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A Temporalidade na Esquizofrenia
Temporality in Schizophrenia
João Miguel Malhadas Martins*
Results and Conclusions: The constructs tal como todos os objetos espaciais estáticos e
of time, lived time and temporality are dis- dinâmicos. Mesmo os objetos ditos não-tem-
tinguished. Hypotheses are formulated with porais (como os postulados geométricos) pres-
evidence provided regarding how changes in supõem a existência do tempo, pela própria
the experience of time may affect individu- experiência da sua intemporalidade. Os pró-
als with schizophrenia. It is also explained prios processos mentais têm um tempo de fun-
the process of constitutive synthesis of pro- do. Para uma melhor análise das vivências e
tention-impression-retention, an essential de como as coisas nos surgem na consciência,
process to the experience of implied time. Fi- Husserl, através de uma redução fenomenoló-
nally, it is demonstrated how failure in this gica, diferenciou três estruturas temporais: o
process may affect the temporal experience tempo objetivo (ou transcendental), o tempo
of the person with schizophrenia. vivido (ou subjetivo) e a consciência do tem-
Key-Words: Time; Temporality; Schizophre- po vivido. O tempo objetivo é o tempo físico,
nia; Phenomenology; Psychopathology; In- cronológico, quantitativo e independente do
tersubjectivity; Self. eu. É um conceito próximo da ideia do senso
comum de tempo. Em fenomenologia, o tem-
po objetivo corresponde à temporalidade dos
INTRODUÇÃO eventos e processos físicos, onde as coisas são
“O tempo está dentro e fora de nós mesmos. O tão temporais quanto espaciais, estando inter-
tempo é uma perceção. É parte do mundo exte- -relacionados tempo e espaço. Consequente-
rior, mas é também uma sensação vivenciada mente, o tempo objetivo é preciso e verificável,
por nós mesmos. Organizamos e cristalizamos sendo partilhado por todos. Para o estimar
a perceção do tempo dando uma conotação são usados relógios e calendários, que ajudam
de fluxo temporal contínuo, o qual medimos os humanos a estabelecer relações temporais
através de relógios, e tentamos aplicar as mes- entre eventos e processos (como durações e
mas medidas para o tempo vivenciado por nós sequências). O tempo vivido, ou subjetivo, é
mesmos, chamando-o de sensação de tempo... pessoal, interior. Acontece dentro do nosso es-
O tempo é uma parte inerente do mundo per- paço interno, é privado e não pode ser medi-
cetível, fora e dentro do corpo”1. Apesar de nos do por métodos objetivos. Esta temporalidade
referirmos à perceção do tempo, de termos interna não possui consciência de si mesma.
inegavelmente um sentido de tempo, os nos- A consciência que temos do tempo vivido cor-
sos corpos não estão equipados com um órgão responde ao terceiro nível da temporalidade. É
sensorial capaz de captar a passagem do tem- a nossa vivência completa da temporalidade a
po, como no caso da audição ou da visão. O cada momento.
tempo não é um objeto material do mundo2.
A questão da temporalidade é crucial para a METODOLOGIA
fenomenologia. Segundo Husserl3, todas as Para a realização deste trabalho, e tendo em
experiências da consciência são temporais, vista uma perspetiva da visão atual do tema,
foi elaborada uma revisão seletiva da litera- rado pela Organização Mundial de Saúde e o
tura na base de dados PubMed, a partir do Diagnostic and Statistical Manual (DSM) da
ano 2000, com as seguintes palavras-chave: American Psychiatric Association. Ambos os
“schizophrenia”, “temporality”, “lived time”, conjuntos de critérios são muito semelhantes
“time perception”, “phenomenology” e “psy- e enfatizam os sintomas tradicionais como as
chopatology”. Após selecionados os artigos alucinações, delírios, experiências variadas de
que o autor considerou relevantes e dado os interferência do pensamento, discurso incoe-
temas serem debatidos desde há longa data, rente, embotamento afetivo e um declínio no
posteriormente foram também consultadas funcionamento global. Dentro das mais re-
algumas obras clássicas da psicopatologia, centes tentativas de definir esquizofrenia está
para uma melhor contextualização e integra- a proeminente hipótese da perturbação do
ção do tema. ipseity ou perturbação do self mínimo6. Sass
defende que a esquizofrenia envolve uma “per-
ESQUIZOFRENIA E A CONSCIÊNCIA DO turbação na experiência mínima / núcleo do
SELF self”, algo que diz respeito ao “sentido de existir
