro e lbe diz o que deve fazer. Na pre-ocu-
pação ele anteposição ou antecipação libe1iadora, a relação psicote-
rapêutica se funda na liberdade de escolha por parte daquele que
clal11a pelo seu ser mais próprio) ou seja, pelo seu caráter de poder-
ser. Segundo Heidegger (1986, p. l74), "ajuda o outro a tomar-se
c1n sua cura, transparente em si mesmo e livre para ele." Aqui, are-
lação se constitui como técnica, no sentido originário de desvela-
mento, e o psicoterapeuta desonera-se do cuidado que sempre é do
outro e dá um passo atrás, deixando o outro sob a sua própria tutela.
O mundo próprio constitui-se com suas próprias possibilida-
des e limites. A psicoterapia, nesta perspectiva, não pensa em ter-
mos de realidade, mas de possibilidades. O psicoterapeuta
prossegue no cuidado com o cliente na abertura de caminhos,
restabelecendo o movimento como acontecer.
A clínica "daseinsanalítica" se estabelece muito mais em uma
negatividade do que propriamente de uma identidade positiva. O
ser-aí que, marcado pela nadidade e pela fragilidade ontológica,
busca a estabilidade do mundo - que se constitui em um apoio,
suporte e tutela. Mas é exatamente esta busca que o coloca na ca-
dência do mundo: esquecendo-se do seu próprio ritmo, acaba obs-
curecendo o seu caráter de poder-ser. São as situações-limite que,
ao entrarem na articulação do ser-aí e muudo, rompem com os
sentidos sedimentados no círculo hermenêutico e o vazio aparece,
e no nada padece. A augústia emerge como um mobilizador exis-
tencial que, imediatamente, abre duas possibilidades: na tentativa
de livrar-se da angústia) o ser-aí ou bem retorna a tutela do mundo
e volta àquilo que lhe é familiar, ou bem concretiz_a-se no poder-
ser, singulariza-se - o que consiste na perda, nem que seja por um
instante, da tutela do mundo.

128
CAPÍTULO 4

Metodologia

A investigação acerca da estrutura da escuta e fala em psico-


terapia ocorreu em duas etapas. Na primeira, foi utilizada a fe-
nomenologia como modalidade de investigação, em que a coleta
e análise das iuformações obtidas deram-se de forma qualitativa.
A partir do estudo atento de diferentes sessões psicoterapêuticas
realizadas por quatro psicoterapeutas' que atuam com base nos
pressupostos fenomenológico-existenciais, averiguaram-se as es-
truturas fundamentais subjacentes na relação psicoterapêutica.
A segunda etapa da investigação consistiu em urna investiga-
ção fenomenológica de um diálogo clínico. Foram cuidadosa-
mente estudadas cada "fala e escuta" do psicoterapeuta e do
cliente. A partir de uma leitura detalhada, pôde-se acompanhar o
modo como se dá uma psicoterapia pautada na fenomenologia
hermenêutica corno modalidade de compreensão, esclarecendo
as estruturas fundamentais obtidas na primeira etapa e articu-
lando-as com a fundamentação filosófica.

4 Os psicoterapeutas colaboradores desta pesquisa foram: Myriam Protasio, Ber~


nadete Medeiros Lessa, Luciana Oliveira e Rita Luzia Nielsen.

129
CAPÍTULO 4 Metodologia

4.1 - O método fenomenológico


Utilizou-se o método fenomenológico em um primeiro mo-
mento, por considerá-lo um recurso apropriado para investigar o
sentido da experiência - no caso, em psicologia clínica e) mais
especifica1nente, no processo de escuta e fala que ocorre em psi-
coterapia, importando chegar à identificação das estruturas sig-
nificativas que compõem este processo. Como afirma Augras
( 1981, p. 23): "A investigação fenomenológica propõe-se a iden-
tificar estruturas significativas, a partir da observação das ima-
gens elaboradas pela vivência cotidiana."
As sessões psicoterapêuticas investigadas foram gravadas e
transcritas, diferindo quanto à essência da problemática levada
à terapia. Os psicoterapeutas participantes deste estudo atuavam
na perspectiva fenomenológico-existencial. Iniciou-se esta in-
vestigação com quatro psicoterapeutas. No entanto, no decorrer
da pesquisa, outros psicoterapeutas 5 trouxeram suas sessões, que
acabaram por contribuir para a análise realizada.
Os dados referentes às sessões foram analisados através de
uma proposta fenomenológica da análise com a apuração dos
significados que estruturam o processo psicoterapêutico. Atra-
vés das reduções fenomenológicas, puderam-se destacar as uni-
dades de significados implicadas no processo psicoterapêutico,
uma vez que a redução consiste na busca do sentido, partindo
do significado.

5 Sanitella Cappola Defelippe, Elaine Lopez Feijoo, Thays Babo, Cristine Mon-
teiro, Valéria Barbosa, Patrícia Rio, Elaine de Oliveira e Ana Margarida Chagas.

130
Ana 1'1aria Lopez Calvo de Feijoo

4.1.1 · A análise fenomenológica


A pesquisa seguiu as etapas propostas por Brice (1991), que
também as utilizou ao investigar a estrutura do luto materno, As
fases) respectivamente, são:
1ª) dedução de unidades significativas, através do sentido
da totalidade e da complexidade que aparecem nos discur-
sos psicoterapêuticos;
2ª) delineamento dos aspectos centrais expressos nas uni-
dades de significado;
3') descrição das temáticas principais do processo psico-
terapêutico;
4') descrição estrutural situada do processo de escuta e de
fala, bem como dos elementos constitutivos deste pro-
cesso;
5') caracterização estrutural geral.
As falas constituem as unidades de significado, destacadas
através das questões que aparecem em algumas relações psico-
terapêuticas. Os seus aspectos centrais foram devidamente deli-
neados e suas temáticas descritas no modo em que apareceram
no proc~sso. O destaque foi dado às formas como aparecem tais
questões e às possibilidades de atuar do psicoterapeuta até a ca-
racterização geral de um processo de escuta e fala, que possibilita
conhecer mais do ofício do psicólogo.

4.1.1.1 · A fala do cliente

A investigação, em um primeiro momento, ateve-se à fala dos


clientes. Delas foram extraídas algumas temáticas que ocorrem
no contexto psicoterapêutico, a título de ilustração. Algumas pos-
síveis senain:

131
CAPÍTULO •I Metodologia

a) Culpa existencial - o cliente mostra no seu discurso a


culpa existencial de várias maneiras. Aparece, por exemplo,
corno lamentação das possibilidades que não foram escolhidas,
da seguinte forma: Ah! Se eu tivesse ... _A queixa fica em torno da-
~ ilo do qual outrora se abriu 1:;!.o.
A culpa existencial pode ser exemplificada pela fala de uma
mulher de 44 anos que se queixava de depressão da seguinte
forma: Quando, casei, meu marid,o me proibiu de estudar. Falou:
ou estudo ou casamento. Eu casei e hoje fico muito triste porque
não sou a advogada famosa que eu sempre quis ser. Ah! Que ar-
rependimento. Ah! Se eu tivesse estudado, hoje não estaria
aguentando marido efilhos.
Na visão existencialista, a culpa existencial caracteriza-se pelº-
aprisionamento do existente aos acontecimentos passados. Assim,
não se lança para o futuro. A culpa, para Kierkegaard, se dá pelo
fato de a liberdade não ter sido exercitada em suas possibilidades.
Para Heidegger, trata-se do débito que, sob a forma de lamenta-
ção, clama pelo devir como ser mais próprio. O psicoterapeuta
traz à tona a expressão do cliente, mobilizando-o a assumir o ca-
ráter de liberdade de escolha e, também, clarifica para este que, à
medida que se lamenta, permanece na mesma escolha. Um exem-
plo da fala do psicoterapeuta: Parece que, no ppssado, você optou (
pelo casamento e, hoje, você se lamenta pela escolha do passado. }
b) Medo existencial - expresso pelo cliente através da par.a-
~ ão no Jlresente. Acreditando-se não escolhendo, crê que não
corre risco, por imaginar que, desta forma, controla a imperma-
nência da existência. Um relato de urna mulher de 54 anos, em
dúvida entre .dois relacionamentos: Eu não vou me encontrar com
ele, não sei o que pode acontecer. Tenho medo do que vou ouvir:
Prefiro esperar que as coisas se resolvam por si mesmas. En -
quanto isto, fico sozinha, mesmo temendo a solidão.

132
Ana Maria Lopez Calvo de Feijoo

c) Angústia existencial - sentimento de estranheza, da inquie-


tude, onde se fala: "um não-sei-o -quê", que traz o querer-ter-
consciência. Não querer ter consciência, trata-se de um engodo,
fadado a vivenciar a angústia em plenitude, porque se sabe esco-
lhendo, porém se justificando pelo medo, pelo pânico, pelo outro
que impede. Sente como se sua liberdade não lhe pertencesse, em-
bora sabendo de sua pertença. Relato de uma mulher de 30 anos:
É um mal-estar, sinto que não eslf!U bem, mas não tenho do que
reclamar, meu casamento, meus filhos, tudo está bem. Mas eu me
sinto estranha como se as coisas não estivessem bem na minha
vida. O psicoterapeuta existencial atua mantendo a angústia frente
àquilo que sustenta a questão, não facilitando a fuga para o im-
pessoal. Pode atuar da seguinte forma: Mesmo que tudo em torno
de você esteja bem, em você mesma as coisas vão mal.
d) Perda no impessoal - perde-se o próprio referencial, quer a
tutela do mundo. ~ discurso compõe-se pela incapacidade de tomar
decisões: pergunta sempre ao outro sobre como deve agir, inclusive
ao psicoterapeuta. Sente-se pe1turbado pelas observações do outro a
seu respeito. Como um barco à deriva, sente-se feliz frente ao elogio
do outro e infeliz frente à crítica. Sua ação é mediada pela insegu-
rança e suas possibilidades, desconhecidas. Afasta-se de seu ser mais
próprio, na medida em que se perde no impróprio, no impessoal.
Uma cliente queixando-se de suas filhas: Elas não cuidam bem dos
seus filhos e eu sofro por isto, afinal, são meus netos. O que você me
aconselha afazer? Eu li na revista que a experiência da avó deve se
fazer valei'. Eu não sei, mas você, que é psicóloga, deve saber.
A perda do próprio referencial é revelada pelo pleno desconhe-
cimento do seu sentido, do seu projeto, desconhecendo, também,
os próprios referenciais. O existente fica à mercê do que lhe dizem,
das normas que lhe são impostas. Perde-se no mundo, não sabe o
que é seu e o que é do outro. O psicoterapeuta, nestas situações,

133
CAPÍTULO 4 Metodologia

pode atuar de fo1IDa a buscar - juntamente com o cliente - seus re-


ferenciais. Deve cuidar para que as suas crenças não sejam jamais
passadas ao cliente e também cuidar para que não indique qualquer
caminho ao cliente, mesmo que este insista que direções lhe sejam
indicadas. Nesta situação, uma das possibilidades- terapêuticas é
clarificar a fo1IDa como abre mão de sua liberdade, deixando que o
outro ~scolhayor el~: A revista te diz q~e o que vale~ a experiência /
da avo. Agora, voce quer que eu te diga o que voce deve faze,~ E
assim, você vai vivendo, perguntando aos outros o que deve fazer.
e) Rigidez frente ao referencial próprio - Neste caso, o
existente perde-se em si mesmo e desconsidera o mundo ao seu
redor. 9 existente, na condição de compreens ibilidade, perce..b..e
seus critérios corno sendo o refocen.ci al do_mundo. Vive tão au-
tocentrado, que qualquer situação que esteja em oposição ao que
acredita constitui-se em um grande erro, e mais: tem a intenção
de atingi-lo. Esquece-se de gue o mundo do ser-aí é O-ID-unclo
(

-
compartilhado, o ser-com. Relaciona-se com o outro de modo a
t utelá-lo e submetê-lo. As relações de convivência se dão na
forma de desconfiança e indiferença. Liga-se apenas a si próprio.
Fala uma cliente, referindo -se à sua mãe: Ela atrapalha meu ca-
samento. Está sempre ali. Meu filho diz que não tem nada de-
mais. Eu fico magoada com ele, ele não se coloca no meu lugar.
Não sabe o que é isto, acho que ele quer é me ver mal.
No discurso, coloca-se sempre no centro, utiliza-se demasia-
damente do pronome "eu". Diz que todos estão errados - ou que
são contra ele ou nutrem por ele uma grande inveja. Os fatos são
relatados com tamanha lógica, que não deixa possibilidade de
discordância, inclusive por parte do psicoterapeuta. Este modo
de mostrar-se requer muito tato do psicoterapeuta, uma vez que
este pode se tornar aos olhos do cliente um grande invejoso e,
desta forma, romper-se a confiança.

134
Ana Maria Lopez Calvo de Feijoo

A princípio, e até mesmo em todo o processo, a postura do te-


rapeuta é de aceitação e centrada no próprio relato do cliente,
tentando astutamente descentrar o referenc ial do cliente na sua
própria ação. Por exemplo: quando o cl iente traz uma queixa de
alguém (do chefe, de seu pai, enfim, de alguém que tenha alguma
ascendência sobre ele, e o aborde de forma autocentrada), o psi-
coterapeuta, a partir deste relato, pode mostrar-lhe, pouco a
pouco, indiretamente, que o outro existe em uma relação . A at-
mosfera, o astral é fre quentemente de raiva do outro, de vaidade
e orgulho. As relações estabelecidas vê m carregadas de conflito.
f) Projeto de aceitação e apro vaçã o por parte do outro - o
discurso do cliente, na maioria das vezes, reve la-se de fo r ma r e-
ticente, pois ele espera conhecer um pouco mais do outro, p,ar,'L
po~deunostrar-se de acordg ÇQID_a.1,.xp_ectativa daquele com guem.
se relaci._ona, Nos primeiros contatos,._a ansiedade é sua marca re-
gistrada, parecendo inseguro, frágil.
Uma adolescente de 18 anos traz o seguinte re lato : Eu até sei
que não devo ceder às vontades do meu namorado, nem da mãe
dele. Mas também não quero parecer inconveniente, então pre-
firo mostrar-me como uma moça muito fina como eles querem
que eu seja, também não é tanto sacrifício .
A existência presenteia o existente, no seu surgimento no
mundp, pela falta de sentido e pela solidão. Na tentativa de es-
capar à solidão, o outro pode se tornar u ma necessidade, impres-
cindível para que sua vida tenha conti nuidade. Quando o outro
se torna uma necessidade, o suj eito em questão abre mão de seus
r eferenciais. Embora conhecendo os seus valores, enfim seu pro-
jeto, seu sentido maior é escapar à solidão .
O psicoterapeuta, nestes casos, deve atuar de forma atenta
pois, se deixa transparecer suas expectativas, é segundo tais ex-
pectativas que o cliente vai se revelar. Caminha passo a passo, a

