Você está na página 1de 23

O pulo do Gato

Natália Zuccala

Personagens:

Grande Mulher
Pequeno Homem
Gato Preto

1
Para você Venâncio, com minha gratidão.

2
Ato um
A platéia está sentada e as cortinas se abrem. O que vêem é a sala de uma casa bem iluminada
e escura com alguns móveis escuros. Uma porta do lado esquerdo do palco, a única. Não há
paredes! Somente o teto e o chão.

À direita há um armário de madeira, em cima do armário o gato, na altura do gato a janela, acima
da janela o teto baixo. O gato é persa. Pêlo branco e muito macio; olhos muito verdes (há quem
diga que são azuis ou cinzas), muitíssimo bonito. Ele escreve em um caderno, mas somente
quando ninguém o vê e às vezes se lambe. Olha constantemente para fora da janela, sempre, a
peça inteira, menos no final quando...

No centro há uma mulher, sentada na ribalta, sentada no público como quem vê televisão, como
quem senta em cima do mundo. A mulher é pequena, muitíssimo pequena. Cabelos longos, loiros
e lisos, muito mesmo, tão longos que quando ela se levanta eles se arrastam dois quilômetros no
chão. Ou talvez seja por seu tamanho, tão baixa que alguém de um metro e sessenta e seis
poderia pisá-la de raiva!... Ela olha para frente.

À esquerda há um homem, ou um gigante, em pé. O homem é grande, muitíssimo grande, olhos


fundos e olheiras. Esbelto e até mesmo atraente. Ele é tão enorme que é corcunda. Ou talvez a
casa seja muito pequena. Ele não cabe nela e seu pescoço bate no teto. Quando se levanta sua
cabeça se abaixa. Não se vê seu rosto. Ele olha para o chão, obviamente.

GRANDE MULHER - Pequeno Homem quer trançar meus cabelos?

PEQUENO HOMEM - Quero. Senta-se no chão, atrás dela, e, delicadamente, começa a dividir
seus cabelos em três partes perfeitamente iguais.

GRANDE MULHER – Gato Preto.

GATO PRETO – Pois não.

GRANDE MULHER – A culpa é sua!

GATO PRETO – Indiferente. Já sei.

GRANDE MULHER – Não perguntei isso.

GATO PRETO – Não perguntou nada.

GRANDE MULHER – Por que respondeu?

GATO PRETO – Não respondi.

GRANDE MULHER – Como?

GATO PRETO - Não perguntou.

GRANDE MULHER – Sim.


3
GATO PRETO – Não respondi.

GRANDE MULHER – Não...

...........!

GRANDE MULHER – Perguntei sim. Perguntei se você me adora. Você me adora?

GATO PRETO – Não.

GRANDE MULHER – Que ingratidão! Pois sabe que eu te adoro. PEQUENO HOMEM!

PEQUENO HOMEM – Sim, querida!

GRANDE MULHER – Gato Preto não gosta de mim. Mas eu gosto dele. Compro-lhe leite, ração,
afeto, livros e lhe deixo subir nos móveis. Deixo até que ele more aqui. AQUI! Por que tanta
ingratidão? POR QUE ser assim? É triste... Acha isso justo? Tanto que sofri, que chorei por esse
animal. Veja como me trata. Como se eu fosse um cachorro qualquer. Não sei mais o que fazer
para agradá-lo.

Silêncio.

GRANDE MULHER – O que posso fazer por você Gato?

GATO PRETO – Nada.

GRANDE MULHER – Como?

GATO PRETO – Nada.

GRANDE MULHER – Nada?

GATO PRETO – Exato

GRANDE MULHER – Certeza?

GATO PRETO – Sim.

GRANDE MULHER – Mas eu já faço tudo por você! Queira alguma coisa, sim?

GATO PRETO – Aceito um cappuccino.

GRANDE MULHER – Perfeito. Dois! Queremos agora Pequeno Homem. E não se esqueça de
que você deve comer alguma coisa.

PEQUENO HOMEM – Sim. Levanta-se. AI!

GRANDE MULHER – Que foi? Que acontece? Que se passa? Que grita? Fala demônio, diga!

PEQUENO HOMEM – Bati minha cabeça.

4
GRANDE MULHER – Ah... Ainda bem! Pausa. Inexplicavelmente começa a tocar a “Marcha” do
“Quebra-Nozes” que permanece até o final da cena, inexplicavelmente. Não precisava gritar!
Você sempre bate a cabeça. Isso é ruim pra você, eu penso em você. Não consegue não bater?
Assim vai me matar um dia. Não se importa com a minha saúde? Não pensa em mim? Quer que
eu morra?

PEQUENO HOMEM – Desculpe.

GRANDE MULHER – E A MINHA TRANÇA? Ultrajada. Será que não é capaz de fazer nada por
mim?!

