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I

A primeira coisa que eu fiz quando desci daquele maldito trem foi acender um cigarro.
A sola da minha bota atingiu o chão com o descaso que eu ainda acho que aquela cidade
miserável merece. Whitwell havia ficado alguns quilômetros para trás, e agora eu estava
em pé na estação, em meio a um enorme horizonte de nada, ainda me perguntando
porque eu tinha aceitado ir para ali, e com um maldito torcicolo por ter cochilado no
trem após três noites consecutivas sem dormir.
Então eu acendi um cigarro, e foi assim que encerrei meu recorde de dois dias sem fumar.
Para registro, foram os dois piores dias da minha vida e, para mim, isso significa algo.
Olhei em volta, tentando lembrar qual caminho seguir. Era curioso pensar que eu estava
a somente pouco mais de uma hora de distância de Londres; o lugar parecia ter sido
esquecido pela civilização logo após uma invasão romana. Prendi o cigarro na boca e
tomei minha pasta do chão. Além dela, havia trazido somente uma mochila – não
pretendia ficar muito tempo -, de forma que me sentia novamente com quinze anos, ou
ao menos tão desconfortável quanto. Naqueles tempos, eu ainda tinha uma leve
comichão, uma ansiedade intermitente, toda vez que chegava em Austman Way, por
mais que tentasse me passar por displicente, fingindo que não me importava de estar ali.
Tomei o caminho da direita que, se me lembrava corretamente, me deixaria na
plataforma de desembarque. Não nutria esperanças de haver um táxi ali, mas talvez eu
pudesse dar algumas libras para um garoto desocupado me levar até a fazenda que era
meu destino.
Então, decidido a andar naquela direção, parei onde estava.
Senti um cheiro ao mesmo tempo doce e acre, como se alguém queimasse folhas de
hortelã. Respirei fundo, o odor invadia minhas narinas como um incêndio numa horta, e
eu somente esperei.
-John, o Apóstata – uma voz feminina disse, com escárnio. - O que diabos você está
fazendo aqui?
-Por que eu não estaria? – Traguei o cigarro, sem encará-la. – Aqui é um lugar tão bom
quanto qualquer outro.
-Você devia estar em Londres – ela retrucou, com um tom mais neutro. – Você sabe o
que estão dizendo de você por lá, não é?
Baforei como resposta e ela sacudiu a cabeça antes de responder.
-Olhe, eu nem deveria estar aqui – eu a olhei de soslaio, e ela estava belíssima. Estava
morena, em um tom claro, como se tivesse tomado uma quantidade saudável de sol, e
seus cabelos estavam ondulados e volumosos. Usava um vestido azul-claro que realçava
o contraste com sua pele, e sapatilhas pretas, discretas. Senti um arrepio percorrer a
minha espinha, e me concentrei nele por alguns instantes para expulsá-lo de mim. Sei
que ela percebeu minha reação, mas dessa vez não esboçou nada mais do que um fugaz
sorriso tímido. – Ainda assim, você já me ajudou no passado, então me sinto no dever de
retribuir a dívida.
-Você não me deve nada, Bilquis – minha voz estava firme, porém dócil. – O que fiz não
foi por você. Sinceramente, se eu pudesse ter isolado e queimado aquele sobrado com
você dentro, eu o teria feito.
-Mas não fez – ela retorquiu com agilidade. – E para mim isso é o suficiente.
Ela aguardou uma resposta minha e, por isso, eu não a dei. Ela continuou.
-O seu lugar é em Londres, Constantine – notas de uma urgência discreta pontuavam
suas palavras. – Você já deveria saber disso a essa altura. Nada de bom acontece para
você, e para o mundo, quando você sai de lá.
-E nada de bom me acontece quando fico também.
-Isso é maior do que você e eu, John – eu pude sentir que, caso pudesse me tocar, ela o
teria feito. Naquele momento eu desejava que ela me tocasse, mas não autorizei, então
ela continuou presa em seu impulso e eu em minha vontade. – Você tem um papel a
cumprir em Londres. Eu te diria mais se eu pudesse, mas você sabe que viriam atrás de
mim caso eu o fizesse.
-Eu vejo isso e agradeço, Bilquis – respondi, sendo o mais dócil que eu imaginava ser
devido. – Mas eu ainda prefiro nutrir uma ilusão de autodeterminação cometendo
pequenos atos de rebeldia contra o destino.
Ela balançou sua cabeça negativa e graciosamente, e as ondas de seus cabelos só eram
menos ameaçadoras do que a maré dos seus olhos.
-Você deveria manter distância de quem ama, Constantine, e não vir ao encontro deles.
-Está tudo bem – eu disse, jogando a guimba de cigarro no chão, pisando sobre ela à
guisa de ponto final na conversa, mesmo que eu já sacasse o próximo cigarro. – Eu não
os amo.
-Então por que está aqui? – Ela se virou em um ângulo desconfortável, sem se mover,
para me encarar de frente. – Ou por quem?
Eu a mirei em seus olhos por quanto tempo era humanamente possível, então somente
acenei com a cabeça e me pus a andar. Caminhei poucos metros antes de sentir
novamente o cheiro de hortelã queimada, e tive vontade de tomar um chá ao mesmo
tempo que soube que ela já não estava mais na estação. Não me virei para confirmar.
Desci os degraus que levavam da plataforma ao nível da estrada e estaquei a alguns
metros da calçada. Encostada em uma caminhonete vermelha estava um fantasma de
vinte anos atrás, mexendo em seu celular.
Ela percebeu minha aproximação, e seus olhos se arregalaram e estreitaram, buscando
reconhecimento.
-John? – Ela disse, temerosa. – John Constantine?
-Amanda Wilkes?
Ela abriu um largo sorriso e veio ao meu encontro. Notei que ela queria que eu a
abraçasse, embora não tivesse feito nenhum gesto; eu, infelizmente, estava com as mãos
ocupadas, e não poderia colocar minhas coisas no chão, obviamente.
-Há quanto tempo! – Ela constatou, contida. –Você está bem diferente do que era aos
seus quinze anos.
-Fico feliz – eu sorri, desconfortável. – Você também mudou bastante.
-A vida faz essas coisas com a gente – o lugar-comum pareceu natural saindo de seus
lábios, e eu mudei de posição, inquieto. – Sua tia me pediu para te buscar, espero que não
se importe.
-Não, de forma alguma. Inclusive eu me perguntava como faria para chegar lá.
-Nós já temos táxis aqui – ela respondeu, fingindo estar ofendida. –Certo, talvez seja
somente um táxi, mas o fato é que ele existe.
