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DOI 10.5216/bgg.V31i2.

16843

A PRODUÇÃO CAMPONESA DE FARINHA DE MANDIOCA


NA AMAZÔNIA SUL OCIDENTAL
THE PEASANT PRODUCTION OF CASSAVA FLOUR 
IN AMAZON SOUTH WEST

LA PRODUCCIÓN DE HARINA DE YUCA EN LA AMAZONAS SUROESTE

César Gomes de Freitas - Instituto de Educação, Ciência e Tecnologia do Vale do Juruá -


Cruzeiro do Sul - Acre - Brasil
cgfreitas@cesd.br

Cleilton Sampaio de Farias - Instituto de Educação, Ciência e Tecnologia do Vale do Juruá -


Cruzeiro do Sul - Acre - Brasil
cleilton.farias@ifac.edu.br

Olivier François Vilpoux - Universidade Católica Dom Bosco - Campo Grande - Mato Grosso do Sul - Brasil
vilpoux@ucdb.br

Resumo
Este estudo objetivou compreender as características da produção de farinha de mandioca no município de
Cruzeiro do Sul, Acre, situado na Amazônia Sul Ocidental. Neste município, que não possui ligação rodoviária
permanente com o restante do Brasil, as casas de farinha possuem forte participação no fornecimento de emprego
e renda para a população local. A coleta e a análise dos dados foram realizadas no mês de outubro de 2009.
Utilizou-se o método descritivo com amostragem de pequenos produtores do município mediante aplicação de
questionário por meio de entrevistas pessoais (MALHOTRA, 2001). O questionário abordou temas qualitativos
e quantitativos, por meio de perguntas estruturadas, dicotômicas, de múltipla escolha e escalonadas. Além
das entrevistas com os produtores, foi realizada entrevista com a coordenação local da Secretaria de Estado
de Extensão Agroflorestal e Produção Familiar. Enfim, nos resultados da pesquisa, encontramos evidências da
predominância de referências camponesas entre os valores que orientam o cultivo da mandioca, a produção de
farinha e a forma de organização social e territorial estabelecida na região.
Palavras-chave: camponês, mandioca, farinha, Cruzeiro do Sul, Amazônia Sul Ocidental.

Abstract
This study aimed to understand the characteristics of the production of cassava flour in the city of Cruzeiro
do Sul, Acre, located in South West Amazonia. In this municipality, which has no permanent road link with
the rest of Brazil, home flour are heavily involved in providing employment and income for local people. The
data collection and analysis were conducted in October 2009. We used descriptive method with sampling of
small producers in the municipality through a questionnaire via personal interviews (MALHOTRA, 2001).The
questionnaire included qualitative and quantitative issues through structured questions, dichotomous, multiple
choice and scaled. In addition to interviews with producers, was interviewing the local coordination of the
Secretary of State Extension Agroforestry and Family Production. Finally, the results of the research found
evidence of the predominance of peasant references between the values ​​that guide the cultivation of cassava,
the production of flour and form of social organization and territorial established in the region. 
Key words: peasant, cassava flour, Cruzeiro do Sul, South Western Amazon.

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A produção camponesa de farinha de mandioca na Amazônia Sul Ocidental

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César Gomes de Freitas; Cleilton Sampaio de Farias; Olivier François Vilpoux

Resumen
Este estudio tuvo como objetivo conocer las características de la producción de harina de yuca en la ciudad
de Cruzeiro do Sul - Acre, ubicado en el suroeste de la Amazonia. En este municipio, que no tiene ninguna vía
de comunicación permanente con el resto de Brasil, la harina de casa están muy involucrados en la provisión
de empleo e ingresos para la población local. La recolección de datos y análisis se llevaron a cabo en octubre
de 2009. Se utilizó el método descriptivo con muestreo de los pequeños productores en el municipio a través
de un cuestionario a través de entrevistas personales (MALHOTRA, 2001). El cuestionario incluyó temas
cualitativos y cuantitativos a través de preguntas estructuradas, dicotómico, múltiples y escalada. Además
de las entrevistas con los productores, se entrevistaba con la coordinación local de la Secretaría de Estado de
Extensión Agroforestal y Producción Familiar. Finalmente, los resultados de la investigación encontró evidencias
de la predominancia de las referencias de campesinos entre los valores que guían el cultivo de la yuca, la
producción de harina y la forma de organización social y territorial establecido en la región.
Palabras clave: agricultor, harina de yuca, Cruzeiro do Sul, sur oeste de la Amazonía.