PEQUENO HOMEM – Perdão. Senta-se atrás dela e, delicadamente, continua a trança.

Blackout

LUZ

Agora toca “O chá” (1 minuto e 16 segundos), também do “Quebra-Nozes” de Tchaikovsky.

O gigante dança pela sala até o final da música, parece que lhe agrada. Pescoço no teto, torto
para baixo e pés no chão. Veste avental de cozinha com estampa colorida e segura um prato
enorme, fundo e cheio de bolachas.

O gato em cima do armário, olhando para fora da janela, abaixo do teto, batendo sua pata direita
ao ritmo da música que então acaba e

PEQUENO HOMEM – COMIIIDA! Venha grande mulher, ajudo você a sentar na cadeira.

Entra Grande Mulher. Cabelos um metro mais curtos. Um quilômetro, novecentos e noventa e
nove metros de cabelos arrastando no chão. Um pouco mais gorda.

GRANDE MULHER – Não percebe meus cabelos mais curtos e minha barriga mais larga? Sorri.

GATO PRETO – Não estou vendo você.

GRANDE MULHER – Pois então se vire.

GATO PRETO – Quantos metros você cortou?

GRANDE MULHER – E isso importa?

GATO PRETO – Sim.

GRANDE MULHER – Um metro, ou seja, cem centímetros... O que significa que meus cabelos
arrastam no chão um quilometro, novecentos e noventa e nove metros. Entendeu?

GATO PRETO – Posso imaginar.

GRANDE MULHER – E não quer ver?

GATO PRETO – Posso imaginar.

5
GRANDE MULHER – Com lágrimas nos olhos. Quando você quis um cappuccino eu lhe dei e
agora nem sequer vê meus cabelos. Você sabe como é difícil, para mim, cortá-los!

Silêncio.

GRANDE MULHER – Agressiva e magoada. Nunca mais farei nada por você!! Está me ouvindo?

GATO PRETO – Estou.

GRANDE MULHER – Agora vou comer.

PEQUENO HOMEM – Quer sentar-se? Eu ajudo.

GRANDE MULHER. – NÃO... Quero comer no chão. Senta-se no chão. Pequeno Homem se
senta ao lado e lhe dá comida na boca. Ela come uma quantidade exagerada de bolachas,
muitíssimas, e Pequeno Homem diverte-se. Ela come exageradamente rápido. Até que cansa de
receber as bolachas na boca, enfia o rosto no prato e come violentamente como um cachorro
qualquer.

GRANDE MULHER – Chega.

PEQUENO HOMEM – Mas você nem comeu as bolachas de morango!

GRANDE MULHER – Estou de regime. Sorri. Gargalha.

Pequeno homem ri muito, por um longo tempo e isto, definitivamente, ofende ela.
Ela bate em seu rosto como um boi chifra. Dói muito... Ele finge que não e chora,
silenciosamente.

GRANDE MULHER – Gato Preto, quero lhe fazer carinho. Desça um pouco aqui?

Pequeno Homem levanta-se

PEQUENO HOMEM – AI

GRANDE MULHER – Não lhe cansa machucar-se?

PEQUENO HOMEM – Sim, muito.

GRANDE MULHER – Pois então tome mais cuidado, não gosto de ver gente se machucando na
minha própria casa. Corta-me o coração.

Pequeno homem se senta em uma cadeira à esquerda do palco e atira, com uma mão, o prato
grande e fundo na coxia. Grande mulher olha para ele repreendendo-o, sem que ele note. Volta a
olhar pra frente. Tenta se levantar. Rola um pouco no chão de um lado e de outro, faz sons
estranhos, mexe as pernas e os braços como uma tartaruga e, com muita dificuldade, consegue
ficar em pé depois de certo tempo desagradável. Seu rosto está vermelhíssimo, suado, nojento.

GRANDE MULHER – Ofegante. Não vai descer Gato Preto?

GATO PRETO – Detesto que me acariciem.

6
GRANDE MULHER – Apontando o gato. Vê Pequeno Grande? Vê o que eu lhe dizia? Este gato
não é normal. Pois se gatos gostam de carinho e ele não gosta. E eu gosto lhe fazer carinho e
não posso, portanto ele não gosta de mim. Entende?

O gigante balança a cabeça afirmativamente.

GRANDE MULHER – Já que concorda comigo então tire ele de lá. Desça-o, quero fazer carinho
no gato.

PEQUENO HOMEM – Mas ele vai me morder assim como da outra vez.

GRANDE MULHER – Não vai! Vai?

PEQUENO HOMEM – Vai.

GRANDE MULHER – Vai mesmo Gato?

GATO PRETO – Bem, levando em conta meus instintos animais e o fato de que não gosto de ser
acariciado, suponho que sim.

GRANDE MULHER – O que sugere Homem?

PEQUENO HOMEM – Vá até lá.

GRANDE MULHER – Lá em cima? No alto?

