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Natália Zuccala
Personagens:
Grande Mulher
Pequeno Homem
Gato Preto
1
Para você Venâncio, com minha gratidão.
2
Ato um
A platéia está sentada e as cortinas se abrem. O que vêem é a sala de uma casa bem iluminada
e escura com alguns móveis escuros. Uma porta do lado esquerdo do palco, a única. Não há
paredes! Somente o teto e o chão.
À direita há um armário de madeira, em cima do armário o gato, na altura do gato a janela, acima
da janela o teto baixo. O gato é persa. Pêlo branco e muito macio; olhos muito verdes (há quem
diga que são azuis ou cinzas), muitíssimo bonito. Ele escreve em um caderno, mas somente
quando ninguém o vê e às vezes se lambe. Olha constantemente para fora da janela, sempre, a
peça inteira, menos no final quando...
No centro há uma mulher, sentada na ribalta, sentada no público como quem vê televisão, como
quem senta em cima do mundo. A mulher é pequena, muitíssimo pequena. Cabelos longos, loiros
e lisos, muito mesmo, tão longos que quando ela se levanta eles se arrastam dois quilômetros no
chão. Ou talvez seja por seu tamanho, tão baixa que alguém de um metro e sessenta e seis
poderia pisá-la de raiva!... Ela olha para frente.
PEQUENO HOMEM - Quero. Senta-se no chão, atrás dela, e, delicadamente, começa a dividir
seus cabelos em três partes perfeitamente iguais.
...........!
GRANDE MULHER – Que ingratidão! Pois sabe que eu te adoro. PEQUENO HOMEM!
GRANDE MULHER – Gato Preto não gosta de mim. Mas eu gosto dele. Compro-lhe leite, ração,
afeto, livros e lhe deixo subir nos móveis. Deixo até que ele more aqui. AQUI! Por que tanta
ingratidão? POR QUE ser assim? É triste... Acha isso justo? Tanto que sofri, que chorei por esse
animal. Veja como me trata. Como se eu fosse um cachorro qualquer. Não sei mais o que fazer
para agradá-lo.
Silêncio.
GRANDE MULHER – Mas eu já faço tudo por você! Queira alguma coisa, sim?
GRANDE MULHER – Perfeito. Dois! Queremos agora Pequeno Homem. E não se esqueça de
que você deve comer alguma coisa.
GRANDE MULHER – Que foi? Que acontece? Que se passa? Que grita? Fala demônio, diga!
4
GRANDE MULHER – Ah... Ainda bem! Pausa. Inexplicavelmente começa a tocar a “Marcha” do
“Quebra-Nozes” que permanece até o final da cena, inexplicavelmente. Não precisava gritar!
Você sempre bate a cabeça. Isso é ruim pra você, eu penso em você. Não consegue não bater?
Assim vai me matar um dia. Não se importa com a minha saúde? Não pensa em mim? Quer que
eu morra?
GRANDE MULHER – E A MINHA TRANÇA? Ultrajada. Será que não é capaz de fazer nada por
mim?!
Blackout
LUZ
O gigante dança pela sala até o final da música, parece que lhe agrada. Pescoço no teto, torto
para baixo e pés no chão. Veste avental de cozinha com estampa colorida e segura um prato
enorme, fundo e cheio de bolachas.
O gato em cima do armário, olhando para fora da janela, abaixo do teto, batendo sua pata direita
ao ritmo da música que então acaba e
PEQUENO HOMEM – COMIIIDA! Venha grande mulher, ajudo você a sentar na cadeira.
Entra Grande Mulher. Cabelos um metro mais curtos. Um quilômetro, novecentos e noventa e
nove metros de cabelos arrastando no chão. Um pouco mais gorda.
GRANDE MULHER – Não percebe meus cabelos mais curtos e minha barriga mais larga? Sorri.
GRANDE MULHER – Um metro, ou seja, cem centímetros... O que significa que meus cabelos
arrastam no chão um quilometro, novecentos e noventa e nove metros. Entendeu?
5
GRANDE MULHER – Com lágrimas nos olhos. Quando você quis um cappuccino eu lhe dei e
agora nem sequer vê meus cabelos. Você sabe como é difícil, para mim, cortá-los!