Introdução

A mandioca constitui um dos principais alimentos energéticos


para cerca de 500 milhões de pessoas, sobretudo nos países em
desenvolvimento, onde é cultivada em pequenas áreas com baixo
uso de insumos e baixo nível tecnológico, por ser um produto rico em
carboidratos. O Brasil é um dos grandes produtores de mandioca,
representando mais de 15% da produção mundial. A produção brasileira
nos últimos anos vem apresentando crescimento constante, totalizando,
no ano de 2006, mais de 27 milhões de toneladas (IBGE, 2006). No Acre,
o município de Cruzeiro do Sul é conhecido pela qualidade da farinha de
mandioca que produz. Fabricada de forma totalmente artesanal, a farinha
de mandioca constitui atualmente seu principal produto de exportação,
sendo também relevante para o consumo interno. Em 2009, dos quase
vinte e seis mil hectares plantados na Regional Administrativa do Juruá,
praticamente metade era de mandioca. Os municípios com maior área
plantada foram Cruzeiro do Sul (com 5.200 hectares) e Rodrigues Alves
(4.200 hectares).1 Nestas localidades, a vida da comunidade gira em torno
da fabricação da farinha. Isso tudo não significa, necessariamente, apenas
uma estratégia econômica de obtenção de lucro, muito pelo contrário, uma
parte da produção é destinada ao consumo da própria comunidade, que
utiliza a farinha e os seus derivados em “quase” todas as suas refeições.
Mais do que uma forma de obter lucro, a farinha está presente na vida
dessas comunidades do município, que inclusive empresta seu nome para
designar a melhor qualidade de farinha fabricada na região: a Farinha de
Cruzeiro do Sul.
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Nesse contexto, este estudo objetivou compreender as características


da produção de farinha de mandioca no município de Cruzeiro do Sul. Para
tanto, realizou-se uma pesquisa descritiva com amostragem de pequenos
produtores do município mediante aplicação de questionário por meio
de entrevistas pessoais (MALHOTRA, 2001). O questionário abordou
temas qualitativos e quantitativos, por meio de perguntas estruturadas,
dicotômicas, de múltipla escolha e escalonadas. Além das entrevistas
com os produtores, foi realizada entrevista com a coordenação local da
Secretaria de Estado de Extensão Agroflorestal e Produção Familiar. Na
pesquisa descritiva, o universo escolhido foi o dos pequenos produtores
do município de Cruzeiro do Sul, Acre. Foram escolhidos aleatoriamente
setenta produtores, os quais constituem a amostra estudada para a
pesquisa. A coleta e a análise dos dados foram realizadas no mês de
outubro de 2009.
Enfim, nos resultados da pesquisa encontramos evidências da
predominância de referências camponesas entre os valores que orientam
o cultivo da mandioca, a produção de farinha e a forma de organização
social e territorial estabelecida na região.

Os fundamentos da produção camponesa

Para Marques (2008, p. 58), o campesinato é uma classe social


(uma classe estranha) e não apenas um setor da economia, uma forma de
organização da produção ou um modo de vida. Para a autora, a sustentação
dessa afirmação encontra-se em Shanin:

Segundo Shanin (1979, p. 228), o campesinato é, ao mesmo tempo,


uma classe social e um “mundo diferente”, que apresenta padrões
de relações sociais distintos – ou seja, o que também podemos de-
nominar de modo de vida. Para ele, o campesinato é uma classe
social de baixa “classicidade” que se insere na sociedade capitalista
de forma subordinada e se levanta em momentos de crise. (MAR-
QUES, 2008, p. 59)

Nesse sentido, faz-se necessária uma explicação do que é uma


classe, o que ela faz e como ela se expressa. Para isso, a autora busca em
Thompson (1987, p. 10) a resposta para essa questão.

