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VIII SEMINÁRIO NACIONAL DE

HISTÓRIA DA MATEMÁTICA
05 a 08 de abril de 2009
Belém – Pará – Brasil
ISBN – 978-85-7691-081-7

As conseqüências da conseqüência:
uma investigação histórico-filosófica de demonstração matemática
John A. Fossa – UFRN
jfossa@oi.com.br

Resumo
Será que Liu Hui, um matemático chinês do século III, demonstrou o Teorema de Pitágoras? Para responder a essa questão (no
negativo), investigamos a natureza da demonstração matemática, concluindo que a mesma tenciona asseverar relações de
conseqüência lógica. Usamos esse resultado para definir a matemática em termos do seu método de validação e a contrastamos
com a proto-matemática. Finalmente, tecemos algumas considerações sobre o conhecimento matemático e a relação da
matemática com outros aspectos da cultura humana.

Palavras-chave: Teorema de Pitágoras; Demonstração matemática; Atividades proto-matemáticas.

Abstract
Did the Third Century Chinese mathematician Liu Hui prove Pythagoras’ Theorem? In order to answer this question (in the
negative), we investigate the nature of mathematical demonstration, concluding that it proposes to assay relations of logical
consequence. We use this result in order to define mathematics in terms of its validation procedures and contrast it with proto-
mathematics. Finally, we elaborate on some considerations regarding mathematical knowledge and the relationship of
mathematics to other aspects of human culture.

Keywords: Pythagoras’ Theorem; Mathematical demonstrations; Proto-mathematical activities.

É muito difícil datar a maioria dos textos matemáticos da China antiga, parcialmente porque os
próprios chineses – para investir sua cultura com uma aura de sabedoria – propositadamente exageravam
sua antigüidade e, parcialmente, porque os textos foram emendados ou rescritos em períodos diferentes. Em
qualquer caso, eventualmente emergiu um conjunto de doze textos, curiosamente chamados os Dez
Clássicos de Aritmética, que continha o núcleo do conhecimento chinês sobre a matemática. Um dos mais
velhos desses textos, provavelmente escrito um século depois do mais conhecido Nove Capítulos sobre a
Arte Matemática, é Zoubi suanjing (Clássico do Relógio do Sol), também conhecido como Chou Pei Suan
Ching (Clássico de Aritmética da Dinastia do Zhou). A dinastia do Zhou1 durou de 1000 a.C. até 256 a.C.,
mas a primeira versão do Zoubi foi provavelmente composta por volta de 100 a.C. Recebeu emendas e
comentários até 600 AD.

O Diagrama da Hipotenusa
Embora a maioria dos problemas do Zoubi versam sobre a astronomia, também contém um
diagrama, chamado o diagrama da hipotenusa (ver a Figura 1), que segundo William S. Anglin (1996), foi
usado para demonstrar o Teorema de Pitágoras.

1
Chou.
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Figura 1. O Diagrama da Hipotenusa.

O diagrama, bem como a demonstração do Teorema de Pitágoras, é, segundo o referido autor, obra de Zhao
Shuang, um matemático chinês do terceiro século, que acrescentou um comentário ao Zoubi. A
demonstração seria feita por recortar o quadrado colorido em pedaços, como um tangrama, e recompor os
pedaços de tal maneira a formar os quadrados sobre os catetos. Em conseqüência, afirma Anglin (1966, p.
8),

[...] I conclude that Zhao did have a proof of the Theorem of Pythagoras. And he was
thus the first Chinese mathematician to give a proof of anything.

