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Acta de Prática Jurídica Interdisciplinar I

Tema da Aula: A protecção do direito da propriedade em direito penal

Docente: Professor Doutor Rui Pereira

Data e Hora: 02/11/2006, das 10h e 30m às 11h e 45m

Sumário: 1. Enquadramento geral; 2. O direito de propriedade


como bem jurídico-penal; 3. Sistematização dos crimes contra o
património; 3.1. Crimes contra a propriedade; 3.2. Crimes contra o
património em geral; 3.3. Crimes contra direitos patrimoniais; 3.4. Crimes
contra bens do sector público e cooperativo.

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1. Enquadramento geral

Portugal teve apenas dois Códigos Penais. O direito penal antigo estava
contido nas Ordenações do Reino (Afonsinas, Manuelinas e Filipinas), no Livro
V, de uma forma desordenada, casuística e discriminatória – a punição das
pessoas dependia da classe social do agente e da vítima do crime.

O primeiro CP (Código Penal) português data de 1852. Foi influenciado


pelo CP francês e tinha uma matriz autoritária e individualista. Na sua
sistematização, começava por prever os crimes contra a religião, a que se
seguiam os crimes contra o Estado, a sociedade, as pessoas e o património.
Manteve-se em vigor até 1982, embora em 1886 tenha entrado em vigor um
Código formalmente novo, resultante da “Novíssima Reforma Penal de 1884”.
Este Código ainda previa, por exemplo, o adultério como crime em todos os
casos em que fosse cometido por mulher, restringindo o seu âmbito, quando se
tratasse de homem, às situações em que ele sustentasse a amante no
domicílio conjugal (e sendo o crime, ainda assim, punido mais levemente).

O CP de 1982 teve como antecedente, na década de 60, um projecto de


Eduardo Correia e no plano externo, os Códigos alemão, austríaco e suíço. O
Projecto de Eduardo Correia era fortemente liberal, hoje dir-se-ia “libertário”,
uma vez que a pena máxima de prisão prevista era de apenas 12 anos.
Rompendo com a matriz latina, importou as noções de tentativa, desistência,
dolo, negligência, autoria, participação e erro da dogmática alemã,
acrescentando-lhes vários contributos pessoais (e também de Figueiredo Dias,
nomeadamente quanto ao regime do erro).

O Código de 1982, aprovado sob o impulso de Eduardo Correia (que


viria a ser Ministro após a Revolução), contemplava já penas até 25 anos de
prisão. Este Código foi preparado por uma comissão presidida por Eduardo
Correia (e secretariada por Figueiredo Dias) e inverteu a ordem sistemática
anterior ao tipificar, sucessivamente, os crimes contra pessoas, o património, a
paz e a humanidade e a sociedade, para incluir só no fim os crimes contra o
Estado. No catálogo, acrescentaram-se os crimes contra a paz e humanidade e

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suprimiram-se os crimes contra a religião, que só persistiram como crimes
contra os sentimentos religiosos – ou seja como crimes contra a sociedade.

A feição liberal do Código de 1982 foi reforçada com o Código,


formalmente novo de 1995, o qual, no essencial, constituiu uma reforma do
sistema de penas e de várias incriminações, inspirada, em grande medida no
Projecto Alternativo de Código Penal alemão da década de 60 (este projecto foi
elaborado, numa lógica de “contrapoder” por jovens penalistas da época,
incluindo, entre muitos outros, Claus Roxin.

Se estabelecermos uma comparação, verificamos que ainda havia


certos resquícios moralistas nos crimes sexuais previstos no CP de 1982, que
foram quase completamente eliminados em 1995 - os crimes sexuais passaram
então a ser concebidos como crimes contra a liberdade e a autodeterminação
sexual. Por exemplo, o CP de 1982 estabelecia que o crime de estupro era
cometido por quem praticasse cópula com outra pessoa de idade
compreendida entre os 14 e os 16 anos, abusando da sua inexperiência ou (!)
prometendo-lhe casamento. Em 1995 foi suprimida a referência à promessa de
casamento. Além disso, em 1995, superou-se uma desigualdade sancionatória
(entre crimes contra as pessoas e crimes contra o património) que conduzia,
designadamente, a que o furto qualificado fosse punido mais (muito mais…)
severamente do que as ofensas corporais graves.