A classe acontece quando alguns homens, como resultado de expe-


riências comuns (herdadas ou partilhadas), sentem e articulam a
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identidade de seus interesses entre si, e contra outros homens cujos


interesses diferem (e geralmente se opõem) dos seus. A experiência
de classe é determinada, em grande medida, pelas relações de pro-
dução em que os homens nasceram – ou entraram involutariamen-
te. A consciência de classe é a forma como essas experiências são
tratadas em termos culturais: encarnadas em tradições, sistemas de
valores, idéias e formas institucionais. (THOMPSON, 1987, p. 10)

Depreende-se que a classe não pode ser compreendida como uma


categoria analítica que se aplica aos grupos sociais como decorrência
direta de sua posição no interior das relações de produção, pois, no caso
do campesinato, que se caracteriza por uma organização social específica
que ora serve aos interesses capitalistas, ora lhes é contraditória, isso seria
incompatível. A condição do campesinato pode ser agravada na análise do
modo de vida do camponês, uma vez que esse apresenta simultaneamente
uma relação de subordinação e de estranhamento em relação à sociedade
capitalista. Portanto, o campesinato é uma classe estranha, mas é classe.
São várias as formas para designar o camponês e o seu opositor
“o latifúndio”. Segundo Wright (2005, p. 114) o latifúndio é “um aspecto
formal da propriedade fundiária, que quer dizer, rigorosamente, grande
propriedade, como latifundiário quer dizer grande proprietário”. Assim,
seja ela produtiva ou não, se for grande propriedade será classificada como
latifúndio.
Já as designações da palavra camponês eram pejorativas e negativas.
Em outras regiões, é designado por nomes como caipira (São Paulo, Minas
Gerais e Goiás), caiçara (litoral paulista), colono ou caboclo (sul do país),
dependendo de sua origem, imigrante ou não. O mesmo também acontecia
com os grandes proprietários de terra, que eram conhecidos como
estancieiros, senhores de engenho etc. Observe-se o conceito de camponês
ou campesinato nas palavras de Marques (2008, p. 60):

O campesinato se refere a uma diversidade de formas sociais base-


adas na relação de trabalho familiar e formas distintas de acesso à
terra como o posseiro, o parceiro, o foreiro, o arrendatário, o peque-
no proprietário etc. A centralidade do papel da família na organiza-
ção da produção e na constituição de seu modo de vida, juntamente
com o trabalho na terra, constituem os elementos comuns a todas
essas formas sociais.

Por conta da imagem degradada e desgastada que é passada pela


mídia e pelo poder hegemônico sobre o camponês, no final do século
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XX, ocorreu a proposição da evolução teórica do conceito de camponês


para agricultor familiar. Esse movimento foi fortemente incentivado
pelo Estado e abraçado por muitos intelectuais, sobretudo de direita. No
entanto, isso não passa de uma tentativa de adaptar o campesinato ao novo
momento na agricultura diante do avanço do capitalismo no campo. Essa
tentativa de acabar com as proposições camponesas fracassa diante dos
novos acontecimentos no campo, ou seja, no novo cenário, o Movimento
dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) passa a se autodefinir como
um movimento camponês, filiando-se à Via Campesina, organização
internacional que congrega camponeses de várias partes do mundo, e
contribuindo ativamente para as ações que esta realiza no Brasil.
Essa proposição defendida por autores como Abramovay (1992)
e Lamarche (1993 e 1998) enfatiza que ser agricultor familiar é estar
vinculado a uma profissão que possui fortes ligações com o mercado
por ter características empresariais, dinamismo técnico e capacidade de
inovação, ou seja, cria-se uma imagem desprovida de qualquer conflito
ou contradição ao desenvolvimento capitalista. No entanto, o trabalho de
Lamarche, em via de conclusão, reafirma que o agricultor familiar não
difere do camponês, muito pelo contrário, possui várias características
que lhe são similares.

