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A CORRUPÇÃO NA P OLÍTICA

Perspectivas Teóricas e Metodológicas

Fernando Filgueiras
Doutorando em Ciência Política no IUPERJ
Mestre em Ciência Política pela UFMG

Resumo
Este artigo constrói uma crítica metodológica aos modelos formais e comparativos de estudo da
corrupção na política. Em primeiro lugar, apresento a agenda de pesquisas, iniciada na década de 1950, da
teoria da modernização e o modo como ela construiu um conceito e uma perspectivada corrupção. Em
segundo lugar, apresento as pesquisas conduzidas a partir da década de 1990, de viés econômico e
institucionalista. Argumento que estas abordagens do problema da corrupção naturalizam seu conceito e
sua prática. Isso ocorre porque o conceito e a prática da corrupção têm parâmetros culturais e
hegemônicos construídos pela teoria política, nos países do capitalismo central. Especulo, neste artigo,
que o tema da corrupção deve partir de uma teoria política que seja capaz e aberta o suficiente para
absorver os elementos semânticos que atravessam o conceito de corrupção. Desse modo, evita-se os
vieses comparativos e as correlações espúrias construídas ao longo de cinqüenta anos de pesquisa sobre o
tema da corrupção.

Palavras-chave: corrupção, metodologias comparativas, modelos formais, moralidade.

Juiz de Fora, maio de 2006.


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1. INTRODUÇÃO

O tema da corrupção, nas ciências sociais, está relacionado a duas grandes


agendas de pesquisas no século XX. Em primeiro lugar, datando da década de 1950, a
corrupção é tratada no conjunto de uma perspectiva estrutural-funcionalista,
relacionando-a ao problema da modernização. Entre meados da década de 1970 e
meados da década de 1980, o tema da corrupção é deixado de lado, retornando no início
da década de 1990, em vista do problema da liberalização econômica e política, com as
reformas de cunho liberal. O tema da liberalização modificou a abordagem teórica e
metodológica da corrupção, focando o problema em uma perspectiva essencialmente
econômica. Enquanto os membros da agenda estrutural-funcionalista estavam
preocupados em relacionar o tema da corrupção aos macroprocessos sociais da
modernização, na década de 1990 surgem pesquisas que estudam o tema da corrupção
por uma abordagem essencialmente econômica, preocupada com os custos e com as
externalidades geradas em contextos de corrupção alargada.
Este artigo trata das agendas de pesquisa construídas pela teoria da modernização
e pelo institucionalismo de viés econômico. Este artigo tece uma crítica metodológica a
estas duas abordagens, em vista dos problemas comparativos e conceituais construídos
acerca do tema da corrupção. Inicialmente, reconstruo o argumento da teoria da
modernização e do institucionalismo econômico, apontando o modo de acordo com o
qual estas duas abordagens naturalizam o conceito de corrupção. Essa naturalização do
conceito de corrupção estreita seu horizonte de aplicabilidade, na medida em que
permite a atribuição de um sentido universal dado ao termo pelos países centrais do
capitalismo. Com relação ao problema da metodologia comparativa, os desenhos de
pesquisa terminam por ressaltar vieses epistemológicos do conceito de corrupção, os
quais resultam na inefetividade do combate à corrupção e na incompreensão de sua
prática, fora dos paradigmas da modernidade capitalista. Ou seja, as agendas de
pesquisa sobre a corrupção seguem modelos hegemônicos de ciência social, ditados
pelos países do capitalismo central.
Após a reconstrução metodológica do problema da corrupção, elaboro um
exercício normativo segundo o qual a corrupção deve ser analisada, tanto em pesquisas
comparativas, quanto em pesquisas formais. Argumento que o universo do conceito de
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corrupção deve ser alargado em direção aos diferentes sentidos semânticos atribuídos ao
conceito e à prática da corrupção nas ordens políticas contemporâneas. Isso permite a
construção de metodologias comparativas que ressaltem as diferenças nos processos
sociais da corrupção sem cair na armadilha de certo relativismo, o qual pode envolver o
conceito de corrupção, além de evitar os vieses epistemológicos pela universalização
hegemônica do conceito.
Penso que a abertura do conceito de corrupção a outros sentidos semânticos, que
não apenas o do comportamento maximizador utilitarista, possibilita a formatação de
outros significados e de outras práticas que estão envolvidas no universo da corrupção.
Sem embargo, este artigo é um manifesto contra a teoria política que instrumentalizou o
conceito de corrupção defronte às agendas de políticas determinadas por atores
internacionais. Argumento que, para a devida compreensão do conceito e da prática da
corrupção, é essencial a construção de uma outra teoria política, ou seja, uma teoria
política da corrupção. Isto porque o conceito de corrupção, da maneira como tratado
pelas pesquisas comparativas e formais, tem uma constante cultural dos países de
capitalismo avançado, o que não dá conta dos processos de corrupção no âmbito dos
países periféricos.

2. AS PESQUISAS ENTRE AS DÉCADAS DE 1950 E 1970

Pela agenda estrutural-funcionalista, o problema da corrupção foi absorvido por


uma sociologia política de matiz americano. A construção do problema ocorreu no
contexto da teoria da modernização, a qual procurou averiguar as regularidades
funcionais do desenvolvimento econômico e político. A corrupção, nesta abordagem
teórica, foi analisada por uma perspectiva funcional, a qual procurou elaborar uma
relação de causa e efeito em relação ao tema do desenvolvimento. De um ponto de vista
geral, a corrupção foi pensada em torno do tema do desenvolvimento político e
econômico e de que maneira ela pôde contribuir ou emperrar sua consolidação.
Ou seja, a abordagem estrutural-funcionalista procurou absorver as eventuais
conseqüências da corrupção para o desenvolvimento político e econômico, em uma
perspectiva comparativa do fenômeno. Partindo da idéia de que a corrupção representa
uma disfunção no interior de sistemas sociais, a teoria da modernização a colocou,
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enquanto fenômeno, como uma realidade social objetiva, responsável por reproduzir um
tipo de estrutura predatória, a qual tende a configurar um conjunto de comportamentos
orientados por espólios e por vantagens obtidas de modo eminentemente ilegal. A
corrupção representa tanto uma função manifesta nos sistemas sociais, quanto uma
função latente, uma vez que, em sociedades cuja estrutura é tradicional, a corrupção é,
em essência, a própria norma, no sentido atribuído pelos modernos (Merton, 1970).
Como função manifesta, a corrupção tem por conseqüência fomentar ou impedir a
modernização, representando, em muitos casos, eventuais benefícios para a constituição
de uma ordem moderna, balizada, principalmente, nas iniciativas do espírito capitalista.
Para a sociologia da modernização há uma relação necessária entre corrupção e
modernização, uma vez que cenários de larga corrupção definem uma baixa
institucionalização política e, por sua vez, uma ordem fraca para a mediação e a
adjudicação de conflitos (Huntington, 1975).
A corrupção, fundamentalmente, pela tese da modernização, é mais evidente em
sociedades pouco desenvolvidas em relação aos critérios do moderno capitalismo, tendo
em vista o fato de que estas sociedades estão no centro dos processos de mudança
social. Ou seja, a mudança social produz um contexto favorável às práticas de corrupção
uma vez que as normas advindas com a modernização podem representar a corrupção,
de um ponto de vista tradicional, ao mesmo tempo em que são fracas para conter sua
prática. Em cenários de baixa institucionalização, portanto, a corrupção tende a ser uma
prática mais acentuada, já que os processos de modernização implicam a consecução de
novos atores na arena política, ensejando as clivagens sociais e um comportamento não
conducente à norma.
Seu conceito parte da idéia de que a prática da corrupção representa uma ação
intencional por parte de uma autoridade, no interior de um sistema social, que tende a
sobrepor seus interesses privados ao interesse comum, tendo em vista uma estrutura
normativa institucionalizada, a qual determina as fronteiras de uma ação aceita ou não
aceita no interior do sistema (Brooks, 1979).
O sistema normativo tanto pode motivar quanto inibir a prática de corrupção. Seu
sucesso em coibi-la, na vertente da modernização, depende da institucionalização
política, entendida como a aceitação de normas por parte de uma comunidade. Os
critérios de institucionalização são determinados funcionalmente, visando a assegurar a
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estabilidade e a previsibilidade dos sistemas sociais face aos dilemas da modernização.