PEQUENO HOMEM – Sim.

GRANDE MULHER – Mas é muito alto! Ajuda-me?

PEQUENO HOMEM – Claro, querida. Levanta-se. Bate a cabeça. AI!

GRANDE MULHER – Assustadíssima.


AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAH!!

PEQUENO HOMEM E GATO PRETO – O QUE FOI?!

GRANDE MULHER – Me assustei.

PEQUENO HOMEM – Ah...

Pausa longa.

Blackout

LUZ

Grande Mulher deitada no chão de barriga estufada para cima, sorriso de satisfação no rosto e
mãos abaixo da cabeça. Mais gorda. Ela meche os pezinhos no ritmo da música que alguém pôs
pra tocar. “Dança da fada do açúcar” se chama esta faixa.

7
Pequeno Homem sentado à esquerda a frente. Sorriso de regozijo. Cabeça encostada na
cadeira. Braços largados no chão. Cansado e feliz como poucas vezes se viu. Usa o avental e
luvas. Ouve a música sem nenhuma tensão muscular.

Gato preto em cima do armário.

GRANDE MULHER – Meu grandão! Você cozinha tão bem. Pausa reflexiva. Por isso me
apaixonei por você. Suas bolachas e biscoitos coloridos e gostosos. Nunca encontraria esse
talento tão apetitoso em outro homem!

PEQUENO HOMEM – Orgulhoso e sorridente. Um pouco envergonhado. Muito obrigado!

GRANDE MULHER – Sou capaz de comê-las até morrer.

PEQUENO HOMEM – Obrigado minha rainha.

GRANDE MULHER – Seus biscoitos me deixam grande, gorda e saudável. Sempre maior que
ontem e menor que amanhã! Levanta o tronco para sentar-se. Baunilha, limão, morango,
chocolate, laranja, doce de leite...

E, cada vez mais orgulhoso, Pequeno Homem gargalha

GRANDE MULHER – Meu doce de coco!

PEQUENO HOMEM – Minha colher de pau!

GRANDE MULHER – Meu pudinzinho!

PEQUENO HOMEM – Minha faca!

GRANDE MULHER – Meu brigadeiro!

PEQUENO HOMEM – Meu forno elétrico!

GRANDE MULHER – Minha tortinha de morango!

PEQUENO HOMEM – Meu amassador de batatas!

GRANDE MULHER – Meu bolinho de chuva!

PEQUENO HOMEM – Minha geladeira!

GRANDE MULHER – Meu sonho!

ESTRONDO!

PEQUENO HOMEM – ELE ABRIU A JANELA!

GRANDE MULHER – SOCORRO!

Pequeno Homem sai correndo segurando Grande Mulher em um dos seus braços longos e a joga
em cima do armário. Ele a segura pelas pernas, que segura o gato pelo rabo, que não consegue
se jogar da janela.

8
GATO PRETO – MIAU!

Gato Preto morde as mãos da Grande Mulher. Ela e o gigante caem no chão.

GRANDE MULHER – Eu disse que a culpa era dele! Pausa.Vá trancar essa janela outra vez!

O gigante não se movimenta e a música para.

GRANDE MULHER – Sentada como um bebê gordo. Falando com dificuldade. Vermelha.
Perninhas balançando e mãos engajadas. Gato Preto você não tem lógica nenhuma. Não vê que
assim vai se matar? Isso é absurdo. Faz o Pequeno Homem passar por isso, coitado. Você me
faz sofrer, o faz sofrer, faz o mundo inteiro sofrer. Como pode ser tão maldoso? E depois de
TUDO o que nós fizemos por você. Tudo o que esta casa fez! Busca ar longamente. VÁ
TRANCAR A JANELA!

O Gigante se levanta.

PEQUENO HOMEM – AI!

Grande Mulher rosna de raiva e Pequeno Homem tranca a janela.

GRANDE MULHER – Está satisfeito Gato Preto? Ou quer nos torturar um pouco mais?! O que
quer de mim?

GATO PRETO – Já disse que não quero nada.

GRANDE MULHER – Gritando. Obvio que não quer nada. O que mais poderia querer além do
que já lhe provenho? Não há NADA realmente necessário que você não encontre aqui, que aqui
não exista. Isto aqui é tudo, seu começo e seu fim!

Silêncio.

GRANDE MULHER – Vá ler um livro e saia da minha frente!

GATO PRETO – Seria melhor se eu não fosse agora.

GRANDE MULHER – Então não olhe mais para minha cara!

GATO PRETO – Eu nunca olho.

GRANDE MULHER – Pois nunca mais me peça nada!

GATO PRETO – Eu nunca peço.

GRANDE MULHER – Nunca mais fale comigo

...............

GRANDE MULHER – Vai me deixar falando sozinha? Se você parar de falar comigo eu mato o
gigante ouviu?

GATO PRETO – Ouvi.