O estabelecimento familiar moderno define-se como uma unidade de


produção menos intensiva, financeiramente pouco comprometida
e, principalmente, muito retraída em relação ao mercado; com efei-
to, a maior parte de suas produções é parcialmente reutilizada para
as necessidades da unidade de produção ou autoconsumidas pela
família; nunca é totalmente comercializada. [...] Podemos admitir,
no que diz respeito às variáveis consideradas, que o estabelecimento
familiar moderno funciona sensivelmente como estabelecimento de
tipo camponês, com mais técnica e mais necessidades. (LAMAR-
CHE, 1998, p. 314; grifos do autor)

Para melhor caracterizar o trabalho camponês, encontramos alguns


elementos que formam a produção camponesa: força de trabalho familiar,
parceria com outros camponeses, o trabalho acessório, trabalhadores
temporários, socialização do camponês, propriedade da terra, propriedade
dos meios de produção e, por fim, a flexibilidade da jornada de trabalho
(OLIVEIRA, 2001).
Nas propriedades camponesas, suas características são distintas da
propriedade capitalista, seu elemento principal de produção é a comida
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para a própria subsistência, e a venda do excedente no comércio local,


como bem enfoca Almeida (2007, p. 10). Segundo Farias (2011, p. 7), é na
propriedade camponesa que se encontra o sentido de viver do camponês,
a sua fonte de vida, a sua identidade, as suas histórias, o seu imaginário
enquanto ser, e é por tudo isso que a posse da terra foi e ainda é hoje a sua
principal riqueza, espaço principal de sua expressão e reprodução da ter-
ritorialidade. Portanto, é na iminência da separação do camponês “da sua”
terra – com a destruição da sua territorialidade – que surgem os conflitos.
Considerando o conceito e as características da produção camponesa,
apresentaremos a seguir as similaridades do trabalho camponês na
produção de farinha no município de Cruzeiro do Sul na Amazônia Sul
Ocidental. Partiremos das características do plantio e da colheita de
mandioca, depois enfocaremos os trabalhadores da farinha: “farinheiros”,
a organização da produção e, por fim, a fabricação da farinha.

A cultura da mandioca para produção de farinha: as características do plantio e da


colheita

Entre os principais fundamentos da economia camponesa, a


propriedade da terra e dos meios de produção sempre mereceu destaque,
por nisso residir o poder da liberdade do trabalhador. Para Oliveira (2007,
p. 41), a propriedade da terra é um dos elementos estruturais da produção
camponesa, é o local de trabalho e possui sentido amplo:

g) – a propriedade da terra – é, na unidade camponesa, propriedade


familiar, privada para muitos, porém diversa da propriedade pri-
vada capitalista (a que serve para explorar o trabalho alheio); na
propriedade familiar se está diante da propriedade direta de ins-
trumentos de trabalho que pertencem ao próprio trabalhador, é
terra de trabalho, é propriedade do trabalhador, não é, portanto,
instrumento de exploração; nesse particular, três situações podem-
-se colocar para o camponês: ele ser camponês proprietário, ser
camponês-rendeiro (pagar renda para poder ter acesso à terra), ou
ser camponês-posseiro (recusar-se a pagar a renda e apossar-se da
terra). (OLIVEIRA, 2007, p. 41)

O cultivo da mandioca em Cruzeiro do Sul se faz, sobretudo, em


propriedade privada familiar. Em 2009, conforme dados de pesquisa
empírica, 69,7% das casas de farinha ou farinheiras cultivaram a
mandioca que processaram. Somente 30,1% dos produtores compram a
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mandioca utilizada na fabricação da farinha. Destes, 4,5% compram até