Desse modo, sociedades imbuídas da modernização, mas que tenham baixa
institucionalização política, estão mais sujeitas às práticas de corrupção. Isto porque,
entre modernização e institucionalização, há um hiato político, no qual a corrupção
ocorre, possibilitando um agir orientado para a obtenção de bens e de vantagens ilegais
(Huntington, 1975).
Tendo em vista a dimensão estrutural e funcional dos sistemas sociais, a análise
da sociologia, ligada à teoria da modernização, conceitua a corrupção como um tipo de
ação praticada por autoridades políticas que se desviam das normas e regras vigentes no
sistema. Por outro lado, este tipo de conceituação, no contexto de análises funcionais,
termina por colocar a corrupção no interlúdio da dicotomia custos e benefícios. A
análise de custos e benefícios da corrupção, em vista do processo de modernização,
lança a hipótese de que ela pode resultar em ganhos agregados ao sistema, tais como o
desenvolvimento econômico, a integração nacional e o aumento da capacidade do
governo (Nye, 1967).
Se mantida sob controle, a corrupção pode ser uma forma alternativa, encontrada
pelos agentes políticos, de articular seus interesses junto à esfera pública. Por exemplo,
a construção de máquinas políticas1 visa a influenciar o conteúdo das decisões tomadas
na arena legislativa, por meio da persuasão das elites partidárias. A constituição destas
máquinas políticas, nas quais a corrupção é o elemento chave, colabora para o
arrefecimento da disputa entre clivagens sociais que surgem com a modernização,
servindo, desta forma, para o desenvolvimento político, econômico e social (Scott,
1969). A corrupção é explicada, portanto, como desfuncionalidade inerente de uma
estrutura social de tipo tradicional, que, no contexto da modernidade, gera instabilidade
no plano político e econômico. A corrupção, dessa forma, pode cumprir uma função de
desenvolvimento, uma vez que ela força a modernização. Porém, sua função de
desenvolvimento é cumprida desde que ela esteja sob o controle das instituições
políticas, de tipo moderno.
No que concerne ao desenvolvimento econômico, a abordagem estrutural-
funcionalista afirmou que a corrupção cumpre uma importante função de
desenvolvimento, ao reduzir as incertezas e incrementar o investimento privado. A
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As máquinas políticas são uma estratégia destinada a aparelhar o Estado de modo que um determinado
grupo social se perpetue no poder.
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lógica é que o investidor, ao corromper políticos e burocratas, assegura condições


institucionais fortes para o investimento, na medida em que diminui seus custos e seus
riscos. Em relação aos custos, a corrupção agiliza a burocracia e reduz o número de
documentos e autorizações formais por parte da ordem estatal. Em relação aos riscos,
por outro lado, a corrupção favorece a penetração dos agentes privados junto à
administração pública, assegurando a construção de regras fixas e estáveis para o
investimento econômico. Em outras palavras, a corrupção azeita o desenvolvimento
econômico ao estabelecer um laço informal  mas sustentável  entre burocratas e
investidores privados (Leff, 1964).
De um ponto de vista geral, a teoria da modernização elaborou um quadro teórico
e metodológico para o tema da corrupção conforme a agenda do desenvolvimento,
típica das décadas de 1950 a 1970. Em relação ao quadro teórico, especulou-se de que
maneira a corrupção pode resultar em desenvolvimento, já que sua prática tem uma
conotação sistêmica que atravessa as instituições políticas e econômicas. Como
abordagem teórica, o desafio da teoria da modernização é fazer com que esta corrupção
sistêmica produza resultados agregados para o desenvolvimento (Nye, 1967;
Huntington, 1975). Esta abordagem, desse modo, especula quais os critérios
institucionais e formais que permitirão o desenvolvimento, mesmo em contextos de
corrupção alargada. Ademais, parte-se da premissa que a corrupção “força” a mudança
social, uma vez que possibilita uma transformação de atitudes e de instituições.
Dentro do processo de modernização, indagou-se como criar instituições estáveis
para fazer com que a corrupção implique em desenvolvimento nas esferas política,
econômica e social. A corrupção tem uma conotação sistêmica, a qual implica num
complexo de ações que tendem a elevar os interesses privados aos interesses públicos. O
dilema da teoria da modernização, no entanto, é fazer com que a corrupção promova
resultados agregados para o desenvolvimento, na medida em que não é possível
erradicá-la como prática por parte dos atores sociais. Neste sentido, já que a corrupção
não pode ser erradicada enquanto prática, teoriza-se o modo como as instituições podem
fazer com que suas conseqüências sejam positivas para a construção da ordem política.
Todavia, além da relação entre custos e benefícios da corrupção, existe outra vertente do
estrutural-funcionalismo ligada ao problema da cultura. Ao invés de afirmar o primado
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do político e do econômico, os autores ligados à chave da cultura política afirmam o


primado da cultura como fator de desenvolvimento (Almond e Verba, 1963).
A premissa desta vertente é que a cultura política tem o primado sobre o político e
o econômico, uma vez que determina a formação da estrutura social conforme valores
concebidos historicamente em dada civilização. O interessante é que a questão dos
valores não representa nenhum tipo de justificação racional, mas a constatação empírica
de regularidades funcionais dos mesmos com o tema do desenvolvimento e da
democracia. O essencial é que a vertente da cultura política reduziu a narrativa da
modernidade a uma história da religião protestante, produzindo a criação de áreas de
modernidade dominadas, formalmente, pelo espírito do capitalismo e da religião
protestante. Desse modo, os Estados Unidos e os países anglo-saxões representam as
ilhas de modernidade, enquanto as demais nações são descritas por uma cultura
predatória, ligada substancialmente à tradição, a qual utiliza a corrupção como forma
convencional de relação social (Almond e Coleman, 1969).
Os trabalhos ligados à conotação da cultura política ligam a corrupção às
interações construídas pelos atores sociais, refletindo experiências e valores que
permitem ao indivíduo aceitar ou rejeitar entrar em um esquema de corrupção. Ao lado
do sistema institucional e legal, o sistema de valores é fundamental para motivar ou
coibir as práticas de corrupção, no interior de uma sociedade. A modernização implica
a mudança dos padrões de valores e de ação por parte dos atores sociais. A corrupção,
nesta lógica, representa, antes de tudo, a permanência de elementos tradicionais que
utilizam, especialmente, o nepotismo, a patronagem, o clientelismo e a penetração junto
à autoridade política para obter vantagens e privilégios (Putnam, 1998). Portanto, além
do desafio da mudança e da criação de instituições, a modernização, para conter a
corrupção, deve fomentar uma mudança nos padrões culturais, de modo a incutir, nos
países tradicionais, o espírito capitalista.
Por esta asserção, a análise da corrupção não deve estar revestida de um
tratamento que leve em consideração apenas a disfunção da ação humana intencional,
mas pela forma como os valores orientam a ação mediante a estrutura social, cuja
onipresença determina os valores culturais que envolvem determinadas ações por parte
dos atores (Lipset e Lenz, 2002). Os valores estão determinados empiricamente na
cultura política, os quais são responsáveis por ensejar o desenvolvimento ou a
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desfuncionalidade da organização política e econômica. Como premissa geral, a