135
CAPÍTULO 4 Metodologia

fim de que o cliente entre em contato com a sua solidão e com


seu medo.
g) Dificuldad e de assumir o sofrimento como possibilidade -
a minimização cio sofrimento aparece no relato do cliente e ocorre
muitas vezes de fomrn a não contar a realidade tal como ela o afeta.
Foge da situação, evita-a ou distorce-a. Na linguagem vem: "não é
bem assim", "ele não é tão ruim". Justifica "o não observar bem" pela
fa lta de tempo, pelo medo de ser injusto, enfim, não há tempo nem
espaço para ver o que realmente acontece: Eu digo ruim com ele, pior
sem ele. Ele tem muitos ciúmes, chega a me empurrai; mas é bom
para mim, faz isto porque gosta de mim. Muitas vezes minim izar a
dor consiste em uma estratégia que pennite o alívio. No entanto, não
falar deste sentimento, implica em não deixar que este se desfaça.
O ps icoterapeuta existencial pode manter a angústia frente à
estranheza do cliente de sua própria condição . Mesmo que o
cliente insista em não falar de si pr óprio, o terapeuta insiste, su-
tilmente, nos indícios, a fim de qu e o cliente tenh a a oportuni-
dade de se confrontar com a sua s ituação.
h) Maximização do sofrimento - Nes ta situação, o__ciie.n.te
tenta convencer o outro o quanto é digno de piedade. O relato é
rico em lamentação. Vê o mundo com uma desconfiança ex-
trema, utiliza "os olhos da imaginação" para, assim, dar ampli-
tude ao seu sofrimento. Relato do cliente, adulto jovem: Ninguém
na minha casa me entende, ninguém liga para mim. Eu/aço tudo
por eles, mas quando eu preciso, me abandonam, ninguém dei-
xou de viajar porque eu estava sofi-endo, não consegui o emprego
e eles até gostam, estavam felizes porque iam viajar. O psicote-
rapeuta pontua o exagero, romp endo com "os o lhos da imagina-
ção", trazendo à tona as incoerênci as .
i) Não-aceitação dos próprios limites - muitos clientes mos-
tram-se insatisfei tos com suas condições, sejam financeiras, in-

136
Ana Maria Lopez Calvo de Feijoo

lelectuais ou sociais. Queixam-se, até mesmo, da sua constituição


física ou motivacional. Lutam desesperadamente a fim de torna-
rem-se aquilo que em sua ação não se realiza.
Em O desespero humano, afirma Kierkegaard:

[ ... ) é certo que um eu tem sempre ângulos,


mas daí apenas se conclui que é preciso dar-
lhes resistência, e não limá-los e de modo
algum significa que, por receio de outrem,
ou eu deva renunciar a ser ele próprio ou
não ousar sê-lo cm toda a sua originalidade,
na qual somos plenamente nós para nós pró-
prios. (KIERKEGAARD, s/d, p. 39)

A não-aceitação do seu ser com suas possibilidades e limita-


ções pode implicar uma tentativa de limar seus ângulos, ou então
criar ângulos não-possíveis, uma vez que somos nós próprios e
nenhum outro.
Relato da cliente com quase 30 anos, que queixa-se da perda
da juventude: Não quero envelhecer, 30 anos não dá, não queria
sair dos 29 anos. O psicoterapeuta existencial, nestes casos, mui-
tas vezes em primeiro lugar, amp lia, dá voz à vivência desespe-
rada, em que o existente se debate contra si mesmo, luta contra
a maré. Depois, mostra-lhe como sua luta toma-se vazia; por fim,
procede de forma que o cliente se esmere no polimento de seus
ângu los e deixe de tentar limá-los, na medida em que se aceite
em sua originalidade. Enfim facilita o acesso ao seu modo de ser
que se faz em ato, na vida.
j) Medo da solidão - ao perceber-se como lançado e esta con-
dição como algo inevitável, este existente agarra-se ao outro
como se agana à vida. Aceita qualquer imposição, mesmo que,
para tal, tenha que abrir mão daquilo que, em si mesmo, lhe é
mais próprio, seu cuidado.

137
CAPfrULO 4 Merodologia

Uma cliente de 21 anos: Eu prefiro não terminar o namoro,


pois não aguentaria ficar sozinha, mesmo ele sendo dependente
químico e até correndo o risco de um dia acabar sendo presa
com ele. Ainda é melhor do que morre,: Sem ele, eu morro. Esta
cliente cuida de si ao modo do descuido. Cabe ao psicoterapeuta
lembrar à cliente que o seu cuidado lhe pertence.
k) Desconhecimento das próprias possibilidades - suas rea-
lizações são ditadas pelas detenni_naç:.ões do impessoal, por descg;.
nhecer aquilo que faz,_assuiae a posição que é mais beíll=,Yista.
Neste caso, o modo de ser temeroso obscurece as suas possibili-
dades. Uma arquiteta, muito valorizada pelos projetos realizados,
posiciona-se da seguinte forma: Fico pensando que tenho que
agradar meus clientes de todas as formas. Fazer tudo que eles exi-
jam que eu faça. Ser bastante boazinha. Refazer os projetos todas
as vezes que assim quiserem. Cobrar pouco. Penso que se deixar
de fazer assim, vou ficar sem trabalho. O psicoterapeuta pode
então questionar estas certezas. Desfazer este aglomerado, no qual
percepção, lembrança e expectativas encontram-se emaranhados.
1) Projeto idealizado de si mesmo - não aceita cometer erros,
equivocar-se. Está no mundo para realizar-se como perfeição, tendo
de dar conta de todas as possibilidades. Acredita que assim não ficará
em débito, embora, com relação ao passado, sinta-se sempre em débito.
Muitas vezes, aquele que assim se encontra chega ao psicólogo com
pretensões de curar-se, tomando-se perfeito, inatingível, infalível, não
mais vulnerável às contingências do mundo. Idealiza uma situação de
vida perfeita. Quer tornar-se um ente pronto e acabado. Segue-se um
exemplo: Imaginei que, na minha vida, tudo daria certo: meu marido,
meus filhos, minha vida profissional. No entanto, não fui bem-sucedida
profissionalmente. Assim como eu gostaria. Dediquei-me demais aos
meus filhos e, hoje, não sou a professora que gostaria de sei; sabe?
Uma acadêmica, com doutorado, livros publicados.

138
A11a Maria Lopez Calvo ele Feijoo

A psicoterapia vai acontecer de forma que o cliente, em tal


situação, possa reconhecer a vulnerabilidade, a abertura, a morte
e a imperfeição em que a existência sempre se encontra.
111) Falta de diálogo consigo próprio - perde-se nos fa lató-
rios. Fala de tudo e de todos, mas não se implica naquilo que esta
fa lando. Vive n a curiosidade. A fala pode dar-se da seguinte
forma: Isso é coisa de mulher fresca. Deve ser igual ao que o
povo fala que tem enjoo na gravidez. Isso é mulher doente que
fica enjoada. Menopausa é uma coisa tão boa que acaba a mens-
truação. Ora diz uma coisa, logo fala tudo ao contrário . Não sabe
dizer no que realmente acredita. O psicoterapeuta acompanha
atentamente, ao mesmo tempo em que tenta trazer uma situação
por ela experienciada, para assim perguntar-lhe, por exemplo: E,
na sua gravidez, como foi?
n) Não-liberdade - transfere toda a responsabilidade de sua
vida ao outro, ao acaso, a Deus, à energia do mundo . Todos são
responsáveis pelos rumos de su a v ida, não reconhece nenhuma
de suas escolhas. Uma mulher de 40 anos que se queixa da pes-
soa com quem se relaciona e que, ultimamente, '(em até pensando
na separação: Ah! Se eu ganhasse na loteria, eu não vou te dizer
que não teria problemas, mas esse problema não existiria, por-
que obviamente eu gosto do cara, senão eu não estaria nessa ba-
talha toda para ele mudar.
O psicoterapeuta pode atua r, pouco a pouco, apontando su as
escolhas, com muito cuidado, para que o cliente não oponha re-
sistência. Com o, por exemplo, poderia dizer-lhe: Então, parece
que ganhar na loteria não seria suficiente pra a sua decisão?
o) Espaçamento - neste modo, o ser mos tra-se como que to-
talmente determinado pelo impessoal, permanecendo sob a tutela
dos outros . Seu valor está"na aprovação do outro. Ao m odo da
medianidade, desconhece-s e a ; i próprio, define-se no mundo

139
como todo mundo. Fala o cliente: No meu campo de atuação,
tenho que me mostrar confiante. Se pareço muito carente, elas
não negociam comigo. Tenho que estar sempre bem-vestido, para
parecer bem-sucedido. Tenho que ser admirado. O psicotera-
peuta pode atuar pontuando, junto ao cliente, o seu modo de ser
na aparência, da seguin te forma: Você tem que representar muito
bem para que as pessoas te deem valo,~ não pelo que você faz,
mas pelo que você aparenta fazer .

4. 1.l.2 - A fala do psicoterapeuta

Em um segundo momento da investigação fenomenológica,


serão descritas as unidades de significado referentes à fala da
psicoterapeuta, que buscará mobilizar, no cliente, a possibilidade
de sua liberdade, responsabilidade, ação e aceitação dos riscos.
Algumas das falas possíveis para um psicoterapeuta serão aqui
descritas, sem se pretender esgotar todo um infinito de possibi-
lidades. A investigação destas falas pretende elucidar a forma
com que o psicoterapeuta se conduz, com o exerce a hermenêu-
tica, pouco a pouco buscando o sentido daquele que se mostra,
mesmo que de forma velada.
O processo p sicoterápico compõe-se de momentos em que se
torna importante conhecer o dia a dia do cliente, sendo necessá-
ri o, para tal, exp lorar seu cotidiano. O psicoterapeuta tenta,
então, colher m ais informações e organizar-se quanto ao con-
teúdo relatado. Afinal, é preciso, para se estabelecer a compreen-
são psicoterapêutica, ir até o lugar onde o outro se encontra. Para
tanto, é necessário saber o que o outro sabe de si mesmo . Nas
sessões psicoterapêuticas investigadas, encontraram-se nos psi-
coterapeutas existenciais fa las do tipo:

140
M.110 1· 10110 L UfJt'l. l.dlVU ue retJOO

- Exemplificadora - O terapeuta pede ao cliente que


exemplifique como o que está relatando acontece em outras si-
tuações ou, se for o caso, o próprio terapeuta exemplifica, através
daquilo que já sabe de relatos anteriores.
O cliente relata: Parecia que ela nem fava ali.foi uma coisa rá-
pida, eu não sei o que me deu, que a gente tava conversando. E
ela já tinha me escrito uma carta, dizendo do desejo dela. E eu
tinha até respondido pra ela, olha não rola, eu amo muito a Ro-
sana, e eu não me sinto bem, até imaginando isso. Aí, de repente
ali na festa, ali eu nem sei o que me deu ... Acabado de chegar,
fazendo planos de ficar lá, junto com ela, amando tanto ela... O
que será que aconteceu? Eu não entendi, parece que brinco com
as situações, brinco com os outi·os.
Fala do psicoterapeuta: Você poderia me dar um exemplo em
que você se percebe brincando com as situações, brincando
com os outros?

- Exploradora do cotidiano - O terapeuta, a partir da ex-


ploração do cotidiano do cliente, busca que ele identifique fatos
que desencadearam um determinado modo de sentir as coisas,
\
como os fatos o afetam.
Fala o cliente: Acabei ficando com uma menina, eu não sei o
quê que deu, tava tendo uma festa, e eu fiquei com uma menina
lá da clínica mesmo, eu não sei o que deu em mim, o que me deu.

-
Psicoterapeuta: Relata pra mim o que aconteceu.

Inquisitiva - Quando o terapeuta faz perguntas sobre

l o fato, as intenções ou os sentimentos implicados em um deter-


minado relato.
Cliente: Eu não sei. Quando ela contou, eu neguei.
Psicoterapeuta : Negou o quê?

141
CAPÍTULO 4 Metodologia

Em outros momentos psicoterápicos, torna-se fundamental fa-


cilitar o aprofundamento nas questões trazidas pelo cliente,
porém de forma compreensiva e de modo que o cliente não opo-
nha resistência. Outras falas possíveis seriam:
- Clarificadora da atmosfera afetiva - O cliente traz um
relato e, junto ao relato, o afeto . O terapeuta clarifica para o
cliente a emoção que percebe no seu relato. Desta forma, escla-
rece o sentir e facilita o reconhecimento de seu sentimento frente
à situação. Pode ser formulada como pergunta ou como afirma-
tiva. Este tipo de fala foi amplamente utilizada por Rogers
(1961 ), que a denominou de "clarificadora de vivência emocio-
nal". Uma situação psicoterapêutica pode dar-se assim:
Fala do cliente: Mais ou menos isso. Um exemplo, não é o meu \
caso. Vamos supor que eu quero ser canto,~ aí eu sonho com isso,
e aí eu chego lá e não consigo, vou ficar muito decepcionado .
Psicoterapeuta: E para 11ão se decepciona,; você prefere não
querer.
- Refletora de conteúdo verbal - O cliente traz um re-
lato extenso e o terapeuta sintetiza-o,' apresentando-o novamente
ao cliente. Reduz o conteúdo ao essencial. Ao sintetizar, o tera-
peuta mostra que compreende o cliente, que está atento e o con-
vida ao aprofundamento do conteúdo. Pode ser elaborada de
forma inquisitiva ou afirmativa. Esta fala também foi elaborada
por Rogers (1961), que a utilizava mais frequentemente sob a
forma afirmativa. Virgínia Axline (1989) utilizava-a predomi-
nantemente sob forma interrogativa, como pode ser constatado
em seu livro Dibs, em busca de si mesmo.
Cliente: Não, eu não penso nada, para quê? O que vai acontecer
é o que tiver de ser.
Psicoterapeuta: Você acha que tudo já está decidido, que nós
não podemos Jazer nada?

142
Ana Maria Lopez Calvo de Feijoo

Na impropriedade, o humor se dá de modo ambíguo. Muitas


vezes, a fim de chegar mais próximo do astral que o envolve,
faz-se necessário reconhecer tais ambiguidades. O psicoterapeuta
pode clarificar tais situações, mostrando-as aos clientes quando
elas aparecem, porém, nestes momentos faz-se necessária paciên-
cia. Com impaciência, pode- se afastar o outro de uma possibili-
dade mais própria.

- Refletora de conteúdo não-verbal - Quando se mostra


ao cliente sua postura fisionômica ou corporal, frente a uma de-
terminada situação oposta ao que, por exemplo, é verbalizado
(
por ele.
Fala do cliente: O chefe me demitiu, vai ser péssimo. Como vou
pagar minhas contas? (Ao mesmo tempo que relata, mostra-se
de forma risonha).
Fala do psicoterapeuta: Interessante, você lamenta a demissão,
mas ao-mesmo tempo mostra uma expressão de felicidade .

- Reveladora de situações conflitivas - Traz à tona a


inautenticidade. O cliente, por vezes, diz uma coisa e sua aparência
parece negá-la. Ou tem dois pesos e duas medidas para a mesma
situação - isto é, pensamento, sentimento e ação não caminham
juntos. O terapeuta revela a situação conflitiva que se mostra.
Fala o cliente: Porque com meu filho eu coloco disciplina.
Psicoterapeuta: De que forma você impõe a disciplina?
Cliente: Por exemplo, às vezes ele almoça uma. hora, às vezes
às duas.
Responde o psicoterapeuta: Parece que por mais que, no teu
pensamento, a imposição da disciplina seja a sua verdade, quem
põe a ordem é o seu.filho .