A piada foi sem graça, então eu ri com ela, discretamente. Andei até o carro, dando a
volta até o lado do carona, ela assumindo o volante com firmeza.
-Quase não pude vir, hoje é um dia complicado – ela iniciou, soando como desculpa para
uma ofensa que somente cometeu em sua mente. – Mas sua tia me ligou tantas vezes,
todo dia a mesma ladainha... “Olha, Amanda, John está vindo, ele não deve lembrar o
caminho, ele é rapaz de cidade, vi fotos e ele está muito mudado, e está tão solteiro” – ela
riu, e eu ajustei o cinto de segurança apenas para ter algo a fazer com as mãos.
-Tia Dolly, por outro lado, não parece ter mudado nada.
Ela riu novamente, e isso parecia muito fácil para ela.
-Verdade. Continua a mesma de sempre. Eu, por outro lado, creio ter mudado bastante
também. Mesmo tendo ficado aqui, acho que passei por mais coisa que você, lá na cidade.
Eu a encarei, em silêncio, e ela interpretou isso como um sinal para prosseguir.
-Fui promovida na loja de equipamentos, já estou há quase 5 anos como gerente-geral,
desde que Rudy se aposentou. E agora tenho a Sandy, minha menina, quase dez anos de
idade. Ela é tão inteligente, John, você não acreditaria...
Ela falava, e de alguma forma ouvia a sua voz da mesma forma que escutava há vinte
anos atrás, mas ela provinha de outro corpo, e me ocorreu como o tempo muitas vezes
apresenta os mesmos efeitos de uma possessão. Seus olhos eram os mesmos, embora o
rosto que os abrigava agora estivesse dotado de algumas rugas que antes não existiam;
seus cabelos ainda eram lisos e claros, mas não estavam tão viçosos quanto aqueles pelos
quais passei meus dedos há tanto tempo; os lábios, ressecados, mexiam-se com a mesma
agilidade, os cantos ainda se contorcendo em micro sorrisos à cada vírgula de sua fala.
Ela era exatamente a mesma pessoa, somente não era ela mesma. Um espírito mais velho
habitava o corpo que um dia esteve junto ao meu. Eu me lembrei de quando estávamos
debaixo de uma árvore, eu preso entre a vontade de beijá-la e o puro contentamento de
estar com ela naquele momento. Tínhamos um copo de suco cada que minha tia havia
servido, e foi com ele que nós brindamos. “Aos nossos futuros, John.” “Aos nossos
futuros, Amanda.”
Aquela memória, de alguma forma, era melhor do que a memória de um beijo.
Foi por isso que, quando ela fez uma pausa dos relatos sobre sua filha, eu só tinha uma
questão a fazer.
-Você está feliz?
Ela tirou os olhos da estrada e olhou para mim, ligeiramente atônita. Não esperava
aquela pergunta, e mesmo eu, após fazê-la, me questionava o porquê de tê-la feito.
-Ah, John... – Ela começou, sem muita ênfase. – Eu nunca saí de Austman, exceto logo
antes de Sandy nascer, e somente fiz as compras das coisas que ela precisava e voltei para
cá, no mesmo dia. Eu casei com Chad—
-Chad Brubaker? – Eu interrompi, sorrindo. – Ele era um idiota, e um bully agressivo.
-Ele é – ela respondeu, com um sorriso triste, e o meu próprio saiu de meu rosto. – Enfim,
não me leve a mal, eu gosto muito da minha vida – ela voltou a curvar o canto de seus
lábios, mas agora o sorriso já não parecia tão espontâneo. – Tenho um emprego que me
sustenta com tranquilidade, tenho amigos e, principalmente, tenho a minha garotinha,
que vai poder realizar tudo o que eu não pude. Se ela quiser, claro – ela passou a manga
da camisa na testa para tirar o cabelo da testa, exatamente como sempre fez. – O fato é
que eu podia estar muito pior. Alguns dos meus colegas de escola morreram de cirrose,
overdose e todas essas outras oses que acomete esse povo que se acha mais aventureiro.
Eu estou bem.
Assenti, murmurando um “certo” e esperando que ela me pedisse para relatar meus
últimos vinte anos. Brinquei mentalmente com a possibilidade de contar a verdade a ela,
com um resumo que incluiria uma banda de rock de gosto duvidoso, estudos de
ocultismo, um exorcismo que deu muito errado, a violação de uma Virgem Maria,
monstros feitos de lodo e folhas mortas e um câncer mal curado. Ela não me perguntou
nada e, embora tenha sido melhor assim, fiquei um pouco decepcionado pela
oportunidade perdida.
Os cinco minutos restantes do trajeto foram feitos em silêncio, e ela me deixou no pórtico
de entrada do sítio dos meus tios. Eu olhei a casa, a algumas dezenas de metros de onde
eu estava, e ela se erguia de alguma forma ainda maior do que eu me lembrava. Era um
sobrado de dois andares, estilo clássico, com portas grandes e janelas largas. De onde eu
estava ainda conseguia ver uma janela no último andar, redonda, através da qual eu
olhava nos verões em que o sótão se tornava o meu quarto. Mesmo à luz do sol, a casa
parecia acinzentada, e “lúgubre” foi o único adjetivo que me veio à mente, surgido de
algum livro que li há muito tempo.
-Se sente em casa? – Ouvi a voz de Amanda atrás de mim.
-De certa forma – retruquei cuidadosamente. – Muito obrigado pela carona, foi um
prazer te ver novamente.
Para minha surpresa, era sincero, e ela percebeu.
-O prazer foi todo seu – ela alargou o sorriso. – Você... Gostaria de tomar um chá ou café
amanhã, depois que você já tiver se instalado?
Não, porque amanhã eu pretendia já estar a caminho de Londres. Não tinha nenhum
motivo para ficar mais do que um dia em Austman Way, e certamente não tinha vontade
onde a razão faltava.
-Sim, claro – respondi.
Ela assentiu.
-Ligo para a casa para marcarmos. Sua tia me falou que você não tem celular.
-Não gosto de me sentir observado.
Ela sacudiu a cabeça com simpatia.
-John Constantine, sempre o diferente – ela ligou o carro quando eu fechei a porta, se
despedindo através da janela aberta. – Até amanhã.
Assenti levemente e não fiquei para assistir enquanto o carro dava meia volta e ia embora.