9
GRANDE MULHER – Reconfortada. Muito bem!

Silêncio.

PEQUENO HOMEM – Quer bolachas?

GRANDE MULHER – QUERO. TEM DE UVA?

PEQUENO HOMEM – NÃO.

GRANDE MULHER – ENTÃO PREPARE!

Blackout

LUZ

Gato preto em seu lugar. Pequeno homem ao lado do armário do gato. Um pote um pouco fundo,
de servir comida a gatos, na mão.

PEQUENO HOMEM – Quer leite Gatinho?

GATO PRETO – Sim, aceito. Muito gentil.

O gigante coloca o pote em cima do armário.

GATO PRETO – Está muito bom! Mas bom mesmo.

Pequeno Homem sorri enquanto o gato se debruça sobre o pote e o lambe até o final. Ele se
deita para descansar com o rosto exposto para a platéia e faz sons de gato satisfeito.

GATO PRETO – Muito obrigado Gigante.

Pequeno Homem retira o pote de cima do armário para que o gato fique mais confortável.

GATO PRETO – Foi cortar o cabelo?

PEQUENO HOMEM – Sim. Não quer biscoitos?

GATO PRETO – Não como biscoitos, só ração.

PEQUENO HOMEM – Ah! E um cobertor? Talvez um travesseiro?

GATO PRETO – Estou bem assim.

PEQUENO HOMEM – Que bom!

...............

PEQUENO HOMEM – O que quer fazer?

GATO PRETO – Ir embora.

10
PEQUENO HOMEM – Melancólico. E quem vai lhe dar leite?

GATO PRETO – Não sei. Pausa. Talvez eu fique mais algum tempo...

....................

GATO PRETO – Gosto de você.

Gato tenta coçar suas costas com a pata de trás e não alcança.

GATO PRETO – Você pode fazer algo por mim: coçar as minhas costas.

PEQUENO HOMEM – Sim!

E, muito sedutoramente, ele coça as costas do gato com uma mão e segura o pote com a outra.
Por um longo tempo, bom... Pelo menos o suficiente para o gato morder os lábios. Ele ronrona e
lambe a mão do gigante.

Grande Mulher entra triunfalmente e com ela a música: “A mãe cegonha e os polichinelos” da
mesma suíte do mesmo autor. Um pouco mais gorda.

GRANDE MULHER – Um quilômetro e novecentos e noventa e oito metros! E parabéns pra mim.

Rapidamente o gato volta a sua posição.

PEQUENO HOMEM – Parabéns Grande Pequena!

GRANDE MULHER – Muito obrigada! Vocês sabem como é difícil para...

11
Ato dois
A temperatura está desagradável, quente demais. Grande mulher deitada em cima da cadeira
com sua barriga estufada para cima, ela cabe quase inteira lá. Seus pés pra fora da cadeira e
seus cabelos também, cabelos que invadem a sala inteira, em cima de todos os poucos móveis.
Seria impossível entrar ali sem pisar neles. Estão para cima e para baixo, por todos os lados.
Percorrem o cenário como uma cobra, ou como muitas. Ela não parece saudável, um pouco
amarelada. Mais gorda.

Pequeno homem em pé, do lado esquerdo e ao fundo. Tem os cabelos da anã envolvendo seu
pescoço como um cachecol. Sua.

Gato preto lá. Mas muito incomodado. Depois de alguns segundos para que se contemple a
cena, ele chuta o cabelo da Grande Mulher pra fora de seu armário.

GRANDE MULHER – Meus cabelos, gato! Tome cuidado, eles doem.

...............

GRANDE MULHER – Tudo dói. Minha pança dói. Ajuda-me felino?

GATO PRETO – Pois não.

GRANDE MULHER – Faça-me um chá, sim?

GATO PRETO – Não sei fazer... Ele sabe.

O gigante tira, de um móvel que apareceu subitamente ali, uma caneca; nela se lê a palavra
“Chá”. Vai servir sua mulher. O móvel desaparece.

GRANDE MULHER – Está tão quente, é capaz de me fazer mal. Cospe dentro da caneca.

Silêncio e mais silêncio, daqueles que fazem doer às costas, um daqueles que a casa tem que
suportar às vezes. Os olhos deles rodam pela sala.

GATO PRETO – Afinal, o que acontece com você? Está doente?

GRANDE MULHER – Pois lógico que sim. Olhe para mim! Não vê minha cor?

GATO PRETO – Não, lógico que não. É gripe?

GRANDE MULHER – Não, não sei o que é. Acho que cortei demais meus cabelos. Sabia que não
precisava de tanto, sabia. “É demais” eu disse. Eu disse que não precisava. Mas eles sempre
insistem. Pausa. Por que é que você não olha para mim um pouco, Gato? Se olhar verá. Quem
sabe até não se anima para descer aqui.

GATO PRETO – Acho que você comeu demais.