Se, no entanto, Zhao fosse o primeiro matemático chinês a fazer uma demonstração, seria interessante ver
essa demonstração. Nesse ponto, Anglin está omisso. É claro que o quadrado colorido poderia ser recortado
em 25 quadradinhos e separados em um grupo de 16 e outro de 9. Neste caso, portanto, a “demonstração”
não seria geral. Ainda mais, a maneira em que o quadrado é colorido – um quadradinho central em amarelo
e os demais em vermelho – não sugere que a intenção de Zhao era a de decompor o diagrama em pedaços.
É provavelmente significante que a malha sobre a qual o diagrama da hipotenusa foi feito indica que
o triângulo tem lados medindo 3, 4 e 5 e pelo menos um matemático chinês antigo, Chen Luan do século VI,
pensava que o referido diagrama versava sobre o mencionado triângulo. Poderemos pensar que Zhao usou
um triângulo específico para ilustrar um pensamento geral, mas, em qualquer caso, o texto dos seus
comentários – que, ao propósito, é extremamente enigmático – parece indicar que o lado do quadradinho
amarelo no centro do diagrama tem medida b–a, onde a é a base (correspondendo ao lado de medida 3) e b é
a altura (correspondendo ao lado de medida 4). Se chamamos a hipotenusa de c, Zhao obteve a relação que
expressaríamos por 2ab+(b–a)2 = c2. Desta, é fácil obter o Teorema de Pitágoras por desenvolver o binômio.
O problema com essa interpretação é que Zhao usou o Teorema de Pitágoras para obter a relação original.
Assim, parece que o referido matemático chinês não estava tentando demonstrar o Teorema de Pitágoras,
mas, ao contrário, estava usando esse teorema para obter outras relações interessantes. Para tanto, o
diagrama da hipotenusa seria uma heurística, guiando o processo de descoberta descrito no texto.
Concluímos, então, que Zhao, pelo menos no que apresentou no seu comentário sobre o Zoubi, não foi o
primeiro matemático chinês a fazer uma demonstração. De fato, Zhao provavelmente nem cogitava de
demonstrações, nem o papel destas na matemática.

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A conclusão a que chegamos no final do parágrafo anterior – que Zhao e, por extensão, os outros
matemáticos da China antiga não conheceram demonstrações – pode ser um tanto despropositada. Para
mostrá-la com mais propriedade, portanto, investigaremos uma outra abordagem do Teorema de Pitágoras
feito por um contemporâneo de Zhao.
A Abordagem de Liu Hui
Como mencionamos acima, os Nove Capítulos sobre a Arte Matemática (Chiu Chang Suan Ching2)
faziam parte dos Dez Clássicos da matemática chinesa antiga. Elaborado originalmente por volta de 200
a.C., os Nove Capítulos receberam emendas e comentários até 300 AD. Entre esses comentadores, Liu Hui,
do século III, foi um dos mais eminentes.
Visto que o texto de Liu, como o de Zhao, é bastante enigmático, é difícil dar uma interpretação
definitiva ao seu trabalho. Apresentaremos aqui duas possibilidades. A primeira deve-se a Wagner (1985).
Nessa interpretação, um quadrado vermelho é desenhado sobre a base de um triângulo retângulo e um
quadrado azul sobre a sua altura. Em seguida, esses dois quadrados são recortados em pedaços convenientes
e recompostos3 para formar o quadrado sobre a hipotenusa (ver a Figura 2).

Figura 2. Primeira interpretação da abordagem de Liu.


A segunda interpretação deve-se a Martzloff (1997). Nessa interpretação, o quadrado vermelho – o
desenhado sobre a base do triângulo – não está disposto abaixo do triângulo retângulo, como na primeira
interpretação, mas se localiza acima da base do referido triângulo, parcialmente recobrindo-o (ver a Figura
3). O resultado é uma decomposição mais simples, embora menos intuitiva.

Figura 3. Segunda abordagem da abordagem de Liu.

2
Jiuzhang suanshu.
3
É interessante observar que o diagrama da hipotenusa, especialmente quando os quatro triângulos vermelhos são destacados, e o
quadrado na hipotenusa na presente interpretação relembram a swastika, um símbolo muito antigo usado para representar a
rotação dos céus. Para mais detalhes sobre isto, ver Fossa (no prelo).
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As duas interpretações relacionadas acima diferem na maneira proposta para fazer a decomposição e
recombinação dos quadrados vermelho e azul, mas concordam em relação ao fato fundamental de que o
procedimento de Liu é o de decomposição e recombinação, o que é inteiramente consoante com o texto de
Liu. Assim, podemos abstrair da questão de qual decomposição foi realmente usada e perguntar se o método
proposto constitui uma demonstração do Teorema de Pitágoras.