As revisões subsequentes do Código Penal têm aprofundado este


caminho. Em 1998, numa revisão que teve por base um projecto que o
Professor Doutor Rui Pereira elaborou em 1996, reforçou-se a protecção de
vítimas especialmente indefesas nos crimes contra as pessoas e reforçou-se a
tutela da liberdade sexual, equiparando-se, por exemplo, todas as formas de
penetração no crime de violação.

Por fim, na reforma em curso (já aprovada pelo Governo e remetida para
o Parlamento) aprofunda-se (entre vários outros aspectos) a linha de protecção
de vítimas indefesas. A distinção entre actos homossexuais e heterossexuais
com adolescentes (com idade entre 14 e 16 anos), que implica que os
primeiros sejam sempre punidos e a punibilidade dos segundos dependa do
abuso da inexperiência, é superada. O conceito de violação é alargado e as

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discriminações em função do sexo e da orientação sexual são abolidas por
completo. Por exemplo, a distinção entre actos homossexuais e heterossexuais
com adolescentes (com idade entre 14 e 16 anos), que implica que os
primeiros sejam sempre punidos e a punibilidade dos segundos dependa do
abuso da inexperiência, é superada.

Desta breve análise, que não pretende ser exaustiva, depreende-se que
o cunho liberal do nosso Direito Penal (enformado pelo princípio da intervenção
mínima e orientado pelo fim de protecção de bens jurídicos – artigo 18º, nº 2,
da Constituição e 40, nº 1, do Código Penal) se tem acentuado,
progressivamente, desde a Revolução. A evolução do “Direito Penal Sexual”
constitui um dos domínios privilegiados para observar essa evolução. Em
simultâneo, desde o início da década de 80 (o Decreto-Lei nº 433/82, de 27 de
Outubro, que revogou o Decreto-Lei nº 232/79, de 24 de Outubro, consagra o
regime geral do ilícito de mera ordenação social), temos assistido à
descriminalização de bagatelas penais (transgressões e contravenções), que
têm sido convertidas em contra-ordenações. Um dos pontos mais altos desse
movimento coincidiu com a aprovação do Código da Estrada de 1994. Mais
recentemente, o consumo de droga, por exemplo, também foi transformado em
contra-ordenação (Lei nº 30/200, de 29 de Novembro).

No pólo oposto situa-se um fenómeno de neo-criminalização, que levou


a aprovar um regime de ilícitos contra a economia e a saúde pública em 1984
(Decreto-Lei 28/84, de 20 de Janeiro) e à introdução de novos crimes de
poluição e de danos contra a natureza no Código Penal de 1995. Mas o
fenómeno mais expressivo de um certo endurecimento punitivo consiste na
aprovação de institutos referentes a escutas, recolha de voz e imagem, acções
encobertas, perda de bens, protecção de testemunhas e estatuto do
arrependido, que têm vindo a ser aprovados desde a década de 80. Neste
contexto, o penalista alemão Jakobs já falou num Direito Penal do inimigo,
expressão perigosa porque sugere que as garantias de defesa podem ser
recusadas aos agentes dos crimes mais graves. Mas fará sentido falar num
Direito Penal de 1ª velocidade, como faz o penalista espanhol Sílva Sánchez
para se referir ao terrorismo e ao crime organizado (envolvendo o tráfico de

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pessoas, drogas e armas e actividades instrumentais, como o branqueamento),
sendo legítimo criar mecanismos para tornar o processo mais célere e eficaz.