GRANDE MULHER – Desça um pouco, fique comigo. Olha pa... Pausa. O que você disse?

12
GATO PRETO – Comeu demais, por isso está doente.

GRANDE MULHER – Levanta a cabeça para falar ficando em posição incômoda, músculos
abdominais flexionados, tremendo. Doente por comer? Onde você leu isso? São somente as
bolachas do Pequeno Grande! Nunca me fariam mal. Coloridas e gostosas. Feitas no nosso Lar
mais que perfeito. Volta a cabeça para a posição original, relaxamento muscular. Além disso,
tenho uma saúde ótima. Meu problema são os cabelos, só os cabelos... E você, é claro. Talvez o
gigante também. Toma o chá inteiro. Vomita em cima de seus cabelos; ou pelo menos em cima
de alguns centímetros deles. Maldito! A culpa é sua...

SILÊNCIO!

PEQUENO HOMEM – Acho que você deveria tomar um banho, Grande Pequena.

GATO PRETO – Seria mais fácil se chovesse aqui dentro.

GRANDE MULHER – Me leve para o banho!

O gigante pega a mulher no colo delicadamente e, não intencionalmente, bate a cabeça dela no
teto.

GRANDE MULHER –
AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAA
AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAA
AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAA
AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAA
AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAA
AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAA
AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAI! Lágrimas nos olhos fundos do gigante.

Chove. Mas só em cima deles... Dela e dele.

Blackout

LUZ

Grande mulher em frente à única porta, mais gorda.

GRANDE MULHER – Milagre!

Dentro da sala bate sol, clima agradável, ameno. Um vaso com uma flor dentro foi colocado do
lado esquerdo do palco, bem perto da platéia. Flor muitíssimo bonita e amarela.

Pequeno homem de costas, centralizado no fundo do palco. Gato preto admirando o que de mais
longínquo sua visão alcança para fora da janela.

Ela cantarola um lalala. Pausa. E ela assobia passarinhos. Pausa. Ela boceja e tosse.

GRANDE MULHER – Se não conhecesse vocês dois pensaria que não estão felizes em me ver
ou até mesmo que não estão me vendo.

Segue até a planta e a tira do chão contemplando-a.


13
GRANDE MULHER – Tenho certeza que vocês notaram a bela flor que eu trouxe para o nosso
lar. Com esta temperatura agradável, este nível de umidade e o sol ela se adaptará muito
rapidamente. Não há quem ou o que não se adapte a esta casa.

Ela discursa sobre a beleza das flores, algo muito desagradável aos ouvidos. Somente ouve-se
de longe e nada faz muito sentido. Um discurso cansativo e sonolento...

Gato preto dorme.

GRANDE MULHER – Não faz sentido?

Nenhuma resposta. Então ela percebe que ambos estão dormindo. Pensa sobre o que fazer e
decide gritar.

GATO PRETO – MIAU!

Ela entra de novo. O gigante também acorda.

Silêncio.

GATO PRETO – Está melhor?

GRANDE MULHER – Melhor?

GATO PRETO – Não estava indisposta?

GRANDE MULHER – Indisposta!

Silêncio.

GRANDE MULHER – Melhor! Pausa. Esta pequena flor trouxe-me vida. Olhe como ela é bonita!
Veja gatinho. Ela é amarela e está plantada em um vaso. Vire sua cabecinha.

GATO PRETO – Ficará aí?

GRANDE MULHER – Algum problema?

GATO PRETO – Nenhum.

GRANDE MULHER – Não entendo porque lhe incomoda.

GATO PRETO – Não...

GRANDE MULHER – EU disse que me iria melhorar as coisas e aí está. No entanto, não me
reconhece... Não ouvi nenhum agradecimento, nenhum elogio! E eu TÃO disponível.

GATO PRETO – A flor não me incomoda, eu disse.

GRANDE MULHER – Você não disse nada e é melhor assim! Sua ingratidão me lastima como
espinho de rosa a uma mão feminina. Pequeno homem. Não sabe que plantas têm de ser
regadas?!

14
Pequeno Homem vai até a coxia (não pela porta) e de lá traz uma mangueira, rega a planta.
Derruba um pouco de água. Escorrega na água, cai de bunda com a mangueira na mão e ainda
ligada.

PEQUENO HOMEM – AI!

GRANDE MULHER – A isto se chama incompetência! A + B = C. Difícil de perceber? Dois pra lá


dois pra cá e é assim que se dança, não é? Eu sabia que você era uma farsa e concluindo assim
fica claro que a culpa é do gato.

Silêncio.

GRANDE MULHER – Levante-se! Água molha.

PEQUENO HOMEM – Ah é.