- Adversativa ou paradoxal - O psicoterapeuta dá ao


cliente a idéia contrária daquilo que ele está passando, a fim de

143
que ele tome consciência de sua verbalização e possa perceber
mais claramente seu ponto de conflito ou de desordem. Em psi-
co drama, diz-se que o terapeuta faz o duplo.
Diz o cliente: Bem, não quero irritar-me. Vou tentar falar sobre
isto de forma mais tranquila.
1
Psicoterapeuta: Estou vendo o quanto você está tranquilo fa- 1
!ando do seu fracasso.
Cliente: (Silêncio, reflete.) Não , não, na verdade estou nervoso
falando disto. Mas por alguma razão, não queria mostrar assim.

- Promotora de responsabilidade - A responsabilidade é


uma questão crucial a ser trabalhada na psicoterapia de base exis-
tencial, considerando-se que o cliente é o único que pode decidir
sobre si próprio, e nunca as situações ou pessoas envolvidas em
sua vida decidirão por ele - mesmo quando atribui a terceiros ou
ao impessoal a decisão, ainda assim está sendo responsável.
Afirma a cliente: Se não fosse ela, a minha vida seria um mar
de rosas.
O psicoterapeuta pode recorrer à palavra "você", invertendo-
se a direção da ação dada pelo cliente, que responsabiliza o
mundo pelas suas escolhas - posição psicológica de não-liber-
dade. Juntamente com a fala de núcleo comum, torna possível
fazer a ponte entre o que se repete na história do cli ente e qual a
sua responsabilidade nesta repetição.
Diz o psicoterapcuta : E o que você faz para que sua vida seja
um mar de rosas?

- Focalizadora do "aqui e agora" - O cliente vive com


o terap euta uma situação, que também é vivida com os demais.
O terapeuta traz a situação no presente, a partir do que está acon-
tecendo ali. Tal situação pode fac ilitar o cliente a assumir sua
responsabilidade pela sua escolha.

]44
Ana Mana Lopez Laivo de t-e1JOO

Diz o cliente: Claro, as coisas são como são e eu ... Não deve-
ríamos perder tempo com as coisas que não têm remédio.
Responde o psicoterapeuta: Você realmente não quer ver até
que ponto é escravo do desejo de preservar essa imagem de
homem confiante. Na verdade, está tentando impingi-la a mim
agora mesmo.

- Esclarecedora do núcleo comum - O terapeuta levanta


diferentes situações em que a forma de atuar do cliente se repete,
buscando, com ele, a sua responsabilidade pelo seu acontecer.
Cliente: Gostaria que meu sócio saísse para que ela tivesse mais
tranquilidade.
Psicoterapeuta: Parece que em muitas situações de sua vida,
você quer que os outros decidam por você.
O psicoterapeuta não tenta distraí-lo para que a angústia con-
tiime se pronunciando; deste modo, acaba se colocando, nas se-
guintes falas:

- Provocativa - Quando o psicoterapeuta estrutura sua


fala de forma a dar continuidade àquilo que mobiliza o inquie-
tante reconhecimento da indeterminação do seu existir.
Fala o cliente: Acho que eu estava meio irritado. E não vejo van-
tagem nenhuma de mostrar minha irritação.
Psicoterapeuta: Parece que você insiste em querer se mostrar
como na verdade não é.

- Manutenção da atmosfera em que emergem as situa-


ções-limite da existência - Consis te em levar o cliente a man-
ter-se na sua angústia, possibilitando a abertura à possibilidade
de uma escolha singular.
Fala do cliente: Não sei se você vai acredita,: mas não consigo
lembrar do que estávamos falando.
Psicoterapeuta: A credito sim, parece que isto costuma acontece,;

145
CAPÍTULO 4 Metodologia

sempre que você teme como o vão avaliar a partir do que está
mostrando.

- Manutenção do estar em débito - O psicoterapeuta


existencialista tanto corre como promove o risco. Se o cliente in-
siste no mesmo modo de atuar no mundo, pode ser por não querer
correr risco. O terapeuta busca saber o que pode acontecer se o
cliente correr o risco.
Pergunta: O que teme?
Diz o cliente: Na verdade, não estou aqui para passar uma ima-
gem falsa de mim mesmo. Embora seja assim em todos os meus
relacionamentos: Por isto não dá certo. Mostre-me que ... como
não sou.
Psicoterapeuta: O que você teme que possa te acontecer se você
se mostrar como é?

- Definidora -A fala se revela totalmente na impessoa-


lidade, no impessoal, mesmo apreendido como pessoal. O psico-
terapeuta mantém-se atento para, no impessoal, buscar o pessoal.
Nestes casos, o cliente utiliza-se de expressões como "ninguém",
utodo mundo".
Exemplificando, se o cliente diz: Ninguém.
Pergunta o psicoterapeuta: Quem especificamente?
Diz o cliente: Todo mundo.
Novamente, o psicoterapeuta: Quem?
Diz o cliente: Ninguém permitiu que eu fosse, percebi que todos
ficaram contra mim.
Psico terapeuta: Especificamente, quem ficou contra você?

- Busca do centro de referência - O terapeuta, nesta


situação, atua no sentido de ajudar o cliente a considerar seus
próprios critérios e a diferenciá-los dos critérios das pessoas que
lhe são significativas.

146
Ana Maria Lopez Calvo de Feljoo

Fala a cliente: Eu não sei o que fazer se telefono para ele,


mesmo sabendo que estou dando esperança ou se não telefono e
dou uma de ingrata. Todos dizem para eu não telefona,~ Minha
mãe diz que não foi assim que ela me ensinou.
Psicoterapeuta: E você, o que diz?

4.1.1.3 - Caracterização da estrutura geral


As expressões aqui destacadas - tanto na fala do cliente como
do psicoterapeuta - apontam para a estrutura geral do processo
de psicoterapia por mostrarem a sua relevância e essencialidade:
escutas e falas. Estrutura esta sem a qual o processo psicotera-
pêutico deixa de existir. As diferentes expressões do cliente em
estado de queda são reveladas na fala, que até mesmo se pronun-
cia como silêncio. É importante ressaltar que estas falas se dão
tanto de modo impróprio quanto de modo próprio. Leva-se em
conta, no entanto, que o próprio do ser no início e na maioria das
vezes é da ordem do impróprio. O próprio e o impróprio, o pes-
soal e o impessoal, o autêntico e o inautêntico são modificações
existenciárias do existencial constitutivo. Deve-se a isto a pos-
sibilidade de se constituir uma psicoterapia em que o próprio e o
impróprio, o pessoal e o impessoal constituem-se no jogo do
existir do ser-aí.
O discurso, segundo Heidegger (l989), como articulação em
significações de compreensibilidade inserida na disposição de
ser-no-mundo, tem como constitutivos: o referencial do discurso;
aquilo sobre o que se discorre; a comunicação e o anúncio. O psi-
coterapeuta atua em uma possibilidade existencial incrente ao
próprio discurso: a escuta. Nesta situação, o sentido do cliente
vai ser transmitido e o terapeuta vai atuar através das reduções
para que não haja a transmissão do sentido de sua compreensibi-

147
!idade do mundo, urna vez que tal fato pertence ao espaço do
cliente. Cabe ao terapeuta ampliar a perspectiva do sentido do
cliente - através de sua fala, e através das reduções fenomenoló-
gicas realizadas pelo terapeuta.
O psicoterapeu1a acompanha o acontecer de seu cliente. Es-
tabelece uma relação libertando o outro para si mesmo. Na maio-
ria das vezes, o cliente procura o psicoterapeuta, colocando-se
corno ente - logo, com sentidos e determinações previamente
dados. O psicólogo vai, pouco a pouco, através da hennenêutica
do sentido daquilo que se mostra, abrindo o que aparenta e se
manifesta. O psicoterapcuta, na sua técnica como produção
mútua, vai - através do que se mostra - buscar o que se vela, de
forma a que as possibilidades se desvelem.

4. 1.2 - Análise fenomenológica de um discurso clínico 6


A análise fenomenológica de um discurso clínico caracteriza-
se como uma modalidade de investigação, em que apenas uma si-
tuação pode ser descrita, a fim de gue se possa proceder a um
estudo detalhado acerca da forma, neste caso, em que se dá o per-
curso psicoterapêutico, pautado em um tecer e destecer de senti-
dos, que permeiam todo o discurso, em uma perspectiva
fenomenológico-existencial. Neste estudo poderão ser observados:
1) a fala e escuta do processo psicoterapêutico (unidades de signi-
ficado); 2) a forma como ocorre a tentativa de resolução dos para-
doxos; 3) a posição psicológica de liberdade e não-liberdade; 4) o
clamor da consciência, o débito, a impessoalidade e o impróprio,
a decisão e a i_ndecisão, a não-aceitação do ser-para-a-morte.

6 Trata-se de um caso vedd ico, cuja gravação e divulgação foram autorizadas pe!a
cliente. O nome foi trocado para preservm· a identidade da mesma.

148
"'"-' '''-''"-''--VI-''-<- >..vi,v u,;: 1 <=IJUU

Mariana, uma mulher de 40 anos, chega ao primeiro encontro 7


psicoterapêutico, queixando-se de depressão, com o seguinte dis-
curso: Estou muito deprimida, doutora, tenho medo de andar sozi-
nha na rua, por isso vim aqui com minha colega. Observação:
estava vestida com uma blusa bastante decotada e com grandes es-
tampas, calça branca bem justa, marcando todas as curvas, sandálias
altas, grandes brincos de argolas, e lábios pintados de vermelho.
Neste primeiro momento, percebo duas comunicações,
sendo que a verbal difere da não-verbal. Continua o discurso:
-A senhora vai me ajudar? Não quero mais sofre,~ quero ter
a alegria de antes. Fazia tudo, não tinha medo de nada.
Observação: gesticula muito, com gestos direcionados para o
seu próprio corpo.
Reflexão do psicoterapeuta: era cedo ainda para pronunciar-me,
pois, segundo Kicrkegaard (1846), "para levar um homem ao seu
centro, é preciso encontrar onde ele se encontra e começar por aí."
Reflito: "Por não saber onde era o seu lugar, por não saber para
onde me dirigir, é preciso paciência. No entanto, ela me pede ajuda,
ao me perguntar se a ajudaria." Se eu continuasse em silêncio) ela
provavelmente seria mais direta e, então, eu me encrencaria, pois
era cedo para respostas. Lembrei, novamente, Kierkegaard (l 846):
"Para ajudar o outro, devo entender o que ele entende, senão minha
ajuda não valerá para ele." Deve-se, para tanto, poder habitar a casa
do outro para, assim, poder compreender seu mundo próprio.
Arrisquei, então, saber mais. Poderia buscar no "Não quero
mais sofrer,, ou "Na alegria de antes", no "fazia tudo" ou ainda
"Não tinha medo de nada". Optei pelo medo e perguntei:
- Mais especificamente, o que você teme hoje?

7 As sessões duravam 40 minutos e a transcrição consistiu nos momentos de fala. O


tempo de silêncio não foi registrado.

149
CAPÍTULO 4 Metodologia

Heidegger (1989) diz que o temor é uma tonalidade funda-


mental e para se chegar à disposição do ser-no-mundo, deve-se
perguntar: "O que se teme?" Foi esta reflexão que me conduziu
naquele momento.
Discurso de Mariana:
- Sei lá doutora. Não sei . . Não quero ficar sozinha. A soli-
dão, tenho medo. Foi o que sempre quis, mas hoje não quero
mais. Sabe o que é, doutora? Para a senhora, eu tenho que dizer
a verdade, não é? Eu vim aqui para isso, não foi? Ninguém da
minha família sabe disso. Nem meus amigos. Você não pode con-
tar para ninguém, não é? Eu sou ... Minha profissão é... Eu sem-
pre jid prostituta. Adoro minha profissão e faço muito bem.
Não tinha que falar novamente do compromisso do sigilo.
Falar de novo seria ficar referenciada em mim mesma. Voltei-me
para Mariana, na tentativa de ajudá-la a organizar aquilo que ela
me trouxera. Desta forma, também, assumia mna atitude de com-
preensão e atenção pelo que ela me dizia. Sem perplexidade pelo
relato, arrisquei:
-Adora sua profissão, faz bem, porém sente-se sozinha.
Discurso de Mariana:
- É isto. É isso mesmo. Na minha profissão sinto-me sozinha.
Estou só. Os homens vêm e vão. São muitos, mas estou só, muito
só. A senhora nem imagina. E não tenho saída. O que vou fazer
para ganhar a vida? Só sei fazer isto, mais nada.
Arrisquei de novo:
- Não existe outra saída, daí a grande dor frente ao fato de
se sentir tão só. A fala de Mariana parecia dar "voz à consciên-
cia", clamava pelo seu poder-ser, falava do débito, do não às suas
possibilidades. A fim de manter a questão através da angústia,
era preciso fechar o mundo das possibilidades - onde só a antiga
era possível. Insisti nesta perspectiva, mobilizando o paradoxo

150
Ana Maria Lopez Calvo de Feijoo

no sentido das possibilidades. Onde, para Mariana, só bavia a fa-


talidade, é que ela poderia emergir, na vivência dialética dane-
cessidade-possibilidade - descobrir-se, então, com liberdade.
Discurso:
- Que saída eu tenho? Não sei fazer mais nada na vida, isto
foi o que eu sempre fiz. Desde pequena/oi sempre o que eu quis
faze,~ Tinha uma moça vizinha, que eu sempre admirei muito, ela
andava muito arrumada, muito bem pintada e eufi.cava na porta,
esperando ela sair e pensava - é assim que eu vou ser. Hoje eu
sei que ela era prostituta. Na época, eu só admirava, não sabia
que existia. Minha familia era muito pobre, doutora, nós não ti-
nhamas nem. cama para dormi 1: com meu primeiro dinheirinho,
que eu ganhei com. a minha profissão, eu comprei uma cama
para eu dormi,~ Era muito dinheiro. Como é que eu ia ganhar
tanto dinheiro? E depois, eu nunca tive jeito para mais nada.
Para Heidegger (1989), o projeto nos pertence tanto como nós
lbe pertencemos. Somos esse mesmo projeto e a fidelidade a ele
não é mais do que a fidelidade a nós mesmos, que nele nos en-
gajamos, que nele empenhamos uma parte importante de nosso
ser e que, por ele, pretendemos também "tornar-nos o que
somos)'. Em diferentes momentos, Mariana havia mostrado tanto
a satisfação com asna escolha como também mostrara que, desde
muito cedo, era o que admirara. O que estava acontecendo? Lem-
brei-me de sua fala: Você não pode contar a ninguém. O pro-
blema estava em que o antro soubesse? Perdia-se no referencial
do outro, porém não queria abdicar de sua escolha original, que
lhe dava realização e supria mais do qne suas necessidades?
A fala do psicoterapeuta tentava, neste momento, trazer à lona
o estar-em-débito, o "não" às possibilidades mais próprias:
-A profissão escolhida por você foi o que você sempre quis
e até mesmo admirou, quando nem sabia ao certo do que se Ira-