2. O direito de propriedade como bem jurídico-penal

O direito de propriedade encontra-se inserido na parte dos direitos


económicos, sociais e culturais da CRP, mais propriamente no seu art. 62º.
Será um direito análogo aos direitos fundamentais?

Aos penalistas não interessa, de modo decisivo, a distinção entre os


direitos fundamentais (ou de natureza análoga) e os direitos económicos,
sociais e culturais. O que interessa é saber se do direito de propriedade resulta
uma obrigação de incriminação.

Esta é uma questão em voga devido à questão do aborto. A resposta


liberal dada por Claus Roxin e Figueiredo Dias afirma que não há obrigações
constitucionais implícitas de criar crimes, tendo em conta o princípio da
intervenção mínima (artigo 18º, nº 2, da Constituição).

Realce-se que pode haver obrigações explícitas de incriminação, que


resultam directamente do texto da CRP, como demonstram os art. 117º, n.º 3, e
o 271º, n.º 1. No primeiro caso, impõe-se que a lei tipifique crimes de
responsabilidade dos titulares de cargos políticos. Na década de 80 saiu um
diploma a prever estes crimes (Lei nº 34/87, de 16 de Julho), sem o que
haveria uma inconstitucionalidade por omissão. O segundo caso diz respeito à
violação de direitos fundamentais pelos funcionários públicos no exercício das
suas funções, sendo tal obrigação de incriminação cumprida através da
previsão de vários crimes específicos (de funcionários) no Código Penal.

Mas não haverá obrigações implícitas de incriminar? Não haverá bens


jurídicos tão importantes - como a vida, a integridade física, a liberdade, a
honra ou a propriedade - que o direito penal não pode passar sem os proteger?

Roxin e Figueiredo Dias afirmam que não. O Professor Doutor Rui


Pereira pensa que se deve fazer uma ressalva: as ofensas mais graves aos
bens jurídicos mais importantes (homicídio doloso, ofensa corporal grave
dolosa, sequestro, violação…) “têm de ser” punidas. A sua não punição seria

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incompatível com o princípio da igualdade. Mas daqui não se infere, por
exemplo, que a Constituição obrigue a punir o aborto em todos os casos.

Em todo o caso, importa questionar agora: seria admissível um CP que


não tutelasse a propriedade?

Seria possível que o CP prescindisse da incriminação do furto, do abuso


de confiança, do dano ou da burla, desde que a ordem jurídica assegurasse a
protecção da propriedade e dos bens patrimoniais de outra forma. A tutela
penal da propriedade e do património só se justifica até quando os meios extra
penais são insuficientes para proteger os bens jurídicos, à luz do artigo 18º, nº
2, da Constituição.

3. Sistematização dos crimes contra o património

Hoje, no entanto, seria uma má decisão excluir a tutela da propriedade


do Direito Penal. Este bem jurídico não pode ser protegido satisfatoriamente
apenas através do Direito Civil e do Direito de Mera Ordenação Social e a sua
violação anda muitas vezes associada à ofensa de bens pessoais – é o que
sucede no roubo, que é praticado com recurso à violência ou ameaça de
violência.

Mas como “organiza” o CP a defesa da propriedade?

A forma mais rápida de responder a esta questão consiste em


apresentar a sistematização dos crimes contra o património, que atende ao
critério do bem jurídico protegido:
3.1. Crimes contra a propriedade;
3.2. Crimes contra o património em geral
3.3. Crimes contra direitos patrimoniais
3.4. Crimes agravados contra bens do sector público e cooperativo

3.1. Crimes contra a propriedade

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Os crimes contra ao propriedade não determinam a transferência
de propriedade, mas afectam, de algum modo o se exercício. Em regra,
supõem a perda de detenção e a constituição de uma nova detenção
sobre uma coisa.