Silêncio.
GRANDE MULHER – Agressiva e magoada. Nunca mais farei nada por você!! Está me ouvindo?
GRANDE MULHER. – NÃO... Quero comer no chão. Senta-se no chão. Pequeno Homem se
senta ao lado e lhe dá comida na boca. Ela come uma quantidade exagerada de bolachas,
muitíssimas, e Pequeno Homem diverte-se. Ela come exageradamente rápido. Até que cansa de
receber as bolachas na boca, enfia o rosto no prato e come violentamente como um cachorro
qualquer.
Pequeno homem ri muito, por um longo tempo e isto, definitivamente, ofende ela.
Ela bate em seu rosto como um boi chifra. Dói muito... Ele finge que não e chora,
silenciosamente.
GRANDE MULHER – Gato Preto, quero lhe fazer carinho. Desça um pouco aqui?
PEQUENO HOMEM – AI
GRANDE MULHER – Pois então tome mais cuidado, não gosto de ver gente se machucando na
minha própria casa. Corta-me o coração.
Pequeno homem se senta em uma cadeira à esquerda do palco e atira, com uma mão, o prato
grande e fundo na coxia. Grande mulher olha para ele repreendendo-o, sem que ele note. Volta a
olhar pra frente. Tenta se levantar. Rola um pouco no chão de um lado e de outro, faz sons
estranhos, mexe as pernas e os braços como uma tartaruga e, com muita dificuldade, consegue
ficar em pé depois de certo tempo desagradável. Seu rosto está vermelhíssimo, suado, nojento.
6
GRANDE MULHER – Apontando o gato. Vê Pequeno Grande? Vê o que eu lhe dizia? Este gato
não é normal. Pois se gatos gostam de carinho e ele não gosta. E eu gosto lhe fazer carinho e
não posso, portanto ele não gosta de mim. Entende?
GRANDE MULHER – Já que concorda comigo então tire ele de lá. Desça-o, quero fazer carinho
no gato.
PEQUENO HOMEM – Mas ele vai me morder assim como da outra vez.
GATO PRETO – Bem, levando em conta meus instintos animais e o fato de que não gosto de ser
acariciado, suponho que sim.
Pausa longa.
Blackout
LUZ
Grande Mulher deitada no chão de barriga estufada para cima, sorriso de satisfação no rosto e
mãos abaixo da cabeça. Mais gorda. Ela meche os pezinhos no ritmo da música que alguém pôs
pra tocar. “Dança da fada do açúcar” se chama esta faixa.
7
Pequeno Homem sentado à esquerda a frente. Sorriso de regozijo. Cabeça encostada na
cadeira. Braços largados no chão. Cansado e feliz como poucas vezes se viu. Usa o avental e
luvas. Ouve a música sem nenhuma tensão muscular.
GRANDE MULHER – Meu grandão! Você cozinha tão bem. Pausa reflexiva. Por isso me
apaixonei por você. Suas bolachas e biscoitos coloridos e gostosos. Nunca encontraria esse
talento tão apetitoso em outro homem!
GRANDE MULHER – Seus biscoitos me deixam grande, gorda e saudável. Sempre maior que
ontem e menor que amanhã! Levanta o tronco para sentar-se. Baunilha, limão, morango,
chocolate, laranja, doce de leite...
ESTRONDO!
Pequeno Homem sai correndo segurando Grande Mulher em um dos seus braços longos e a joga
em cima do armário. Ele a segura pelas pernas, que segura o gato pelo rabo, que não consegue
se jogar da janela.
8
GATO PRETO – MIAU!
Gato Preto morde as mãos da Grande Mulher. Ela e o gigante caem no chão.
GRANDE MULHER – Eu disse que a culpa era dele! Pausa.Vá trancar essa janela outra vez!
GRANDE MULHER – Sentada como um bebê gordo. Falando com dificuldade. Vermelha.