corrupção é menos evidente em sociedades modernas, enquanto que em sociedades
tradicionais é um padrão recorrente de comportamento político. Desse modo, Lipset e
Lenz afirmam que países de tradição protestante são menos corrompidos do que os
demais países de tradição católica, principalmente. De acordo com este argumento, o
comportamento de protestantes é mais conducente ao respeito às normas, enquanto as
demais religiões tendem a ser mais tolerantes com relação às fraquezas humanas,
especialmente com a corrupção.
A abordagem culturalista tomou os valores como regularidades funcionais,
carecidas de justificação racional. Dizer que a política de determinada nação é mais
corrompida do que a política de outra nação carece de relativizar o próprio conceito de
corrupção a partir do que vem a ser a honestidade e a integridade por parte dos atores
sociais. Por outras palavras, a correlação entre religião protestante e probidade da
administração pública, ou a correlação entre religião católica e corrupção apresenta-se
de modo espúrio, uma vez que não leva em consideração, na análise, as diferenças
semânticas do termo corrupção nas diferentes culturas.
A tônica metodológica da teoria da modernização, de frente ao fenômeno da
corrupção, é a construção de desenhos comparativos, os quais ressaltem as diferenças
nos processos sociais, políticos e culturais, tendo em vista um apelo normativo para a
construção de instituições políticas estáveis, tal como as instituições do capitalismo
anglo-saxão, de matriz protestante. Esta abordagem careceu de compreender os
elementos semânticos que atravessam o conceito de corrupção na política, fazendo com
que, ao ressaltar as diferenças em relação aos critérios da modernização, acabe por criar
correlações espúrias em relação ao fenômeno (Filgueiras, 2004).
O tratamento comparativo dado ao problema da corrupção na política, pela
vertente da modernização, fez com que sua abordagem ressalte as diferenças no vazio
semântico das conseqüências da corrupção. Ao afirmar esse modelo de comparação, a
pesquisa sobre a corrupção não considerou, em seu escopo, os elementos fundacionais,
culturais, sociais e econômicos, mediante os quais se devem construir o significado da
corrupção por parte dos atores políticos. Ao ressaltar as diferenças e propor o modelo
ocidental e protestante de instituições, para o controle da corrupção, a abordagem da
modernização passou por cima das singularidades sociais e políticas que atravessam a
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construção do conceito. Ao ressaltar as diferenças, atribuindo à corrupção a ausência de


desenvolvimento, conforme o modelo do capitalismo ocidental, a teoria da
modernização impôs uma agenda de reformas institucionais, que tenderam a afirmar o
modelo especialmente americano para o controle da corrupção. Dizendo em outras
palavras, as primeiras rodadas de pesquisas sobre a corrupção, entre as décadas de 1950
e 1970, são informadas por uma agenda política imposta pelo capitalismo ocidental. A
carência dos modelos comparativos da corrupção, pela abordagem estrutural-
funcionalista, está em não absorver os diferentes significados e conotações nos quais o
conceito e a prática da corrupção são construídos. Problema esse que se reproduz nas
pesquisas criadas a partir da década de 1990.

3. AS PESQUISAS DA DÉCADA DE 1990

Se a primeira agenda de pesquisas sobre a corrupção tinha um forte cunho


hegemônico da ciência social norte-americana, as pesquisas que surgem a partir do
início da década de 1990 vão aprofundar esse caráter hegemônico, tendo em vista as
reformas liberalizantes nos planos da política e da economia. Contudo, ocorreu uma
virada metodológica das pesquisas sobre a corrupção, ao incorporar uma abordagem
econômica para um problema político, a qual está centrada, principalmente, na análise
dos custos da corrupção para a economia de mercado em ascensão. Isso se deve ao fato
de, a partir da década de 1980, o tema da corrupção florescer junto com os processos de
liberalização econômica e política, especialmente nos países periféricos, como a
América Latina e a Ásia, e nos países do Leste-Europeu e na Rússia (Johnston, 2005).
A natureza da política passou a ser percebida como todas aquelas decisões
tomadas em contextos institucionais que afetam a todos, indistintamente. Ou seja, em
um contexto de decisões, cujo resultado seja a corrupção, os custos superam os
benefícios das práticas ilegais. Se a natureza da política está centrada na busca dos
resultados do processo político  especialmente dos resultados econômicos , seu
objeto de estudo passa a ser os fatores que incidem sobre estes mesmos resultados,
derivando, a partir dessa premissa fundamental, as premissas auxiliares de que: (1) os
atores políticos são eminentemente racionais, ou seja, buscam maximizar a utilidade
esperada em contextos de decisão, conforme uma estrutura de preferências (Downs,
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1957); e, (2) de que os contextos de decisão influenciam as preferências e são


determinados pela estrutura organizacional da política, que requer uma
institucionalização dada à representação dos atores (March e Olsen, 1989).
É fundamental, desse modo, coibir os incentivos institucionais para as práticas de
corrupção. O mundo político, pela lógica dos economistas, assenta-se em arranjos
institucionais que criam motivações e constrangimentos para a ação dos agentes,
determinando, respectivamente, horizontes e limites conforme regras impessoais que
neutralizam a pressão por parte de grupos de interesse e dos lobbies, no contorno das
arenas políticas. Instituições determinam as diferentes estratégias empregadas pelos
atores, processando seus interesses e estabilizando o conflito inerente ao seu
comportamento político racional (Hall e Taylor, 1996).
A estabilidade é desejada, mas a prática de corrupção é o mecanismo através do
qual alguns atores políticos aumentam seu poder discricionário, favorecendo a
conversão dos resultados do jogo político para a satisfação de seus interesses privados.
A corrupção é compreendida como uma espécie de resultado espúrio da configuração
institucional, que favorece a constituição de esquemas destinados a pilhar os recursos
públicos a favor de interesses privados.
A corrupção na política, de acordo com Susan Rose-Ackerman, ocorre justamente
na interface dos setores público e privado. Os esquemas de corrupção dependem do
modo como a organização institucional permite o uso de recursos públicos para a
satisfação de interesses privados, tendo em vista o modo como o arranjo institucional
produz ação discricionária por parte das autoridades políticas. Esta discricionariedade
ensejada pelo arranjo institucional incentiva o uso de pagamento de propinas e de
suborno e reforça, dessa forma, a prática de corrupção no âmbito do setor público e do
setor privado (Rose-Ackerman, 1999).
O arranjo institucional deve coibir as práticas de corrupção, porque sua
conseqüência é a criação de monopólios no interior da burocracia, que as motivam pelo
lado dos resultados do jogo político, ou seja, a corrupção resulta em decadência da
legitimidade, tornando o resultado político sujeito ao aumento da ineficácia da ordem.
Desse modo, a corrupção é típica em situações de desordem, como o caso da
fragmentação da União Soviética e as transições para a democracia na Europa
(Koutsoukis, 2003). Na América Latina, durante a década de 1980, esse processo se
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aprofunda, uma vez que as decisões coletivizadas são inefetivas como mecanismo de
canalização do comportamento tipicamente maximizador dos atores políticos
(O’Donnell, 1998). Situações de desordem propiciam práticas de corrupção, porque não
há institucionalização suficiente ou condizente com determinado contexto social.
A abordagem institucional da corrupção chama a atenção, por conseguinte, para a
necessidade de reformas institucionais, no plano político e econômico, visando a criar
regras fixas para a interação entre os interesses privados e o interesse público,
comungando com mecanismos institucionais que impeçam a existência de monopólios e
a captura da burocracia estatal por parte de funcionários públicos e de agentes privados.
Um excesso de controle para coibir a prática de corrupção, no entanto, pode implicar a
ineficiência da administração pública, fazendo com que a busca de integridade mediante
a maquinaria anticorrupção e as reformas institucionais caminhem, necessariamente, no
aumento gradativo e sistemático dos custos para o controle da corrupção (Anechiarico e
Jacobs, 1996).
Por outras palavras, não cabe às reformas institucionais reforçar o poder da
burocracia, uma vez que estas reformas resultariam em maior discricionariedade e em
maior incentivo para o pagamento de propina e de suborno, ou seja, em ampliação das
práticas de corrupção. Por outro lado, é necessário um mecanismo de agregação de
vontades particulares em decisões coletivizadas, visando a assegurar a consecução de
uma ordem estável e produtora de cooperação entre os indivíduos. No aspecto formal,
que representa um consenso entre analistas ligados a teorias neo-institucionalistas, a
prática de corrupção não é coibida mediante reforço do poder burocrático, mas pelo
fomento do mercado (North, 1990).
Paralelo às reformas das instituições políticas, cabe ao arranjo institucional
fomentar a existência de um mercado enquanto arena constante de negociação e de
catalisação dos interesses por parte de agentes econômicos e políticos. Os esquemas de
corrupção dependem dos recursos disponíveis  políticos ou materiais  para que as
autoridades ajam discricionariamente, redundando na criação de incentivos para o uso
de pagamentos de propinas e de suborno. Todavia, além disso, a corrupção, de acordo
com Rose-Ackerman, é uma prática que encontra motivação na proporção em que as
falhas de mercado estão presentes na cena política, fazendo com que os agentes públicos
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se comportem de maneira rent seeking, ou seja, maximizando seu bem-estar econômico,