GRANDE MULHER – Mas! Veja bem. Pelo lado direito ou esquerdo? Não sabe? Pense rápido!
Apóie os dois pés no chão, uma mão na cabeça e outra no peito, perfeito! Assim não! Você só
sabe perder tempo. Está se molhando! Calma, não! Assim não. Cadê a mão no peito?! Se
molhar menos em menos tempo, escuta o que eu digo. Continue! Seja estrategista, pense rápido,
reaja, pés no chão! Os dois pés. NÃO! Fez tudo errado. Maldição! É isso que é.

Ela derruba o Gigante, que acabou de conseguir se levantar.

GRANDE MULHER – Só vai se levantar quando fizer como eu disse.

Blackout

LUZ

Uma nuvem escura e carregada sobrevoa o teto da casa, mas não chove.

Gato está em seu lugar com as mãos tampando os ouvidos! Pequeno Homem à esquerda do
palco, sentado, também com as mãos tampando os ouvidos! Ou pelo menos eles tentam fazê-lo.

Grande Mulher no centro; mais gorda. Com muita naturalidade ela verbaliza no volume mais alto
e insuportável que alguém pode alcançar, não se entende nada; mas se nota algum sentimento
entre histeria, felicidade e ódio. Às vezes meche os braços. O chão treme.

GRANDE MULHER –
LALALALALALALALALALALAALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALA
LALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALAL
ALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALA
LALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALAL
ALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALA
LALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALAL
ALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALA
LALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALAL
ALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALA
LALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALAL
ALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALA
LALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALAL
ALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALA
15
LALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALAL
ALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALA
LALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALAL
ALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALA
LALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALAL
ALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALA...

Com o tempo a fala começa a se transformar de voz em apitinho extremamente irritante,


estridente e linear. Este apitinho se torna gradualmente mais agudo, e quanto mais agudo se
torna menos se ouve, até que não se ouve nada e a mulher segue movendo os lábios. Tanto o
gigante como o gato adormecem completamente anestesiados.

Blackout

LUZ

Gato em seu lugar.

Grande Mulher olha para frente com os olhos vidrados e sorri. Está sentada no colo de Pequeno
Homem que, por sua vez, está sentado na cadeira a esquerda do palco.

PEQUENO HOMEM – Quer os biscoitos agora?

GRANDE MULHER – A prosperidade...

PEQUENO HOMEM – E quando?

GRANDE MULHER – não é obvia? Pausa. Às vezes...

PEQUENO HOMEM – Daqui a pouco.

GRANDE MULHER – Eu me impressiono comigo.

Longa pausa contemplativa sem que ela desvie seu olhar ou mude seu sorriso.

PEQUENO HOMEM – Fala sem esperar resposta num ritmo acelerado. Prefere as de chocolate,
não é? Sim. Pausa. Não pense que não percebi que você está gorda. É, eu percebi. É notável e
muito me agrada. Pausa. Por isso. Biscoitos. Você entende? É! Muito bem. Quero vê-la. Muito
mais gorda muito mais bonita. Eu preciso. Oferecer biscoitos, alimentá-la. É tarefa. Uma tarefa
de dedicação. Muitos anos. Preciso me dedicar a você. Pausa. Fiz de framboesa ontem. Não
quer experimentar? Você quer! Muito obrigada. E as de tamarindo? Também quer. Que bom.
Pausa. Quer de morango? Quer. Posso fazer de anis. Também posso. Sim. Posso fazer
qualquer uma. Ou as duas! Você escolhe. Que bom. Como sempre. Só dizer. O que prefere. Só
isso. Escolherá. Você decide. Sem dúvida. Eu faço. Tudo. Pausa. Certo. Laranja então. Fico feliz
em engordá-la. Alguma coisa além das bolachas?

GRANDE MULHER – Não. E agora me deixe...

PEQUENO HOMEM – Está bem.

GRANDE MULHER – Ser feliz um pouco.

16
..................

PEQUENO HOMEM – Sabe, um chocolate quente vai bem nesses dias em que faz frio. Quer?
Sim. Pausa. Pode ser morno, quente ou bem quente. Eu recomendo bem quente e com muito
açúcar. Aumenta a temperatura corporal e engorda! Pausa. Quente, muito bem.

GRANDE MULHER – Que finalmente desvia sua atenção: Vá buscar.

PEQUENO HOMEM – Mas eu tenho sede.

GRANDE MULHER – Deve tomar água.

17
Ato três
Gato Preto em seu lugar.

Grande Mulher, mais gorda, espia através fechadura. Coloca o dedo nela. Afasta-se e olha a
porta. Chuta a porta. Cai. Chuta a porta sentada no chão. Encara a porta. Grita com a porta. Ela
não responde. Caminha até o outro lado do palco calmamente. Chega. Vira-se. Corre e se atira
de cabeça na porta. Cai.

GRANDE MULHER – Ela há de ceder, vai se abrir. Pausa. Os cabelos, nunca vão parar de
crescer! Pausa. Eu deveria ter uma chave, deveria ter feito uma chave, assim ela não poderia
trancar-se quando quisesse. Todas as portas têm uma chave.