Perninhas balançando e mãos engajadas. Gato Preto você não tem lógica nenhuma. Não vê que
assim vai se matar? Isso é absurdo. Faz o Pequeno Homem passar por isso, coitado. Você me
faz sofrer, o faz sofrer, faz o mundo inteiro sofrer. Como pode ser tão maldoso? E depois de
TUDO o que nós fizemos por você. Tudo o que esta casa fez! Busca ar longamente. VÁ
TRANCAR A JANELA!
O Gigante se levanta.
GRANDE MULHER – Está satisfeito Gato Preto? Ou quer nos torturar um pouco mais?! O que
quer de mim?
GRANDE MULHER – Gritando. Obvio que não quer nada. O que mais poderia querer além do
que já lhe provenho? Não há NADA realmente necessário que você não encontre aqui, que aqui
não exista. Isto aqui é tudo, seu começo e seu fim!
Silêncio.
...............
GRANDE MULHER – Vai me deixar falando sozinha? Se você parar de falar comigo eu mato o
gigante ouviu?
9
GRANDE MULHER – Reconfortada. Muito bem!
Silêncio.
Blackout
LUZ
Gato preto em seu lugar. Pequeno homem ao lado do armário do gato. Um pote um pouco fundo,
de servir comida a gatos, na mão.
Pequeno Homem sorri enquanto o gato se debruça sobre o pote e o lambe até o final. Ele se
deita para descansar com o rosto exposto para a platéia e faz sons de gato satisfeito.
Pequeno Homem retira o pote de cima do armário para que o gato fique mais confortável.
...............
10
PEQUENO HOMEM – Melancólico. E quem vai lhe dar leite?
GATO PRETO – Não sei. Pausa. Talvez eu fique mais algum tempo...
....................
Gato tenta coçar suas costas com a pata de trás e não alcança.
GATO PRETO – Você pode fazer algo por mim: coçar as minhas costas.
E, muito sedutoramente, ele coça as costas do gato com uma mão e segura o pote com a outra.
Por um longo tempo, bom... Pelo menos o suficiente para o gato morder os lábios. Ele ronrona e
lambe a mão do gigante.
Grande Mulher entra triunfalmente e com ela a música: “A mãe cegonha e os polichinelos” da
mesma suíte do mesmo autor. Um pouco mais gorda.
GRANDE MULHER – Um quilômetro e novecentos e noventa e oito metros! E parabéns pra mim.
11
Ato dois
A temperatura está desagradável, quente demais. Grande mulher deitada em cima da cadeira
com sua barriga estufada para cima, ela cabe quase inteira lá. Seus pés pra fora da cadeira e
seus cabelos também, cabelos que invadem a sala inteira, em cima de todos os poucos móveis.
Seria impossível entrar ali sem pisar neles. Estão para cima e para baixo, por todos os lados.
Percorrem o cenário como uma cobra, ou como muitas. Ela não parece saudável, um pouco
amarelada. Mais gorda.
Pequeno homem em pé, do lado esquerdo e ao fundo. Tem os cabelos da anã envolvendo seu
pescoço como um cachecol. Sua.
Gato preto lá. Mas muito incomodado. Depois de alguns segundos para que se contemple a
cena, ele chuta o cabelo da Grande Mulher pra fora de seu armário.
...............
O gigante tira, de um móvel que apareceu subitamente ali, uma caneca; nela se lê a palavra
“Chá”. Vai servir sua mulher. O móvel desaparece.
GRANDE MULHER – Está tão quente, é capaz de me fazer mal. Cospe dentro da caneca.
Silêncio e mais silêncio, daqueles que fazem doer às costas, um daqueles que a casa tem que
suportar às vezes. Os olhos deles rodam pela sala.
GRANDE MULHER – Pois lógico que sim. Olhe para mim! Não vê minha cor?
GRANDE MULHER – Não, não sei o que é. Acho que cortei demais meus cabelos. Sabia que não
precisava de tanto, sabia. “É demais” eu disse. Eu disse que não precisava. Mas eles sempre
insistem. Pausa. Por que é que você não olha para mim um pouco, Gato? Se olhar verá. Quem
sabe até não se anima para descer aqui.
GRANDE MULHER – Desça um pouco, fique comigo. Olha pa... Pausa. O que você disse?