Eu já atravessava o pórtico, sem pressa. Andando em direção à casa, quase conseguia me
ver correndo por aqueles jardins quando ainda era criança, subindo na macieira que
existia no lugar de uma vistosa roseira, caindo e ralando o joelho nas pedras que
ladeavam o caminho. Eu avançava, e agora já me via na pré-adolescência, preferindo
estar com meus amigos em Londres por um curto espaço de tempo – somente o
necessário para que Amanda soubesse que eu havia chegado, e viesse me ver.
Agora eu estava mais perto, e a casa parecia não ter recebido o devido cuidado nos
últimos anos. A pintura estava ressecada, e a tinta branca havia caído em diversos pontos;
onde permanecia, adquirira um tom sujo, escuro. Uma das janelas do segundo andar
estava trincada, mas meus olhos vagaram rapidamente para o sótão, onde tia Dolly havia
me encontrado entre velas e runas antigas desenhadas no chão, em uma noite de verão.
Ela me expulsara imediatamente da casa, no último trem disponível, sob os protestos do
meu tio Emmett – que me amava, mas não o suficiente para ir contra sua esposa. Embora
não tenha contado para meu pai, que certamente me espancaria à época caso soubesse do
ocorrido, Dolly também nunca mais me convidou para visita-la.
Até semana passada.
O telefone havia tocado às 8 da manhã em ponto. Provavelmente estava ao lado do
telefone esperando dar uma hora apropriada para me ligar, sem levar em consideração
que eu havia deitado às 4 da manhã, tentando dormir pela primeira vez em dias.
“John?”, e a voz dela parecia forçadamente animada para alguém que não falava comigo
havia duas décadas. “Johnny, é sua tia Dolly”. Demorei alguns segundos até despertar e
conseguir responder, absorvendo poucas coisas do que ela dizia. “Faz muito tempo”, “eu
cometi um erro”, “seu tio não está bem, não deve ter mais muito tempo, venha visita-lo”.
“Certo”, respondi. “Chego aí na próxima quarta-feira.”
E aqui estava eu, na dita quarta-feira, olhando para a casa sem saber o maldito motivo
de estar ali. De fato meu tio Emmett me era muito querido – sabia do meu interesse por
ocultismo, e eu havia contado para ele mesmo os pequenos truques e feitos mágicos que
já praticava à época. Ele sempre demonstrou se divertir com isso, jamais acreditando de
verdade, e eu achei melhor não convencê-lo do contrário. Mesmo pequeno, não havia
demorado a perceber que era Emmett, e não Dolly, que me queria ali; não queria fazer
nada que colocasse isso em risco. Não podia perder minha chance de escapar de Londres
pelo menos uma vez por ano.
Depois que parei de vir a Austman Way, não demorou muito para que eu fugisse de casa.
Talvez tenha sido melhor assim.
De qualquer forma, ali estava eu, e a minha tia que me pusera num trem à noite para
chegar sozinho em Londres aos 15 anos de idade agora me esperava para o almoço.
Alcancei a varanda da entrada, e algo me atingiu no rosto, como se eu tivesse batido em
uma parede. Cheguei a levantar as mãos para toca-la, mas logo percebi que não era uma
percepção física. Recuei dois passos, instintivamente, e olhei para a casa. Um medo
intenso se assomou dentro de mim e precisei me concentrar para isolar e rejeitar o
sentimento: não havia nada que fosse digno disso naquele lugar e, mesmo se tivesse, não
me deixaria dominar por medo, não à essa altura da vida. Não mais.
Ainda assim, algo me dizia que eu deveria sair dali. A voz de Bilquis ecoou na minha
mente, me mandando voltar para Londres, e era o que eu mais desejava naquele
momento, por mais que soubesse que não poderia fazê-lo. Tão forte quanto a minha
vontade de partir imediatamente era a minha certeza de que, agora que eu estava ali, eu
não podia ir embora.
Mas eu não devia buscar entrar naquela casa, e devia me afastar o mais rápido possível
daquela construção que inexplicavelmente se tornara muito mais ameaçadora – e cinza?
– do que era há três minutos. Eu não devia tocar aquela campainha.
E foi por isso que, em silêncio apreensivo, eu toquei a campainha.

II.
As tábuas rangiam, incomodadas, enquanto os passos cruzavam a sala em direção à porta.
Uma ansiedade atípica se assomou em mim enquanto eu ouvia a maçaneta girar na mão
da minha tia. Em um instante, revi sua expressão irada, transtornada, quando me
encontrou no sótão. Seus olhos cintilavam com pavor e ódio, ao me encontrar sentado
proferindo encantamentos em um círculo de velas de cores variadas e runas pintadas no
chão ao meu redor. Pouco me lembrava do que ela disse; ela vociferava sobre “servir ao
demônio”, estar “condenado ao inferno” e que ela não receberia “filhos do diabo” naquela
casa. Meu tio me levou para a estação no mesmo dia, e meu último vislumbre da casa
incluía minha tia na janela da sala, com a mesma expressão mista de horror e fúria com
a qual me encontrara.
E a mesma expressão com a qual me recebia em sua porta. Porém, desta vez, eu só a vi
por uma fração de segundo, antes de sua tensão se desfazer em um sorriso exaurido.
“Johnny!” Ela abriu os braços para mim, mas não se moveu em minha direção. “Meu
Deus, Johnny, você está a cara de seu pai!” Neste momento eu avancei em sua direção,
em um abraço descoordenado, para que ela não visse minha expressão. “Você está
idêntico à Tommy!”
“Pelo menos ainda tenho meus dois braços”, comentei, e senti seu corpo retesar naquele
carinho plástico por um instante antes de ela relaxar novamente e se afastar, um sorriso
ainda mais falso em seus lábios.
“Estou realmente feliz por você ter vindo. Eu não sabia para quem ligar”, seus lábios
tremendo me mostravam várias sensações com as quais ela não sabia lidar. “Obrigada
por estar aqui.”
Eu assenti. O que diabos teria mais a dizer? Ela murmurou para eu entrar, embora eu já
estivesse do lado de dentro. Ela me deu as costas para me direcionar pela casa, e eu
aproveitei para dar uma olhada ao redor. A sala estava exatamente igual ao que eu me
lembrava. A parede à esquerda tinha uma lareira enegrecida pelo tempo, ornada por um
imenso peixe empalhado que o tio Emmett jurava ter pescado ele mesmo, embora todos
soubéssemos que isso era mentira. Abaixo do peixe, fotos tentavam se esgueirar por
baixo da poeira, que havia acumulado há pelo menos duas semanas. Vi minha prima Lena
entre os meus tios, e me perguntei como ela estaria hoje, caso aquele carro não a tivesse
atingido. Por um momento me veio novamente o vento fúnebre que me atingia quando
eu entrava escondido em seu quarto vazio, intocado pelo tempo, mantido exatamente
como no dia que ela havia morrido.
