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A DITADURA DO RELÓGIO

George Woodcock 

  Não
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medir o tempo: a ampulheta cheia que escorria, medievais da Europa foi a invenção do relógio
o relógio de sol inútil num dia sombrio, a vela que, ao provocar uma mudança revolucionária no
ou lâmpada onde o resto de óleo ou cera que conceito de tempo, contribuiu materialmente para
 permanecia sem queimar indicava as horas. Todos a morte da Idade Média.
esses dispositivos forneciam medidas aproximadas Segundo a tradição, o relógio surgiu no
de tempo e tornavam-se muitas vezes falhos pelas século XI como um mecanismo utilizado para fazer 
condições do clima ou pela inabilidade daqueles com
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medir o tempo em termos de exatidão relógio autenticado, entretanto, só iria aparecer no
matemática. século XIII e seria apenas a partir do século XIV que
O homem ocidental civilizado, os relógios passariam a fazer parte da decoração dos
entretanto, vive num mundo que gira de acordo  prédios públicos de algumas cidades da Alemanha.
com os símbolos mecânicos e matemáticos das Esses primeiros relógios, que funcionavam
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certa precisão e mesmo assim relativa, já que sua natureza — passou a ser medido
dispunha apenas do ponteiro das horas. A idéia de concretamente em termos mais palpáveis
medir o tempo em minutos e segundos já havia de espaço, dado pela circunstância do mostrador 
sido cogitada pelos matemáticos do século XIV. do relógio. O tempo, como duração, perdeu sua
Mas só depois da invenção do pêndulo, em 1657, importância e os homens começaram a falar em
foi possível obter um grau de precisão que extensões de tempo como se estivessem falando
 permitisse a inclusão do ponteiro dos minutos, em metros de algodão. Asssim o tempo, agora
enquanto que o ponteiro dos segundos surgiria representado por símbolos matemáticos, passou a
apenas no século XVIII. É preciso ressaltar que ser visto como uma mercadoria que podia ser 
foi durante esses dois séculos que o capitalismo comprada e vendida como qualquer outra
cresceu de tal modo que teve condições mercadoria.
de aproveitar as técnicas da revolução industrial Os novos capitalistas, em particular, bem
 para estabelecer seu domínio econômico sobre a depressa tomaram consciência do novo valor do
sociedade. tempo, passando a ver nele — que aqui
O relógio, como observou Lewis simbolizava o trabalho dos operários — quase a
Mumford, 1 é a máquina mais importante da  principal matéria-prima da indústria. "Tempo é
Idade da Máquina, pela enorme influência que dinheiro" era um dos mais importantes  slogans
exerceu sobre a vida profissional e os hábitos do da ideologia capitalista e o "marcador de
homem. Tecnicamente, foi ele a tempo" era um dos mais importantes entre os
  primeira máquina que conseguiu ter alguma novos funcionários criados pelo sistema.
importância na vida do homem. Antes do seu   Nas primeiras fábricas, os patrões
aparecimento, todas as máquinas que existiam chegavam ao ponto de manipular os relógios ou
eram de tal natureza que seu funcionamento de fazer com que as sirenes soassem fora de hora
dependia sempre de uma força externa   para roubar dos trabalhadores um pouquinho
e instável, tal como a força dos músculos de dessa nova e valiosa mercadoria. Mais tarde,
animais ou do homem, das águas e dos ventos. estas práticas se tornariam menos freqüentes,
É verdade que os gregos já haviam inventado mas a influência do relógio imporia uma certa
alguns mecanismos primitivos, mas estes eram regularidade à vida da maior parte dos homens,
usados, tal como a "máquina a vapor" de Hero 2 regularidade que antes só era observada nos
  para obter "efeitos" sobrenaturais nos monastérios. Na verdade, os homens se
templos ou para divertir os tiranos nas cidades transformaram em relógios, a repetir sempre as
do Levante.3 Mas o relógio foi a primeira mesmas ações com uma regularidade que em
máquina automática que conseguiu adquirir uma nada se parecia ao ritmo natural da vida.
função social. A fabricação de relógios passou Tornaram-se, para usar uma expressão vitoriana,
a ser uma atividade na qual os homens "tão regulares quanto os ponteiros de um
aprendiam os elementos da fabricação de relógio". Só no campo, onde a vida natural das
outras máquinas, adquirindo  plantas, dos animais e dos elementos ainda
conhecimentos técnicos que ajudariam mais dominava, é que uma grande parte da
tarde a produzir a complicada maquinaria  população não sucumbia ao mortal tique-taque
da Revolução Industrial. da monotonia.
Socialmente, o relógio teve uma A princípio, esta nova atitude em
influência mais radical do que qualquer outro relação ao tempo, este novo ritmo imposto à
instrumento, pois foi através dele que se tornou vida foi ordenado pelos patrões, senhores dos
 possível a regulamentação e arregimentação da relógios, e os pobres o recebiam a
vida dos homens, condições necessárias para contragosto.
assegurar o funcionamento de um sistema de E o escravo da fábrica reagia, nas
trabalho baseado na exploração. horas de folga, vivendo na caótica ir-
O relógio forneceu os meios através do regularidade que caracterizava os cortiços
quais o tempo — algo tão indefinível que encharcados de gim dos bairros pobres no
nenhuma filosofia conseguira ainda determinar  início da Era Industrial do século XIX.