Liu e Euclides
Agora será interessante comparar a abordagem de Liu sobre o Teorema de Pitágoras com a de
Euclides, o matemático grego que atuava na cidade de Alexandria por volta de 300 a.C. A comparação é
apropriada para várias razões, pois os Nove Capítulos desempenharam um papel dentro da sociedade
chinesa que foi em vários aspectos similar ao desempenhado na sociedade grega pelos Elementos de
Euclides. Mais importante ainda, talvez, é o fato, apontado por Rubens Lintz (2007), de que o conceito de
áreas iguais, para o próprio Euclides, é baseado na sobreposição, isto é, duas áreas são iguais se uma
coincide com a outra. De fato, a demonstração apresentado por Euclides na penúltima proposição (a de
número 47) do primeiro livro dos Elementos procede por decomposição. É, portanto, prima facie razoável
supor que, se a abordagem de Euclides é uma demonstração do Teorema de Pitágoras, a de Liu também a
será. Uma investigação mais cuidadosa, no entanto, mostrará que a referida suposição é equivocada.
Para fazer a sua demonstração, Euclides considerou o triângulo retângulo ∆ABC, com ângulo reto
em A e desenhou os quadrados sobre os três lados, conforme mostrado na Figura 4. Depois decompôs a
figura em vários regiões traçando a altura AL e os segmentos CF e AD. Sua primeira meta foi mostrar que o
quadrado ABFG e o retângulo BL têm a mesma área.

Figura 4. Parte da demonstração de Euclides.

Observamos que, usando o símbolo ≈ por “é congruente a”, AB≈BF e BD≈BC, pois são,
respectivamente, lados do mesmo quadrado. Os ângulos inclusos são, em cada caso, um ângulo reto + o
ângulo ABC. Logo, ∆ABD e ∆BCF são congruentes. Em conseqüência, as áreas desses dois triângulos são
iguais.
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Por construção ângulos BAG e BAC são ângulos retos. Logo, ângulo CAG é raso e a linha CAG é
um segmento (não dois segmentos). Assim, CAG e BF são paralelos. Mas, o quadrado ABFG e o ∆BCF têm
a mesma base (BF) e são compreendidos entre os referidos segmentos paralelos. A área do triângulo,
portanto, é duas vezes a do triângulo.
De forma semelhante, o triângulo ∆ABD e o retângulo BL têm a mesma base (BD e são
compreendidos entre os paralelos (BD e AL). Desta forma, o retângulo é duas vezes o triângulo.
Resumindo esses resultados, temos
1. A(∆ABD) = A(∆BCF)
2. A(ABFG) = 2A(∆BCF)
3. A(BL) = 2 A(∆ABD)
onde A significa “área de”. Em conseqüência, temos
A(BL) = A(ABFG),
ou seja, as áreas das regiões sombreadas da Figura 4 são iguais.
Para completar a demonstração, Euclides mostrou, de forma estritamente análoga, que a área do
retângulo CL é igual à área do quadrado ACKH.
Tudo isto posto, podemos comparar os procedimentos de Liu e de Euclides. Lembramos que tanto
Liu, quanto Euclides, começaram do mesmo conceito intuitivo de área como sobreposição. Para mostrar a
igualdade de áreas de duas figuras, Liu precisava recortar uma das figuras em pedaços e mostrar que
poderiam ser recompostos de tal maneira a recobrir a outra figura. O procedimento é essencialmente
empírico, pois o desenho é nada mais que uma indicação de como a figura deveria ser recortada. Se houver
qualquer dúvida, a mesma só poderia ser resolvida por fazer fisicamente os recortes indicados pelo desenho.
O procedimento de Euclides é completamente diferente. Cria uma teoria sobre o conceito intuitivo
de área como sobreposição através da construção de um sistema abstrata de definições e postulados. Sua
intenção, é claro, é modelar a situação intuitiva através do sistema abstrato. Mas, uma vez que o sistema seja
postulado, a situação intuitiva deixa de ser o objeto de investigação, pois é, o próprio sistema abstrata que
será investigado. Assim, condições necessárias e suficientes são desenvolvidas para que duas figuras tenham
a mesma área e são aplicadas sem qualquer intenção de fazer recortes físicos. Os referidos recortes, de fato,
não fundamentam suas conclusões, pois se fossem feitas e não dessem certo, Euclides não concluiria que
seu teorema é errado, mas que os recortes foram feitos de maneira errado.
As diferenças fundamentais entre as duas abordagens revistas acima, portanto, invalidam o
argumento proposto de que, se o procedimento de Euclides é uma demonstração do Teorema de Pitágoras, o
procedimento de Liu também a é. É inteiramente possível, contudo, que, embora o procedimento de Liu não
pode ser considerado uma demonstração em virtude da sua semelhança com o de Euclides – pois os dois
procedimentos são bastante diferentes – pode ser considerado uma demonstração em virtude de outras
características que porventura possui. Investigaremos essa possibilidade agora.

