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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

FACULDADE DE LETRAS E ARTES


SETOR DE LITERATURAS AFRICANAS
DISCIPLINA: POESIA AFRICANA
ESTUDANTE: ALINE MARTINS JUVINO DRE: 116027011

A fala de Sartre aos europeus em Os Condenados da Terra de Frantz Fanon.

Gostaria, neste trabalho, de não me atentar apenas a questões intratextuais- fatos


e apontamentos apresentados no texto - mas também às questões que extrapolam as
fronteiras do papel, e encontram sua gênese na ética e na política de sujeitos que,
salvaguardando especificidades, estão unidos pelo incômodo da perspectiva pós-
colonialista. Falo dos sujeitos que mais nos interessam nesta análise: Sartre e Fanon.

Estudando a contribuição do prefácio de Sartre para o livro de Fanon, podemos


buscar responder à pergunta que certamente se manifesta nos leitores de literaturas
africanas: Por que a escolha de um europeu para a contribuição do prefácio?

Talvez possamos esboçar um caminho de resposta ao pontuarmos a colaboração


de Sartre para a corrente teórica existencialista, assim como sua postura ética enquanto
filósofo. Estava longe de ser um típico pensador de apartamento, de escritório. Seus ideais
progressistas o levaram a participar ativamente da política francesa, aliando-se a à
Resistência Francesa, de oposição ao nazismo e mais tarde fundando o Movimento
Socialismo e Liberdade. Segundo sua ética, suas posições político-filosóficas deveriam
estar espelhadas em sua prática. Com essa perspectiva, o pensador se posicionou
publicamente em defesa da libertação da Argélia, assim como da Revolução Cultural da
China e dos movimentos dos estudantes de maio de 68, e talvez por isso tenham associado
a ele a imagem do filósofo engajado, ativista.

Atendo-me ao prólogo, começo observando a postura de enunciador que o filósofo


francês adota, usando a primeira pessoa do plural (nós) e revelando a consciência de seu
lugar epistemológico: o lugar do discurso europeu: “Vejam só o que fizemos dêles! Não
duvidávamos que aceitassem o nosso ideal porquanto nos acusavam de não sermos fiéis
a êle” (FANON, 1961.)
Essa postura pode ser observada como a atitude de um sujeito europeu que se
relaciona criticamente com a história colonizadora de seu próprio povo, e reconhece que
a iniciativa de rever o papel que o seu discurso ocupa e, por conseguinte, o papel que o
discurso europeu sempre ocupou é muito bem-vinda.

O texto avança no sentido de traçar um panorama sobre a história das colonizações


na voz do europeu, que reconhece a si e aos seus enquanto colonizadores e remonta, de
maneira sucinta, quais foram as etapas pelas quais passaram os colonizadores e os
colonizados. Sartre salienta que a primeira geração de colonizados, considerados
indígenas pois pediam emprestado o verbo, não dominava bem a língua, portanto, seus
usos da mesma eram limitados. A mudança radical da estrutura se configura a partir do
momento que a segunda geração, se apropriando da língua colonizadora, usa-a como
ferramenta. A língua é a chave de acesso aos conhecimentos postulados pelos europeus.
Realizada a antropofagia, a segunda geração já não volta seus discursos à metrópole, mas
para seus iguais. Assim é a trajetória do discurso de Fanon.

Segundo Sartre, o projeto de Fanon com Os Condenados da Terra é o de revelar


aos colonizados como se articulam as minúcias da engenharia colonial, se apropriando
para tal, dos postulados filosóficos Europeus. E nesse trabalho, que se configura uma
releitura dos movimentos grafados pela história das civilizações ocidentais, Fanon
“diagnostica” a Europa como fadada a decadência. Com tal proposição o autor, como
salienta Sartre, não planeja alarmar os ocidentais para a iminente catástrofe, mas trata-se
da decorrência da análise depreendida por ele em seu trabalho quase arqueológico. Nas
palavras de Sartre “Êste médico [...] constata que ela agoniza. De fora, baseando-se nos
sintomas que pôde recolher. Quanto a tratá-la, não. Êle tem outras preocupações na
cabeça; pouco se lhe dá que ela arrebente ou sobreviva.” (FANON, 1961).