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GATO PRETO – Comeu demais, por isso está doente.
GRANDE MULHER – Levanta a cabeça para falar ficando em posição incômoda, músculos
abdominais flexionados, tremendo. Doente por comer? Onde você leu isso? São somente as
bolachas do Pequeno Grande! Nunca me fariam mal. Coloridas e gostosas. Feitas no nosso Lar
mais que perfeito. Volta a cabeça para a posição original, relaxamento muscular. Além disso,
tenho uma saúde ótima. Meu problema são os cabelos, só os cabelos... E você, é claro. Talvez o
gigante também. Toma o chá inteiro. Vomita em cima de seus cabelos; ou pelo menos em cima
de alguns centímetros deles. Maldito! A culpa é sua...
SILÊNCIO!
PEQUENO HOMEM – Acho que você deveria tomar um banho, Grande Pequena.
O gigante pega a mulher no colo delicadamente e, não intencionalmente, bate a cabeça dela no
teto.
GRANDE MULHER –
AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAA
AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAA
AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAA
AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAA
AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAA
AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAA
AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAI! Lágrimas nos olhos fundos do gigante.
Blackout
LUZ
Dentro da sala bate sol, clima agradável, ameno. Um vaso com uma flor dentro foi colocado do
lado esquerdo do palco, bem perto da platéia. Flor muitíssimo bonita e amarela.
Pequeno homem de costas, centralizado no fundo do palco. Gato preto admirando o que de mais
longínquo sua visão alcança para fora da janela.
Ela cantarola um lalala. Pausa. E ela assobia passarinhos. Pausa. Ela boceja e tosse.
GRANDE MULHER – Se não conhecesse vocês dois pensaria que não estão felizes em me ver
ou até mesmo que não estão me vendo.
Ela discursa sobre a beleza das flores, algo muito desagradável aos ouvidos. Somente ouve-se
de longe e nada faz muito sentido. Um discurso cansativo e sonolento...
Nenhuma resposta. Então ela percebe que ambos estão dormindo. Pensa sobre o que fazer e
decide gritar.
Silêncio.
Silêncio.
GRANDE MULHER – Melhor! Pausa. Esta pequena flor trouxe-me vida. Olhe como ela é bonita!
Veja gatinho. Ela é amarela e está plantada em um vaso. Vire sua cabecinha.
GRANDE MULHER – EU disse que me iria melhorar as coisas e aí está. No entanto, não me
reconhece... Não ouvi nenhum agradecimento, nenhum elogio! E eu TÃO disponível.
GRANDE MULHER – Você não disse nada e é melhor assim! Sua ingratidão me lastima como
espinho de rosa a uma mão feminina. Pequeno homem. Não sabe que plantas têm de ser
regadas?!
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Pequeno Homem vai até a coxia (não pela porta) e de lá traz uma mangueira, rega a planta.
Derruba um pouco de água. Escorrega na água, cai de bunda com a mangueira na mão e ainda
ligada.
Silêncio.
PEQUENO HOMEM – Ah é.
GRANDE MULHER – Mas! Veja bem. Pelo lado direito ou esquerdo? Não sabe? Pense rápido!
Apóie os dois pés no chão, uma mão na cabeça e outra no peito, perfeito! Assim não! Você só
sabe perder tempo. Está se molhando! Calma, não! Assim não. Cadê a mão no peito?! Se
molhar menos em menos tempo, escuta o que eu digo. Continue! Seja estrategista, pense rápido,
reaja, pés no chão! Os dois pés. NÃO! Fez tudo errado. Maldição! É isso que é.
Blackout
LUZ
Uma nuvem escura e carregada sobrevoa o teto da casa, mas não chove.
Gato está em seu lugar com as mãos tampando os ouvidos! Pequeno Homem à esquerda do
palco, sentado, também com as mãos tampando os ouvidos! Ou pelo menos eles tentam fazê-lo.
Grande Mulher no centro; mais gorda. Com muita naturalidade ela verbaliza no volume mais alto
e insuportável que alguém pode alcançar, não se entende nada; mas se nota algum sentimento
entre histeria, felicidade e ódio. Às vezes meche os braços. O chão treme.