seja seguindo as regras do sistema, seja não as seguindo (Rose-Ackerman, 1999).
É neste sentido, portanto, que a corrupção ocorre, pela lógica econômica, quando
o mercado é coibido enquanto arena de criação de decisões coletivizadas, especialmente
o mercado político, que é o locus da democracia em contextos institucionais. Os agentes
públicos visam a maximizar os recursos do Estado para seus fins particulares, com o
intuito de ampliar sua renda, sendo que, no caso de corrupção, esta caça a rendas é
estritamente ilegal. Porém, como observa Rose-Ackerman, antecede à ação dos agentes
públicos de caça a rendas, sua ação de monopolizar a burocracia, possibilitando o
controle do fluxo das decisões políticas e o controle sobre a dependência dos agentes
privados ao Estado. Portanto, a corrupção é diretamente proporcional ao tamanho da
máquina burocrática, ou seja, ao tamanho do controle do Estado sobre os agentes
privados, através da emissão de documentos, da cobrança de impostos e de taxas e da
consecução de programas e de obras públicas.
A monopolização da burocracia, por conseguinte, cria incentivos para que os
burocratas profissionais cobrem propinas dos agentes privados para a liberação de
documentos e recursos públicos, tornando o combate à corrupção oneroso do ponto de
vista administrativo (Colombatto, 2003). Isto porque o governo se encontra na posição
de comprador ou de fornecedor de recursos públicos, criando incentivos para que a
propina se torne um mecanismo recorrente de ação política. Os custos da corrupção,
dessa maneira, incidem em duas dimensões: de um lado, pela evasão de dinheiro em
obras públicas, programas sociais e na burocracia estatal, o qual poderia ser utilizado
para outras atividades; e, por outro lado, com a maquinaria anti-corrupção, que exige o
dispêndio de dinheiro com os órgãos e agentes responsáveis pelo controle das obras,
programas e da burocracia (Mauro, 2002).
A causa estável da corrupção, nesta assertiva, é a existência de monopólios e de
privilégios no setor público, os quais criam incentivos para que os agentes busquem
maximizar sua renda privada através do suborno e da propina, para auferir recursos
públicos. Contudo, como mostram Rasmusen e Ramseyer, a corrupção sofre do
problema de coordenação da ação coletiva, caso os recursos e o poder de negociação
dos agentes públicos estejam fragmentados. A fragmentação de monopólios e a criação
de estruturas competitivas simétricas de um mercado político inibem a cobrança de
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propinas por parte de legisladores racionais, que têm os custos da ação corrupta ou
corruptora ampliados (Rasmusen e Ramseyer, 1994).
Em essência, a abordagem econômica da corrupção, tendo em vista a perspectiva
neo-institucionalista, trabalha com a idéia de que os esquemas de corrupção representam
modelos de múltiplos equilíbrios. Ou seja, a corrupção assume dimensões sistêmicas
quando as estratégias adotadas pelos atores resultam em eventual sucesso das práticas
corruptoras. A corrupção é permanente, mesmo em contextos de liberalização do
mercado, na medida em que ela representa um custo menor do que os custos impostos
pela burocracia e pela ordem social. As estratégias bem sucedidas de corrupção tendem
a ser adotadas pelos atores, caso não haja elementos competitivos que inibam sua
prática (Mishra, 2006).
Deste modo, o único modelo de equilíbrio possível para o controle da corrupção é
a construção de instituições competitivas através de reformas que mantenham a
liberalização do mercado intacta. Apesar de a corrupção representar custos para o
próprio mercado, a adoção de uma estratégia corruptora por parte dos atores é preferida
em relação a estratégias conducentes à obediência das normas. Neste sentido, as
reformas devem optar pela construção de instituições competitivas, que trabalhem com
a idéia de controle externo, sobreposição de jurisdições, ombudsman e múltiplos “veto
powers” (Bardhan, 2006).
A perspectiva institucionalista e econômica defende reformas do Estado no
sentido da erosão dos monopólios estatais, da fragmentação das burocracias
profissionais e da privatização de empresas controladas pelo governo. O combate à
corrupção se dá através da criação de uma estrutura constitucional que limite o nível dos
benefícios dos monopólios sob controle do Estado, que, por natureza, é um expropriador
de riquezas dos agentes privados. Por outras palavras, para que ocorra um devido
combate à corrupção mediante os fatores institucionais exógenos à racionalidade dos
atores políticos, é necessária a transferência das atividades controladas pelo Estado 
que é uma estrutura personalista por natureza  para o mercado, tanto em sua dimensão
política, quanto em sua dimensão econômica.
O ponto central para o estudo da corrupção na política, de acordo com esta
abordagem institucionalista, é a consideração dos sistemas de incentivos criados pela
burocracia, para que os agentes tenham um comportamento “rent seeking”. As
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democracias competitivas e os mercados são condições necessárias para um governo