O enunciador do prólogo, em um movimento semelhante ao de Fanon, fala


diretamente aos seus conterrâneos: “[Fanon] fala de vós, mas nunca a vós” (FANON,
1961). Este alerta aos europeus não se propõe a reiterar o fato de Fanon ser um africano
que, “hackeando” a língua opressora, restringe seu público interlocutor. O que interessa
a Sartre é a ênfase na atitude ética de Fanon e de seus objetivos com tal trabalho. Além
disso, Sartre se coloca, neste contexto como um tradutor da ética “fanoniana” assim como
dos objetivos do autor com Os Condenados da Terra. O projeto de Fanon surge com toda
radicalidade para movimentar, primeiramente a descoberta da máquina colonial e
posteriormente as formas de combate contra os seus vestígios e é Sartre quem
primeiramente revela ao europeu tais acontecimentos.

Não se trata, porém, de um alarme amedrontado ou inconformado do filósofo


francês para os seus frente a Fanon. O texto revela, mais do que uma consciência da
importância de tais modificações, a impossibilidade de atravessamento ou de
impedimento por parte do europeu:

“Não teme êle que as potências coloniais tirem proveito de sua


sinceridade? [...] Não. Não teme nada. Nossos processos estão
peremptos; podem talvez retardar a emancipação mas não a impedirão.
E não imaginemos que poderemos reajustar os nossos métodos: o
neocolonialismo, sonho preguiçoso das Metrópoles, é vão;”. (FANON,
1961)

Acrescento, ainda, que Sartre opera como um fomentador de interesse para os seus
em relação as propostas empreendidas por Fanon. Ele constrói uma argumentação que
revela tanto as ferramentas usadas para revelar a organização da máquina colonial
imperialista ao povo colonizado quanto o grande favor de revisitar toda a história europeia
e permitir ao colonizador observar a sua imagem vista através da perspectiva do Outro,
que se apresenta como diferente e é considerado como “referente dominado” no discurso.

Esse movimento de alteridade, de confronto com a diferença, é rico em termos de


ampliação da perspectiva e em termos de auto gnose. Como argumenta Sartre, o Europeu
tem, através da obra, a oportunidade de se repensar enquanto sujeito, e mais ainda, a
oportunidade de se pensar enquanto o Eu, que é o mesmo e é também o referente
dominante dos discursos.

Pontua o francês que o vil processo de colonização não gera impacto negativo
somente nos corpos e mentes dos colonizados, mas também nos corpos e mentes dos
colonos. A engenharia por trás da colonização não previu seus impactos transcontinentais.
Quando mais tarde, o mundo contratual, e as sociedades modernas ganhariam vida, seria
a colonização sua planta base, sua estrutura. E a reverberação de um processo de violência
como este paira ainda na modernidade sobre os espíritos humanos.

“A selvageria dos camponeses oprimidos, como não reencontra nela sua


selvageria de colono, que eles absorveram por todos os poros e de que
não estão curados? A razão é simples :Êsse personagem arrogante,
enlouquecido por todo o seu poder e pelo mêdo de o perder, já não se
lembra realmente que foi um homem: julga-se uma chibata ou um fuzil;”
(FANON, 1961.)

Mais do que conscientizar os europeus de que a descolonização dos corpos e do


pensamento é inevitável, de que os colonizados estão se unindo, se pensando e se
conhecendo para se reinventar, Sartre colabora no sentido de fazer ecoar através de sua
própria voz, e portanto, através de seu lócus epistemológico (MUDIMBE, 2013), os
movimentos que Fanon propõe aos seus: O de pensar sua própria ontologia para, a partir
daí, construir seu próprio Eu.