25% do total utilizado, 7,5% compram de 25% a 50% da matéria-prima,
12,1% adquirem entre 51% e 75%, 4,5% adquirem entre 75% e 99%, e 1,5%
adquire 100% da matéria-prima utilizada.
Nesse caso, mesmo a compra da mandioca é feita como estratégia
de reprodução camponesa. Existe época em que não é possível o plantio
desta cultura, então se recorre à ajuda mútua ou à parceria para garantir
a renda. Um camponês fornece a casa de farinha e o outro contribui
com a matéria-prima. Ambos trabalham no processamento e repartem o
resultado do trabalho. A maior parte da retribuição para o fornecimento
da mandioca é feita em dinheiro, ou seja, 77,2% do total. Em alguns casos,
essa retribuição é feita em espécie, ou seja, em farinha, totalizando nesse
caso 22,7% do montante.
A questão da ajuda mútua e da parceria é fortalecida quando ana-
lisamos a distância entre a área em que a mandioca foi adquirida e a
farinheira em que será processada, indicando uma proximidade ou vi-
zinhança entre ambas. Em média, 55% da matéria-prima provêm de até
cinco quilômetros de sua farinheira, 30% provêm de regiões entre cinco
e dez quilômetros de distância e 15% precisam percorrer mais de quinze
quilômetros para adquirir a mandioca.
O pessoal ocupado no plantio e na colheita da mandioca é, sobretudo,
da própria família. Nesse caso, quanto maior a família, maior também a
mão de obra. Para Oliveira (2007, p. 41; grifo do autor), “a força de trabalho
familiar – é o motor do processo de trabalho na unidade camponesa; a
família camponesa é um verdadeiro trabalhador coletivo”. Então, 15%
possuem famílias formadas por três pessoas trabalhando nos cultivos,
35% possuem famílias formadas por quatro pessoas, 15% com cinco, seis
e sete pessoas, e 5% com famílias formadas por 10 pessoas.
No setor de fabricação, 46,7% das casas pesquisadas possuem
colaboradores para auxiliar nos trabalhos de produção da farinha. Destas,
14,2% possuem até três funcionários, 21,2% possuem entre quatro e seis
funcionários, 8,5% possuem entre sete e nove funcionários e 2,8% contam
com mais de dez funcionários. O salário médio destes colaboradores é de
R$ 400,00 por mês.
Quando a unidade camponesa consegue a sua sustentabilidade
através da produção de farinha, os seus componentes se ocupam
exclusivamente disso. Nesse caso, retira-se a proporção da farinha para o
consumo da família e comercializa-se o excedente para adquirir os outros
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produtos necessários para a sobrevivência de todos os seus membros.


Quando a produção da farinha não permite isso, faz-se o uso do trabalho
acessório (OLIVEIRA, 2007, p. 41) em que componentes da família
procurarão, temporariamente, ocupação fora da unidade camponesa para
complementar a renda. A maioria dos produtores entrevistados, 55,7%,
trabalha doze meses por ano na produção de farinha, ou seja, sobrevive
exclusivamente da produção da farinha. Outros 25,7% trabalham de seis a
onze meses por ano, tendo de complementar a renda e/ou a produção com
outras coisas e somente 15,7% trabalham menos de seis meses por ano na
produção da farinha.
Em relação à escolaridade dos produtores de farinha entrevistados,
15,7% são analfabetos, 55,7% possuem o primeiro grau incompleto, 10%,
o primeiro grau completo, 10% possuem o segundo grau incompleto e
7,1% possuem o segundo grau completo. Esses dados refletem a situação
de exclusão e de abandono do campo. Poucas pessoas têm acesso e oportu-
nidade de estudar e de seguir estudando, fato que compromete o futuro e
a melhoria das condições de produção e das pessoas que vivem dos frutos
do campo.
Dos entrevistados, 38,5% responderam positivamente quando ques-
tionados se já participaram de algum tipo de treinamento. A maioria,
64,2%, destes frequentou cursos de técnicas sobre produção agrícola. En-
tre os demais treinamentos citados, a pesquisa apresenta: técnicas de pro-
dução industrial – 3,5%, comercialização – 7,1%, cooperativismo – 10,7%,
piscicultura – 10,7% e boas técnicas de produção – 3,5%.
Percebemos, também, a presença de jornada de trabalho assalariada
em apenas 10% das casas de farinha pesquisadas. Como a unidade
camponesa se move por força da família, esses trabalhadores somente
atuarão para complementar a força de trabalho, pois, segundo Oliveira
(2007, p. 41) a jornada de trabalho assalariada:

[...] aparece na unidade de produção camponesa como complemento


da força de trabalho familiar em momentos críticos do ciclo agríco-
la, nos quais as tarefas exigem rapidez e muitos braços; essa força de
trabalho assalariada na unidade camponesa pode, em determinados
momentos, começar a ser permanente, e o camponês passa, então,
a combinar as duas forças de trabalho, a familiar e a assalariada.

Esses trabalhadores assalariados são diferentes dos camponeses,


possuem formação escolar e noções de escritório, atuam principalmente
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na comercialização da produção e, por isso, recebem salário médio de R$


900,00 mensais.