Pequeno Homem, que estava observando-a do centro do palco e de costas para a platéia, vai até
a porta e tenta abri-la pela maçaneta. Não consegue. Silêncio.

PEQUENO HOMEM – E o que isto significa?

GRANDE MULHER – Estarrecida. Que estamos trancados para sempre. Temos biscoitos?
Quantos biscoitos?

PEQUENO HOMEM – Temos muitos. Duas toneladas.

GRANDE MULHER – Muitos? São poucos. Vamos morrer!

Pausa. Ela continua observando-a.

GRANDE MULHER – Certamente dura algum tempo... Não morrerei de fome tão cedo... Pausa
longa sem que ela tire os olhos da porta. Isto está se tornando insuportável! Chora
desesperadamente.

GATO PRETO – Que se passa, Pequeno Homem?

PEQUENO HOMEM – Com naturalidade, com natural cordialidade. A porta trancou, vamos
morrer lenta e dolorosamente.

GRANDE MULHER – E o que nos resta, homem enorme?! E o que fazer?! Como respirar e como
morrer?! Ainda sentada, enquanto o gigante escuta impassível, com um excesso de poucas
reações. A culpa é dele! Só pode ser dele. Pausa. Mas você também definhará. E nem uma
lágrima vai chorar? Sim, gato ingrato, morreremos todos e juntos! Você não olhará para o lado.
Não terá pena de mim.

GATO PRETO – Quer minha pena?

Pequeno Homem vai buscar o vaso da flor amarela, começa a percorrer a sala tentando
encontrar algum lugar adequado para colocá-lo. Silêncio Sepulcral.

GRANDE MULHER – Com verdadeira curiosidade. Pequeno Grande, como deseja morrer?

PEQUENO HOMEM – Eu, Grande Pequena?

18
GRANDE MULHER – Sim.

PEQUENO HOMEM – Não desejo.

GRANDE MULHER – Medo e histeria. Mas irá! E me interessa saber como lhe parece ser mais
agradável.

PEQUENO HOMEM – Não me parece ser agradável.

GRANDE MULHER – Como lhe parece ser menos? Pausa. Enforcado? Atropelado, matado,
esfomeado, esfaqueado, acidentado, baleado, golpeado, dormindo, acordado, sedento, caído,
jogado, quebrado, afogado, suicidado, estressado, picado, moído, amassado, empalado,
enforcado, mutilado, infectado, queimado, drogado, asfixiado, mudo, surdo, manco, cego, doente,
com câncer ou bronquite, sinusite, gastrite, artrite, rinite, virose, gripe, artrose, escoliose, tumor,
lepra, AIDS, herpes, asperger, esquistossomose, esquizofrenia, paralisia, anemia, cancro,
bulimia, diabetes, cirrose, leucemia, Alzheimer, glaucoma, hemofilia, Parkinson, psoríase, lúpus,
vitiligo, epilepsia, bócio, escorbuto, gota, osteoporose, asma, silicose?

PEQUENO HOMEM – Prefiro Rinite!

GRANDE MULHER – E você, Gato? Como prefere morrer?

O Gato não responde.

GRANDE MULHER – Já não lhe disse o outro que aqui morreremos? Se não morrermos por falta
de oxigênio serão os cabelos que nos afogarão, até o seu vai crescer procurando a morte.

GATO PRETO – Desde que não seja cruel.

GRANDE MULHER – Toda morte é cruel! Infeliz de mim.

Pausa.

GRANDE MULHER – Diga-me o que lhe parece, por favor!

GATO PRETO – Triunfal. A fome.

GRANDE MULHER – Realmente pensativa. Você a fome, ele a rinite.

Pausa.

GATO PRETO – E você?

GRANDE MULHER – Quem?

GATO PRETO – Você!

GRANDE MULHER – Eu?

GATO PRETO – Sim.

GRANDE MULHER – O que?

19
GATO PRETO – Como prefere?

GRANDE MULHER – Eu?

GATO PRETO – Morrer.

GRANDE MULHER – Vou morrer.

GATO PRETO – Eu sei.

GRANDE MULHER – Pois então.

GATO PRETO – Pois eu sei.

Pausa.

GATO PRETO – A morte.

GRANDE MULHER – Sim.

GATO PRETO – Responda.

GRANDE MULHER – O que?

GATO PRETO – A pergunta.

GRANDE MULHER – Qual?

GATO PRETO – A sua.

GARNDE MULHER – Não

GATO PRETO – Sim.

GRANDE MULHER – Eu sei.

GATO PRETO – Então.

GRANDE MULHER – Como?

GATO PRETO – Prefere.

GRANDE MULHER – Morrer?

PEQUENO HOMEM – Morrer.

GATO PRETO – Há opções.

GRANDE MULHER – É?