GRANDE MULHER –
LALALALALALALALALALALAALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALA
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ALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALA
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ALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALA
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ALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALA...
Blackout
LUZ
Grande Mulher olha para frente com os olhos vidrados e sorri. Está sentada no colo de Pequeno
Homem que, por sua vez, está sentado na cadeira a esquerda do palco.
Longa pausa contemplativa sem que ela desvie seu olhar ou mude seu sorriso.
PEQUENO HOMEM – Fala sem esperar resposta num ritmo acelerado. Prefere as de chocolate,
não é? Sim. Pausa. Não pense que não percebi que você está gorda. É, eu percebi. É notável e
muito me agrada. Pausa. Por isso. Biscoitos. Você entende? É! Muito bem. Quero vê-la. Muito
mais gorda muito mais bonita. Eu preciso. Oferecer biscoitos, alimentá-la. É tarefa. Uma tarefa
de dedicação. Muitos anos. Preciso me dedicar a você. Pausa. Fiz de framboesa ontem. Não
quer experimentar? Você quer! Muito obrigada. E as de tamarindo? Também quer. Que bom.
Pausa. Quer de morango? Quer. Posso fazer de anis. Também posso. Sim. Posso fazer
qualquer uma. Ou as duas! Você escolhe. Que bom. Como sempre. Só dizer. O que prefere. Só
isso. Escolherá. Você decide. Sem dúvida. Eu faço. Tudo. Pausa. Certo. Laranja então. Fico feliz
em engordá-la. Alguma coisa além das bolachas?
16
..................
PEQUENO HOMEM – Sabe, um chocolate quente vai bem nesses dias em que faz frio. Quer?
Sim. Pausa. Pode ser morno, quente ou bem quente. Eu recomendo bem quente e com muito
açúcar. Aumenta a temperatura corporal e engorda! Pausa. Quente, muito bem.
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Ato três
Gato Preto em seu lugar.
Grande Mulher, mais gorda, espia através fechadura. Coloca o dedo nela. Afasta-se e olha a
porta. Chuta a porta. Cai. Chuta a porta sentada no chão. Encara a porta. Grita com a porta. Ela
não responde. Caminha até o outro lado do palco calmamente. Chega. Vira-se. Corre e se atira
de cabeça na porta. Cai.
GRANDE MULHER – Ela há de ceder, vai se abrir. Pausa. Os cabelos, nunca vão parar de
crescer! Pausa. Eu deveria ter uma chave, deveria ter feito uma chave, assim ela não poderia
trancar-se quando quisesse. Todas as portas têm uma chave.
Pequeno Homem, que estava observando-a do centro do palco e de costas para a platéia, vai até
a porta e tenta abri-la pela maçaneta. Não consegue. Silêncio.
GRANDE MULHER – Estarrecida. Que estamos trancados para sempre. Temos biscoitos?
Quantos biscoitos?
GRANDE MULHER – Certamente dura algum tempo... Não morrerei de fome tão cedo... Pausa
longa sem que ela tire os olhos da porta. Isto está se tornando insuportável! Chora
desesperadamente.
PEQUENO HOMEM – Com naturalidade, com natural cordialidade. A porta trancou, vamos
morrer lenta e dolorosamente.
GRANDE MULHER – E o que nos resta, homem enorme?! E o que fazer?! Como respirar e como
morrer?! Ainda sentada, enquanto o gigante escuta impassível, com um excesso de poucas
reações. A culpa é dele! Só pode ser dele. Pausa. Mas você também definhará. E nem uma
lágrima vai chorar? Sim, gato ingrato, morreremos todos e juntos! Você não olhará para o lado.
Não terá pena de mim.
Pequeno Homem vai buscar o vaso da flor amarela, começa a percorrer a sala tentando
encontrar algum lugar adequado para colocá-lo. Silêncio Sepulcral.
GRANDE MULHER – Com verdadeira curiosidade. Pequeno Grande, como deseja morrer?
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GRANDE MULHER – Sim.
GRANDE MULHER – Medo e histeria. Mas irá! E me interessa saber como lhe parece ser mais
agradável.
