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01.07.

2004 Globo

Veríssimo
Duas imagens
O Millôr desafiou: diga “uma imagem vale mil palavras” sem usar palavras. Certo, como sempre, o nosso sábio maior.
Mas nas ultimas semanas vi duas imagens que significavam tanto que me deixaram sem palavras. Uma foi aquela foto
de senadores comemorando a derrota da proposta de salário-mínimo do governo, logo após a votação. Numa ponta da
foto aparece o Antônio Carlos Magalhães, eufórico. Na outra ponta, também eufórica, a Heloisa Helena. E entre eles,
outros festejadores, com predominância de senadores do PFL.

Se eu não consegui organizar um pensamento para enquadrar a foto, imagino alguém, no futuro, procurando palavras
para interpretá-la e, com ela, a estranha forma que tomou a política brasileira naquele ano de 2004, quando rebelados
contra a incoerência do PT aderiram à incoerência do PFL votando por um mínimo maior do que o proposto. A imagem
não terá detalhes — como o de que a Câmara depois restaurou o mínimo que o governo queria — nem explicações
sobre as sutis motivações de cada um na gama de eufóricos que ia de ACM a Heloisa Helena. Só dirá, sem palavras,
isto: que houve um torneio de incoerências e algumas pessoas precisaram escolher entre uma incoerência amargurante
e uma incoerência hipócrita e se aliaram à hipócrita, porque os dias eram assim. E que foi tudo (também não dirá a foto)
por 15 reais.

Outra imagem que me deixou sem palavras foi uma que vi na TV, de dois homossexuais se casando num estado no Sul
dos Estados Unidos. Não me lembro que estado era nem se foi uma cerimônia oficial — duvido que o casamento
homossexual já esteja legalizado em algum estado sulista americano —, mas o espantoso da imagem era que um dos
homens era branco e o outro negro. Há não muitos anos o casamento inter-racial era proibido por lei nos estados
sulistas. Até o namoro inter-racial era arriscado: negro com branca podia dar linchamento, branco com negra era
impensável, ou era clandestino. Para descrever o que teve que mudar na cabeça de uma comunidade inteira para
tornar possível, ou pelo menos não causar apoplexia coletiva, a união de pessoas de raças diferentes e do mesmo
sexo, não há palavras possíveis. Só o sentimento que, afinal de contas, algumas coisas mudam para melhor, e a
hipocrisia não é uma fatalidade genética humana.

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