A fabricação da farinha

Os meios de produção utilizados na fabricação da farinha, assim


como a terra usada para o cultivo da mandioca, são de propriedade
da família. As casas de farinha ou “farinheiras”, designações para as
fábricas onde se processa a mandioca, são locais simples, muitas vezes
qualificadas como rústicas por apresentar, em sua maioria, aspectos
ligados ao trabalho manual e artesanal. Elas são quase uma extensão da
própria casa do camponês, pois se localiza proximamente a ela.
As características das casas de farinha são similares às moradias tra-
dicionais da Amazônia: construção em madeira, chão de barro (em alguns
casos em alvenaria), cobertura de palha (obtida de palmeiras da região),
ausência de água canalizada e ausência de local apropriado para destina-
ção de resíduos. Mas, a fábrica e tudo o que há nela – os meios de produção
– é de propriedade da família camponesa, que não destina recursos para
modernizá-la. Quanto a esse aspecto, Oliveira (2007, p. 41) esclarece:

[...] exceto a terra, na maioria dos casos os meios de produção são


em parte adquiridos, portanto mercadorias, e em parte produzidos
pelos próprios camponeses; como consumidor de mercadorias (ins-
trumentos de trabalho, por exemplo), o camponês se vê subordina-
do ao capital, que lhe vende produtos caros e lhe paga preço baixo
pelos produtos agrícolas.

Nesse sentido, dos produtores entrevistados para a presente pes-


quisa, sessenta e sete (95,7%) trabalham em casas de farinha constituídas
como empresas privadas, ou seja, da própria família, somente dois produ-
tores (2,8%) participam de empresas cooperativas e apenas um (1,4%), de
empresa comunitária.
Geralmente, não há máquinas para auxiliar na cadeia da farinha.
O plantio é feito todo manualmente. Raras vezes ocorre a mecanização
da terra para plantio e o transporte da mandioca para a fábrica se faz
principalmente pela carreta de tração animal ou, como é conhecida na
região, a “carroça de boi”. Nesse caso, são 87,1% dos produtores, enquanto
que 7,1% transportam o produto em sacos pelos próprios trabalhadores, e
somente um produtor (1,4%) o transporta por meio de caminhão.
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Em todas as casas de farinha visitadas, tanto o descarregamento