honesto, já que estabilizam os interesses egoístas dos agentes em torno de regras
mínimas de pacificação social, criando a estabilidade e o contexto de cooperação
necessário à prosperidade (Montinola e Jackman, 2002). Ademais, estruturas
competitivas, no âmbito da ordem política e no âmbito da ordem econômica, é que
criam os benefícios públicos que atendam às necessidades dos agentes, já que o arranjo
institucional tem o poder de modificar o comportamento das pessoas.
A abordagem das pesquisas da década de 1990 aponta a construção dos
mecanismos de liberalização, via reformas, pelo fomento do mercado e pela contenção
do poder burocrático do Estado como instrumentos centrais para o combate à corrupção
na política (Johnston, 2005). As pesquisas são construídas de duas formas: ou por
metodologias formais, mediante a construção de modelos de equilíbrio, ou por
pesquisas comparativas, que, tal como a abordagem da teoria da modernização,
ressaltam as diferenças dos casos, visando a afirmar o modelo do capitalismo ocidental
como o mais eficiente no controle da corrupção. Associa-se a isso, o fato de a agenda da
globalização e das reformas liberais tomarem as instituições das economias avançadas
como paradigma ou conceitos para a construção dos desenhos de pesquisa.
De um ponto de vista geral, as pesquisas sobre o tema da corrupção, produzidas
ao longo da década de 1990, trouxeram ao centro do debate a agenda de reformas
liberalizantes, no plano econômico e político, imposta pelas instituições internacionais,
preocupadas com os elementos de estabilidade e de investimento. Do mesmo modo que
a teoria da modernização, as pesquisas sobre o tema da corrupção passaram por cima
dos elementos semânticos, os quais implicam construções distintas para o conceito de
corrupção. Ao passar por cima dos elementos fundacionais, culturais, sociais e
econômicos de cada ordem política, as pesquisas conduzidas pelos economistas, ao
longo da década de 1990, terminaram por reproduzir uma agenda de reformas
liberalizantes de cunho global. Entretanto, quando a agenda de reformas liberalizantes
foi aplicada, singularmente mediante a importação por parte dos países periféricos das
instituições dos países do capitalismo central, a corrupção se tornou desenfreada, uma
vez que esta agenda não atenta para os elementos fundacionais das diferentes ordens
que compõem a cena internacional.
14

Do ponto de vista metodológico é necessária a criação de um outro tipo de


abordagem para o problema da corrupção, que esteja atenta aos elementos singulares
das ordens políticas, sem cair na armadilha do relativismo. Para isso, é fundamental a
construção de uma teoria política que dê conta de ampliar o foco sobre o tema da
corrupção. Esta teoria política da corrupção deve incorporar em seu conceito
determinados processos sociais, os quais informem conteúdos semânticos e significados
gerais que incidem sobre sua prática. A idéia da próxima seção deste artigo é fazer
algumas aproximações teóricas, tendo em vista o objetivo de elencar ao escopo de um
projeto maior de pesquisa, uma abordagem expandida do conceito de corrupção, a qual,
quando levada para estudos comparativos, dê conta dos elementos singulares e das
diferenças processuais que estão embutidas na prática da corrupção na política.

4. A ABRANGÊNCIA DA CORRUPÇÃO – UMA PERSPECTIVA TEÓRICA

Na seção anterior deste artigo apresentei os elementos gerais que estão contidos
nas agendas de pesquisa sobre o tema da corrupção. Da mesma maneira, apresentei o
modo de acordo com o qual o controle da corrupção, derivado do conhecimento
acumulado em aproximadamente cinqüenta anos de pesquisa sobre o tema, está
relacionado à naturalização de seu conceito, em torno do comportamento maximizador,
e das instituições dos países do capitalismo avançado.
No que diz respeito à naturalização do conceito de corrupção, ele é pensado
sempre na fronteira dos interesses, passando por cima de elementos culturais 
diferentes da abordagem culturalista da modernização , sociais e políticos (Filgueiras,
2004). Por outro lado, naturalizou-se, também, as instituições do capitalismo avançado
através da proposição normativa do desenvolvimento e da modernização, implicando,
por parte dos países periféricos, na importação de modelos e organizações políticas e
judiciárias. Além disso, o que diferencia as agendas de pesquisa sobre a corrupção é o
fato de que a abordagem da modernização fez um tratamento consequencialista da
corrupção, tendo em vista a metodologia funcionalista, enquanto a abordagem
institucionalista e econômica assentou-se na questão dos custos da corrupção para o
Estado e para o mercado.
15

O lugar comum das pesquisas sobre o tema da corrupção, tanto as formais, quanto
as comparativas, é escamotear os processos sociais e os aspectos semânticos que estão
envolvidos no conceito e na prática da corrupção. Argumento que o tema da corrupção é
árido para as metodologias e as técnicas de pesquisa das ciências sociais. No entanto, é
fundamental a construção de uma teoria política da corrupção, a qual seja capaz de
alargar o horizonte de expectativas do conceito, por meio do mapeamento dos
elementos semânticos que estão contidos em sua prática.
De antemão, argumento que o tema da corrupção tem uma forte ligação com o
tema da moralidade. Por mais que as pesquisas formais tentem passar por cima disso, ao
assumir a naturalização do comportamento maximizador dos agentes políticos, existe
uma ligação com o tema da moralidade, pelo fato de haver uma orientação normativa
relacionada ao tema da ordem política. Ou seja, a corrupção é aquilo que a sociedade
constrói como o rompimento de uma orientação normativa, a qual é estabelecida pela
construção de juízos morais acerca do comportamento dos atores e das instituições.
Como observou Habermas, a linguagem da moralidade envolve, necessariamente,
a emissão de juízos justificados no plano da razão prática, os quais permitem a postura
de assentimento ou de rejeição por parte do sujeito. O jogo da linguagem moral envolve,
necessariamente, uma analogia da moral com o conhecimento, vinculando o sentido
prescritivo, tais como as asserções “correto” ou “proibido”, ao sentido epistêmico, tais
como as asserções “justificado” ou “injustificado” (Habermas, 2004). Não cabe,
portanto, um distanciamento metodológico entre ética e direito, ou entre ética e política,
para a análise do fenômeno da corrupção, porque, pelo fato de se tratar de juízos
emitidos pelos atores, que consideram a corrupção ou a integridade, necessariamente,
eles devem estar vinculados a uma norma.
No plano da linguagem, dizer que uma ordem política é íntegra ou corrompida,
significa mobilizar, no ato de fala, determinados valores justificados racionalmente,
fazendo parte de consensos normativos2 que orientam a ação dos atores em contextos de
interação. Para dizermos que uma ordem política é corrompida, ou não, depende do
modo como os agentes criam o significado de sua interlocução no plano da moral,
agregando à ordem o qualificativo de sua corrupção ou de sua integridade. O significado
da corrupção, dessa forma, prende-se a enunciados contingentes, conforme orientações

2
A respeito do conceito de consensos normativos, conferir Eisenberg (2003).
16

normativas que não escapam ao plano da moral. Porém, o plano moral da política
funciona, no caso da corrupção, em contextos de aplicação de valores. Por outras
palavras, a corrupção só pode ser apreendida em seu alcance na esfera pública através
das questões hermenêuticas que atravessam os juízos estabelecidos pelos atores em
contextos de interação.
No plano da linguagem, portanto, estabelecer se uma ordem é corrompida ou
íntegra, significa estabelecer juízos morais, os quais integram ao plano de aplicação de
conceitos os valores consensualmente formulados no plano moral. Desta maneira,
proponho que o tema da corrupção deve ser analisado conforme sua abrangência na
ordem política, social, cultural e econômica. Em primeiro lugar, porque o instrumental
empírico não permite averiguar, de modo exato, qual o custo da corrupção dentro da
sociedade. Em segundo lugar, porque, pela idéia de abrangência, especula-se de que
forma a corrupção se espalha na sociedade. E em terceiro lugar, porque uma abordagem
em torno da abrangência da corrupção procura justamente os elementos semânticos que
estão contidos no conceito e na prática da corrupção, ao contrário da abordagem
funcionalista, como a da teoria da modernização, que encobriu estes elementos
semânticos e agregou, na mesma ordem natural, as diferenças sistêmicas e singulares no
plano comparativo.
Apreender a abrangência da corrupção, desse modo, só é possível levando-se em
consideração os juízos empregados pelos atores ao estabelecer que determinada ordem é
corrompida ou não. O plano moral, portanto, é inescapável para a análise da corrupção,
tendo em vista o fato de ela ser compreendida, na esfera pública, não por orientações
subjetivas ou naturalizadas no plano do sistema, mas por orientações oferecidas pelos
valores dados à socialização. Não se trata, portanto, de mobilizar a moral para uma
reforma totalitária da ordem, mas de compreender os substratos políticos que dão
sustentação à norma, sem os quais não é possível compreender a corrupção na política.
Estes substratos políticos estão relacionados aos elementos fundacionais, sociais,
culturais e econômicos da corrupção, os quais integram quatro tipos ideais de corrupção,
de acordo com os tipos de juízos morais emitidos pelos atores.
Os juízos morais podem ser de valor ou de necessidade. No caso dos juízos
morais de valores, é necessária uma adesão interna dos indivíduos ao plano dos valores,
criados como uma forma consensual de vida que orienta o agir na realidade social
17