GRANDE MULHER – Como lhe parece ser menos? Pausa. Enforcado? Atropelado, matado,
esfomeado, esfaqueado, acidentado, baleado, golpeado, dormindo, acordado, sedento, caído,
jogado, quebrado, afogado, suicidado, estressado, picado, moído, amassado, empalado,
enforcado, mutilado, infectado, queimado, drogado, asfixiado, mudo, surdo, manco, cego, doente,
com câncer ou bronquite, sinusite, gastrite, artrite, rinite, virose, gripe, artrose, escoliose, tumor,
lepra, AIDS, herpes, asperger, esquistossomose, esquizofrenia, paralisia, anemia, cancro,
bulimia, diabetes, cirrose, leucemia, Alzheimer, glaucoma, hemofilia, Parkinson, psoríase, lúpus,
vitiligo, epilepsia, bócio, escorbuto, gota, osteoporose, asma, silicose?
GRANDE MULHER – Já não lhe disse o outro que aqui morreremos? Se não morrermos por falta
de oxigênio serão os cabelos que nos afogarão, até o seu vai crescer procurando a morte.
Pausa.
Pausa.
19
GATO PRETO – Como prefere?
Pausa.
GRANDE MULHER – É?
PEQUENO HOMEM – É.
20
GATO PRETO – Escolha!!
GRANDE MULHER – Interrompendo-o. Está bem! Pausa, sem ar. São tantas opções!
Pausa.
Silêncio. Pequeno Homem acaba encontrando um lugar para o vaso. Deposita-o lá. Busca uma
mangueira na coxia, rega a planta enquanto cantarola. Silêncio.
GRANDE MULHER – Tensionada nos olhos. Curiosa. E o que fazer antes de morrer então?
Blackout
21
LUZ
Pequeno Homem está sentando em sua cadeira à esquerda do palco. Grande Mulher, mais
gorda, está em pé no centro do palco. Eles olham para frente. Gato Preto em cima do armário. O
teto sumiu.
O gigante se levanta e diz “AI”. Quando percebe que não bateu sua cabeça senta-se novamente.
Levanta-se outra vez, então se senta. Levanta-se, senta-se. Levanta e Senta. Grande mulher
acompanha sua movimentação com os olhos. Então olha para cima e percebe a falta, enxerga o
buraco. Seu queixo cai, ela recoloca-o. Permanece posição de um boquiaberto que olha para
cima.
GRANDE MULHER – Fala com um resto de voz. Infeliz. Pausa pra que ela possa engolir um
pouco de saliva. Amedrontada como nunca se viu. É melhor comer algo.
Blackout
LUZ
O gato em seu lugar. Pequeno Homem e Grande Mulher sentados no chão assim como estavam
no primeiro ato. Ele a alimenta. Ela enfia a boca no prato e come violentamente, assim como no
primeiro ato.
GRANDE MULHER – Eu estou de dieta. Não ri. Pareço-lhe mais gorda, gato?
Ela sorri educadamente. O homem e o gato riem juntos. Ela para de rir e eles continuam
freneticamente. Ela não reage como de costume, mas simplesmente os olha assustada.
Silêncio.
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GRANDE MULHER – Emocionada no auge de sua ternura. A verdade, Pequeno Grande, é que
ainda gosto de você e dos seus biscoitos, muito. Não seria nada sem você. Coloridos e gostosos.
Só você os faz assim tão bem. Você e suas bolachas são todos meus. São únicos e inexplicáveis.
Você e eu e...
Ele a interrompe segurando ela pelos braços. Depois a come, começando pela cabeça para que
ela não grite tanto, deixando somente os cabelos espalhados no chão. Gato Preto, que percebe o
que acontece sem olhar para o lado, pula de cima do armário. Quando chega ao chão observa o
gigante por alguns longos segundos sorrindo enquanto ele termina de comê-la.
O gato se dirige até ele e começa a lamber o resto de sangue em seu rosto e em suas mãos,
carinhosamente.
Blackout
LUZ
Platéia e palco completamente vazios a não ser pelos fios de cabelo espalhados no chão. Não
restam móveis ou pessoas.
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