Um cheiro me engolfou e me trouxe de volta à realidade. Olhei ao redor, vi a passagem
para a cozinha de ladrilhos verdes, a porta de entrada para o porão e as escadas que
davam acesso ao segundo andar, mas não consegui precisar de onde vinha o cheiro. Era
levemente adocicado, como uma fruta deixada ao sol por tempo demais, atraindo moscas
sob o peso de seu odor nauseabundo. Não era o cheiro de algo podre, mas de algo que já
não está tão vivo quanto estava antes.
Foi o momento no qual me apercebi da ausência de tio Emmett. No passado, ele só
chegaria ao fim do dia devido ao trabalho, mas sua aposentadoria impedia que esta fosse
a explicação desta vez.
“Onde está o tio Emmett?”, perguntei, e vi os ombros de tia Dolly enterrarem-se sob o
peso da tristeza.
“Está na cama. Dormindo, mas não por muito tempo.” Ela apoiou-se na escada, olhando
inicialmente para mim, ainda parado em frente à porta, e depois enxergando algo para
além de minhas costas, janela afora, atravessando a paisagem seca e quente que se
estendia para após de seu quintal. “Os médicos deram a ele apenas mais dez dias. Hoje é
o nono.” Seu olhar vagou de fora para dentro, caminhando trôpego até cair a seus pés.
“Câncer no intestino, já sofreu metástase. Disseram que não há mais o que fazer. Decidi
trazê-lo para morrer em casa.”
Antes mesmo de as palavras me virem, elas se assomaram em mim. Eu sentia muito, e
isso não era somente uma expressão vazia. Eu me lembrava das tardes de sábado em um
pequeno afluente do rio Mimram, ele tentando me ensinar a pescar. Nunca tinha
paciência. O peixe sempre escapava, eu soltava algum palavrão em revolta, e o tio
Emmett ria. Ele, inclusive, era o único adulto que ria quando eu xingava. Quando o
perguntei o motivo, ele deu de ombros. “Você é puro, Johnny. É como ver um ursinho
de pelúcia praguejando.” Eu me perguntei o que tio Emmett pensaria de mim caso me
visse xingando hoje.
“Por que você me chamou aqui?” Eu perguntei, dividido entre a tristeza e a frustração.
Tia Dolly estacou mais uma vez, me perscrutando com um olhar ressecado em desculpas.
“Eu não falava com nenhum de vocês há alguns anos, muito por culpa de Tommy. Você
e Cheryl se parecem muito com o pai de vocês, fisicamente falando. Eu não gostava disso.
Eu não gosto disso.” Sua mão direita passeou pelo seu braço esquerdo, em um quase
cruzar desconfortável. Ela, com um gesto, me indicou para deixar minha pasta na sala e
segui-la para cozinha. Fui. Minha pasta foi comigo. “Mas Cheryl conseguiu meu número
e me ligou há alguns anos, me contou as novidades e me disse que você era alguma
espécie de padre?” Ela continuou e me interrompeu antes que eu começasse a gargalhar.
“Eu fiquei tão feliz quando soube, Johnny. Eu fiquei tão preocupada quando te encontrei
no sótão aquele dia...” Ela apontou para uma cadeira à guisa de convite e se pôs a preparar
um chá. Parou e virou para mim, dramaticamente, no meio do processo. “Eu sei que eu
agi mal com você, meu menino, e espero sinceramente que possa me perdoar” e houve
uma pausa para que eu concordasse com ela, mas eu só recostei na cadeira. “Eu não soube
lidar com tudo aquilo. Foi demais para mim.” Ela suspirou e voltou-se para a chaleira.
“De qualquer forma, quando Cheryl me contou que você estava na igreja, fiquei muito
feliz. Talvez tudo aquilo lhe tenha sido útil, de certa forma.”
Àquela altura eu já sabia que precisava contar para ela que eu não era um padre, mas
acabei não dizendo nada somente porque não sabia com o que eu preencheria o vácuo
daquela informação. Sou meio que um feiticeiro? Já lutei contra metade de todos os
demônios, mas acidentalmente também já fiz com que eles levassem uma garotinha pro
inferno? Por alguns segundos ainda também pesei se deveria contar o incidente no posto
de gasolina em Devon pelo qual agora eu não podia mais encostar em água santa, só para
ver a reação dela.
Decidi que era melhor ser alguma espécie de padre.
“Então você quis que eu viesse aqui e desse a extrema unção ao tio Emmett.”
“Não” ela respondeu, sob o som da chaleira chiando. “Quero que você faça um exorcismo.”

III.
Estaquei em frente à porta do quarto com receio, não por causa do tal demônio que
poderia estar lá, mas pelo estado em que eu encontraria meu tio. Minha mão repousou
sobre a maçaneta enquanto minha mente voltou para o lago. Sentado ao lado dele, em
silêncio, eu gastava boa parte do tempo durante o qual os peixes nos ignoravam olhando
seu rosto de soslaio. Sempre que falava comigo, tio Emmett era cordial, de sorriso calmo
e fácil, dotado de uma certeza inabalável de que tudo terminaria bem.
Porém nossas interações terminavam, seu olhar corria para o lago e seus olhos fitavam
um grande nada com o qual ele parecia se associar carinhosamente. Um vazio que depois
de tanto tempo observado, passou a ser seu.
“Tio”, eu ousei interromper uma vez, e ele aceitou minha intervenção com um “Sim, Joe”,
como ele sempre fazia. Nunca me chamara de outra forma, e eu, que normalmente tinha
pouca tolerância para apelidos, sempre gostei. Com sua autorização, continuei. “No que
você fica pensando quando olha pra frente assim?”
O semblante dele parecia frio, mas não por minha causa. Era como se ele tivesse se
surpreendido com uma lufada de ar vinda de uma janela esquecida aberta. Ele piscou
algumas vezes antes de me responder.
“Eu só queria saber se eu poderia ter feito algo.”
Eu não consegui perguntar o quê e, agora, de frente para a porta, ainda não sabia nem
saberia o motivo. A maçaneta rodou gelada sob a minha palma que suava, e me
escorregou para dentro. Minha sensação imediata foi a de ter entrado em um lagarto. O
ambiente parecia úmido e gelado, como se prestes a gotejar, embora nenhum líquido
pudesse ser identificado.