151
tava. Você a realizou e ainda resolveu seus problemas financei-
ros. Do que você se lamenta agora?
Mariana pensa cm silêncio e responde:
·· Será que fiz certo? Não podia ter casado? Ter tido filhos,
como fizeram minhas irmãs? Elas não estão sozinhas, têm seus
maridos, seus filhos rw faculdade. E eu, doutora, não tenho
nada. De que adiantou aquela mulher linda, de cabelos lisos,
louros, bumbum grande e arrebitado. De que adiantou? Foi bom
na época, todos os homens me queriam, me desejavam. E hoje,
quem vai me quere,~ principalmente se souberem de mim? O que
minha família, minha mãe vai pensar de mim? Elas acham que
sou casada com o gringo. Eu combino com ele, ele liga para
minha mãe, como se fosse meu marido. É tudo mentira. Mas se
souberem, o que vão pensar de mim. Tive namorados, mas eles
também não sabem. Não enganava, não sacaneava, era minha
profissão. Com o que eu amei era diferente, fazia am01~ Com os
fregueses não, é profissionalismo. O namoro não dava certo, o
que eu amei me sacaneou com uma amiga. Eu não perdoei. Hoje
me arrependo. Não sei, acho que poderia ter dado uma chance.
Hoje ele está casado, somos apenas amigos. Como vou encontrar
alguém? É difícil, as pessoas hoje não querem envolvimento.
Fica difícil ter alguém. Fico com medo de ficar sozinha.
A culpa existencial, a lamentação pelas possibilidades não-
escolhidas, fazia-se presente em Mariana. Escolhen na época um
_possível, abriu mão de outros e agora, neste momento, queria que
nenhuma possibilidade lhe fosse negada pelo tempo. Impacien-
tava-se frente ao imprevisível e cmergía a angústia frente ao seu
caráter de indeterminação, portanto poderia escolher frente ao
nada, que se apresenta como futuro. Era preciso cautela, cuidado.
Pensei mais uma vez em Kierkegaard (1988): "O ataque direto
leva o homem a opor-se." Portanto, não poderia atuar de forma

152
/-\lld J·ldl l<;l L.Uf.lt:'.l.. L.<llYV Ut:'. l ÇIJVV

provocativa, mas nesta direção, mantendo a angústia, a tentativa


ainda era a de mobilizá-la no sentido de que se desse conta de
que a outra escolha trouxesse também arrependimento.
De forma branda, arrisquei uma fala refletora de conteúdo
verbal, seguida de uma provocativa:
- Casada, com filhos, sem nada para esconder, é como você
gostaria de ser hoje. Ver-se da mesma forma que vê suas irmãs.
Responde rapidamente:
- Não, também não, não queria estar no fogão, submissa,
acabada, só cuidando da casa e dos filhos. Isto também não!
Mariana queria todas as possibilidades: casar-se sem ter os
compromissos do casamento. Ser livrei mas ter o companheiro.
Queria resolver o paradoxo possibilidade-necessidade. Onde para
ela tudo fosse possível. Segundo Kierkegaard, o paradoxo con-
siste no próprio existir, e ao homem só cabe aceitá-lo. Resolvê-
lo é viver desesperadamente debatendo-se contra si mesmo.
Terminamos a sessão e partimos para os acertos quanto ao dia
e à hora da próxima sessão. Mariana me disse:
- Vou continuar vindo aqui com a senhora, sabe? Gostei, a
senhora é uma psicóloga que fala. Antes de vir aqui, fui a outro
psicólogo, e foi lá a primeira vez e ele não me perguntou nada,
mandou sentar e ficou calado, me sacando, me olhando dos pés
a cabeça. Eu pensei: 'esse cara quer me comer'. Ele já estava
me comendo com os olhos. Eu não fui lá para isso. 'Ele tá pen-
sando o quê? 'Dei uma risadinhapara ele, e nada. Ele não falava,
nem eu. No final me cobrou. Eu pensei: vou pagar, mas não volto
mais aqui. Pedi para ele fazer o cheque, e ele me disse: 'faça
você mesmo' - que grossura! Quem ele pensa que é? Disse que
não tinha óculos e que não podia fazer o cheque, ele continuou a
não querer fazei'. Disse que depois pagava. la mandar o dinheiro
por minha amiga. Quando cheguei no carro, falei para ela: nunca

153
CAPÍTULO 4 Metodologia

mais volto aqui, o que esse cara está pensando? A minha amiga
me disse que era assim mesmo. Com ela também foi assim. Para
eu voltar, que ia ser bom para mim. Voltei, aí/ui de saia, dobrei
a perna para a esquerda, dobrei para a direita e ele só olhava.
Pensei: "Este é daqueles clientes bem difíceis."
-É claro, ele não tirava os olhos de mim. Levantei, fiz assim,
assim, e nada. No final, ele ainda me cobrou e eu lhe dei o di-
nheiro. lvlas, com a senhora, eu volto. A senhora/a/ou, me aju-
dou a falar, arrancou as coisas de dentro de mim. Eu preciso
disso,já estou mais aliviada.
Falei:
-Está bem.
Marcamos a próxima sessão e cobrei-lhe a consulta. Ela,
então, pediu-me para preencher o cheque. Preenchi e o devolvi
para que ela assinasse. Assinou com certa dificuldade e, ao aca-
bar, me disse:
- Sabe por que eu não preenchi? Não sei ler nem escreve,:
por isto não preencho cheques.
Na sessão seguinte, Mariana chega na hora marcada, faz os
cumprimentos do dia a dia, senta-se no mesmo lugar em que se
sentara na sessão anterior e inicia:
-Pois é, doutora, sinto-me muito.só. É muito ruim a solidão.
Tenho medo. O que vai ser da minha vida assim, sem ninguém?
Sinto-me muito frágil, incapaz de ficar sozinha. Em casa, aso-
lidão é enorme. Na rua, não saio sozinha de jeito nenhum. Para
vir aqui só se essa minha amiga que está lá embaixo me trouxe,~
senão não venho. Tenho medo de que aconteça algo na rua co-
migo, e eu estou só. Quem vai me socorrer? Assim, com alguém,
pode me socorrer. O que eu faço, doutora?
Mariana justificava-se no temporal. A presença do outro era
tomada como necessidade e não como possibilidade. O outro, en-

154
Ana Maria Lopez Cillvo ele Feijoo

quanto imprescindível, não era percebido como complemento e,


sim> como fusão. Queixava-se e sofria po1· 11â6 tc1• o Olltl'O fmifío,
o outro tinha a função de suprir a necessidade. A relação com o
outro se dava ao modo da tutela, de maneira dependente.
Este discurso trazia duas questões ligadas ao fato de se per-
ceber lançada no mundo, lançada às contingências, das quais não
tem controle. Yalom (1980) denomina tais condições de "presen-
tes da existência": a morte e a solidão existencial. Mariana de-
batia-se contra si mesma. Em uma tentativa ele tomar o controle
do incontrolável. Diante do relato de Mariana, tentei deixar evi-
dente a sua condição de "existente'\ lançada ao acaso e ao
mesmo tempo podendo escolher.
- Parece que você já fez tudo o que pode fazer: tentar ao má-
ximo evitar ficar sozinha.
Responde:
- Mas até quando? li1inha amiga vai cansm; ela fica comigo
agorCJ, lÍWS efa tem SUO vida, daqui a JJOUCO vai cansor, e eu?
Como.-vou ficar?
Temia pelo futuro, o agora estava sob controle, mas e o depois?
Qneria que eu lhe desse saídas, respostas, por isto perguntava:
- O que eu faço, doutora_?
No entanto, era necessário abrir o leque de possibilidades no
futuro. Era preciso buscar, afinal, o que justificava a sua existên-
cia. Ao psicoterapeuta, não cabia tntelar o outro, escolhendo, de-
cidindo por ele. Cabia manter a angústia, não dando respostas,
pelo contrário, devolvendo-lhe o cuidado por si que, no final das
contas, lhe pertencia. Mariana parecia querer paralisar o tempo,
manter-se no eterno presente, ao mesmo tempo em que sabia que
não poderia paralisar-se no presente. Continuar no "vir-a-ser"
constitui o acontecer da existência:
-Sua amiga vai cansa,; e aí? Como você vai ficar?

155
Segue Mariana:
- Só, muito só, sem ter ninguém, Sem saber o que vai me
acontece,:
Outra vez, o medo da solidão. A consciência da sua vulnera-
bilidade frente ao mundo que, por ilusão, acreditava que, com o
outro, poderia superá-la. Havia a crença ainda de que, no pre-
sente, haveria alguma estratégia para controlar o futuro e, assim,
não ficando à mercê da vida. Resolvi trabalhar a vivência do
tempo, corno síntese de presente, passado e futuro. Corno o pas-
sado era percebido? Que experiência trouxe à tona a consciência
da vulnerabilidade? Será que tais relatos poderiam ajudar o pro-
cesso? Fui em busca de tal experiência, sua historicidade.
- O que te leva a temer tanto e o que pode te acontecer?
Com esta pergunta, poderia ela, então, me falar do que lhe
aconteceu, que ela não pode controlar ou) ainda, da vivência do
inesperado. Inicia, então:
- Eu sempre determinei como seria minha vida e assim foi.
Disse que eu não iria viver para sempre aquela vida de miséria.
Fiquei trabalhando pela casa dos outros por pouco tempo. Logo
depois, consegui com um vizinho meu. Pedi a ele: 'Sabe, queria
trabalhar assim, como aquelas moças'. Ele me/alou: 'Você tem
certeza disso?', eu disse que tinha e ele me arrumou um lugar.
Daí, fui conseguindo uma vida mais confortável e dei mais con-
forto para a minha familia. Sabe, ajudei muito, tirei todo mundo
daquela vida miserável. Comprei meu apartamento, meu carro,
viajei o mundo inteiro, dancei em boates do mundo inteiro. Sem-
pre chamei muito a atenção dos homens. Venci, mas agora, dou-
tora, tudo isso parece sem va/01: Eu queria outra coisa, sabe?
Segurança, não queria ficar só.
Optei por refletir o conteúdo verbal, com o objetivo de que pros-
seguisse, continuasse no terna e, assim, relatasse o que aconteceu:

156
Ana Maria Lopez Calvo de Feijoa

- Planejou tudo, determinou tudo, mas não pensou que um


dia desistiria de ficar só. E agora não consegue mudar isto.
Mariana:
- Não, não precisava de ninguém, vivia minha vida livre.
Acho que tudo mudou, no dia em que estava no salão fazendo
minhas unhas, que eu gosto de me trata,~ unhas bem-feitas, ca-
belos arrumados, cheirosa, bonita. Então, como eu estava fa-
lando, estava tudo bem, quando começou a sair sangue do meu
narh, muito sangue, doutora. Não parava. Sujei toalhas e toa-
lhas. Todo mundo ficou desesperado. Me levaram para o hospi-
tal. Chegando lá, me puseram em uma maca. As pessoas que me
levaram não ficaram junto por mais que eu pedisse. Ouvi o que
os médicos diziam e eu não gostei do que eles falavam. Parecia
que não sabiam o que faze,~ Cada um dizia uma coisa. Eu não
fiquei. Levantei e fui ter com a moça que me levou. Fomos para
o hospital que eu tinha convênio. Aí fui bem-tratada. Depois
disso, doutora, não consigo mais ficar sozinha. Viajar nem pen-
sa,~ sozinha não. Se algo me acontece, o que vai ser de mim?
Neste discurso, Mariana mostra sua tentativa de vencer a vul-
nerabilidade. Havia perdido a ilusão de sua onipotência. Sabia-
se frágil) lançada, mortal. E lhe disse:
- Nesse momento, você se deu conta de que aquilo que acon-
tece ao outro também pode lhe acontecer. E acredita que, es-
tando acompanhada, de alguma forma está protegida.
Neste ponto, sinalizei gue o tempo da sessão acabara:
- Está bem, doutora, mas se eu me sentir mal, posso marcar
uma consulta extra?
- Ok, você pode me telefonar, caso isto aconteça.
Parecia que Mariana tentava, novamente, incluir mais um no
seu mundo a fim de evitar a solidão. Porém, como a sessão havia
terminado, não convinha clarificar esta situação.

157
CAPÍTULO 4 Metodologia

Chegamos à terceira sessão. Mariana mostrava-se mais


calma, falava com mais tranquilidade. Sentou-se e disse:
- Estou melhor, doutora. Acho que a depressão está passando.
Hoje eu vou lhe contar muita coisa da minha infância, do meu pas-
sado. Tenho muita coisa para conta,c Sabe, a minha infância foi
muito pobre. Morava em um barraco no morro, uma pobreza. Não
tínhamos nem can1.a para dormir. Meu pai bebia muito e batia muUo
em nós. Minha familia era muito moralista. Tínhamos que ser ho-
nestos, trabalhadores. Minhas irmãs logo foram trabalhar, mas logo
casaram. Eu não queria me casm~ Eu era a mais bonita. Eu ainda
não entendia e meu pai já dizia que tinham que ter cuidado comigo,
senão eu ia me perder. Gostei de um homem, foi o meu primeiro
homem. Era casado. Acabou, mas não sojh com isto. Segui a minha
vida, nunca quis estudar, sabia que não dava para isto. Mais tarde,
também descobri que poderia ganhar dinheiro com a minha profis-
são. Sabe? Ah ... Lembrei. Estava falando com uma amiga e ela disse
que eu não podia deixar de lhe contar, eu adoro desenhar peru.
Estou no telefone, desenho peru. De todos os tipos. Não sei, é
mania. A minha amiga me avisou: 'Você não pode deixar de contar
isto a sua psicóloga, ela vai adora,; isto é importante!' Ela falou
para eu até trazer o desenho. O que é isso, hein, doutora?
Fiquei sem resposta, não sabia o que dizer. Pensei: "Se fosse psi-
canalista, talvez tivesse uma resposta, não sei ... Símbolo fálico, cas-
tração ou qualquer outra interpretação permitida na fundamentação
teórica da psicanálise.)> Porém, enquanto existencialista, nada eu po-
deria afirmar sobre seus desenhos. Aliás, se afirmasse romperia com
a époche, atitude fundamental que permeia a atuação do psicotera-
peuta existencial. Considerando tudo que foi refletido, respondi:
- Não sei, não sei o que desenhar peru quer dizer. E você, sabe?
Respondeu prontamente:
- Eu é que não sei.