Demonstração e Persuasão
Para decidir a questão que colocamos sobre a natureza da abordagem de Liu, isto é, se a mesma é, ou
não, uma demonstração do Teorema de Pitágoras, será interessante eliminar a consideração de certas
questões técnicas, pois há um sentido em que, para ser uma demonstração, é necessário ser um argumento
válido. Neste sentido, a abordagem de Liu certamente não é uma demonstração, pois depende de
procedimentos empíricos que não são característicos de demonstrações matemáticas.
Há, no entanto, uma outra maneira em que usamos a referida palavra. Dizemos, por exemplo, “A
primeira demonstração de Gauss sobre ** contém uma falha lógica.” Mas, se a “demonstração” contém uma
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falha lógica, não é um argumento válido e, portanto, no sentido apontado no parágrafo anterior, não é uma
demonstração. Desta forma, nossa afirmação se reduz à seguinte proposição paradoxal: “A primeira
demonstração de Gauss sobre ** não é uma demonstração.”
Visto que queremos abstrair da questão da validade e/ou correção do procedimento de Liu,
reformulemos a nossa pergunta. Perguntamos se o mencionado procedimento tem, ou não, o caráter de uma
demonstração. Isto é, queremos saber se desempenha, ou, pelo menos, tenciona desempenhar, dentro da
comunidade matemática o papel de uma demonstração. Isto, por sua vez, nos leva a fazer a seguinte
pergunta: porque é que os matemáticos fazem demonstrações?
Uma das respostas a essa pergunta é que o matemático faz uma demonstração para convencer, ou
persuadir, alguém (possivelmente ele mesmo) da verdade da proposição demonstrada. Essa tese é proposta –
um pouco cautelosamente – por E. P. Smith e K. B. Henderson (1959, p. 112) da seguinte maneira:

Proof, broadly conceived in the teaching of elementary and secondary school


mathematics, is an ever-expanding concept growing from the immature preschool and
elementary school stage of that which convinces to the mature concept of proof [...]

Os autores, na verdade, apresentam uma visão coerente de como o conceito de demonstração se forma na
criança e desenvolve com a sua maturidade. Mesmo assim, ao juntar irrevogavelmente o conceito de
demonstração com o de persuasão, dão, como veremos, uma idéia falsa do status epistemológico desse
conceito. Morris Kline (1970, p. 266) é mais contundente na sua condenação da importância de
demonstrações, pois para ele,

It is the contention of this paper that understanding is achieved intuitively and that the
logical presentation is at best a subordinate and supplementary aid to learning and at
worst a decided obstacle. ... If this contention is correct then the intuitive approach
should be the primary one in introducing new subject matter at all levels.

Segundo esse autor, demonstração é apenas um modo de apresentação e, às vezes, é um modo de