contingente. Pensando a respeito da corrupção, o juízo moral de valor sobre a ordem


mobiliza um conjunto de virtudes ou o espírito público do corpo político. A adesão,
dessa forma, ocorre em vista de determinados princípios éticos que orientam o agir,
conforme a empatia determinada no âmbito da comunidade. Não respeitadas as virtudes
ou o espírito público do corpo político, atribui-se a uma ordem o adjetivo da corrupção.
Por outro lado, os juízos morais de necessidade dependem apenas de uma
simpatia em relação a artifícios nomológicos atrelados à idéia de interesses. Ao
qualificar uma ordem como que sob efeito da corrupção, o juízo moral de necessidade
mobiliza as necessidades dos atores em contextos contingentes de interação,
especialmente ligados ao modo de produção e aos riscos de sua reprodução no tempo. A
adesão do sujeito, por conseguinte, ocorre em vista de necessidades fluidas presentes na
esfera pública, conforme a inclinação recíproca determinada pelos interesses.
Pela lógica dos juízos morais, a corrupção pode assumir quatro formas, de acordo
com as quais se estipula um enunciado normativo que delimita o conteúdo semântico da
corrupção. Em primeiro lugar, a corrupção pode assumir uma forma exclusivamente
política, a qual leva em consideração as virtudes do corpo político. A justificação
racional de normas leva em consideração os termos da fundação da ordem política, a
qual especifica os critérios de cidadania em torno da excelência do agir em contextos
contingentes. A emissão do juízo ocorre em função de uma justificação racional de
valores, que tem na fundação o momento original de ordenação da política, uma vez que
ela especifica os termos da boa vida e de bom governo, em face da contingência e do
conflito. A corrupção, nesta chave, em termos semânticos, está ligada à avaliação do
decoro do corpo político face aos princípios da ordem.
A corrupção também pode assumir uma forma cultural na medida em que leve em
consideração, no juízo moral de valor, os costumes. Se o conteúdo do juízo moral é o
costume, exige-se do agente moral sua honestidade frente ao potencial corruptor dos
bens externos3 , formatando o bem viver em torno da honra pessoal, a qual torna o
agente passível de julgamento por parte da comunidade. A obrigação ou o

3
Alasdair MacIntyre define dois tipos de bens, no plano ético. Os bens internos promovem a vinculação
empática dos agentes, de modo a fundamentar uma racionalidade orientada a valores e motivada por uma
identidade fundamental. Por outro lado, os bens externos estão relacionados ao dinheiro e poder, que
demandam um controle institucional da ação. Os bens externos, desse modo, definem uma racionalidade
tipicamente instrumental, formando um potencial corruptor de primeira ordem. A esse respeito, conferir
MacIntyre (2001).
18

comportamento orientado por normas, nesse contexto, ocorre uma vez que o agente
moral se sinta obrigado consigo mesmo, ou seja, vincule a seu agir a conquista dos bens
internos, frente ao potencial corruptor dos bens externos, tornando-se honrado frente a
seus co-partícipes na comunidade. A corrupção é, necessariamente, um perigo para a
reprodução da tradição, porque o potencial corruptor dos bens externos torna a
excelência do agir vulnerável pela via de um viver cotidiano. A corrupção depende dos
campos simbólicos que designam as práticas dos agentes como honestas ou como
corruptoras, tendo em vista a honra pessoal em face do juízo emitido em torno dos
valores fundamentais da comunidade.
Em terceiro lugar, a corrupção pode assumir uma forma social, na medida em que
os juízos morais vinculam ao agir necessidades materiais. A semântica da corrupção é
estabelecida como a usurpação dos bens por parte dos agentes ou das instituições. Em
essência, configura-se o juízo moral em torno da semântica da segurança e da proteção
da propriedade e do bem comum. O descontrole das armas leva a uma restrição do
Estado como elemento garantidor da ordem. Substantivamente, a corrupção do Estado
está ligada a qualquer tipo de prática ilegal que vise a ampliar a riqueza em
contraposição aos procedimentos da justiça. A corrupção é um ato de violência que
implica na restrição do Estado, entendida por Rousseau (1998) como o fato de o
governo não administrar mais conforme o império da lei.
Finalmente, a corrupção pode estar associada a uma forma econômica, cuja
semântica representa qualquer tipo de apropriação indébita de um domínio público,
tendo em vista sua ilegalidade. Ao contrário da usurpação, entretanto, a corrupção,
compreendida em sua forma econômica, não ocorre por meio da violência, mas das
fraudes que envolvam o domínio público, rompendo a confiança depositada nos atores
políticos que representam as partes envolvidas na moral contratual4 . Uma vez que a
moral contratual não é respeitada em função de uma fraude, a qual se generaliza no
âmbito da sociedade, temos um contexto de desestabilização do modo de produção pela
via da corrupção, em sua forma econômica. O quadro abaixo mapeia as semânticas da
corrupção, conforme seus tipos ideais.

4
A respeito da moral contratual, conferir Durkheim (2002).
19

QUADRO 1. OS TIPOS DE CORRUPÇÃO

Tipos de juízos Juízos de valor Juízos de necessidade


morais

Formas da
Política Cultural Social Econômica
corrupção

Conteúdo do juízo
Decoro Costumes Respeito Confiança
moral

Consideração do
juízo em contextos Prevaricação Desonestidade Usurpação Fraude
de corrupção
Mudança ou Campos simbólicos Práticas ilegais, que Apropriação indébita
suspensão dos que ordenam as visam a ampliar de uma coisa de
Substâncias da valores morais práticas designadas prestígio e renda, domínio comum,
corrupção fundamentais (de como honestas ou mediante ato mediante ação ilegal.
boa vida e de bom corruptas e/ou violento.
governo) corruptoras.
Reprodução de Restrição do Estado
Transferência de
Deslegitimação da práticas que colocam como mecanismo renda entre grupos
Conseqüências da ordem política. em risco a garantidor da sociais e
corrupção integridade da segurança, minando
monopolização de
comunidade. sua autoridade. atividades
econômicas.
Institucionalização Proibição de Proibição de Proibição de práticas
de determinados determinadas determinadas por parte dos agentes
princípios práticas por parte práticas por parte econômicos, visando
constitucionais que dos agentes morais, dos agentes privados à manutenção do
Normatização orientem e motivem visando à integração e do Estado, visando modo de produção
contra a corrupção
os agentes políticos, da comunidade à integração da (reprodução
para a manutenção (reprodução, sociedade econômica)
da ordem. mediante (reprodução social,
entronização) mediante regulação
externa ao agente)