Só a partir da voz de Sartre, um filósofo francês, que tal empreitada poderia se


concretizar. Em outras palavras, é pelo fato de Sartre ser um europeu que sua fala chega
aos ouvidos dos ‘seus’ com familiaridade, uma vez que compartilham o mesmo lugar de
pensamento no mundo.
Valentin-Yves Mudimbe, filósofo congolês, propõe em seu artigo A Invenção da
África; Gnose, Filosofia e a Ordem do Conhecimento, significativa contribuição para a
problemática que temos aqui colocada a respeito das dimensões inerentes a um discurso.
Segundo o autor, quando um sujeito verbaliza suas ideias, já ali revela-se de onde ele fala,
ou seja, qual lugar ele ocupa em seu meio social. Para além de questões que tangenciam
os estudos linguísticos, Mudimbe preocupa-se com o que está fora da língua, mas que
ainda assim desempenha papel importantíssimo na oratória e na retórica. Em suas
palavras:

“Aquilo que a noção de condições de possibilidade indica é que


os discursos não só têm origens sócio-históricas, mas também
dependem de contextos epistemológicos. São estes últimos que
os tornam possíveis e são também eles que deles podem dar
conta de uma maneira essencial.” (MUDIMBE, 2013)

A evidenciação do contexto epistemológico do sujeito não funciona apenas como


ferramenta de identificação de sua posição no mundo, mas ela é a responsável pela
denúncia das vivencias que ele construiu e, portanto, também marca o grau de
proximidade dele com o assunto sobre o qual se debruça seu discurso.

Também sobre a temática das dimensões do discurso, contribuiu Djamila Ribeiro,


filósofa e feminista brasileira em seu livro de grande repercussão O que é lugar de fala,
que compõe a coleção Feminismos plurais. Nesta obra a autora discorre sobre a
importância de se compreender de onde parte o discurso hegemônico e sobre quem são
os tradicionais protagonistas do discurso. Em sua análise, o Homem europeu é o Eu, e o
homem negro é o outro; o papel que resta à mulher negra é ser o outro do outro. Em outras
palavras, nas disputas de poder que caracterizam a história humana, o europeu sempre
deteve a posse do discurso, o lugar de fala, e isso fez com que a perspectiva tradicional-
dominante sobre os mais diversos aspectos fosse construída a partir de contexto social,
histórico e epistemológico do homem branco europeu.

A partir disso, podemos pensar que a validade do discurso de Sartre no prólogo


de Os Condenados da Terra adquire a sua validade quando pensada em termos de
familiaridade discursiva. É um francês quem fala aos europeus que leiam o livro de Fanon
e que o utilizem em função de uma ressignificação do Eu europeu. A voz de Sartre opera
como um “óculos epistemológico” a partir do qual os europeus irão vivenciar as propostas
de Fanon de maneira genuína, Sartre ensina os seus a tomarem a obra como uma
ferramenta de auto gnose, que tem por objetivo não só a tomada de consciência, mas, e
principalmente a possibilidade de se reinventarem, pois como afirma Sartre: “[...] há isto
que talvez êle [europeu] jamais tenha sabido: nós não nos tornamos o que somos senão
pela negação íntima e radical do que fizeram de nós.(FANON, 1961.)

Bibliografia:

FANNON, Frantz. Os condenados da Terra. Civilização Brasileira, 1968.

MUDIMBE, Valentin Yves. A invenção de África: gnose, filosofia e a ordem do


conhecimento. Lisboa: Edições Pedalgo, 2013.

RIBEIRO, Djamila. O que é lugar de fala? Letramento Editora e Livraria LTDA, 2018.

JEAN-PAUL SARTRE. In: WIKIPÉDIA, a enciclopédia livre. Flórida: Wikimedia


Foundation, 2019. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Jean-
Paul_Sartre&oldid=54847157>. Acesso em: 15 abr. 2019.

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