158
Ana Maria Lopez Calvo de Feijoo

Repliquei:
- Não sabe sobre seus desenhos?
Ela disse:
- Não, como vou saber?
Coutinuei:
-Há coisas na tua vida que você faz, pensa, sente e que você
mesma desconhece.
Respondeu:
- Como assim?
- Não sabe de seus desenhos, não sabe de sua solidão, não
sabe de seus medos, não sabe de suas escolhas ..
- Não estou entendendo ..
- Você m.e disse logo que chegou aqui: não sei o que está
acontecendo comigo, doutora.
Este trecho mostra de que forma o psicoterapeuta consegue,
através do falatório da cliente, desde o início da sessão, partir
para revelações mais autênticas. A compreensão ao modo da cu-
riosidade da cliente sobre o desenho, através da hermenêutica,
buscando-se o sentido próprio ao modo da compreensibilidade.
Fica claro qne não é o cliente que deve ser rotulado como resis-
tente porque tagarela - aliás, nisto reside sua dificuldade. É o
psicoterapeuta com sua capacidade de escuta que deve buscar na
tagarelice a revelação daquele que lhe pede ajnda.
-Não sei. Não sei nada. Desenho porque é o que gosto e sei de-
senhm: A minha vida toda foi o que mais conheci. Sempre digo o
que tem mais valor para mim, que é minha verdadeira amiga é
minha perereca, é com ela que eu ganho a vida. Tudo o que eu tenho
devo a ela. (Fala mostrando a raiva da situação e fica em silêncio.)
Neste trecho, Mariana falou o que sabia de si e dos seus desenhos,
buscava o sentido de sua ação no mundo, não enquanto curiosidade,
porém enquanto compreensibilidade. Permaneci em silêncio, à es-

159
pera do caminho que Mariana seguiria. Sem palavras, portanto) sem
se perder no falatório, a inquietude poderia clamar em silêncio.
- É isto que me apavora. Tenho de trabalhm~ preciso ainda
ganhar dinheh-o. Minhas economias estão acabando e eu não
tenho coragem, doutora. Não tenho coragem de viajar sozinha,
de viajar de avião, de receber os clientes. Eu não sei quem é. É
perigoso. Quanta coisa acontece! Eu posso ficar com os clientes
certos, mas sem anúncio, eu nào sei .. Eu não posso. Eu tenho
dignidade, não sou qualquer uma. Escolho meus clientes. São
homens direitos, têm familia. ]das pode acontece,: vê o anúncio,
chama à porta. Eu sempre vejo pela janela, se não gosto da apa-
rência, aviso ao porteh-o para dizer que não estou. A1as sabe
como é, doutora, tudo pode acontece,: Por isto, doutora, eu não
quero mais, tenho medo, é arriscado.
Questionando-se o que.teme - teme o risco. Corno teme, fu-
gindo das situações agora gue se sabe vulnerável. Para que teme?
Para não morrer. Desta forma, estruturava o seu mundo, de forma
que nenhuma possibilidade fosse percebida no horizonte de sua
existência, daí o "não posso", pois "tanta coisa acontece".
Atrevo-me a aprofundar seu sentimento de vulnerabilidade
frente ao mundo:
- Sabendo do que te pode acontecer, você prefere recua,; não
continuar e, desta forma, tentar proteger-se de tudo que pode te
acontece,:
-Ê, mas até quando? Eu tenho de trabalhar (chora), mas eu
não tenho vontade, não quero mais esta vida.
Acreditando que outra forma de viver a preservaria das con-
tingências do mundo) pensava em assumir outras atividades
como não trabalhar, não sair sozinha, não andar de avião. O ser-
aí em decadência foge da sua possibilidade mais própria. Foge
do seu ser-para-a-morte:

160
Ana Maria Lopez Calvo de Feijoa

- Que outras formas de viver seriam possíveis para você?


- Não sei, doutora. Eu não sei fazer mais nada. Não estudei,
não casei, odeio cuidar de casa, não dou para vendas. Não sei
fazer nada. Como vou viver?
- Como viver sem risco, eis a tua questão.
- É, eu não quero correr risco, tenho de me cuida,: Não volto
mais a trabalhar:
- E como você vai fazer para sobreviver?
- Não sei, doutora. O que eu tenho não dá. O apartamento
alugado não dá. Ajudei toda minha família e por isto não tenho
nada.
Mariana tentava se refugiar nas justificativas temporais, ao
modo do espaçamento, colocava-se sob a tutela dos outros. Vivia
na não-liberdade.
Na semana seguinte, Mariana retorna. Mostrando-se aflita,
inicia a sessão de número quatro:
- Já está chegando a hora de voltar, e eu não consigo, dou-
tora. Me dá até calafi-ios só em pensar. Ficar naquele aparta-
mento sozinha. Só eu e Deus. Em uma terra estrangeira, sem
ninguém. Sem saber o que vai acontecer. Eu não quero voltar.
Na tentativa de explorar novas possibilidades, atuei:
- O que fazer para não voltar?
- Não sei, doutora. Não sei fazer mais nada. Sempre só fiz
isto na minha vida.
Justifica-se da não-escolha no passado:
- Sempre foi assim, não pode agora ser diferente.
- Como você sempre foi prostituta, agora não pode mais exer-
cer nenhum outro tipo de trabalho.
Usei a palavra "prostituta", para sair do {'isto" - forma pela
qual denominava sua atividade profissional. Queria observar se
assumir a sua atividade profissional provocaria impacto. Ensaiava

161
CAPÍTULO 4 Metodologia

a oportunidade de que o instante se desse. Segundo Kierkegaard


(1991), "situação na qual a transformação se dá".
- Eu gostava do meu trabalho. Sempre fi1i boa profissional.
Eu faço com que o homem se sinta o máximo, o único, seifazer
bem-feito. Sou uma prostituta de respeito, a profissional. Nunca
me apaixono pelos fregueses, para mim eles são ferramentas de
trabalho. Só isto. Sabe, tenho postura profissional.
- Sempre fez bem, mas agora você tem medo, já não pode
mais ser aquela profissional.
- Mas fazer o quê? Se eu tivesse estudado. Se eu tivesse ca-
sado, como fizeram minhas irmãs. Se eu tivesse me dedicado a
outro tipo de trabalho.
Outra vez, a lamentação pelas possibilidades não-escolhidas
- a culpa existencial. Mariana proclama o débito e retomo:
- Se estas coisas todas ..
Mariana interrompeu:
-Já sei, doutora, eu não queria nada disso, queria ser livre,
fazer a minha própria vida. Nunca gostei de estudar. ..
- Sempre quis ser livre, porém, hoje, você não quer viver as
consequências dessa liberdade.
- É ruim, é duro. Não ter ninguém.
-E o que você pode fazer para mudar esta situação?
- Está difícil, doutora. Ninguém quer compromisso. Eu vou
lhe contar. Eu vivi até pouco tempo com uma pessoa. Eu conheci
lá na academia. Sabe, é uma moça. Ela é uma pessoa estudada,
sabe? É escritora. Escreve coisas bonitas. Ela gostou de mim,
ficamos juntas, ela largou seu marido. Era bom, ela cuidava de
todas as minhas coisas, foi morar no meu apartamento. Pagava
as contas, cuidava das coisas da casa. Eu não me preocupava
com nada. Eu viajava, ela ficava e, quando eu voltava, estava
tudo em ordem. Ela também pensava que eu era casada com. o

]62
Ana Maria Lopez Calvo de Feijoa

gringo, e que ia lá para ficar com ele e, quando voltava, ficava


com ela. Estava tudo indo muito /Jem a/é agora, quando voltei:
ela resolveu deixar a minha casa. Foi embora, nem explicou di-
reito o porquê. Aí é que eu piorei. Veio a depressão. Ela vai lá
em casa, mas não é a mesma coisa. 1vfesmo não sendo o que eu
queria, pelo menos eu não estava soúnha. Eu estou muito ma-
goada com ela, ela não podia fazer isto comigo. Fico só em. casa,
sem ninguém. Sabe, eu não gosto.
- Esta relação era tudo o que você precisava: era livre e tinha
a segurança: livre da solidão e livre para a ação.
- É, mas agora ela não quer mais. Nem eu, doutora, é como
um vidro que se quebra. Não gostei do que ela fez, não perdoo
mais, doeu muito. Agora se eu encontrasse um rapaz, não preci-
sava ser rico, não. Que fosse companheiro, amigo, não mesa-
caneasse. Isto sim, seria bom. Aias tá difíól, as pessoas não
querem compromisso.
Mariana tinha, no outro, a ilusão da segurança. O outro
ecoava nela a sensação de um anteparo. Como o manco que pre-
cisa de uma bengala para se apoiar, Mariana precisava do outro
para lhe servir de base. Não importava quem, importava que al-
guém estivesse ali para ampará-la. Relacionava-se com o outro
ao modo da preocupação substitutiva, ao modo da indiferença,
deficiência e da dependência. Embora tivesse indícios do que se
_passava, preferi silenciar sobre isto. Lembrei Kierkegaard
quando escreve sobre a importância da paciência naquele que
ajuda. Com impaciência, pode-se acabar fortalecendo a ilusão.
Faz-se, portanto, necessário bastante cuidado se o que se deseja
é dissipar a ilusão.
Fui cuidadosa) era cedo para entrar nesta questão. Aguardaria
a próxima sessão e, cautelosamente, perceberia se me fosse dada
abertura para abordar este tema.

163
Na quinta sessão, fv!ariana entrou, sentou e disse:
- É, doutora, vou ter que volta,: O dinheiro está acabando,
tenho de trabalha,: Fico pen.sondo em ter de pegar o avião. Tanto
acidente, lenho medo. Já pensou?
- Já pensou o quê?
- Se o avião coil: Tenho medo.
- Medo de quê?
- Não sei, estar sozinha.
- Estar sozinha no avião.
- É, não gosto de ficar sozinha, pode acontecer um acidente.
- Um acidente sozinha seria diferente de um acidente acom-
panhada.
- (Ri) Não, sim. É, só estaria com alguém.
- E o que pode acontecer se você estiver no avião e ocorrer
um acidente?
- Não tenho medo de morre,: Sou católica.
-De que você tem medo, então?
-Não sei.
- O máximo que pode acontecer é que você pode morrei:
-É.
- Todos dirão: }.//ariana morreu.
- Não, não quero, não quero morrer. Tenho muito que vivei:
Sobre a morte, diz Heidegger que aquele que teme a morte,
evita a vida. Na decadência, o ser-aí foge do seu poder-ser mais
próprio, vivendo ao modo da alienação e da tranquilidade. Pensei
e, então, lhe disse:
- Viver não saindo de casa, não viajando, não se relacionando.
- É, isto não é vive,: É brincar de vive,: Dizem que ter medo
da morte é ter medo da vida.
Mariana falava da morte ao modo do impessoal. Na não-verdade,
encobria sua possibilidade mais própria do seu ser-para-a-morte.

164
- ]\;fas, doutora, eu nunca deixei de vive,: Era alegre, gostava
da vida, vh;ia rindo, nada me abalava. Eu quero ser a mulher
que eu era.
- Nfantendo a ilusão de que era imortal.
- Não entendi.
- Era alegre, vivia rindo, acreditando que você nunca iria
morrei:
- Como?
Nos mandamentos do psicoterapeuta existencial, descritos a
partir das reflexões filosóficas de Kierkegaard, encontra-se: "As
interpretações poéticas, muitas vezes, ajudam aquele que fala do
seu sofrimento, sem que ele saiba que não se compartilha de sua
paixão e) sim, que se quer livrá-lo dela." Resolvi recorrer à me-
táfora e contei a piada do careca:
- Era uma vez um homem careca, sem um fio de cabelo na ca-
beça. A morte resolveu avisá-lo que naquele dia ele, o careca, iria
embora com eia. Este, pretendendo ser muito astuto, comprou uma
peruca efOi-se para uma festa e, assim, esperava que a morte não o
encontrasse. Aconteceu que, já estando na festa, bateram-lhe no
ombro e, para seu espanto, era a morte, que lhe disse: eu vim buscar
um careca, mas como não o encontrei, resolvi levar mesmo um ca-
beludo ... É, parece que foi nisso que você acreditou: que poderia en-
ganar a vida fugindo e que, assim, a morte não existiria para você.
-Eu não quero morre,: Por isso vou continuar a me esconder.
- Vai continuar a não vive,; se escondendo. E assim mesmo
vai morrei: A morte é inevitável.
- Isso é triste, eu não quero.
- Como se você pudesse não querer.
~ Posso evita,:
-Até quando?
-Não sei. (Chora)

\65
CAPÍTULO 4 Metodologia

Terminada a sessão, peço a Mariana para que visse o filme A


excêntrica familia de Antônia. Esta história conta, de forma se-
rena) o ciclo da vida e a forma como a protagonista vivenciava a
morte. Era preciso que Mariana colocasse a morte como possi-
bilidade concreta, assumir-se como um ser-para-a-morte. Con-
frontar-se c01n a morte implica em não entregar-se ao paradoxo
do eterno e do temporal. Era preciso mobilizar tal dialética. O
filme, atuando como situação metafórica, provavelmente a mo-
bilizaria e, na próxima sessão, se assim ela quisesse) continua-
. ríamos neste tema. Apenas, mais tarde) lembrei-me de que
Mariana não sabia ler, portanto não poderia ler as legendas.
Foi o que aconteceu. Na sexta sessão, Mariana continuou fa-
lando sobre o medo de morrer. Fato do qual ela nunca tivera
consciência. Deu início à sessão com a seguinte fala:
~ Eu ainda não consigo aceitar que eu vou morrer. Já sei: todo
mundo morre, mas eu .. O }lime é legal. A moça morre com tran-
quilidade. Mas porque a gente nasce para morrer, assim não vale.
Neste relato, três situações aparecem:
1. "Ainda" - implica que há um início de mudança, com
relação ao fato de morrer. A morte como pendência) "o
ainda não e'.
2. "Mas eu ... )' - o sentimento de que é especial, por isto o
eu não poderia moner como os outros morrem. O ser-para-
a-morte compreendido de modo impróprio.
3. "Nascer para morrer, não vale:\ a não-aceitação do mor-
rer. O ser-para-a-morte encobre a morte, no modo da de-
cadência.
Fica claro que a disposição se mostra ao modo do decaimento:
a ambiguidade (sim e não à possibilidade da sua morte). Retruco:
- Mas é assim que acontece.

166
Ana Haria Lopez Calvo de FeiJOO

Era o momento de manter a angústia e permanecer neste tema.


Precisava mobilizar a dialética do ten1pornl e do dcrno. Só
assim, Mariana poderia alcançar o que, afinal, justificava a sua
existência. Lembrava-me de Kierkegaard, ao se referir ao deses-
pero como doença daquele que carece de eterno. Mariana justi-
ficava-se no temporal, queria paralisar-se plcna111ente no
presente. O vir-a-ser o que, já havia tempo, ela vinha evitando,
refugiando-se no passado, como lamentação, ou no futuro, como
ansiedade de expectativa.
- (Chora) Quando aconteceu aquilo no salão, aquele sangue
todo, foi ali que eu v; que podia morre,: Fiquei desesperada.
Fico assim até hoje quando penso nisto. Foi horrível. O sangue
não parava, sujou tudo.
- E foi af que você pôde ver que também podia 1norrer.
Nesta situação, Mariana deu-se conta de sua temporalidade,
de sua finitude. O medo, então, surge em uma tentativa de para-
lisar o vir-a-ser - sem futuro, não haveria morte. Por isso, preci-
sava tornar-se prisioneira no tempo presente e no espaço restrito.
Abrir o mundo das possibilidades implicava em maior risco ·
projetar para o futuro: era lembrar-se do imprevisível. Em uma
tentativa de controlar estas duas dimensões do viver, Mariana fe-
chava-se no seu mundo. Carecia de eterno, pois todas as justifi-
cativas do seu existir encontravam-se no temporal.
·- Vi, doutora. Vi como sou frágil, vi tudo que pode me acon-
tece,~ e eu não quero, quero viver muito. Tenho muito que vive,:
- Viver o quê?
- Passear, me diverti,~ fazer muita coisa. Tenho muita coisa
afazei'.
- Fazer muita coisa, desde que você esteja segura de que
nada vai te acontecer.
-É, doutora, quem não quer?