Afirmo que os tipos ideais acima distinguem diferentes formas mediante as quais
podemos compreender a abrangência da corrupção nas ordens políticas contemporâneas.
Substancialmente, os tipos ideais acima apresentados estão relacionados com os
elementos semânticos que atravessam os enunciados lingüísticos, os quais atribuem a
probidade ou a corrupção de um ato praticado por um ator político. A abrangência da
corrupção, entretanto, deve somar ao ato praticado pelos atores o aspecto potencial que
atravessa seu conceito. Argumento que além do ato, a corrupção deve ser analisada em
sua potência sobre a ordem política.
20

Essa perspectiva para a abordagem do fenômeno da corrupção na política leva em


consideração as conotações sistêmicas que estão relacionadas à sua abrangência sobre a
ordem política. Mesmo tomando a premissa de que a corrupção faz parte da ordem
política, a abordagem do fenômeno da corrupção deve estar atenta aos elementos
fundacionais, aos elementos culturais, aos elementos sociais e aos elementos
econômicos. Do ponto de vista semântico, desse modo, a corrupção deve ser analisada
no tempo, tendo em vista sua abrangência sobre a ordem, conforme os tipos ideais
definidos em torno do tema da moralidade. Isto permite uma configuração sociológica
de sua abrangência conforme suas características históricas, jurídicas, societais e
culturais.
O alcance da corrupção, no contorno das ordens políticas, pode ocorrer de formas
variadas, conforme perspectivas de sua classificação como fato social. Além dos termos
semânticos, por conseguinte, a abrangência da corrupção deve dar conta de uma
taxonomia de seu processo nos contextos da sociedade. A idéia de criar uma taxonomia
da corrupção nas ordens políticas tem o objetivo de explicar a corrupção por sua
abrangência na ordem, como um fato social. Do ponto de vista da teoria sociológica, as
taxonomias pretendem fazer uma reflexão classificatória dos fatos, de modo a
compreender o alcance de suas conseqüências sobre a sociedade (Stinchcombe, 1968).
Do mesmo modo, cogito que a classificação da corrupção deve dar conta de seu
processo social, conforme os conteúdos semânticos definidos acima.
Argumento, portanto, que se analisada em uma perspectiva diacrônica, a
corrupção tem um sentido no tempo. Tempo esse que pode ser acelerado ou adiado, de
forma que o sentido da ruptura da ordem política é primordial para a compreensão dos
efeitos desencadeados pelo seu processo. A corrupção caminha, necessariamente, para
uma rota catastrófica no interior da ordem, na medida em que ela a vai esvaziando de
sentido ontológico. O processo social da corrupção se inicia pelo esvaziamento da vida
republicana, ou seja, pelo gradativo afastamento da fundação. O esquema proposto pode
ser representado, graficamente, do seguinte modo:
21

GRÁFICO 1. A RELAÇÃO ENTRE CORRUPÇÃO, VALORES E NECESSIDADES

corrupção Ruptura da ordem


institucional

Limite das
necessidades

Limite dos
valores

Variação no
tempo

A B C tempo

Tendo em vista as fronteiras estabelecidas pelos valores e pelas necessidades,


conforme os juízos emitidos pelos atores políticos no âmbito da ordem, podemos
derivar três tipos ou configurações de poder que especificam a abrangência da
corrupção na política. A curva representada é ultrapassada por esses limites, de modo a
configurar três espaços sociais, os quais possibilitam classificar a corrupção por seu
alcance. Esta asserção permite identificar o fato de que a corrupção não está fora dos
limites da ordem. Ao contrário disso, a corrupção permanece na ordem, na medida em
que ela faz parte de sua constituição. Seu significado é o fato de ela ser a negação da
fundação da ordem, corroendo permanentemente seus alicerces institucionais e
valorativos. Isso não significa, por sua vez, que a corrupção seja benéfica, como
apontou Nye (1967), mas necessária para ordenar a própria sociedade e a política.
No espaço social A, a corrupção é mantida sob o invólucro dos valores e das
instituições, já que um contexto de controle institucional, associado a virtudes do corpo
político, a tornam controlada com base em uma fundação ontológica que justifica os
termos da ordem. A corrupção, no espaço social A, é controlada porque mesmo que ela
exista como prática, ela é coibida institucionalmente, de acordo com princípios e
22

normas bem determinados. A corrupção controlada é um tipo ideal do alcance da


corrupção sobre a ordem, na medida em que é uma configuração social e política difícil
de ser atingida ou, quando isso ocorre, de ser mantida no tempo. Pode funcionar como
um modelo normativo para as instituições políticas. Entretanto, foge à realidade, já que
a corrupção faz parte da natureza política, tendo em vista o fato de ela estar assentada,
basicamente, em relações de poder.
No espaço social B, por sua vez, a corrupção ultrapassa os limites dos valores,
fomentando uma tolerância que é explicada pelo fato de ser uma prática aceita, desde
que não rompa com os limites das necessidades materiais humanas. Ou seja, a
corrupção tolerada implica na existência de impunidade e iniqüidade de agentes
públicos sem romper, contudo, a reprodução das práticas vigentes e aceitas na sociedade
e na economia. A tolerância em relação à corrupção está configurada numa teia de
interdependências acerca das necessidades e de controles sobre os recursos,
expressando, em última instância, relações de poder. Desde que mantida sob vigília do
próprio Estado, sua corrupção é típica em sociedades complexas, uma vez que elas se
afastam dos princípios republicanos e das virtudes do corpo político, mantendo seu
controle sob responsabilidade de uma administração pública que liga, aos segredos da
razão de Estado, as necessidades de um homem auto-interessado e desprendido em
relação aos valores5 .
Finalmente, no espaço social C, a corrupção rompe o limite das necessidades e,
por redundância, a ordem institucional, de forma que a endemia torna a corrupção a
própria norma da sociedade6 . A corrupção endêmica implica na ruptura institucional do
ordenamento jurídico-político, desintegrando as práticas sociais e econômicas numa
situação de total anomia. A corrupção endêmica, por sua vez, é pouco típica, porque
representa cenários de ruptura institucional, ou mesmo um fato criador da ordem. Em
sua endemia, a corrupção representa a perfeita desordem, cuja resultante é convocar as
forças constituintes da política e da sociedade para gerar uma nova ordem. A geração
arrosta a crise, de forma a redefinir, no âmbito da esfera pública, a ordem, na medida em

5
Do ponto de vista de uma axiologia do Estado, Weber destaca que, na modernidade, há um
esvaziamento de valores, de forma que a racionalidade se sobreponha às formas de encantamento típicas
dos antigos. Conferir, Weber (2002).
6
Parto do princípio que as instituições são destinadas a controlar o poder, o dinheiro e as armas. São
organizações que absorvem e aplicam regras ao comportamento humano, de modo a estabilizar a vida
cotidiana.
23

que as forças constituintes operam de modo a institucionalizar suas essências singulares


no campo do movimento coletivo.
A abrangência da corrupção pode ser classificada em três modelos gerais,
conforme os tipos ideais, em vista dos enunciados semânticos da corrupção. Argumento
que a análise da corrupção nas ordens políticas contemporâneas deve pensa-la pela
perspectiva de sua abrangência junto à sociedade. Essencialmente, considero que a
ligação entre o fato da corrupção e a moralidade permite abordar o fenômeno, mesmo
em vieses comparativos, sem a naturalização de conceitos e de instituições, como o
fazem a abordagem da teoria da modernização e a abordagem do institucionalismo.
Argumento, antes de tudo, que o controle da corrupção está relacionado a fatores
histórico-sociais que atravessam os elementos de fundação e a própria socialidade7 em
que ela opera.
Uma perspectiva classificatória da corrupção deve dar conta dos processos
macrossociais que informam as rotas institucionais, os arranjos de poder e o controle
sobre os meios econômicos. Ademais, cada sociedade apresenta a corrupção como um
problema sistêmico específico. Mesmo iniciativas internacionais para o combate à
corrupção devem dar conta destas singularidades, as quais permitem compreender seu
problema. Dessa forma, para problemas sistêmicos, cabe, antes de qualquer coisa,
respostas sistêmicas. No entanto, não se acessa estas respostas sistêmicas sem a
compreensão dos termos semânticos envolvidos no conceito e na prática da corrupção.
Em vista dos tipos ideais de corrupção, penso que a abrangência da corrupção se
dá em vários campos que não apenas o da economia ou o do desenvolvimento. A
corrupção tem uma forma política, cultural, social e econômica que devem ser
organizadas teoricamente, visando a ampliar o horizonte de aplicabilidade do conceito
de corrupção. Ademais, pela abrangência, permite-se compreender as configurações de
poder envolvidas nos processos da corrupção na política. O quadro abaixo procura
organizar o modo como, normativamente, a corrupção se espraia no espaço social, de
forma a compreender os alcances, práticas e significados sistêmicos que atravessam
seus diferentes enunciados semânticos.