O odor era azedo e levemente nauseante – uma limonada esquecida há dias dentro de um
armário –, mas o quarto se dispunha exatamente como eu me lembrava. Uma cômoda
estava silenciosa ao lado da porta, com uma janela à minha esquerda, um papel de parede
florido desgastado escondendo as histórias dentro das paredes, um armário tão enorme
quanto antigo tomando um papel central no ambiente e, ao canto, quase colado à parede,
uma cama de casal que assim era chamada mais por consideração do que por
merecimento.
Sobre ela, meu tio Emmett.
Ele estava pálido ao ponto de suas veias serem visíveis; sua pele parecia uma folha de
papiro, se desfazendo sob o peso das palavras. Suas mãos tremiam com espasmos
constantes que pareciam descer do seu peito, mas também subir até sua boca, onde seus
lábios se retorciam como se presos por um anzol. Fora suas contrações espasmódicas,
não havia muito que comprovasse que ele estava vivo.
Fui em direção à cama o suficiente para ver sua respiração condensando a poucos
centímetros de suas narinas, enquanto notei que a temperatura caía proporcionalmente
ao quão próximo eu estava de seu corpo. Estendi minha mão e toquei seu pulso, sentindo-
o irregular. Senti sua pele pegajosa, resistindo ao meu afastamento quando tentei soltá-
lo. Respirei fundo, o peso do local pressionando meus ombros. Dei dois passos para trás
sem me virar, antes de girar meu corpo para a porta, resistindo ao impulso de sair
correndo daquele ambi—
“Olá, Constantine.”
A voz me atingiu nas costas como uma lufada de azedume. Não me virei. Não parei. Segui
e saí do quarto, uma risada baixa e grave fechando a porta atrás de mim.

IV.
Desci as escadas novamente, e saquei um cigarro institivamente, trazendo-o aos lábios.
Já fazia algumas horas. Cogitei se esse era o maior tempo que eu já havia ficado sem
fumar nos últimos – sei lá – vinte, vinte e cinco anos. Parei no último degrau, acendendo
meu isqueiro e incendiando a ponta daquela minha escapada. Traguei profundamente.
Fechei os olhos.
“Você pode fumar aqui comigo, Johnny”, a voz de minha tia reverberou através do
corredor até mim, vinda de fora de qualquer ângulo de visão. Assenti para o nada e segui
até ela. Entrei na cozinha e a vi sentada à mesa, um cigarro comprido entre os dedos
dela, um bule ao seu lado e um chá vaporeando à sua frente.
“Você fuma?”, perguntei, e ela grunhiu à guisa de resposta, e apontou o cigarro para
cima, na direção do quarto do meu tio Emmett. Segui e me sentei em uma cadeira, meio
à diagonal dela. Me servi do chá, sem açúcar, e me pus a olhar o líquido esverdeado,
rodando em um espiral conciso e preguiçoso, morrendo de desgosto no centro da xícara.
“Por que você vinha para cá no verão?” Ela quebrou o silêncio alguns momentos depois.
“Não era quente, não era amigável. Por que você vinha para cá?”
A pergunta não me pegou de surpresa. Tomei um gole da xícara. “Amanda era bonita e
aqui ninguém me incomodava nem me chamava de fracassado. Me parecia um bom
negócio.” Ela assentiu lentamente, e murmurou algo em concordância. Eu ergui meus
olhos para ela, calculando se havia espaço para perguntar o que eu queria saber há
décadas. Ela olhou para mim, prevendo que eu abriria uma porta que ela não queria
atravessar. Ainda assim, baixou os olhos novamente, então passei. “O que aconteceu com
tio Emmett? Não agora. Há uns trinta, talvez quarenta anos atrás.”
Ela bebeu do chá, tragou profundamente do cigarro e baforejou rumo ao teto em uma
coluna aforme de fumaça.
“Lena morreu na estrada, John.” O desprezo pingou do canto de seus lábios, e ela secou
com um guardanapo. Em um instante, minha memória voltou à minha prima Lena, nas
fotos perdidas álbuns afora; em uma delas, ela tinha por volta de dez anos e estava comigo
no colo, ainda bebê. Eu lembrei de seus cabelos loiros compridos, e não pela primeira vez
pensei em como ela se parecia comigo. O sangue dos Constantines corria em sua veia.
“Sim. Me contaram essa história”, mas minha tia riu amargamente antes de fumar mais
uma vez, talvez de forma ainda mais profunda do que antes.
“Duvido”, rosnou, baixando o cigarro em direção à mesa e batendo as cinzas em um
cinzeiro que não estava lá. “Eles devem ter falado como ela estava dirigindo, voltando de
uma festa de madrugada, quando um caminhão madeireiro atravessou o sinal e atingiu a
lateral dela e esmagou imediatamente o crânio e a caixa torácica dela. Certo?”
Sentia no tom dela uma tentativa de me assustar; meus lábios franziram, sem se
impressionar e eu soltei que “foi exatamente isso, sim” antes de beber meu chá, retendo
seu olhar. “Não foi isso, então”, e ela meneou a cabeça. “E por que contaram essa
história?”
“Porque foi a história que eu contei, Johnny.” Ela se esticou um pouco, e seu olhar migrou
gradativamente para o topo da minha cabeça, e dali para o andar de cima. “Lena não
estava dirigindo. Emmett estava dirigindo. Ele avançou o sinal porque estava com sono,
o desgraçado. Como ninguém da família liga para nós mesmo, especialmente para mim,
preferi preservar a imagem dele”, e agora, sim, eu estava estarrecido, enquanto ela
terminava seu chá. “O pobre bastardo já estava sofrendo o suficiente com a culpa
corroendo ele por dentro. Ele não precisava de mais ninguém criticando e torturando
ele.”
“Cacete.”
Ela ergueu as sobrancelhas, mas não foi em reprovação como seria quando eu era criança.
Foi em concordância.
“Cacete, exatamente”, e ela se reclinou novamente sobre a mesa, seu ombro estalando
levemente. “Ele se fechou depois disso. Eu queria ter outros filhos, sempre quis. Ele se
recusou. Ele passou a se relacionar com todos sob demanda: se ninguém forçasse uma
aproximação, ele também não tentava”, e o cigarro morreu em sua mão. “O único que
parecia chegar a ele sem esforço era você, Johnny. Ele sempre gostou de você.”
“Era recíproco. É recíproco.”
Ela continuou a me encarar, seus olhos passando a brilhar com uma intensidade quase
mendiga. “E então”, ela instigou. “Você vai fazer?”