O tempo é um elemento essencial à sobrevi- como sujeito vital, como sujeito da experiên-
vência humana e, apesar da sua importância, cia idêntico ao próprio self, como agente da
é relativamente pouco investigado, em parti- acção”5. Parnas descreve, da mesma forma, a
cular na esquizofrenia4. erosão da perspetiva na primeira-pessoa, algo
A esquizofrenia desde há muito que é consi- que é habitualmente automático12. Assim, de
derada uma categoria controversa, com fron- acordo com este modelo contemporâneo expli-
teiras incertas e na sua essência mal definida. cativo, a perturbação central da esquizofrenia
Diversos autores têm recentemente, e uma vez tem na sua génese uma perturbação particu-
mais, questionado a sua validade, rejeitando a lar da consciência, no núcleo do self ou “self
categoria, argumentando que a mesma englo- mínimo”, também conhecido por ipseity, que
ba diferentes doenças e impede a investigação é normalmente implícito em cada ato da cons-
e o tratamento adequados5. A esquizofrenia é ciência. Ipseity deriva do ipse (do latim self)
muito provavelmente um grupo de doenças e refere-se à noção mais básica do próprio
que afetam caracteristicamente as capacidades ou da sua presença. É o sentido fundamental
humanas da linguagem, pensamento, emoção de unicidade, identidade, de existir enquanto
e perceção. É relativamente comum tornar-se força vital e de agência sobre a própria ação.
evidente no início da idade adulta, provocando Este núcleo central do self é edificado com base
frequentemente incapacidade prolongada. A no corpo vivido e na temporalidade implícita,
esquizofrenia é tradicionalmente definida por sendo como um ponto invisível de origem para
sintomas e sinais de acordo com um de muitos a experiência, pensamento e ação. Funciona
conjuntos de critérios diagnósticos, sendo os como um intermediário da consciência, uma
maiores sistemas de classificação o Interna- fonte de atividade e direccionalidade no mun-
tional Classification of Diseases (ICD) elabo- do. É ele que “enraíza” a vida subjetiva do su-
jeito em si próprio. De acordo com este modelo, tidade pessoal, podendo ser desenvolvido pelo
na esquizofrenia, pensa-se que a perturbação conhecimento refletido do self e pela memó-
do ipseity tem dois principais aspetos que ria autobiográfica. A temporalidade implícita
aparentemente contraditórios são na verdade é assim um elemento fundamental para a
interdependentes – a “hiperreflexividade” e a coerência do self. Pode-se mesmo afirmar que
diminuição da afetividade do self. O primeiro a unidade e continuidade temporal do self é
refere-se a uma exagerada autoconsciência, um sinónimo da consciência implícita da coe-
uma tendência não volitiva para focar a aten- rência do self (ipseity), ou seja, da consciência
ção em direção a processos e fenómenos que mais básica que temos de nós mesmos, da nos-
normalmente seriam experiências tácitas, inte- sa presença, unidade, existência enquanto su-
grantes do próprio. A diminuição da afetividade jeito vital e único, com sentido de agência da
do self diz respeito ao declínio passivo da vi- nossa acção8. Em suma, o sentimento que te-
vência implícita de existir como sujeito dotado mos de nós próprios enquanto sujeitos unitá-
da sua própria consciência e agência das suas rios permanentes das nossas vivências através
acções7. De facto, tendo em conta este modelo, do tempo deve-se à integridade da consciência
a temporalidade implícita é uma pedra fun- do tempo. Graças à unificada e pré-reflexi-
damental para a consciência do self mínimo va vivência do presente, a nossa consciência
e, consequentemente, para a psicopatologia está internamente relacionada consigo mes-
na esquizofrenia. Para melhor compreender ma e com o que lhe afeta. A desintegração da
de que forma tal sucede, é necessário analisar consciência do tempo tem obviamente sérias
como é processada internamente a vivência do consequências psicopatológicas para a forma
tempo subjetivo, e depois como ele se correla- como alguém vivencia o mundo fenomenoló-
ciona com a coerência do self. gico e como se relaciona com o mesmo. Com
a fratura do fluxo do tempo, podemos obser-
A TEMPORALIDADE NA COERÊNCIA DO var um seccionamento dos momentos agora
SELF na consciência, cada agora é vivenciado como
De facto, a temporalidade constitui o alicer- separado do momento anterior e do momento
ce de qualquer vivência e a sua integridade seguinte, consequentemente, como não fazen-
é fundamental para o sentido de coerência do parte do fluxo da consciência e do eu9.