7
A respeito do conceito de socialidade, ver Baechler (1995).
24

QUADRO 2. A TAXONOMIA DA CORRUPÇÃO


E SUA ABRANGÊNCIA NAS ORDENS POLÍTICAS

TIPOS DE
CORRUPÇÃO

Política Cultural Social Econômica

ABRANGÊNCIA
DA CORRUPÇÃO
Círculo Os campos Mecanismos legais Mecanismos legais
institucional simbólicos que impeçam a que impeçam a
virtuoso, no qual as designam a usurpação do poder fraude e a
instituições são corrupção como e do dinheiro apropriação
Controlada
envolvidas por um mal que deve através do largo indébita de coisas
virtudes do corpo ser combatido com controle dos meios do domínio
político. a força repressora de violência. comum, tendo em
da própria vista certa
comunidade. igualdade de
classes.
Extensão do Os campos Um descontrole A burocracia do
clientelismo, do simbólicos toleram parcial das armas, Estado fomenta um
nepotismo e da a corrupção por ser acompanhado de contexto em que é
patronagem, ela um meio para baixo grau de mais vantajoso para
visando à auferir vantagens obediência em os agentes
reprodução de um materiais, em vista relação aos econômicos
Tolerada grupo estamental, do fato de ser comandos do pagarem propinas e
no conjunto da incorporada à Estado. subornos para
tradição política da tradição. continuarem suas
comunidade. atividades, em vista
de certa
desigualdade de
classes.
Declínio das Os campos Descontrole dos Monopolização de
virtudes cívicas simbólicos meios de violência certas atividades
pela total apatia designam a que fazem com que econômicas por
dos corpos da corrupção como os agentes do parte dos agentes,
república e o uma prática aceita Estado usurpem a fomentando maior
Endêmica declínio da em vista da propriedade alheia desigualdade
liberdade positiva desintegração dos e o domínio estatal social.
pelo esvaziamento laços comunitários, para auferir
da fundação da em face da ruptura vantagens privadas
ordem. com a tradição. e prestígio.

A taxonomia proposta para a corrupção associa os elementos semânticos com sua


abrangência sobre a ordem política. A vantagem de adotar essa perspectiva, ligando o
conceito de corrupção aos termos lingüísticos envolvidos na moralidade, é permitir a
construção de desenhos comparativos de pesquisa, mediante os quais se ressalte o
alcance da corrupção, sem a naturalização de seu conceito e de sua prática. Pretende-se,
25

exatamente, enquadrar os casos conforme os sentidos atribuídos pelos atores em


interação. Alargando-se o horizonte de aplicabilidade do conceito de corrupção, tendo
em vista os processos lingüísticos, espera-se um refinamento metodológico que não
implique a importação e a reprodução de instituições dos países centrais do capitalismo.
Com isso, ressalto, antes de qualquer coisa, a singularidade envolvida nos processos
sociais da corrupção, bem como o modo como ela persiste, mesmo em contextos
institucionais que implique seu controle.
A taxonomia da corrupção, contudo, não quer ser a aplicação de uma abordagem
universal para os casos singulares, nem mesmo construir paradigmas que sirvam como
modelo para a explicação da corrupção. Ela quer enquadrar os casos pela absorção dos
elementos semânticos da moralidade e compreender o modo de acordo com o qual
certas configurações de poder possibilitam ou restringem sua prática nos contornos da
ordem.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Posso dizer que esse é um artigo de protesto. O estudo da corrupção está associado
a agendas de pesquisa que reproduzem certos interesses e perspectivas de políticas que
são definidas, normalmente, no plano internacional. Por esta assertiva, mostrei que o
conceito de corrupção tem um parâmetro cultural e hegemônico. Argumentei que o
estudo da corrupção deve partir de uma premissa normativa, sem a qual não se
compreende o comportamento transgressor, nem mesmo seus processos dentro das
ordens políticas e sociais. A construção de uma teoria política da corrupção, portanto, é
essencial enquanto abordagem sistêmica do conceito e da prática da corrupção,
refinando o conceito pelo modo de acordo com o qual ocorre sua absorção e sua
tradução, visando a uma aplicabilidade que seja capaz de incluir o mundo periférico.
Por se tratar de um artigo de protesto, especulo que a devida análise da corrupção
deve se ater aos elementos normativos que estão envolvidos no plano lingüístico do
conceito de corrupção. Apenas dessa forma podemos ter uma noção da abrangência da
corrupção, tendo em vista uma taxonomia de seus processos, ou seja, das configurações
de poder envolvidas nos planos da ação e da potência da corrupção sobre a ordem.
26

O objetivo desse artigo é pensar a corrupção em um universo mais alargado de


aplicabilidade de seu conceito e abrir novos flancos de pesquisa. Em primeiro lugar,
especulo que a corrupção deve ser analisada dentro dos processos históricos-sociais que
permitam a compreensão dos elementos fundantes da ordem. Desta perspectiva,
compreende-se os macroprocessos de configuração das relações de poder e dinheiro, os
quais permitem apreender a prática da corrupção no contexto global da ordem política,
em função de sua conotação potencial. Em segundo lugar, é necessário o mapeamento
das práticas potenciais nos marcos jurídicos. Ou seja, pensar, nos termos da legalidade,
o modo como os marcos jurídicos abordam e processam o tema da corrupção, quais seus
desafios, suas contradições internas e seus princípios fundamentais. Em terceiro lugar,
proponho que a corrupção deve ser analisada em relação à forma como o mundo
econômico percebe e absorve o alcance da corrupção em função dos processos sociais.
Finalmente, proponho que a corrupção, dentro da burocracia do Estado, deve ser
analisada de acordo com a maneira como é percebida e rotinizada no interior dos órgãos
burocráticos. É diferente de se atribuir um comportamento naturalmente maximizador
de renda por parte do burocrata. Essencialmente, deve-se pensar o modo como a
corrupção se alastra, e em que medida, pela burocracia estatal.
Com estas asserções, espero não naturalizar o conceito de corrupção, nem cair na
armadilha do relativismo cultural, o qual pode justificar a corrupção em relação aos
valores de certa sociedade. Fundamentalmente, as pesquisas comparativas e os estudos
de caso devem se pautar por estas perspectivas teóricas e metodológicas, de modo a
evitar que o tema da corrupção represente uma agenda política, antes mesmo do
conhecimento, nem que as matrizes culturais hegemônicas atuem sobre o fenômeno.
Com estas perspectivas, especulo que o conceito de corrupção não deve ser
instrumentalizado, mas alargado no plano da moralidade e de seus processos sociais,
sem os quais não podemos compreender a abrangência, o sentido e suas práticas.

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