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Fragmento de “Monstrologia Reversa: Inexistência”, cap.

1 da dissertação NÃO SE
NASCE MONSTRA, TAMPOUCO UMA SE TORNA: SOBRE INEXISTÊNCIA SOCIAL E
FIM DE MUNDO de Jota Mombaça (2017). Ainda inédito:

Como então fazer desta dissertação uma ficção sem projeto, mas repleta de perguntas;
como articular um pensamento e uma prática de vida capazes de passar pelos rituais de
legitimação acadêmica sem, com isso, aprisionar um determinado objeto numa determinada
objetividade; como fazer deste texto ele mesmo uma passagem monstruosa, um sítio de
reelaboração dos modos de perceber os efeitos do mundo sobre um corpo; como preservar
um certo grau de opacidade, capaz de inscrever no texto a inesgotabilidade do que quer
que se escreva sobre; como, enfim, elaborar sem tornar transparente?

Traçando uma rota que parte da elaboração de Edouard Glissant (1990) quanto ao “direito à
opacidade”, Saidiya Hartman (1997), num comentário sobre as canções dos escravos (slave
songs), adensa e desdobra essa ideia ao propor que tais canções são mais do que um
espelhamento da condição das gentes escravizadas, mas uma forma de inscrição
ambivalente da experiência negra nos campos de plantação e, no limite, uma forma de
resistência perante as imposições de transparência e a degradante hipervisibilidade do
corpo escravizado nesse contexto. “O direito de obscuridade deve ser respeitado”, defende
Hartman, “pois a ‘dor acumulada’, ‘o sussurro áspero no fundo da garganta’, as notas
selvagens e os gritos alojados bem lá no fundo confundem a simples expressão.” (Hartman,
1997, p. 36)

O direito de obscuridade, nesse sentido, mais do que um direito à não-enunciação,


configura-se como afirmação de um modo particular de enunciar que já não obedece à
política cognitiva do esclarecimento, pois incorpora o limite mesmo da “simples expressão”
na forma de uma linguagem opaca, ou obscura, profundamente atravessada por uma
sub-articulação que pode, mais bem, ser compreendida como uma estratégia de articulação
do inarticulável. Isto é, essa expressão no limite da expressividade que Hartman identifica
no canto dos escravos mais do que revelar o regime brutal de silenciamento posto em cena
pela dominação escravista dá a ver uma fala inteiramente outra, que não pode ser escutada
ou lida – no sentido do que Spivak atribui à fala subalterna – de forma transparente uma vez
que põe em prática uma linguagem obscura que é coextensiva ao direito à opacidade.

Fred Moten, numa entrevista intitulada Words don’t go there [Palavras não chegam lá], traz
a noção de “segredo” para ajudar a pensar essa linguagem obscura do direito à opacidade:

Esse é um imperativo político que infunde o projeto inacabado de emancipação assim como outras
transições ou atravessamentos em processo. Isso corresponde à necessidade da fugitiva, da
imigrante e da nova (e novamente constrangida) cidadã a reservar algo para si, a manter um
segredo. A história da arte afro-diaspórica, especialmente da música, é, ao que me parece, a história
da guarda desse segredo mesmo em meio a sua intensamente pública e altamente mercantilizada
disseminação. Esses segredos são retransmitidos e mal-comunicados, mal-ouvidos, e superouvidos,
frequentemente de uma só vez, em palavras e na dobra de palavras, em gritos e sussurros, em
frases quebradas, no nome de pessoas que você jamais conhecerá. (Moten, 2010, p. 105)
Assim elaborado, o segredo torna-se muito mais do que aquilo que simplesmente não se
conta; torna-se uma forma particular de contar, uma linguagem quebrada, informal. Um
movimento de forças perturbadoras da “simples expressão” e intraduzíveis do ponto de vista
de uma transparência qualquer que seja. Como, então, fazer a escuta dessas forças e
aderir a elas; como frustrar essa acadêmica sede de conhecimento que se confunde à sede
de transparência do poder? Como manter possível um movimento à sombra, um movimento
que não se traduz e que se expressa no limite da expressão? Como preservar e
potencializar o segredo monstruoso das vidas monstruosas que se confundem à minha
própria?

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