Crime de furto

O furto é, por excelência, “o” crime contra a propriedade. De acordo com


o artigo 203º do CP, o furto simples consiste na subtracção de coisa móvel,
alheia, com intenção de apropriação, para si ou para outra pessoa. O crime é
punido com pena de prisão até três anos ou de multa (até 360 dias).

Quem furta não se torna proprietário, limita-se a subtrair a coisa. Por


isso, o crime de furto poderia ser considerado um crime de perigo: o
proprietário continua a ser proprietário, só que não pode exercer as faculdades
inerentes ao direito de propriedade. Todavia, este crime baseia-se no
pressuposto de que a lesão do direito de propriedade é irreversível. Assim, o
art. 206º do CP prevê que, havendo restituição da coisa furtada ou reparação
integral do prejuízo, há atenuação obrigatória da pena. Nesta perspectiva, pode
questionar-se se existe um verdadeiro concurso de infracções entre o furto e o
dano. Se A. subtrair o CP de B. e depois o queimar, será punido por dois
crimes? Ora deve concluir-se que o concurso é aparente porque a ofensa
continua a ser ao direito de propriedade e, sobretudo, porque a penalidade do
furto é doseada pressupondo um ataque irremediável a esse direito.

O art.203º do CP enuncia elementos que permitem compreender a


fórmula geral de tutela do direito de propriedade pelo Direito Penal.

Primeiramente temos de compreender o significado de subtrair. Os


penalistas construíram várias teorias, as quais se apresentam por uma ordem
de exigência crescente:

 Contretação – Para que haja furto consumado, basta que a


pessoa entre em contacto com a coisa.

 Apreensão – Será necessário que o agente desaposse a vítima,


bastando, para tanto, que se torne detentor da coisa – há uma detenção

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originária, depois um acto de desapossamento e, por fim, o furto consuma-se
com a constituição de uma nova detenção.

 Ablação – É preciso que o agente abandone o local onde a coisa


foi subtraída.

 Ilação – É necessário que o agente abandone o local onde


consumou o furto e integre a coisa na sua esfera de domínio – indo, por
exemplo, para sua casa.

De todos estes critérios, o preferível é o da apreensão, que já era


defendido por Beleza dos Santos e continua a ser sustentado, por exemplo, por
Sousa e Brito e por Faria Costa. O mero contacto com a coisa só pode
documentar uma tentativa (que, aliás, é aqui excepcionalmente punível –
artigos 23º, nº 1, e 203º, nº 2, do Código Penal) e, no pólo oposto, a subtracção
não exige o distanciamento do agente ou da coisa furtada.

O objecto do crime é uma coisa móvel alheia. Mas o que é, afinal, uma
coisa móvel? A noção é prevista no Código Civil (CC) com grande clareza:
coisa móvel é a coisa não incorporada, directa ou indirectamente, no solo a
título permanente. Porém, em Direito Penal, o conceito deve ser compreendido
numa perspectiva funcional, orientada teleologicamente: podem ser objecto do
crime de furto todas as coisas originariamente móveis, mas também todas as
coisas imóveis que possam ser transformadas em móveis e subtraídas (por
exemplo, o quadro de uma sala de aula, se arrancado à parede).

A exigência de que a coisa seja alheia, implica que ela não seja do
agente do crime, no todo ou em parte. Estando em curso, por exemplo, uma
acção de divórcio, a subtracção de um bem que integre o património comum
não constitui furto.

Por último, a intenção de apropriação constitui um elemento subjectivo


especial que acresce ao dolo. O dolo de furto requer, nos termos gerais, que o
agente saiba que a coisa é alheia e queira subtraí-la – a título de dolo directo,
necessário ou eventual (artigo 14º do CP). Mas exige-se ainda que o agente se
pretenda comportar em relação à coisa como se fosse seu proprietário,
exercendo as faculdades inerentes a esse direito. O agente não se torna titular

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da coisa em sentido jurídico, salvo se ocorrer a usucapião, pelo que não se
exige, objectivamente, a apropriação. Trata-se, por isso, de um crime
incongruente, cujo tipo subjectivo é mais extenso do que o tipo subjectivo.
Também se diz que é um crime de resultado cortado ou parcial, precisamente
porque a sua consumação depende da subtracção, não se requerendo a
apropriação.