PEQUENO HOMEM – É.

20
GATO PRETO – Escolha!!

GRANDE MULHER – Não.

GATO PRETO – SIM.

GRANDE MULHER – NÃO!

PEQUENO HOMEM – Como quem lê um cardápio, muito lentamente. Enforcado, atropelado,


matado, esfomeado, esfaqueado, acidentado, baleado, golpeado, dormindo, acordado, sedento,
caído, jogado, quebrado, afogado, suicidado, estressado, picado, moído, amassado, empalado,
enforcado...

GRANDE MULHER – Interrompendo-o. Está bem! Pausa, sem ar. São tantas opções!

PEQUENO HOMEM – Sem dúvida!

GATO PRETO – Escolha uma.

GRANDE MULHER – Apenas?

GATO PRETO – Não necessariamente.

Pausa mais longa.

GRANDE MULHER – Suicídio.

Percebe-se um sorriso de canto de boca que se trava no rosto do gato e do homem.

GATO PRETO – Não minta.

PEQUENO HOMEM – É feio.

GRANDE MULHER – Desculpe.

Pausa.

PEQUENO HOMEM – E então?

GRANDE MULHER – Dormindo. É menos cruel.

Silêncio. Pequeno Homem acaba encontrando um lugar para o vaso. Deposita-o lá. Busca uma
mangueira na coxia, rega a planta enquanto cantarola. Silêncio.

GRANDE MULHER – Tensionada nos olhos. Curiosa. E o que fazer antes de morrer então?

Pausa muitíssimo longa.

GRANDE MULHER – E o que fazer antes de morrer?

PEQUENO HOMEM – Sorrindo e feliz. Ainda temos biscoitos!

Blackout

21
LUZ

Pequeno Homem está sentando em sua cadeira à esquerda do palco. Grande Mulher, mais
gorda, está em pé no centro do palco. Eles olham para frente. Gato Preto em cima do armário. O
teto sumiu.

O gigante se levanta e diz “AI”. Quando percebe que não bateu sua cabeça senta-se novamente.
Levanta-se outra vez, então se senta. Levanta-se, senta-se. Levanta e Senta. Grande mulher
acompanha sua movimentação com os olhos. Então olha para cima e percebe a falta, enxerga o
buraco. Seu queixo cai, ela recoloca-o. Permanece posição de um boquiaberto que olha para
cima.

GRANDE MULHER – Ele se foi.

Silêncio. Ela está assustadíssima. Ele, feliz.

GRANDE MULHER – Gato, o teto sumiu.

GATO PRETO – Parece que sim.

GRANDE MULHER – E se chover?

GATO PRETO – Molha.

GRANDE MULHER – Se chover alaga. Pausa. Morte por afogamento! Ai de mim.

GATO PRETO – Se quiser morrer dormindo comece agora. Ri.

GRANDE MULHER – Fala com um resto de voz. Infeliz. Pausa pra que ela possa engolir um
pouco de saliva. Amedrontada como nunca se viu. É melhor comer algo.

Blackout

LUZ

O gato em seu lugar. Pequeno Homem e Grande Mulher sentados no chão assim como estavam
no primeiro ato. Ele a alimenta. Ela enfia a boca no prato e come violentamente, assim como no
primeiro ato.

GRANDE MULHER – Satisfeita.

PEQUENO HOMEM – E as de morango para a sobremesa?

GRANDE MULHER – Eu estou de dieta. Não ri. Pareço-lhe mais gorda, gato?

GATO PRETO – Como um porco no matadouro.

Ela sorri educadamente. O homem e o gato riem juntos. Ela para de rir e eles continuam
freneticamente. Ela não reage como de costume, mas simplesmente os olha assustada.

Silêncio.

22
GRANDE MULHER – Emocionada no auge de sua ternura. A verdade, Pequeno Grande, é que
ainda gosto de você e dos seus biscoitos, muito. Não seria nada sem você. Coloridos e gostosos.
Só você os faz assim tão bem. Você e suas bolachas são todos meus. São únicos e inexplicáveis.
Você e eu e...

Ele a interrompe segurando ela pelos braços. Depois a come, começando pela cabeça para que
ela não grite tanto, deixando somente os cabelos espalhados no chão. Gato Preto, que percebe o
que acontece sem olhar para o lado, pula de cima do armário. Quando chega ao chão observa o
gigante por alguns longos segundos sorrindo enquanto ele termina de comê-la.

GATO PRETO – O que vamos fazer com os cabelos?

O homem tem a boca cheia de sangue. Não responde.

GATO PRETO – Não importa.

O gato se dirige até ele e começa a lamber o resto de sangue em seu rosto e em suas mãos,
carinhosamente.

Blackout

LUZ

Platéia e palco completamente vazios a não ser pelos fios de cabelo espalhados no chão. Não
restam móveis ou pessoas.

23

Você também pode gostar