quanto o descascamento é feito de maneira manual. O descascamento da
mandioca é realizado por equipes formadas por até três pessoas em 18,9%
das casas de farinha; por equipes de quatro a sete pessoas, em 75,6% delas
e por equipe de oito a dez pessoas em 5,4% das casas visitadas.
Um dos únicos recursos “tecnológicos” usados na moagem da man-
dioca é o ralador que é movido a energia elétrica. A moagem é realizada
pela grande maioria das casas, ou seja, 90% por meio de ralador de man-
dioca empurrado a mão. Essa forma de ralar é perigosa em vista da ausên-
cia de proteção para as mãos no momento de empurrar a mandioca em
direção ao ralador, as consequências são alguns acidentes e amputações
de dedos e mãos.
Quando termina a ralação da mandioca, antes de levar os resíduos
ao forno, é necessário retirar o excedente de água da massa para torná-la
mais seca. Verifica-se que 68,5% realizam essa atividade de prensagem
por meio de prensa de madeira com alavanca, 14,2% usam prensa com
rosca, 10% realizam o processo por meio de prensa hidráulica e 4,2%
utilizam o “tipiti”, a prensa tradicional de fibra.
O líquido retirado da massa após a prensagem é conhecido por
“manipueira” e, se despejado na vegetação, pode matá-la. Contudo, quando
tratado, pode vir a ser usado pela culinária local de várias maneiras.
Transformado em tucupi, pode compor pratos regionais como a conhecida
“rabada no tucupi” ou o “tacacá”. No entanto, apenas 4,2% ou seja, três das
setenta casas de farinha visitadas pela pesquisa recupera a água da prensa
para produção de tucupi.
Dos produtores que não realizam o reaproveitamento da água,
87,6% responderam que a água da prensa não recuperada é despejada di-
retamente nos arredores da casa de farinha, 7,5% fazem uso de uma lagoa
de decantação e 4,6% realizam o despejo desta água em um rio.
Quando no forno para ser torrada, a massa necessita ser constante-
mente revolvida para que não queime. Esse processo também é feito, em
sua maioria, ou seja, 97,1% do totalizado, de forma manual. Apenas 2,9%
dos produtores fazem uso de peneira mecanizada no processo de revolvi-
mento da farinha.
Quanto ao processo de secagem da farinha, 72,8% das casas de
farinha possuem dois fornos para sua realização, 18,5% utilizam apenas
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um forno, 7,1% possuem três fornos e 1,4% possui mais de quatro fornos
para a secagem.
Em relação ao formato dos fornos, 51,4% deles são quadrados, 41,4%
possuem o formato retangular e 5,7% são redondos. Ainda sobre os fornos,
94,2% deles possuem fundo plano e apenas 5,7% possuem fundo arredon-
dado. Todos os produtores fazem o revolvimento manual da farinha nos
fornos e somente 14,2 % dos fornos dispõem de chaminé.
Um dado preocupante revelado na pesquisa é que, para 91,4% dos
entrevistados, a lenha utilizada nos fornos durante o processo de pro-
dução da farinha é adquirida nos arredores da empresa, 5,7% adquirem
madeira de fornecedores locais e 1,4%, de fornecedores de outra região do
estado. Estes dados mostram um forte impacto ambiental relacionado à
atividade das casas de farinha. Todos os produtores pesquisados indica-
ram o uso de madeira nativa nos fornos durante o processo de produção
da farinha.
Com relação ao tipo de farinha produzida, verifica-se grande diver-
sificação neste quesito. O maior percentual, 72,8% dos produtores pesqui-
sados, indicou trabalhar com a produção dos tipos de farinha branca e
farinha amarela. Entre estes, 25,7% dedicam 50% da produção a cada um
destes tipos de farinha. A pesquisa ainda apresentou os tipos de farinha
com coco com 11,3%, farinha carimã com 11,1% e 4,8% dos produtores
trabalham com a farinha mista. A mudança na cor da farinha é resultado
da adição de corantes à massa durante a secagem. O açafrão é utilizado
por 65,7% dos produtores enquanto que 4,2% utilizam o urucum ou o
colorau.

A organização e reprodução da produção

As características da produção da farinha nos levam a crer que há


muitos problemas a serem superados. Inserção de máquinas no plantio e
colheita da mandioca, melhoramento das condições sanitárias das fábri-
cas e adição de tecnologias em todas as fases do processamento: raspagem,
ralação e secagem. Nada disso não é empecilho para minimizar esta eco-
nomia, muito pelo contrário, ela permanece forte e se reproduzindo a cada
ano. Com ela sobrevivem várias famílias e, além disso, gira em seu entor-
no uma economia regional. Nesse caso, para o melhoramento e expansão
da produção camponesa da farinha são necessários alguns investimentos:
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A produção camponesa de farinha de mandioca na Amazônia Sul Ocidental

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Em geral, o processo de reprodução da produção camponesa é sim-


ples, o que significa dizer que o camponês repõe, a cada ciclo da ati-
vidade produtiva, os meios de produção e a força de trabalho para a
repetição pura e simples dessa atividade produtiva. E esse processo
de reposição pode se dar por meio da produção direta ou por meio
da troca monetária. (OLIVEIRA, 2007, p. 42)