Crime de abuso de confiança

Neste crime, o agente apropria-se de uma coisa alheia que lhe foi
entregue por título não translativo de propriedade. Continua a não haver uma
apropriação em sentido jurídico, mas o agente passa a comportar-se como
proprietário da coisa. Imagine-se, por exemplo, que um estudante empresta a
outro um livro e este decide ficar com ele…

Contudo, terá de haver dados objectivos que comprovem que o agente


quis apropriar-se da coisa, o que nem sempre será fácil. Na prática, este crime
só é punido quando o agente adopta uma conduta com um significado claro,
como a tentativa de vender a coisa ou a recusa de a devolver.

Crime de furto de uso de veículo

De acordo com o art. 208º, se alguém subtrai um automóvel alheio sem


intenção de apropriação comete um furto de uso. Não estamos perante um
crime de furto especial, uma vez que não há a intenção de apropriação, que é
indispensável para cometer um furto do art. 203º, mesmo na forma tentada.
Trata-se de um crime sui generis. Se não houvesse um artigo que o previsse
especificamente não seria punível (como não é punível, por exemplo, o furto de
uso de vestuário, que apenas pode acarretar responsabilidade civil).

Por que razão existe este crime? Porque a situação que ele tipifica
ocorre com frequência e porque é difícil provar a intenção de apropriação. Este
tipo de crime resulta da dificuldade de prova e demonstra a relação de
interdependência funcional entre o Direito e o Processo Penal.

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Crime de roubo

Constitui também um crime sui generis e não, como muitas vezes se


diz, um furto especial. Pode ser cometido de duas formas: pressupondo a
subtracção de uma coisa com violência (nesse caso consome um furto) ou
obrigando a vítima a entregar a coisa através de uma ameaça (consumindo
então uma ameaça e uma coacção). Nesta última hipótese é cometido um
roubo sem furto, o que demonstra que não há relação de especialidade entre
as normas que prevêem os dois crimes.

Embora o roubo seja concebido como crime contra a propriedade, a


norma que o prevê tutela também, acessoriamente, a integridade física e a
liberdade. Aliás, o peso destes bens jurídicos na pena legal é patenteado pelo
artigo 211º, que manda aplicar as penas do roubo (artigo 210º), quando a
violência ou a ameaça de violência se seguirem à subtracção (isto é, a um
furto).

Crime de dano

Neste caso há, no plano material, a lesão mais irreversível do direito de


propriedade, visto que a coisa é destruída no todo ou em parte.

Como se viu, se este crime for precedido de um furto deverá ser


considerado “facto posterior não punível, sob pena de violação do princípio non
bis in idem (art. 29º, nº 5, da Constituição).

Todos estes crimes têm por objectivo o património de outra pessoa, e


consumam-se com uma diminuição desse património. Mas então, qual será o
conceito de património válido? O código conimbricense diz-nos que os critérios
preferíveis são aqueles que consideram integrados no conceito de prejuízo os
lucros cessantes, bem como os danos emergentes.

3.2. Crimes contra o património em geral

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Todos os crimes contra o património em geral têm por objecto o
património de outra pessoa e consumam-se com uma diminuição desse
património. Mas qual será o conceito de património válido? O critério preferível
é o jurídico-económico, devendo integrar-se no património todas as situações
jurídicas com um significado económico, englobando, nos termos gerais, lucros
cessantes e danos emergentes.

Crime de burla

Paradigmática dos crimes contra o património é a burla, que está


prevista no art. 217º do CP.

A burla ocorre quando uma pessoa utiliza astúcia para induzir outra em
erro ou engano, de modo a que essa pessoa pratique um acto de disposição
patrimonial de que resulte um prejuízo. Subjectivamente, requer-se uma
intenção de enriquecimento ilegítimo.