“Fazer o quê?” “O exorcismo, John. Você vai tirar o que está no corpo dele?”
Quase havia esquecido que havia um demônio envolvido, que agora estava devorando
meu tio por dentro, se alimentando da sua vida, o único parasita que sente prazer em
matar sua vítima. Seria difícil responder rapidamente; como não quis ter muita interação
com ele, também não sabia exatamente o que ele era. De qualquer forma, para possuir
um marceneiro de Austman Way, não devia ser mais do que um andarilho que encontrou
um espaço aconchegante nas emoções do meu tio para suga-lo a partir dali. Não seria um
processo difícil; no máximo, seria um pouco demorado.
“Faço”, respondi finalmente, entre suspiros. “Quando posso começar?”
“Hoje à noite”, ela retrucou, sem pestanejar. “Antes de ele começar a rosnar.”

V.
Eram dez horas da noite quando eu terminei minha preparação. Minha sensação era a de
que tinha passado muito mais tempo, mas as horas pareciam não passar naquele lugar.
Tinha decidido por uma técnica mais simples, com um encanto discreto que deveria
resolver o problema com facilidade. Eu não queria ser mais agressivo. Quanto mais
violento o exorcismo, mais é demandado física e emocionalmente da vítima. Meu tio era
velho, e eu sabia que ele não aguentaria um baque muito forte.
Em outras palavras, meu esforço principal era fazer com que meu tio terminasse aquele
exorcismo sem perder uma perna. Ou algo assim.
Meu material estava pronto, mas ainda não era hora; a noite precisava estar mais escura
para conseguir enviar a criatura direto para o Enxofre, sem escalas em ninguém. Minha
tia estava na sala, cochilando com a televisão ligada. O jornal falava de um acidente
bizarro que um caminhão acertou um poste. O motorista estava com as calças arriadas
até as canelas, mas não havia ninguém ao seu lado. “Bilquis dos infernos”, praguejei e saí
pela porta.
Fiquei postado na varanda e emendei meu cigarro moribundo em outro, respirando o ar
frio noturno. Traguei mais uma vez para me aquecer e vi mais um ponto de luz à direita.
Estava apoiada sobre a cerca, inclinada em minha direção.
Amanda.
Pensei em caminhar até ela, conversar sobre as coisas que não conversamos e perguntar
como ela estava. Como Chad Brubaker a estava de fato tratando. Se ela precisava de
ajuda. Se eu poderia ser útil.
Fiquei aonde eu estava. Levantei meu cigarro como quem brinda ao fim da noite. Pensei
ter visto uma sombra de desapontamento em seu rosto, mas eu estava longe demais para
ter certeza. Alguns segundos depois, sua ponta de chamas se ergueu na noite.
“Aos nossos futuros”, eu a ouvi dizer ao longe. Assenti e sinalizei com o cigarro de volta
antes de voltar a fumar. Sua ponta de luz foi à sua boca, convidativa. Olhei para frente,
traguei fundo, e pensei sobre o exorcismo do demônio que expulsaria do meu tio logo
mais. Havia ainda a questão do que eu faria após o exorcismo. Eu precisaria encadear um
rito de cura para conseguir mantê-lo estável depois de toda aquela energia evanescer de
seu corpo. Embora fosse uma expulsão consideravelmente simples, a idade dele tornava
as consequências complicadas. Enquanto Amanda voltava lentamente para sua casa, eu
lembrava da reação da tia Dolly quando falei isso para ela.
“Eu entendo isso, Johnny”, ela parecia conflitante, mesmo que sua voz saísse com
agilidade. “Entendo mesmo. Mas também sei que não tem como continuar da forma que
está. As coisas que ele diz...” Ela tremeu, garganta embargada. “Ele morrer ou continuar
desta forma... Isso não é viver, Johnny.”
Eu sabia. “Eu vou fazer o que puder, tia.”
Fechei as luzes de fora quando bati a porta, e a casa estava mergulhada num escuro
estranho. A luz da tevê era fantasmagórica, com vozes estridentes e graves se
intercalando; acho que era um programa policial. Tia Dolly continuava sentada, mas
agora estava tensa, sentada quase petrificada no sofá. Eu ia perguntar a ela o motivo,
mas não precisei.
Ouvi rosnados no andar de cima. Arranhões no assoalho. Uma risada durante rosnados.
“Ele acordou, Johnny.” A temperatura da casa caía gradativamente, mas o ar ficou gelado
antes de ser frio. Peguei meu sobretudo no gancho próximo à porta e subi as escadas.
“Ah, Johnny”, ela choramingou. “Tenha cuidado com ele! Cuidado com meu amor!”
Deixei sua voz minguar no início da escada enquanto eu a subia. Respirei fundo uma vez
e já comecei o encantamento antes de chegar ao andar. Eu sentia as pontas dos dedos
brilharem levemente enquanto formigavam com a expectativa. Cheguei em frente à
porta.
Todos os barulhos cessaram.
Abri a porta. Tio Emmett continuava exatamente na mesma posição que eu o vira antes,
agora iluminado fracamente pela luz da lua. A voz mais uma vez soprou em minha nuca,
viscosa e enregelante.
“O bom filho”, ele disse somente, e sua voz parecia vir de todos os lados ao mesmo tempo.
Eu entrei devagar. “Estas paredes têm sentido sua falta, Joe. E eu também.” Ele virou
seu rosto para mim, e ele era uma máscara agressiva e antiga. Seus olhos estavam
arregalados. Sua boca estava aberta, mas não se mexia. Dessa vez, contudo, a voz que
escapava de sua garganta era de meu tio Emmett. “Por que você se foi, Joe? Por que você
nunca mais veio me ver? Você sabia o quanto você era importante pra mim. O quanto
você é importante pra mim.”
Meus lábios tremeram levemente. Pensei em respirar fundo, mas mais uma vez um cheiro
nauseabundo me atingiu, e decidi manter meu fôlego raso. Ignorei o que ele dizia e
comecei o encantamento. Sua cabeça continuava virada em minha direção. Olhos
esbugalhados, a boca escancarada. Continuava falando sem mexê-la.