167
CAPITULO 4 Me1oclolog1c1

- Pode ser que olé todos queirom, mas também é verdade,


que ninguém consegue. Este teu projeto está fadado a nào dar
certo. Não dá para viver sem morrer
-i horrível/ Por que a vida tem de ser assim? Tenho medo,
não quero morrer.
-- Porque não quer morre,~ evita vive,:
- É, eu já ouvi dizer que só tem medo de morrer quem não vive.
Eu acreditava que este último discurso era falatório, não vinha
da mobilização pela situação-limite. Mariana ainda não se apro-
ximara da situação incontornável de sua existência. Na tentativa
de provocar impacto, disse:
- E, hoje, o que você menos faz é viver: fugindo da morta,
vive como tal.
- Vivo como morta?
- Para evitar morre,: Não morre, mas também não vive.
(Silêncio), continuei:
- E também não tem nenhuma garantia de que não vai morre,:
- Pois é, mas evito. Só em pensàr nisto fico nervosa. Já está
chegando a hora de voltar para o trabalho. Tenho que pegar o
avião. Não tenho 1únguém para ir comigo. Tenho medo. E se o
avião cai,~ doutora?
- É uma possibilidade.
Aqui era mantida a situação de que ela estava lançada no
mundo como qualquer outro existente. Tudo que é possível, ao
outro também é um possível seu. Omitir ou negar tal possibili-
dade, porque a cliente mostrava-se amedrontada, seria a negação
do paradoxo: temporal e eterno. Ainda, pretendendo mobilizar a
angústia frente ao aqui e ao agora, arrisquei a fala acima.
- Poxa, a senhora ainda diz isto. Assim eu não viajo.
-É uma possibilidade: não víajar e, assim, não arriscar mor-
rer nesse avião, porém não evitará morrer para sempre.

168
Ana Maria Lopez Calvo de Feijoo

-- Não, pior que não.


-- Não dá para não morrer. Isto não dá para escolher, quer se
queira ou não, se vai morrer
- É' .. (Silêncio)
1vfariana parecia estar ma]s entregue à possibilidade concreta de
sua temporalidade. Parecia começar a aceitar a mmie como certa,
porém indeterminada. De acordo com Heidegger, a resolnção apenas
ocmre quando a m01ie se torna para o ser-aí uma possibilidade con-
creta. A aceitação das finitudes da existência consiste na libertação,
em entregar-se ao seu cuidado, consiste na resolução, na "cura".
Na sétima sessão, Mariana não trouxe o tema da temporali-
dade. Começou a sessão queixando-se da sua família.
- Pensei muito, mas eu acho que toda essa solidão, essa
culpa, esse achar que tudo é pecado acontece porque - sabe,
doutora? - minha familia não me dá muita atenção. Eu sei que
eles têm a vida deles. Minhas irmãs têm filhos e marido para cui-
dar. Poxa, mas custava me dar mais atenção? Eu estou preci-
sando, não quero ficar sozinha. Afinal, quando eles precisaram
de mim, eu ajudei, ajudei mesmo. Ajudei a comprar apartamento,
pagar escola dos filhos. Agora que eu preciso ... Eu sei que eles
se preocupam comigo, mas eu preciso de mais atenção.
-Neste momento, você sente que deu muito mais do que está
recebendo agora.
Aqui foi clarificada a vivência emocional, ficando junto à
Mariana, como reco1nenda Kierkegaard: "Na arte de ajudar,
deve-se ser um ouvinte que senta e escuta o que o outro encontra
mais prazer em contar, sem assombro. Apresentar-se com o tipo
de paixão do outro homem: alegre para os alegres, em tom menor
para os melancólicos."
- Com minha famUia sempre foi assim. Eu sempre pensei
mais neles do que eles em mim. Eu estou lá em pais estrangeiro,

169
CAPÍTULO 4 Metodologia

longe, conto uma mentira para eles não sofrerem, mas eles tam-
bém não se interessam muito. Se preocupam com os meus medos,
se preocupam comigo, mas não estão juntos, sabe?
- E aí o sentimento de solidão aumenta ..
Novamente, lancei mão de uma fala compreensiva.
- É, aumenta. Se eu tivesse um namorado, uma namorada ...
Não, eu prefiro um namorado, sabe? Um homem de verdade.
Tudo bem, para não ficar sozinha servia até uma companheira,
mas um homem sempre é melho,; mas eu não tenho. Sabe, não
era para me sustentar, que a gente dividisse. Só não queria ficar
sozinha ... Também, onde vou achar esse homem?
Silenciei. Não sabia o sentido do que Mariana me dizia. Será
que era o companheiro que ela queria? Ou será que queria se
queixar? Deixei o silêncio e esperei que continuasse, desconhecia
o caminho pelo qual Mariana me levava) era cedo para arriscar.
Mariana, porém, continuou em silêncio. Pensei que precisava
ajudá-la e lembrei novamente de Kierkegaard, quando reco-
menda que, para se levar um homem ao seu centro, é preciso che-
gar onde ele se encontra e começar daí. Fui ao seu encontro.
- Se você arranjasse um namorado, de nada mais você senti-
ria falta, nem da companheira, nem da familia.
Tentei me aprofundar mais na disposição de Mariana, que
afeto fundamentava toda a sua solidão?
- Seria diferente, eu tinha meu companheiro, não ia mais às
festas de família, aos almoços de domingo sozinha. Todo mundo
com marido, mulhe,; e eu sempre sozinha. Isto me magoa. Todos
têm seu cúmplice e eu não tenho ninguém.
Parecia que Mariana ressentia-se pelo fato de não ter estabe-
lecido vínculos afetivos. Optava pela liberdade de ir e vir, porém
não queria viver as consequências de sua escolha. Agora queria o
vínculo, porém não havia cuidado para que isto acontecesse. No-

170
Ana Maria Lopez Calvo de FeiJoo

vamente desejava para ela todos os possíveis. Porém não falava


da culpa, que havia mencionado no início ela sessão: "Mas eu acho
que toda essa culpa, essa solidão ... 11 Fui averiguar a culp1.1.
- Entendi o que você /o/ou sobre sua solidão. E quanto à
culpa por causa de sua família, a que você se referiu no infdo
da sessão?
-A culpa, a culpa porque não escolhi o casamento, agora
terfo outra vida, não precisaria me esconder de ninguém. Sabe,
se minha mãe soube,: vai morrer de vergonha. Acho que ela não
aceita ter uma filha assim.
Mariana trazia duas questões: o lamento pelo que deixou de
escolher e ter de se esconder para não decepcionar. Trouxe o pas-
sado e futuro, retornei com ela ao presente.
- O fato é que você não se casou, hoje é prostituta e não quer
que ninguém de sua família testemunhe a sua escolha.
- Testemunhe? Como assim, doutora?
- Que ninguém saiba, quer ter a tua escolha bem escondida.
Fico pensando: será que o namorado cumpriria duas júnções, aca-
bar com a solidão e não deixar ser vista pelos seus.familiares?
-- Não, doutora, ficar sozinha é triste. Não ter ninguém para
conversar à noite, para fazer companhia.
Parecia aqui que o estar só realmente provocava dor. Heideg-
ger discorre sobre o temor como um sentimento derivado da
culpa existencial - ou seja, da lamentação pelas possibilidades
não-escolhidas. O estar-em-débito se fazia presente.
Na oitava sessão, Mariana- como em todas as outras - vinha
vestida com roupas chamativas e salto alto, adornada com muita
bijuteria, e iniciou a sessão:
-Estou outra vez deprimida, sabe? Tenho que volta,~ era para
ter viajado no sábado, mas fiquei com medo; desmarquei a viagem,
mas tenho que ir Meu dinheiro está acabando, tenho que pagar as

171
minhas contas. Sabe, doutora, eu não quero mais trabalha,: Sh1to
um vazio aqui no peito, uma dor. Não sei o que faze,~ Se ficar aqui,
nâo sei fazer nada; se vou, não quero mais trabalha,~ Não lenho
safda, dá um aperto aqui no peito. Aqui tenho um apartamento alu-
gado, mas não dá para nada, pensei também em dividir meu apar-
tamento: alugava um quarto ejá dava para pagar as contas. Viver
com tão pouco, eu também não gosto. Dá um aperto, doutora.fazer
o quê? Gosto de ter dinhéro para comprar as coisas de que eu
gosto, não gosto de me privar de nada. Não sei como fazer. Acho
que não tenho nada para fazei'. Sabe, não vejo nada à minhaj,-ente.
Mariana não havia me avisado que viajaria.
Ela só via duas possibilidades: continuar seu trabalho ou viver
com restrições financeiras, porém nenhuma a satisfaz. Nada mais
é possível. Tentei investigar o leque de possibilidades provocando
desvelar possíveis, mobilizar a compreensão de seu poder-ser:
-- O que mais, lv!ariana, você podia fazer?
- Sinceramente não vejo, doutora. Nunca dei para nenhum
tipo de trabalho. Só sei fazer isto. Não sei ler nem escreve,~ isto
já fica tudo difícil. Comércio, loja, não sei cuidar, não tenho jeito.
Já pensei, pensei, mas não vejo saída. Dá um vazfo, ai de mim.
Se pelo menos aquela moça voltasse, só para cuidar das coisas.
]das, também, sinceramente eu não quero. Tenho que voltar.
A angústia se pronunciava frente às possibilidades de escolha,
não vendo saídas: a única saída que emerge é o retorno à prosti-
tuição, já que a possibilidade do namorado não se fazia presente
e estava chegando o momento de decidir. Continuei:
-Hum, hum ..
Mariana prossegue:
- Tenho que ganhar mais dinheiro, desta vez juntar para
poder não voltar mais, mas agora tenho que volta,: O que eu
faço, doutora?

172
Ana Maria Lopez Calvo de Feijoa

- Parece que esta é a única possibihdade que você vê.


-A senhora vê outra?
- O que eu posso ver são as minhas possibilidades, as suas
não posso ve,: só você pode enxergá-las.
Percebi que Mariana não gostara do que lhe falei, porém não
disse nada e continuou resmungando, sem dar continuidade a
tudo que eu tentara mobilizar. Não sei bem se estava difícil para
ela ou difícil para mim. Lembrei da frase que lera certa vez,
porém não me lembro o nome do autor: "Não é o cliente o resis-
tente, mas sim o psicoterapeuta inflexível." Lembrei também das
palavras de Kierkegaard: "Aquele que está disposto a ajudar car-
rega consigo a responsabilidade e também deve despender de
todo esforço, porém sabendo qne tudo isto só vai ter valor em re-
lação ao resultado obtido." Por mais que me esforçasse, não con-
seguia abrir espaço para que o instante se desse.
No final da sessão, Madana veío até minha mesa, onde eu me
sentara para cobrar as sessões do mês que se acabara, e se sentou
no banco à frente da mesa. Tentou alargar a conversa, meio que
choramingando. Percebi que estava frustrada, mas o próximo
cliente já chamara à porta, havia acabado o tempo. Não poderia
alongá-lo, mesmo porque, se o fizesse, certamente poria por terra
a questão dos limites que já havíamos trabalhado.
Enfim chegamos à próxima sessão, a nona. Mariana chegou,
diferente das outras vezes> com a fisionomia mais fechada, 1nais
séria e disse:
- Sabe, doutora, eu quase não vinha mais. Não gostei da
forma que a senhora me tratou na Ultima sessão. Eu estava quase
chorando e a senhora não ligou pra mim.
Senti um imenso alívio, foi difícil seguir a recomendação de
Kierkegaard quanto ao mostrar-me um ouvinte complacente e
atento, não centrada em mim, porém ocorreu que fiquei mais

173
CAPÍTULO 4 Metodologia

preocupada comigo do que com Mariana. Pensei que ela fosse


falar: "A senhora não ajudou nada, não consegui atuar devida-
mente e eu estou pior do que quando cheguei aqui.>) Estava ali-
viada, pois ela se queixava porque utilizou uma estratégia para
que eu não tenninasse seu tempo e se queixava de mim con10 se
queixava da família: "Na hora que eu preciso, quero todo o
tempo do mundo, danem-se seus outros vínculos." Querià que,
para si própria, nenhuma possibilidade lhe fosse negada.
- O que você gostaria que tivesse acontecido?
- Que a senhora me desse mais atenção. Ficasse comigo o
tempo que eu precisasse.
-E o outro cliente que aguardava lá/ora?
- Ele esperava.
- E o outro a seguir?
- Esperava também.
-E eu?
- Não sei, problema seu.
- Você só sabe do que você precisava. Os outros que esperas-
sem, resolvessem ou não os seus problemas, não importa - desde
que você resolvesse os seus.
Arrisquei trabalhar a forma como Mariana se centrava em si
mesma, nos seus propósitos, na sua necessidade. Resolvera mos-
trar-lhe, naquela situação, o seu padrão de relacionamento que,
embora ela já o tivesse mostrado em vários outros relatos, só no
aqui e no agora se tornara claro para mim. O modo como se re-
lacionava na posição de dominadora, indiferente, manipuladora.
Enfim, a dominação que se fazia presente na sua relação com o
outro, fez-se presente comigo.
- Não é assim, eu precisava.
- Precisava. Precisava assim como você precisava cuidar da
sua profissão, escondendo-a do seu namorado; não importa como

174
Ana Maria Lopez Calvo'de Feijoa

ele se sentiria, você julgava que era assim que era bom para você,
da mesma forma que queria sua companheira, para resolvm' suas
coisas, e que cobrava da sua familia a atenção de que você pre-
cisava e não a medida da preocupação que eles tinham por você.
Por isto, talvez, você se sinta sempre sozinha: tudo o que o ou Iro
faz, só tem importância se for na medida do que você precisa ..
- Sérá? Sou eu quem espanta os outros, sou eu quem deixo
os outros? Não, não pode ser.
- Será?
- Eu sou muito materiaUsta. Quero tudo para mim. Fico preo-
cupada em te,: Dou as coisas e mostro que tenho. Dou e todos
me devem alguma coisa. Eu posso cobra,~ eu ajudei.
- Mesmo quando ajuda, está pensando em você?
- Não, também não é assim. Ajudo, dou coisas.
- Materiais.
- Não, também dou carinho, dou afeto.
-Dá? Como?
- Não sei, doutora. Mas dou, claro que dou.
- Conta para mim uma situação em que você deu afeto.
(Silêncio.)
- Não sei. Não lembro. Deixa eu pensar.
R;etorna, chorando:
- Não sei. Tive que ser fria, senão eu não sobreviveria.
Não hesitei, não senti pena, continuei firme:
- Mas os outros sobrevivem, não é?
- Como assim?
- Os outros não podem ser frios, têm de sobreviver e ser afe-
tuosos com você?
- Não entendi.
- Não importa o que você sinla ou deixe de sentir pelo outro,
desde que o outro cuide de você.

175
-- -·-t,···-

- É assim com a minha amiga, não é, doutora?