No caso da economia da farinha, poucos possuem a intenção de


investir para melhorar ou expandir a produção. Entre os produtores que
pretendem realizar investimentos, 28,5% farão investimento na melhoria
da estrutura, 7,1% investirão no aumento da produção e 2,8% realizarão
investimentos na melhora da qualidade do produto. Os 57,1% restantes
dos produtores não pretendem realizar investimentos, por não possuírem
recursos financeiros para isso.
Quando questionados se realizaram algum investimento nos últimos
três anos, 68,5% dos produtores de farinha responderam negativamente.
Dentre os que realizaram investimentos nos últimos três anos, 21,4%
investiram na melhora da estrutura da casa de farinha e 2,8% investiram
na construção e ou reforma do piso das casas de farinha.
Essas deficiências são superadas com a união e cooperação entre
camponeses onde todos ajudam a todos. Considerando a carga de traba-
lho que realizam, os encontros nem sempre são possíveis, mesmo assim
sempre ocorrem. Ao menos uma vez por ano, 24,2% dos produtores se en-
contram, contudo 10% dos produtores garantem que esse encontro ocor-
re uma vez por ano. Outros 7,1% de produtores se encontram de duas a
quatro vezes por ano, enquanto que 14,2% responderam que o encontro
ocorre todo mês e a maior parte (45,7%) afirma que o encontro ocorre
semanalmente.
Além disso, a associação também é uma oportunidade de fortalecer
a produção, mas poucos participam, ou seja, somente 28,6% dos entre-
vistados, sendo que, desses, 17,1% participam apenas de vez em quando
e 11,4% participam com maior assiduidade, estando presentes em todas
as reuniões. Nenhum dos entrevistados faz parte da diretoria de alguma
associação.
Alguns desses produtores já tiveram acesso a crédito bancário,
mas não foram bem sucedidos, o que resultou em insatisfação com a
instituição bancária, nesse caso o Banco do Brasil. Essa insatisfação é
expressa na nota com que avaliaram a atuação do banco: a nota média
atribuída numa escala de um a dez (sendo 01, ruim e 10, excelente) pelos
41
B.goiano.geogr, Goiânia, v. 31, n. 2, p. 29-42, jul./dez. 2011

BGG
Artigo

produtores entrevistados em relação à atuação do Banco do Brasil foi 02


(dois).
Também existem problemas na atuação da assistência técnica e ex-
tensão rural oferecida pelo poder público, pois a nota média atribuída na
mesma escala de um a dez (sendo 01, ruim e 10 excelente) pelos produto-
res entrevistados em relação à atuação da SEAPROF – Secretaria de Esta-
do de Extensão Agroflorestal e Produção Familiar foi 03 (três).

Considerações finais

Enfim, encontramos evidências da predominância de referências


camponesas entre os valores que orientam o cultivo da mandioca, na fa-
bricação da farinha e na forma de organização social e territorial esta-
belecida na região. Portanto, as evidências de aplicação das referências
camponesas nos valores que orientam o cultivo da mandioca, a fabricação
da farinha e a forma de organização social e territorial da produção são os
fundamentos que garantem a reprodução desta economia na região. Sem
estes atributos, não seria possível a sua produção ou a venda pelo preço
que é estabelecido. Enfim, esta produção é contraditoriamente apropria-
da pelo capitalismo no momento da circulação no mercado, quando há
uma adição considerável no valor do produto com a extração da renda
capitalista.

Nota
1. Referem-se a uma “sub-região” que corresponde ao estado do Acre, sul e
sudoeste do Amazonas e o estado de Rondônia. Trata-se de uma área em que
os processos de ocupação estiveram ligados à economia da borracha natural
(SILVA, 2003, p. 52).

Referências

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Paulo/Rio de Janeiro/Campinas: Hucitec/ANPOCS/Ed. Unicamp, 1992.
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Geografia Agrária “Jornada Orlando Valverde” - SINGA 2007. Londrina, PR, UEL,
2007.
42
A produção camponesa de farinha de mandioca na Amazônia Sul Ocidental

BGG
César Gomes de Freitas; Cleilton Sampaio de Farias; Olivier François Vilpoux

FARIAS, C. S. A ação do Estado e a manipulação do território. In: Anais do II


Simpósio brasileiro de geografia política, território e poder - GEOSIMPÓSIO e
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2005.

César Gomes de Freitas - Mestre em Desenvolvimento Local pela Universidade Católica Dom Bosco. Professor
do Instituto de Educação, Ciência e Tecnologia do Vale do Juruá.

Cleilton Sampaio de Farias - Mestre em Desenvolvimento Regional pela Universidade Federal do Acre.
Professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Acre.

Olivier François Vilpoux - Doutor em Engenharia de Produção pelo Institut National Polythecnique de Lorraine
– Paris/França. Professor da Universidade Católica Dom Bosco.

Recebido para publicação em agosto de 2011


Aceito para publicação em novembro de 2011

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