“Depois que perdemos Lena, você era tudo o que eu tinha, Joe, e eu sei que você era o pai
que você nunca teve de verdade.” Meu peito ardia, meus olhos tentavam marejar, mas eu
afastava os pensamentos enquanto meus dedos brilhavam e eu desenhava runas simples
no chão. “Eu sentia sua falta, Joe, e às vezes ia para o sótão para lembrar de você. Foi
assim que eu encontrei os desenhos que você fez nas paredes.” Eu parei de repente, de
forma involuntária. Meus dedos ainda brilhavam, mas meus olhos escorreram para o
rosto contorcido do meu tio. “E os desenhos começaram a falar comigo, Joe, e eles falavam
com a sua voz.” Minha mandíbula se retesou. Percebi que tinha parado o encantamento,
e logo o retomei. “Eles me faziam companhia com a sua voz, Joe, mas agora você está
aqui! E agora você vai—”
“Você não é Emmett Klinks”, eu disse, com um tom autoritário que de forma alguma
correspondia ao que eu sentia. “Diga quem você é.”
“Eu sou o tio que você abandonou aos seus próprios demônios, Joe.” Ele respondeu ainda
com a voz do meu tio, de forma lenta e arrastada, como se estivesse bêbado, o som ainda
tomando todo o quarto de uma vez. “O tio que você entregou ao seu inferno da culpa.”
Eu pisei na runa no chão. “Diga quem você é!”, eu ordenei mais uma vez. As runas
brilhavam, mas o quarto parecia sugar toda a luz.
“Eu sou Flagelo”, e a voz se metamorfoseava naquela que falara comigo mais cedo. “O
seu e o da sua família, Constantine. Sua herança e sua hereditariedade.” Eu começava a
ficar realmente tenso; já era para aquilo ter acabado àquela altura. Já não sabia mais há
quanto tempo eu estava ali, mas tinha certeza de que aquele exorcismo deveria ser mais
simples do que estava sendo.
“Eu sou sua vergonha e eu trago sua consequência.”
Ele se identificava por sua função, então não tinha nome. Era um demônio de baixo
escalão. Não deveria ser difícil. A boca de meu tio continuava aberta, e aquele som
asqueroso ainda pingava de seus lábios. Por que não estava funcionando?
“E como você vai lidar com isso agora, Constantine? Não é só mais um que está entrando
na sua longa conta, mas é seu próprio tio. Ele precisou de você e você, egoísta, não estava
lá.”
Por que não estava funcionando? Por que não conseguia tirar aquele demônio dali?
“Pior do que isso: você deixou para trás um rastro com o qual ele não sabia lidar. Ele te
deu amor e você legou a ele a sua desgraça, Johnny. Eu acho que você não dá conta de
viver com isso também, Constantine. Eu acho que você chegou ao seu limite.”
Não estava lá.
Eu não tinha como expulsar alguém que não estava lá.
Eu olhei para fora, atônito, e vi que, apesar do quarto estar mergulhado em trevas, a lua
ainda estava lá no céu. Exatamente no mesmo lugar, há bastante tempo.
O ódio me queimou garganta acima, mas eu precisava ter certeza. Se havia algo em meu
tio, não podia deixar o exorcismo pela metade. Mas era hora de mudar de estratégia.
Apaguei a runa com um movimento rápido e fiz outra com a mão esquerda. Uma runa
que eu chamava carinhosamente de “Laço da Verdade”, em homenagem a alguém que...
Não gostou da homenagem.
Com as runas prontas, girei minha mão em sentido horário na direção do meu tio.
“Flagelo, dê espaço”, e meu tio tremeu, sacudindo-se levemente. “Tio Emmett, sei que
você está aí e sei que vai ser difícil,” ele rosnou em resposta com a dor dele e a risada do
demônio, e os móveis do quarto começaram a chacoalhar e bater no chão, “mas eu preciso
te fazer somente uma pergunta.”
“Como você vai conviver com isso, Constantine?”, o demônio rugiu, e meu tio gemeu
pesadamente, a boca ainda um buraco aberto, em seguida. As janelas vibravam, e eu ainda
sentia o hálito gelado na minha nuca. Preparei um encanto de silêncio e me aprumei para
lança-lo.
“Uma pergunta, tio Emmett”, eu disse, ganhando tempo para meu tio conseguir
recuperar algum controle sobre seu próprio corpo. Eu só tinha uma chance; não achava
que meu tio teria forças para vencer aquela influência mais de uma vez. “Uma pergunta.”
Ouvi a voz do meu tio gemer profundamente, como se estivesse sendo torturado. Na
verdade, como se estivesse sendo preso, se minha teoria estivesse certa. Três, dois, um.
“Tio Emmett”, lancei o encanto de silêncio contra o demônio e “quem estava dirigindo o
carro na noite em que Lena morreu?”
Todo o barulho cessou subitamente. O quarto mergulhou em silêncio. Morto. Eu ouvia
o ar escapando da garganta de meu tio, como uma chaleira apitando, e sentia todo o
esforço que ele fazia naquele momento. Eu segurava o encantamento de silêncio com a
mão direita, enquanto a esquerda ainda se mantinha sobre a runa do Laço da Verdade.
Ele tentava falar. Água escorria pelo seu rosto, e eu percebi que meu tio chorava. Eu
continuava a segurar a runa e o encanto, com peso. Não por muito mais tempo.
“Tio Emmett, quem estava dirigindo o carro na noite em que Lena morreu?”
E num sussurro:
“Dolly.”
Merda.
Antes que eu pudesse reagir, o corpo inerte de tio Emmett foi projetado na minha
direção, me derrubando e explodindo porta afora, como se fosse puxado subitamente por
um cabo de aço. Me recompus e disparei para fora do quarto, descendo as escadas aos
saltos enquanto via o corpo voar rumo à sala. Eu sibilava de ódio.
Eu odeio ser enganado.
Alcancei o fim dos degraus e, de costas para a porta de entrada, olhei para a sala.
De luz, somente aquela bruxuleante da TV, que lançava fantasmas brancos e suas
sombras pelo cômodo. No centro, minha tia Dolly, em pé, sorria com sua boca contorcida.
Meu tio Emmett seguia flutuando, pendendo do teto pelo pescoço como um enforcado.
“Eu costumo ser bom nisso, tia Dolly”, eu disse. “Mas geralmente exorcismos só
funcionam nas pessoas que estão possuídas. Você me fez perder meu tempo.” Ela
assentiu. “Quanto tempo, exatamente?”
“Ele estava com preguiça, Johnny.” Ela disse, sibilante. “Acredita nisso? Ele sabia que eu
tinha bebido, mas me obrigou ir busca-la porque estava com preguiça! Esse verme—”
“Quanto tempo?!” Eu gritei, sem olhar para ela, já desenhando uma runa complexa no
chão.
Ela sorriu mais largamente. O canto da sua boca alcançava suas orelhas de forma
impossível. “Dois dias”, ela respondeu com uma voz que ainda era a sua, mas que soava
como uma serpente se arrastando no chão.