- Senüo você fica muito aborrecida.
-É.
- Como ler alguém assim? O outro vai embora e ai você se
sente sozinha.
-É. Eu faço tudo isso. Eu sou egoísta. Só penso em mim.
- Você quer ocupar no mundo um lugar especial, tão especial
que até quer ser ;mortal.
- É, e não existe esse lugar especial. Sou igual a todo mundo.
Também sou mortal.
A sessão prossegue, Jvlariana fica muito envolvida, mobili-
zada. A campainha toca. Mariana se levanta, dá um sorriso e diz:
- O outro cliente chegou, acabou meu tempo.
A situação que ocorreu nesta descrição é denominada, pela
1
psicanálise, de ' transferência" - que se constitui em um fato im-
prescindível para que ocorra o processo psicanalítico, portanto
faz parte do manejo do psicanalista. A transferência consiste cm
uma técnica, que provoca a maneira da entidade. Extrai do
homem, de forma provocativa, fazendo sair do oculto um modo
de sentir. Na abordagem fenomenológico-existencial, esta situa-
ção dá oportunidade de se trabalhar o "aqui e agora". Acredita-
se que o cliente repete um modo de relacionamento com o
psicoterapeuta, que se dá em suas relações outras. Este, por sua
vez, atento ao outro, pode trabalhar com firmeza e risco à situa-
ção que se apresenta. Em uma análise pautada na existência, fala-
se no cuidado, enquanto fenômeno constitutivo do ser-aí -
consiste na abertura, modo de disposição própria das relações no
modo da pré-ocupação libertadora. O encontro constitui-se como
um aspecto fundamental do ser-aí, portanto presente em toda e
qualquer relação. Por isto, não faz sentido para o analista exis-
tencial definir um determinado encontro por transferência. Em

176
Ana Maria Lopez (alvo de Feijoo

cada encontro, a pessoa mostra-se de acordo com a relação que


se estabelece-nas palavras de Heidegger, em "afinação". (HEI-
DEGGER, 1987)
A sessão de número dez era a derradeira. Mariana inicia o
encontro comunicando que iria viajar no sábado seguinte.
- Já marquei a viagem, doutora. Desta vez, não vou desmar-
ca,: Sinto muito não poder voltar aqui. Soube que a senhora vai
para a América do Norte, vou deixar meu endereço no Canadá,
meu telefone e a senhora vai me visitw: eu mostro tudo por lá,
eu conheço tudo.
- Hum, hum. E como você está hoje?
- Estou bem, doutora, resolvida. Esse é o meu trabalho, é o
que eu sei fazei; é o que sempre fiz. E depois, eu não tenho marido
rico, então o jeito é trabalhar Vou trabalha,; juntar um dinheiro,
que eu tenho uma renda, não vou distribuir e então deixo esse tra-
balho. Sabe, é um trabalho perigoso. Tem muito homem que vai
no meu apartamento. É claro, eu não tenho qualquer um para fre-
guês. Meus fregueses são homens de bem, casados, bem-sucedi-
dos. Cliente novo, eu só deixo entrar depois que o vejo. Eu marco
a hora, pergunto o tipo por telefone. Fico olhando pela janela. Se
eu desconfiar, pego o inte,fone, mando o porteiro dar qualquer
desculpa. Tenho cuidado, doutora. Mas, sabe, é perigoso. Mesmo
me cuidando, usando camisinha. Também, tudo é perigoso. A se-
nhora aqui, eu estive pensando. A pessoa marca por telefone e a
senhora, também, não sabe se é um maluco. É claro que a minha
profissão é mais perigosa, mas todas têm seus perigos.
-E o avião?
-Tenho de ir, não é? Então vou. Eu ia pedir a uma amiga para
ir comigo, não na minha casa. Eu combinei com ela: eu pagava a
passagem dela e a hospedagem, e a comida era com ela. Não ia
levar para minha casa, porque ela podia desconfiar: contar aqui

177
CAPÍTULO 4 Metodologia

e aí... Minha família podia sabe,~ E isso, eu não quero. Mas, re-
solvi: vou sozinha mesmo porque, se o avião cai,~ com ela ou sem
ela, eu morro ... Então, eu vou sem ela mesmo, e economizo o di-
nheiro da passagem porque, eu juro: agora vou economizar para
voltar, comprar outro imóvel e poder viver sem ter de trabalhar
- E a solidão?
- É, isso é fogo, doutora. Lá eu fico muito só. De dia, tudo
bem. Pela manhã, eu sou obrigada a sai;~ para provar que eu
trabalho, senão não consigo continuar como residente. À tardi-
nha e à noite, eu trabalho em casa. Mas, ao final da noite - lá
pelas oito, nove horas, quando acabo tudo-, aí é que dói. Jantrr
sozinha, ficar na mesa só, é ruim, doutora: sinto falta de um
companheiro. Com aqueles homens de todo dia, é só trabalho: é
como se eu costurasse uma roupa, é um objeto, sabe? Não vejo
como gente. E, também, não tenho amigas. Nesse mundo da pros-
tituição, as pessoas são muito estranhas: eu não gosto, sabe, se
deixam explorar. Eu não concordo. Eu sempre digo: a minha 'pe-
rereca' é minha melhor amiga. É com ela que eu trabalho, é ela
quem me sustenta. Por isso, eu trato muito bem dela. Sempre tra-
tada com médico, cheirosa. Eu não descuido. Mas elas não, dei-
xam os caras delas maltratá-las, depois me meto com elas e
posso acabar em uma enrascada. Não, prefiro ficar sozinha. É
claro que, se aparecer um cara legal, não precisa ser rico, mas
que eu não preciso sustentar, aí eu quero. Senão, eu fico sozinha.
É diflcil porque, se eu conhecer o cara como freguês, eu não con-
sigo mais me relacionar como namorado. Pra mim, é objeto. Eu
aprendi isto na minha profissão, por isso sou boa profissional.
Freguês é freguês não pode deixar tér envolvimento. Nunca me
1

envolvi, doutora. Faço tudo o que se deve fazer, para ajudar,


para acabar logo, faço o cara se sentir o máximo, faz parte do
profissionalismo, mas é só fingimento, nada mais.

178
Ana MuriJ Lopez Calvo de Feijoo

~ Quando namoro, é d1ferenle: conheço-o sem ele saber que


sou prostituta. É difícil, doutora. Todo lugar que eu estou, vejo
o cara: o cara me olha, posso pensar até que é paquera, mas
quando o cara chega, ele já pergunta: "Quanto é? O que você
faz? Vai uma ... ?" Parece que está escrito na testa. Eu já tive na-
morados: mas, primeiro saí com ele .. 1'lti ao cinema, jantar fora,
barzinho, passeio dé carro .. Até que, depois que já conheço, já
tenho intimidade, rola o amor. Só assim, mas é difícil acontecer.
Mas, se acontecer agora, não perco a oportunidade. Largo essa
vida e vou viver casadinha. Quem sabe quando eu voltar ntio
acontece?
Mariana trazia outro discurso, mostrava-se decidida. Resol-
vera enfrentar seus medos e percebia-se como temporal, reco-
nhecia sua finitude e fazia a síntese da necessidade-possibilidade.
Sentia-se livre para reestruturar seu projeto. Enquanto livre, de-
cidia e assumia os riscos de sua escolha.
Quanto ao problema da solidão, lançou-o para a frente: não assu-
mira ficar só, porém aceitava o momento de solidão. Iniciara, como
havia proposto na sessão de contrato) o encontro consigo mesma.
Poderia dizer que o instante se deu? Caberia pensar que Ma-
riana encontrara as justificativas no eterno? Mariana teria se dado
conta de seu caráter de poder-ser - logo, aberta às possibilidades?
Valeria apostar que ela havia encontrado uma saída singular?
Acredita-se que ainda nada disto acontecera, pelo menos não tão
plenamente. Mariana parecia apenas ter reconhecido a existência
do outro e, com isto, assumira a tutela de sua própria vida. E tais
constatações permitiram que uma outra articulação de sentido
acontecesse e ela, então, decidirá. Sabia que ninguém poderia
decidir por ela.
Terminada a sessão, nos despedimos. Mariana disse que)
quando voltasse, continuaria - nas suas palavras - "vindo aqui,

179
gostei da senhora." Acertou o pagamento, deu-me um forte
abraço e disse: "lvfuito obrigada, doutora."
Porém, não deixou o endereço. Não interpretei o esquecimento
como uma intenção inconsciente, que expressa um desejo incons-
ciente. Para uma compreensão com base na fenomenologia, falar
de esquecimento como mecanismo implicaria explicação, que em
nada contribui, uma vez que o fenômeno deve ser compreendido
na forma como ele se apresenta. O esquecimento pode constituir-
se como a privação da lembrança. (HEIDEGGER, 1987)
Passada uma semana, Mariana telefonou para minha casa e
deixou, na secretária eletrônica, o telefone e endereço de sua re-
sidência no Canadá que havia esquecido, além de insistir para
que eu não deixasse de ir vê-la.
No final deste mesmo ano, em dezembro, depois do Natal,
Mariana telefonou:
-Alô, doutora, é a Mariana, estou passando o Natal e o Ano
Novo aqui com minha família. Estou telefonondo para lhe dese-
jar um muito feliz ano de 1998. Como foi de Natal?
- Fui bem, e você?
- Também está tudo bem comigo, .s)nto saudades das nossas
conversas.
- Tudo de bom para você e também muito feliz 1998.

180
Discussão

A proposta de uma psicoterapia fenomenológico-existencial


foi aqui desenvolvida abrindo a possibilidade de se atuar em uma
outra perspectiva que não seja a psicanalítica, a behaviorista, a
existencial-humanista - nem mesmo a "daseinsanalítica". Trata-
se, pois, de articular o pensamento de Heidegger, já presente em
Binswanger e em Boss, com as reflexões de Kierkegaard acerca
da existência humana e das relações de "ajuda".
Pretende-se buscar o sentido daquele que se encontra desco-
nhecendo o seu poder-ser mais próprio, já que a existência se
constitui pelo constante perder-se de si mesmo e, ao mesmo
tempo, reconhecer-se em seu caráter de indeterminação. O
homem, com sua tendência ao obscurecimento de suas possibili-
dades, esquece-se daquilo que lhe é mais próprio. A psicoterapia
realiza, portanto, uma articulação do 1 'corresponder" com o des-
prender da palavra que, como condição humana, possibilita se
articular uma escuta e fala, as quais - em um processo psicote-
rapêutico - tentam promover uma reapropriação. O psicotera-
peuta deve permanecer atento, de modo que a escolha e a decisão
possam se dar - seja em sua própria tutela, no sentido próprio,
pessoal e singular-, seja na tutela do mundo - no sentido impró-
prio, impessoal e plural.

181
DISCUSSÀO A escuta e a fala em psicoterapia

O psicoterapeuta - em uma proposta fenomenológico-exis-


tencial, assumindo uma atitude antinatural - tenta, em um exer-
cício do cuidado no modo da preocupação, assumir uma postura
libertadora em um desvelamento das possibilidades do ser-aí. O
psicoterapeuta deve proceder da mesma forma que o poeta com
tudo à sua volta: buscando o sentido das coisas na própria coisa,
de uma forma tão própria que, quando o outro toma contato com
aquilo que é desvelado, se surpreenda: pois sabia que, aquele
possível que foi desvelado existia. No entanto, não se mostrava
1

como tal. O 111esmo ocorre na psjcoterapia. O psicoterapeuta,


através de suas palavras, muitas vezes também poéticas, possi-
bilita a fluidez, o movimento. O cliente, não se encerrando em
si mesmo, dá-se conta de suas possibilidades de escolhas - que
já conhecia, mas não sabia que conhecia.
Através do presente discurso psicoterapêutico, pôde-se acom-
panhar o acontecer de Mariana. A princípio, desconhecia seu ca-
ráter de poder-ser, por isso exprimia sua atmosfera afetiva como
sendo "depressão". Utilizava-se do rótulo do impessoal que, fre-
quentemente, trata qualquer incômodo ou estranheza de si
mesmo co1no depressão. Pouco a pouco) a psicoterapeuta, cuida-
dosamente atenta ao que ouvia - de forma paciente e sem assom-
bro frente ao que lhe era confidenciado (porém não se mantendo
no rótulo do impessoal)-, foi buscando, através de sua fala e es-
cuta, a tonalidade afetiva presente em Mariana. O incômodo e a
estranheza foram mantidos para que, na angústia, Mariana pu-
desse reconhecer-se a si mesma: seu temor frente à realidade de
sua temporalidade.
Restabeleceu-se o movimento do existir na dialética do eterno
e do temporal. Mariana pôde aceitar o paradoxo do viver e mor-
rer, e entregar-se à existência. Justificando-se ainda no temporal,
já vislumbra o eterno. Sem aprisionar-se mais à culpa existencial

182
At1él Maria Lopez Calvo de Feijoo

(Kierkegaard) ou ao débito (Heidegger), assumindo sua liber-


dade, vislumbrada pela angústia c1ue abre a possibilidade de de-
cisão ou in-de-cisão, Mariana decidiu entregar-se ao seu
ser-para-o-fim e aceitar continuar o seu projeto: existir, mesmo
que correndo o risco de deixar de existir.
A apresentação do discurso clínico também pôde exemplificar
como se dá o processo de escuta e fala na relação psicoterapêu-
tico. A partir dos constitutivos ontológicos propostos por Hei-
degger ··- quais sejam: corresponder e des-prcnder, que
possibíli.tam a escuta e fala ( o corresponder como o "escutar
aquilo que se fala" e o des-prender como "a fala que se solta
quando se escuta") - podem-se fundar bases para respaldar a es-
cuta e a fala no desenrolar psicoterapêutico, já que escutar e falar
são constitutivos do ser. Importa, então, em uma proposta psico-
terapêutica, estabelecer a estrutura que caracteriza e diferencia
este processo de outras escutas e falas.
Kierkegaard descreve como se deve proceder quando se quer
ajudar o homem a transparecer a si mesmo. Esta descrição já de-
marca urila diferenciação da escuta e da fala, em psicoterapia, de
outros processos de escuta e fala. Heidegger fala das possibilidades
da relação, enquanto Kierkegaard mostra como se dá este possível.
As unidades de significado, encontradas a partir da investi-
gação fenomenológica, fizeram-se presentes tanto no que se re-
fere "às falas" quanto "às escutas", estabelecendo a estrutura do
discurso psicoterapêutico.
A investigação dos processos psicoterapêuticos bem como a
apresentação de uma situação clínica parecem abrir a possibili-
dade de uma atuação psicoterapêutica com base nos pressupostos
fenomenológico-existenciais. Desta forma, fundamenta-se esta
modalidade de psicologia clínica, além de se permitir que este
conteúdo possa ser transmitidoi sem recorrer aos famosos clichês

183
presentes nas orientações de futuros psicolerapeutas ·- "É por aí",
"Deixe-se sentir" - tão frequentes em supcrvisões que se deno-
minam existenciais mas que, no entanto, apresentam-se de uma
forma um tanto quanto infundadas.
Esta proposta não consiste em regras preestabelecidas nem
em um deixar-se ir como um barco à deriva. Trata-se de uma pro-
posta psicoterapêutica passível de transmissão didática, cm que
princípios orientadores de uma prática psicoterapêutica, partindo
do círculo hermenêutico em que nos encontramos, possam se es-
truturar. Estabelece-se uma relação supervisor-supervisando ao
modo da pré-ocupação libertadora, em que o futuro psicotera-
peuta seja livre para si mesmo. Pode-se, também, através de dis-
cussões pautadas em investigações rigorosas, apontar as relações
existentes entre a filosofia do existir e a possibilidade de uma
prática com base na filosofia, sem precisar recorrer a mecanis-
mos, reducionismos ou a elos causais.
Pode-se questionar se uma proposta como esta não recairia
em uma técnica interventiva ou manipuladora, tanto no que se
refere à transmissão didática quanto à psicoterapia. À tal questão,
responde-se com uma negativa. Trata-se aqui de uma technf! no
sentido originário - como desvelamento, de um deixar aparecer
aquilo que tinha possibilidades de ser. Da mesma forma, um es-
cultor frente a uma pedreira vê, na pedra, a possibilidade de dei-
xar aparecer sua escultura e, para tanto, atua com o seu
"poder-ver" em algo que tinha possibilidades de ser. Na sua obra,
utiliza seu instrumental, sem o qual não poderia jamais deixar
transparecer a arte que se deu na relação do escultor com a pe-
dreira. Assim também ocorre com o poeta e o escritor: que
"podem-ver", no cotidiano, situações tão sutis - das quais, o
leigo, só se dá conta ao revelar-se da obra do poeta ou do escritor.
Para escrever ou fazer poesias, o artista utilizou-se de um instru-