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Os homens se refugiavam no mundo monótonas formas de lazer que a sociedade
sem hora marcada da bebida ou do culto industrial lhe proporciona; onde ele, para
metodista. Mas aos poucos, a idéia da "matar o tempo", programará tantas atividades
regularidade espalhou-se, chegando aos mecânicas com tempo marcado, como ir ao
operários. A religião e a moral do século cinema, ouvir rádio e ler jornais, quanto
XIX desempenharam seu papel, ajudando a  permitir o seu salário e o seu cansaço. Só
 proclamar que "perder tempo" era um peca- quando se dispõe a viver em harmonia com
do. A introdução dos relógios, fabricados em sua fé ou com sua inteligência é que o homem
massa a partir de 1850, difundiu a sem dinheiro consegue deixar de ser um
 preocupação com o tempo entre aqueles que escravo do relógio.
antes se haviam limitado a reagir ao O problema do relógio é em geral
estímulo do despertador ou à sirene da semelhante ao da máquina. O tempo
fábrica. Na igreja e na escola, nos escritórios mecanizado serve como uma das formas
e nas fábricas, a pontualidade passou a ser  utilizadas para coordenar as atividades numa
considerada como a maior das virtudes. sociedade altamente desenvolvida, assim como a
E desta dependência servil ao tempo máquina serve como um dos meios para reduzir 
marcado nos relógios, que se espalhou ao mínimo todo trabalho desnecessário. Ambos
insidiosamente por todas as classes sociais são válidos pela contribuição que dão no sentido
no século XIX, surgiu a arregimentação de tornar a vida mais fácil, e devem ser usados na
desmoralizante que ainda hoje caracteriza a medida em que auxiliam o homem a cooperar 
rotina das fábricas. eficientemente e a eliminar as tarefas
O homem que não conseguir ajustar- monótonas e a desordem social. Mas não se deve
se deve enfrentar a desaprovação da   permitir que nenhum deles passe a dominar a
sociedade e a ruína econômica — a menos vida do homem como hoje acontece.
que abandone tudo, passando a ser um Agora são os movimentos do relógio
dissidente para o qual o tempo deixa de ser  que vão determinar o ritmo da vida do ser 
importante. Refeições feitas às pressas, a humano — os homens se tornaram escravos de
disputa de todas as manhãs e de todas as uma idéia de tempo que eles mesmos criaram e
tardes por um lugar nos trens e nos ônibus, a são dominados por esse temor tal
tensão de trabalhar obedecendo horários, como aconteceu com Frankenstein Numa
tudo isso contribui, pelos distúrbios sociedade livre e saudável, esta dominação do
digestivos e nervosos que provoca, para homem por máquinas por ele mesmo construídas
arruinar a saúde e encurtar a vida dos chega a ser ridícula, mais ridícula até do que o
homens. domínio do homem pelo homem. A contagem
Nem se poderia afirmar que a do tempo deveria ser relegada à sua verdadeira
imposição financeira da regularidade de função, como uma forma de referência e um
horários tenha contribuído a longo prazo, meio para coordenar as atividades do
 para o aumento da eficiência. Na verdade, a ser humano, que voltaria a ter uma visão mais
qualidade do produto parece ter até equilibrada da vida, já não mais dominada
diminuído, pois o empregador que vê o  pelos regulamentos impostos pelo tempo e pela
tempo como uma mercadoria pela qual tem adoração ao relógio. A liberdade completa
de pagar obriga o operário a trabalhar numa implica a libertação da ditadura das abstrações,
velocidade tal que a produção forçosamente tanto quanto a libertação do comando dos
será de qualidade inferior. O critério passa a homens.
ser de quantidade e não de qualidade e já
não há mais o prazer do trabalho pelo
trabalho. O operário transforma-se, por sua
vez, num especialista em "olhar o relógio",
 preocupado apenas em saber quando poderá
escapar para gozar as suas escassas e

3
Notas:

1- Historiador norte-americano, autor de Técnica e Civilização e O Mito da Máquina, entre


outras importantes obras. Munford (1985-1990) foi um dos maiores especialistas do século XX
em história da tecnologia e do urbanismo, destacando-se pelo modo crítico como encarou a
sujeição da sociedade moderna ao maquinismo.

2- Hero ou Heron de Alexandria (10 d.C. - 70 d.C.) foi um sábio matemático e um dos
 primeiros mecânicos da história, conhecido por ter projetado (e talvez construído) a primeira
máquina a vapor. Alguns sacerdotes contratavam os serviços de Hero para fornecer engenhocas
 para seus templos e assim impressionar os fiéis.

3- Levante Espanhol ou Levante Peninsular é uma região costeira da Espanha banhada pelo
Mediterrâneo e originalmente dividida entre diversos reinos, principalmente os reinos de
Aragão (Catalunha) e de Valência.

Extraído de:

Os Grandes Escritos Anarquistas


George Woodcock 
Porto Alegre: L&PM, 1981, pp. 120-124.

Sobre o autor:

George Woodcock (1912 – 1995) foi um versátil escritor canadense, autor de poesias, ensaios,
 biografias e obras históricas, mas é mais conhecido por suas obras voltadas ao estudo do
anarquismo. Suas posições pacifistas foram controversas assim como a sua crítica às
instituições que representavam o poder ─ ele chegou a recusar vários prêmios oficiais dados
 pelo governo a sua contribuição literária. No Brasil estão publicadas  História das idéias e
movimentos anarquistas (dois volumes) e Os grandes escritos anarquistas .

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