Meus olhos foram para fora da casa rapidamente e notei a lua, ainda no mesmo lugar. Eu
devia ter percebido. Eu devia ter notado que o sol estava demorando o dobro do tempo
para se pôr, embora eu soubesse que minutos são curtos demais para que os percebamos;
como eu conseguiria notar que 60 segundos viraram 120? Sacudi minha cabeça,
lembrando que... Bem, minha tia possuída ainda estava segurando meu tio moribundo no
ar com uma corda invisível.
Agora, sim, as coisas tinham voltado ao normal.
“Mas veja, tia Dolly, agora nós temos um problema. Levando em consideração que o
demônio está agindo em você com a sua aceitação, eu vou deduzir que você o convidou
para entrar em você.”
Ela pareceu se entristecer levemente. “Eu estava tão sozinha... Com a perda da sua prima,
e seu tio não queria falar comigo, eu queria conversar com Lena e—”
“Dane-se, titia. Eu vou simplesmente deduzir que você encontrou algum rastro do que
eu fazia pra trás, tentou contato com a sua filha e aí Gasparzinho, o Flagelo Camarada,
resolveu te alugar pelas últimas duas décadas.” Preparei um encanto de contenção e
outro de ataque... Que honestamente nem lembro qual foi. Só queria explodir aquele
demônio desgraçado. “Também vou deduzir que ele recebeu uma ordem pra me tirar de
Londres e me segurar aqui, então concluo que eu preciso ir embora imediatamente e voltar
para Londres agora. Então nós vamos fazer assim.”
“Não vamos fazer nada, Constantine.” Ela disse, seu olho repuxando involuntariamente.
“Me disseram pra te segurar três dias, então ainda faltam doze horas. Se você tentar
qualquer coisa, eu mato seu tio.”
Ainda em posição de ataque, olhei de soslaio para meu tio. Sua boca finalmente se fechara,
depois de servir de fantoche por tanto tempo, tendo outra voz projetada no quarto como
se fosse sua. Eu vi o fraco brilho em seus olhos que, em mais de oito décadas, gostariam
de ter visto menos coisas.
E ali, enquanto eu considerava o que eu faria, em uma fração de segundo... Meu tio sorriu.
Calmo. Leve. Sem culpa...
Pronto.
O encanto foi disparado das minhas mãos como uma onda, e eu ouvi quando o pescoço
de meu tio Emmett se partiu, sob o som estrondoso da minha tia se chocando contra a
janela, a qual explodiu em cacos. Vi quando o demônio tentou fugir, deixando minha tia
desacordada no chão. O encanto de contenção, já pronto, o trouxe de volta, e o obrigou
a materializar seu pescoço imundo debaixo da sola do meu sapato.
Eu apertei. Ele engasgou.
“Então, Flagelo, você tem três segundos pra me contar quem te deu a ordem de me atrair
até aqui ou eu vou obliterar a sua existência. Três segundos. Vai.”
Ele nada disse. Engasgando, sorriu. Um terceiro olho abriu em sua testa, ele riu e ia
começar a falar sobre como eu estava condenado e era meu fim e blábláblá, então eu já
estava de saco cheio e, num movimento único, simbolicamente decepei sua cabeça, e seu
corpo sumiu permanente, virando um pó de nada.
Assim que ele sumiu, seu feitiço minguou, e a noite falsa se desfez em pleno dia. Fui até
tia Dolly, e me agachei na frente dela.
Ela chorava.
“Eu não queria ter ido, Johnny”, ela disse, entre soluços e choro. “Eu não estava bem para
dirigir, eu disse isso pra ele, mas ele não me escutou! E aí o sótão... Eu já tinha te ouvido
conversando com outras vozes no sótão, e eu pensei... Ele me convenceu, disse que Lena
poderia... Mas ele me escravizou, Johnny. Eu o chamei por medo de perde-la, mas aí eu me
perdi, e seu tio... Essa culpa...”
Eu continuava ajoelhado em frente dela, analisando se ela tinha se machucado, mas notei
que meu encanto dera certo, e mesmo o impacto contra a janela havia sido recebido pelo
demônio. Não havia um arranhão em seu corpo, e ela seguia chorando compulsivamente.
E ela me abraçou.
E eu deixei. Então a abracei de volta.
“Você precisa deixa-la ir”, eu disse, e me afastei. Me pus de pé e fui em direção à porta,
pegando meu casaco e minha mala, que nenhum de nós havia guardado.
“Você não pode ir agora”, e eu notei que ela estava em choque, tentando enxugar as
lágrimas e a coriza. “Pelo amor de Deus, John, o seu tio está aqui... Você precisa me
ajudar com tudo isso.”
“Não”, respondi, no vão da porta aberta. “Mesmo que ele tenha te enganado, ele te deu
uma escolha. Ele te disse exatamente o que te daria e o que ele queria em troca. Você
aceitou, tia Dolly. Lide com sua parte do acordo. Eu já cumpri com a minha, aqui.”
Ela gritou um não! exasperado atrás de mim. Eu ouvi, e calmamente fechei a porta. O sol
estava a pino, então segui com meu sobretudo na mão e tirei meus óculos de sol da mala,
fazendo o caminho de volta para a estação de trem. Com o canto dos olhos, vi Amanda
sentada numa cadeira em sua varanda. Quando me viu, ela se levantou de salto, e veio
acenando em direção à cerca.
Estaquei. Virei meu rosto em sua direção. Voltei a olhar para frente. Segui andando.
Não sei o que ela fez depois.

VI.
O sol ardia, mas eu estava absorto demais em pensamentos para de fato sofrer com isso.
Me senti pesado quando cogitei há quanto tempo aquele demônio os estaria
atormentando, esperando a hora que receberia um comando contra mim. Foi por minha
causa, e eu sabia disso - mais uma vez. Só que dessa vez...
Pensei em meu tio Emmett. Voltei minha mente e o vi dependurado do teto, aquele
sorriso plácido em seus lábios, e o quanto se parecia com outros que eu havia visto ele
sorrir há tantos anos atrás. Sentado à beira do rio, rindo de alguma besteira que eu havia
dito.
Pensei naqueles momentos de paz. Pensei em como ele parecia leve.
Foi por isso que, para a imagem dele em minha mente, eu sorri.
Levantei a cabeça e acendi um cigarro. Dei uma baforada enquanto olhava para o relógio
e vi que ainda faltava uma boa hora até que o trem passasse.
Então comecei a caminhar para Londres.

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