184
r-\l!O I IO! 10 LVfJCl. L.CllVV VC" 1 C"!JVV

mental, sem o qual não seria possível a produção artística. Assim


ocorre, também, com o pintor, o cantor, o músico - enfim, com
todo aquele que faz surgir algo que tinha possibilidades para ser.
Ou seja: o escultor, o escritor, o poeta, o pintor, o cantor fazem
aparecer, respectivamente, a escultura de uma pedreira, o poema
ou a crônica de inúmeras palavras, a pintura de uma tela em
branco, a melodia de uma infinidade de fonemas. Tudo isto a par-
tir de uma talhadora, de uma caneta e papel, de um pincel e tin-
tas, da colocação de sua voz, respectivamente. Isto se deve ao
fato de "poder-ver" o que outros, normalmente, não veem. Pro-
vocam perplexidade nestes outros, ao mostrarem suas criações.
O psicoterapeuta, cm uma perspectiva fenomenológico-exis-
tencial, vai produzir ao modo da techne, permitindo que a sua
arte - escuta e fala - cm um processo de produção mútua, trans-
pareça a si mesmo com as suas possibilidades.
O psicoterapeuta, na sua produção, em uma relação libertadora
- em que a escuta e a fala se pronunciam como hermenêutica do
sentido, ao modo do diálogo - pelo seu "poder-ver", traz à trans-
parência aquilo que se mostrava e ao mesmo tempo se escondia;
porém, acima de tudo, aprisionava aquele que clamava por que-
rer-ter-consciência. Para tanto, utiliza-se do seu instrumentat que
faz aparecer aquilo que tii1ha possibilidades para ser. Seu "poder-
ver" provoca perplexidade naquele que transparece a si mesmo.
Por fim, parece que o próprio Heidegger acreditava na possi-
bilidade de uma psicologia fundada em sua ontologia. Segundo
Medard Boss, na introdução aos Seminários de Zollikon, Heideg-
ger nutria a expectativa de que, na relação com os psiquiatras 1

pudesse, através de suas reflexões filosóficas, contribuir para que


novas idéias surgissem do bojo da filosofia, trazendo contribui-
ções à psiquiatria e à psicologia, que beneficiassem a um número
maior de pessoas.

185
DISCUSSÃO A escuta e a fala em psicoterapia

Kierkegaard, por sua vez, afirma que as possibilidades do


homem - juntamente com suas escolhas) a angústia, o desespero,
a liberdade e a não-liberdade - são condições psicológicas e,
como tais, cabe ao psicólogo se pronunciar sobre elas.
Acredita-se que, aqui, se tenha aberto possibilidades, que am-
pliem cada vez mais a liberdade de se criar em psicologia e em
psicoterapia, e1n que o limitador consista apenas no rigor e afinco
que viabilizain uma construção confiável.
Cabe, também, elucidar que a proposta aqui desenvolvida não
tem a pretensão de resolução dos paradoxos - o que a tornaria to-
talmente incoerente. Mesmo oferecendo sinais para o percurso
psicoterapêutico, mantém-se viva a idéia de que tal processo vai
sempre se dar com imprevisíveis, com o desconhecido. Assim
sendo, o psicoterapeuta dificilmente vai se livrar do inusitado,
primeiramente porque é humano. Em segundo lugar, pelo para-
doxo que seu próprio ofício produz: ele também é fadado a viver
a angústia pelo seu caráter e indeterminação, e pelo universo de
escolhas que sempre lhe serão dadas na relação com o seu cliente.

186
Conclusão

Este trabalho teve, por objetivo fundamental, refletir acerca


da possibilidade de elaborar uma proposta clinica, mais especi-
ficamente uma psicoterapia em uma perspectiva fenomenoló-
gico-existencial. O esforço se deu no sentido de tentar articular
um pensamento reflexivo sobre a psicoterapia, permitindo não
mais considerá-la como magia) nem como um tecnicismo, mas
como mn meditar sobre si mesma.
Trata-se de uma proposta psicoterapêutica em que se busca a
mobilização ao modo do desvelamento e não da provocação. A
mudança almejada não é uma proposta de resultados, mas de con-
sequências no modo de "estar-no-mundo".
Nesta modalidade de psicoterapia, a "cura" passa a ser enten-
dida no seu sentido originário do próprio ser-do-ente) enquanto
existente. O psicoterapeuta acompanha o acontecer daquele que
o procura, não como mn processo interventivo) que depende da
ação de um interventor, para atingir resultados adequados à ex-
ploração de recursos, mas daquele que exerce o cuidado no acon-
tecer do outro. Assim, deixa que ele se dê em seu modo mais
próprio.
Pelas questões aqui discutidas, viu-se que tal perspectiva é
urna tarefa possível de realização. Para tanto, faz-se necessário

187
romper com os padrões de científicidade da psicologia, que dão
suporte a uma teoria e a uma prática em psicoterapia. A objetivi-
dade, a quantificação, a noção de linearidade do tempo e do es-
paço, a idéia de substância, constituindo a obrigatoriedade de
algo palpável e material, são os parâmetros exigidos pela ciência
para que qualquer área de estudo se torne científica. Romper com
a cicntificicladc implica abandonar os parâmetros da ciência e
acreditar que eles apenas falam de urna das perspectivas de abor-
dar a realidade e de construir urna verdade. Através da proposta
deste trabalho, viu-se como a realidade pode ser compreendida
tendo como princípios outros que não os da ciência moderna.
Esta foi a visão de mundo que predominou durante três séculos:
mecanicista, compartimentada, reducionista - mas que, sem dú-
vida, trouxe grandes contribuições para o conhecimento e para a
técnica. Deixou, por outro lado, de aba.rcar outros fenômenos que
não podem ser abordados nesla ótica.
Pautar-se cm uma proposta psicoterapêutica em uma instância
fenomenológica significa deslocar-se de uma perspectiva cientí-
fica em psicologia, cujo mundo consiste em uma estrutura lógica,
que permite a recuperação da ordem de experiência à luz da ló-
gica de invariantes: teorias, conceitos e leis gerais, e da matema-
tização de natureza do universo. O saber científico, na sua
inteligibilidade, permite configurar todo o conhecimento em fun-
ção de paradigmas. Corno consequência, tem-se a concepção de
um mundo infinito de idealidades. A crença de que os objetos
deste mundo só são possíveis de serem descobertos por um mé-
todo racional, sistematicamente unificados e que, em progressão
infinita, levariam a atingir todo o objeto na plenitude do seu ser
em si. O mundo passa a ser passível de determinação unívoca e
idêntica. Sem espaço para a singularidade, o singular não é pro-
jeto de ciência.

188
Através do modelo científico, fundaram-se psicologias ônti-
cas e suas respectivas psicoterapias. Propôs-se, neste trabalho,
repensar a psicologia, pautada na totalidade do ser. Parte-se do
pressuposto de que, na base de toda uma proposta - seja de psi-
cologia ou de psicoterapia - pode-se considerar uma ontologia
fundamental, que clarífica e norteia a reflexão acerca do ser do
homem. Pensa-se, aqui, em uma psicoterapia que não busca re-
sultados, maior produtividade humana, nem a adequação do
homem ao mundo do impessoal. Não se trata de uma psicoterapia
que tenha, corno fim, uma utilidade prática e, sim, o de ajudar o
homem a conquistar a sua liberdade, o seu poder-ser, o seu mo-
vilnento do existir - enfim, que encontre sua justificação no
eterno e sua transformação no instante.
Como aqui foi visto, essa empreitada pode se realizar. Não se
trata de um projeto que se perde no imaginário e, portanto, im-
possível. E nem que se repete incessantemente - o que já foi, por
muitos, realizado -, perdendo-se no ôntico, no real. Trata-se,
aqui, de vislumbrar novos possíveis, em que o método fenmne-
nológico e - mais especificamente - a hermenêutica constituam-
se como pano de fundo, juntamente com a filosofia do existir.
A tentativa de elaborar uma psicologia não-científica já se fez
presente com Bínswanger e Boss, quando trouxeram o pensa-
mento de Heidegger para a psicopatologia e a psicoterapia. O pri-
meiro, ainda sob forte inflnência da psicanálise, acabou, em
algnns momentos, por repeti-la. O segundo, pantou-se mais no
caminho fenomenológico do qne na ontologia de Heidegger.
Na década de 1950, Rollo May trazia, para os Estados Unidos,
o pensamento existencialista, onde recebeu a denominação de
"psicologia existencial-hnmanista". Maslow desenvolve o hnma-
nismo como nma proposta da psicologia, cnlminando nas Teorias
de Rogers, que propõem uma "psicologia centrada na }Jessoa,i.

189
CONCLUSÃO A escuta e a fala em psicorerapia

Neste período, surge uma tendência, em psicologia, que foi de-


nominada de "terceira força".
Atualmente, percebem-se alguns ensaios no sentido de buscar,
no pensamento de Heidegger, alguns atrelamentos à psicanálise.
Figueiredo (1996) escreve sobre Maldiney e Fé/ida: derivações
heideggerianas na direção da psicanálise. Afirma que Maldiney
reflete sobre o "acontecimento'\ remetendo-se à eficácia consti-
tutiva do acontecimento, tomando este aspecto como fundamen-
tal para inaugurar um novo ponto de vista acerca da
subjetividade. Parte do "ex-istir" como o fato de estar lançado
no mundo - a estrutura deste "aí", em que o acontecimento, como
instante decisivo, abre a crise que aniquila ou leva o "aí" a cons-
tituir-se como "outro".
Loparic ainda aponta que Heidegger, em Ser e tempo - trata
da ausência constitutiva como uma possibilidade da impossibili-
dade de "estar-aí". Essa possibilidade não se apresenta como um
evento exterior, localizado em um futuro ainda não-alcançado,
mas entranha-se de modo inextricável na própria existência tem-
poral do ser-aí, a partir da qual a história se dá. Essa ausência
constitutiva pode ser vivida no modo de uma mera ocupação com
o intramundano, na queda, ou ser decididamente assumida tal
como se anuncia na insignificância do mundo da angústia (GAM-
BINI, 1996). Loparic afirma, ainda, que a relação entre o sentido
da realidade da experiência e a ausência constitutiva pode abrir
novas possibilidades de atuação clínica, não mais em uma busca
da máxima eficácia instrumental, porém direcionada a um não-
fazer, em uma dimensão de ausência (Op. cit.).
Fundar uma prática psicoterápica, em uma perspectiva feno-
menológica, significa retomar às coisas, voltando-se para as coi-
sas em si mesmas. Abre-se, aí, lugar para a singularidade, sem
abandonar o universal. Implica substituir a interpretação expli-

190
Ana Maria Lopez Calvo ele Feijoo

cativa, em que subjaz o conteúdo latente a partir de um referen-


cial teórico pela hermenêutica compreensiva, que se constitui em
uma possibilidade de desvelar sentidos a partir daquilo que se
manifesta através da compreensão.
Deixa-se) assim, para trás) uma teoria explicativa da psiquê)
que fala de sua posição definida, abraçando-se uma ontologia
que pretende discutir a questão do ser: em essência, implicares-
gatar o seu sentido. Nas palavras de Stein:

Uma psicologia ou a psicanálise, enquanto


ciências, se forem pensadas na sua radica-
lidade, não podem prescindir das estruturas
ontológicas da fenomenologia existencial.
Estruturas estas que não são mais metafisi-
cas: que resultam da forclusão do cosmos e
da exclusão do divino. (1990, p. 89)

Pensar em uma perspectiva psicoterápica nos termos ela uma


fenomenologia hermenêutica (Heidegger) e da filosofia do existir,
de Kierkegaard, consiste em produzir uma obra - produção artís-
tica, que vai buscar, naquele que se apresenta, as suas possibili-
dades mais próprias. O psicoterapeuta apenas acompanha o
exercer desse acontecer, preocupando-se com o outro no modo do
outro, indo onde ele se encontra, libertando-o para si mesmo.
Vale, ainda, questionar se a forma como se expôs uma estru-
tura do processo psicoterapêutico, mesmo pautada em Heidegger
e em Kierkegaard, também não recairia em um sistema. Este
mesmo questionamento foi dirigido a Kierkegaard, e Alberto Fer-
reira - na introdução de Temor e tremor - responde:

Em uma prosa apaixonada e nervosa, Kier-


kegaard persuade e incita para logo desen-
ganar e incutir no espírito a incerteza da
dúvida e do desespero. Raramente demons-
tra ou recorre à prova lógica. (s/p)

191
Resta, agora, refletir se as amarras que a identificação com
uma determinada forma de pensar podem aprisionar o pensador.
Propor uma psicoterapia em uma perspectiva fenomenológjco-
existencial não seria novamente se aprisionar, desfazer-se das an-
tigas e atar-se a novas amarras?
A resposta a esta questão remete novamente às reflexões de
Heidegger sobre a serenidade que se deve ter com relação à ciên-
cia, sabendo dizer "sim" e "não" a qualquer forma de articulação
cio saber. Ao se abraçar qualquer modalidade do pensar sobre as
coisas, tomando-a como verdade única e inquestionável, a pro-
posta psicoterapêutica aqui pensada se constituirá como um apri-
sionamento também, corno qualquer outra proposta. Cabe, aqui,
retomar a resposta de Heidegger, ao esclarecer o porquê de seu
abandono à fenomenologia e à hermenêutica. Dizia ele que não
significava que havia abandonado tais metodologias, mas que
pretendia desembaraçar-se elos rótulos que sua vida acadêmica
lhe exigia.
Aind:1 hoje, no mundo acadêmico, tais identificações também
são exigidas. É o rótulo que, muitas vezes, abre caminho para
que o pensador ou o psicólogo ingresse na academia. Esta per-
tença, embora facilite a entrada, tem um preço: a restrição da li-
berdade. Para tanto, faz-se necessário meditar: poder dizer "sim"
e "não" a qualquer tentativa de aprisionamento ao sistema.

192
Referências bibliográficas

AMATUZZI, M. M. Apontamentos acerca da pesquisa


fenomenológica. ln: Estudos de Psicologia. Brasília:
PUCCAMP, v. 13. n. 11, pp. 5-10, jan./abr. 1996.

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AXLINE, V. Dibs: em busca de si mesmo. Rio de Janeiro: Agir,


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BANDLER, R. et GRINDER, .T. A estrutura da magia. Rio de


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BERG, J. H. V. O que é psicoterapia. São Paulo: Mestre Jou,


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BOSS. M. Angústia, culpa e libertação. São Paulo: Livraria


Duas Cidades, 1988. 77p.

193

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