e continuidade do próprio e da identidade
pessoal. Enquanto verbalizo uma frase, não TEMPORALIDADE IMPLÍCITA SINÓNI-
estou apenas a reter o que acabei de dizer e MO DE CONSCIÊNCIA DA COERÊNCIA
a prever o que vou dizer a seguir, mas tam- DO SELF
bém estou consciente que sou eu que falei e Segundo Fuchs8,10, a temporalidade deve ser
vou continuar a falar sem ter de refletir sobre distinguida em temporalidade implícita, ou
mim mesmo enquanto orador. Este processo vivida pré-refletidamente, e temporalidade
contém uma autoconsciência implícita. Este explícita, ou vivida conscientemente. A vivên-
autoconhecimento tácito está na base da iden- cia explícita da temporalidade impõe-se ao
Neste humor delirante, o doente em vez de per- padrões implícitos de comunicação interpes-
cecionar e assimilar os objetos, a perceção res- soal não estão tão disponíveis como nas pes-
tringe-se a imitações ou envelopes das coisas. soas sem patologia. A sua ressonância afetiva
O doente com esquizofrenia observa as suas intercorporal está comprometida, os doentes
próprias perceções de fora em vez de vivê-las, têm dificuldades em reconhecer faces e em
não consegue reconhecer no sentido ativo, interpretar expressões faciais e gestos, a sua
sente-se rodeado por imagens intrigantes que, própria expressividade é frequentemente redu-
como as imagens de um sonho, parecem todas zida, rígida e dessincronizada das interações
dirigirem-se para ele. De acordo com os seus com o outro19.
sentidos, ele torna-se literalmente o espectador Eles não desenvolvem a garantia e segurança
de uma peça de teatro ou da projeção de um inquestionável de viver com outros através
filme sem saber que peça ou filme está a pas- de um tempo partilhável, em ressonância
sar. Perde assim o significado familiar das suas emocional e sincronia. A isto, acresce o stress
perceções, deixa de saber sobre o que são as excessivo gerado pela interação simultânea
coisas. É capaz de identificar e nomear os obje- verbal e não-verbal, que é particularmente
tos, contudo estes perdem o significado para si, exigente pela sua disfuncional síntese proten-
ou seja, não perde o conceito social do objeto, são-impressão-retenção. Assim, o afastamento
perde sim o significado que têm para si – uma autístico na esquizofrenia pode ser compreen-
cadeira não é só uma cadeira em si, é uma ca- dido como uma tentativa de reduzir a comple-
deira que me diz algo, é uma cadeira onde por xidade da esfera social e compensar o défice
exemplo eu me posso sentar. O doente sente-se na capacidade de sincronização12. O doente
assim afastado ou alienado das suas perceções, tem de reconstruir os seus atos quotidianos,
os significados permanecem abstratos e arbi- através de um planeamento rígido e ritualiza-
trários. Podem ter-lhe dito algo antes, mas ago- do da sua vida. A vida não flui, cada passo é
ra perderam o seu significado pessoal17. explícito e deliberado10.
O próprio delírio na esquizofrenia pode ser
AS ALTERAÇÕES INTERSUBJETIVAS DA compreendido como uma perturbação da in-
TEMPORALIDADE NA ESQUIZOFRENIA tersubjetividade temporal, uma falha na capa-
O tempo vivido ou subjetivo está fortemente cidade de nos sincronizarmos temporalmente
associado à vivência do sujeito no mundo. A com o outro, de entrar num movimento dialé-
dinâmica das interações do dia-a-dia com tico aberto de conversação tomando o ponto
outros implica uma sincronização dialéti- de vista do outro em consideração. Tipicamen-
ca. Desta relação dialética entre o sujeito e o te no delírio há uma reinterpretação de toda a
mundo surge o sentimento de um tempo vi- evidência contrária de acordo com um rígido
vido (subjetivo), um tempo que está intima- esquema cognitivo. Assim, a interpretação de
mente sincronizado com o tempo dos outros, toda a comunicação dentro do esquema de-
no que se denomina de intersubjetividade lirante exclui a intersubjetividade dialética e,
temporal18. Nas pessoas com esquizofrenia os com ela, a abertura de futuro8.