apresentação que pode limitar a compreensão.
Observamos, no entanto, que as duas obras citadas têm preocupações pedagógicas e, de fato, a
demonstração matemática nem é sempre uma maneira muito eficaz para convencer o aluno da verdade de
um teorema, ou para levá-lo a uma compreensão do seu significado. Concordamos plenamente que é
freqüentemente desastroso insistir em demonstrações em contextos inapropriados. Mesmo assim, nada disto
parece relevante à nossa questão sobre o caráter de demonstrações, pois se trata do papel de demonstração
dentro da comunidade pedagógica, enquanto a nossa questão reza sobre o papel da demonstração dentro da
comunidade matemática.
Há algumas considerações que mostram que, dentro da comunidade matemática, a equação
“demonstrar é convencer” não pode ser sustentado com verossimilitude. Assim, a mera tentativa de
convencer não constitui uma demonstração. Alguns exemplos simples mostram isto. Quando, por exemplo,
um adulto quer que uma criança não entre num determinado quarto, ele pode dizer algo como “Não entre aí,
pois o bicho-papão vai te pegar.” A criança é convencida, mas nem por isto foi feita uma demonstração.
Ainda mais, a razão de que não houve demonstração nesse caso não depende da mentira. Se, de fato,
houvesse um leão preso no quarto e alguém, ao informar um outro desse fato, convencesse o outro a não
entrar, ainda não teríamos uma demonstração.
O mesmo acontece dentro da matemática. Por exemplo, os matemáticos foram convencidos que o
último teorema de Fermat fosse verdadeiro, no entanto, continuaram – por um período de 300 anos! – a
tentar demonstrá-lo. Se o propósito da demonstração fosse convencê-los da verdade do teorema, não haveria
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necessidade de procurar uma demonstração, pois todo mundo já foi convencido! Há, de fato, um sentido em
que um matemático deve ser convencido da verdade de uma proposição antes de tentar demonstrá-la, pois,
se pensasse que é falsa, não iria perder seu tempo tentando demonstrá-la. Não obstante, como Amoroso
Costa (1981) explicou, os matemáticos não agem assim, pois não somente querem demonstrar o que é
evidente ao outros, mas, freqüentemente, querem demonstrar a mesma proposição de várias maneiras
diferentes4.
Finalmente, mencionamos a diferença entre argumentos jurídicos e argumentos matemáticos. Em
muitos respeitos, esses dois tipos de argumentos são estreitamente análogos. No entanto, os dois tipos se
distinguem precisamente no ponto de que o propósito fundamental de argumentos jurídicos, segundo Podval
(2002), é convencer.

O Caráter de Demonstrações Matemáticas


É interessante observar que, embora mostremos que demonstrar não equivale convencer, há alguma
relação entre os dois conceitos, que é codificada, por exemplo, na expressão popular “provei por a mais b.”
Tentaremos esclarecer essa relação ao elucidar o caráter das demonstrações matemáticas. Nesse sentido,
observamos que Jairo José da Silva (2002) sustentou que a demonstração tem as seguintes três funções
dentro da matemática:
1. lógico-epistemológica
2. retórica
3. heurística.
A função lógico-epistemológica certifica se uma dada proposição é5, ou não, uma conseqüência lógica de
certas outras proposições, enquanto a retórica convence e a heurística auxilia na descoberta de novos fatos.
O referido autor sustenta que as três funções são independentes, mas dá primazia de lugar à função lógico-
epistemológica.
Especialmente quando olhada do ponto de vista histórico, a função lógico-epistemológica da
demonstração sobressai. Isto fica muita evidente no cadinho que forjou a própria matemática, quando Platão
demarcou os níveis epistemológicos no contexto da linha dividida6, bem como na criação do sistema
axiomático pelo seu aluno, Aristóteles. Diremos, então, que o caráter da demonstração matemática é a
tentativa explícita de determinar o status epistemológico de proposições mediante da relação de
conseqüência lógica.
Dada essa visão da demonstração, mostraremos como as outras duas funções apontadas por Silva
(2002) são relacionadas à primeira. A questão da função retórica é relativamente fácil. Visto que a relação
de conseqüência lógica preserva a verdade, a conclusão de um argumento válido, contendo somente
premissas verdadeiras, resultará numa conclusão verdadeira. Desta forma, demonstrações matemáticas
tendem a ser convincentes7, embora, obviamente, nem tudo que é convincente é uma demonstração
matemática.