A este respeito, defendo a existência de três nexos de causalidade. O


agente tem de usar astúcia, no sentido objectivo, de forma a levar a cabo uma
manobra ardilosa ou uma mise en scène – aquilo a que o penalista brasileiro
Nélson Hungria chamava “aracnídea urdidura”. Da astúcia tem de resultar o
erro ou engano. O erro ou engano tem de causar o acto de disposição. E, por
fim, o acto de disposição tem de causar o prejuízo. No entanto, há quem
defenda a existência de apenas dois (Sousa e Brito e Almeida Costa) ou até de
quatro nexos causais (José António Barreiros).

Um exemplo de burla é fornecido pela venda de um bilhete “premiado”


da lotaria, referente a um concurso antigo, quando se faça crer que respeita ao
último sorteio (“vigésimo premiado”). Mais recentemente são conhecidas
histórias de burla em massa, através de depósitos (“D. Branca”), compra de
selos ou “cartas nigerianas”. Há sempre uma manobra astuciosa, por mais
primária que seja – a incriminação da burla protege todas as vítimas, mesmo
as mais ingénuas, não fazendo sentido falar de homem médio neste contexto
(isso equivaleria a retirar a protecção a vítimas especialmente vulneráveis).

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Tal como o furto, trata-se de um crime incongruente e de resultado
cortado ou parcial, uma vez que não é necessário que o agente enriqueça
objectivamente, bastando que tenha a intenção de enriquecer. Se, por
exemplo, a vítima do crime se engana e pratica o acto de disposição fazendo o
depósito na conta de um terceiro, o agente não enriquece mas há burla
consumada.

A burla pode coexistir com situações de erro na celebração de contratos


(induzido dolosamente), mas não há relação de implicação lógica entre as duas
figuras.

A burla pode ser cometida contra pessoas colectivas, públicas ou


privadas, na medida em que os seus órgãos, representantes ou agentes são
passíveis de erro ou engano. Não tem razão, pois, o Conselheiro Fischer Sá
Nogueira quando sustenta que o Estado é insusceptível de ser burlado.

Certas condutas que têm vindo a ser criminalizadas, como a burla


informática e nas comunicações (artigo 221º) saem, porém, deste quadro para
se configurarem como crimes autónomos, por não integrarem um elemento de
erro ou engano psicológico.

3.3. Crimes contra direitos patrimoniais

Os crimes contra os direitos patrimoniais (por exemplo, insolvência e


favorecimento de credores) não tutelam o património no seu conjunto, mas
direitos patrimoniais específicos, que podem ser direitos reais ou de crédito.

Crime de receptação

No Código Penal do séc. XIX ( 1852/86), este crime era concebido


como forma de comparticipação criminosa. Era uma espécie de cumplicidade.
Em 1982 deixou de ser entendido dessa forma, visto que é praticado já depois
de se consumar o crime contra o património que lhe dá origem. Foi então
tipificado como um crime autónomo contra direitos patrimoniais.

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Aspecto relevante, no actual regime, é a punição da negligência
grosseira. Quando o agente puder “razoavelmente” suspeitar da proveniência
criminosa de uma coisa que adquire (pela sua natureza, pelo seu preço ou pela
qualidade de quem a oferece), é punível, nos termos do art.231º, nº.2, do CP.

3.4. Crimes agravados contra bens do sector público e


cooperativo

Crime de administração danosa

A par da apropriação ilegítima (art. 234º), que constitui uma modalidade


agravada de abuso de confiança, este capítulo incorpora o crime de
administração danosa, de que muito se falou a propósito do chamado “caso
Moderna”.

É de notar que este crime é específico próprio, ou seja, só pode ser


cometido contra “unidade económica” do sector público e cooperativo

Lisboa, 15 de Novembro de 2006

Maria Mineiro n.º 784

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