4
Mencionamos, a título de exemplo, o trabalho de Elisha Scott Loomis, The Ptyhagorean Proposition (Washington, D.C.,
NCTM, 1968), que reúne 367 demonstrações do venerável Teorema de Pitágoras. Apesar do fato que não consideraríamos todos
os itens nesse trabalho como demonstrações, a variedade de abordagens é bastante instrutiva.
5
Como George Boole (1958) apontou no início da sua célebre obra, as leis do pensamento não são descritivas de como realmente
pensamos, mas de como deveríamos pensar. Isto é, são leis de raciocínio correto.
6
Ver Erickson e Fossa (2006).
7
Exemplos de demonstrações que não convencem são raros. Talvez pudéssemos incluir nessa categoria a demonstração de Georg
Cantor de que o quadrado tem a mesma cardinalidade que seu lado, pois, depois de demonstrá-la, escreveu para Dedekind nos
seguintes termos: Je le vois, mais je ne le croix pas! Mesmo assim, a frase talvez reflita seu espanto com a descomunalidade do
resultado, não sua descrença no mesmo. Ver Thiele (2005).
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Em relação à função heurística, observamos que a relação de conseqüência lógica impõe uma
estrutura nas proposições investigadas e, portanto, a própria estrutura pode ser manipulada de tal forma a
auxiliar na construção de novo conhecimento. Essa maneira de proceder nem sempre tem resultados
frutíferos, nem agrada todos os pesquisadores. Mesmo assim, resulta em resultados interessantes com
freqüência suficiente para ser incluída entre os agentes de descoberta.
Tudo isto posto, vemos que a função retórica e a função heurística da demonstração se reduzem à sua
função lógico-epistemológica. Isto é, demonstrações convencem e nos levam a novo conhecimento porque
têm o caráter de tentar estabelecer relações lógicas entre proposições.

Zhao, Liu e Teoria


Voltemos agora aos procedimentos de Zhao e Liu e recoloquemos a pergunta sobre se são, ou não,
demonstrações à luz da nossa caracterização do que seja uma demonstração. Parece claro que os referidos
autores chineses não estavam tentando mostrar que o Teorema de Pitágoras é uma conseqüência lógica de
qualquer outra proposição ou conjunto de proposições. Muito pelo contrário, mostram uma postura
decididamente pedagógica, ou seja, querem convencer o aluno da verdade do teorema e levá-los a uma
apreciação da sua utilidade (ver Martzloff, 1997). De fato, os que defendem a tese de que um ou outro
desses matemáticos chineses fizeram uma demonstração geralmente apóiam sua defesa sobre esse fato, ou
seja, alegam que Zhao, ou Liu, estava fazendo uma demonstração porque estava tentando convencer. Mas,
como vimos isto não é suficiente.
Talvez seria interessante dizer um pouco mais sobre isto, pois concluir que Liu, por exemplo, não fez
uma demonstração do Teorema de Pitágoras parece implicar que ele foi culpado ao não fazê-la e que a sua
estatura histórica é, desta forma, diminuída. Isto, no entanto, é redondamente errado. Até acreditamos que
teria sido impossível para Liu dar uma demonstração, pois ele não poderia conceber a necessidade para
demonstrações, nem poderia entender a natureza e função das mesmas – e isto não é resultado das suas
limitações pessoais, mas é simplesmente o resultado da constituição do seu ambiente cultural.
Para conceber a necessidade para demonstrações é necessário ter teoria, pois é só no contexto de
uma contemplação teórica que o conceito de conseqüência lógica se torna problematizado e, portanto,
tematizado. Na ausência de teoria, é o conceito de causalidade que tem primazia de lugar. Mas, ao contrário
de teoria, que é a contemplação da verdade, causalidade é ligada a eficácia, prática e convicção – e todas
essas três eram, a propósito, características da sociedade chinesa antiga. A diferença atravessa todos os
aspectos da sociedade. A religião antiga, por exemplo, tende a persuadir o fiel que será melhor para ele se
fizer isto ou aquilo, ou que propiciar os deuses será uma maneira eficaz para obter o que quer. Religiões
mais teóricas, em contraste, pregam que se deve fazer isto ou aquilo porque é correto. Freqüentemente
também alegam que fazer o correto trará benefícios e, assim, mais uma vez, vemos a convicção subordinada
à e feita conseqüência da verdade.
A visão teórica, portanto, há pelo menos duas partes constituintes, a saber,
1. um aparato instrumental
2. um aparato axiológico.
O aparato instrumental facilita a contemplação e/ou construção9 da verdade. Inclui tais coisas como
8

definições, axiomas e regras de inferência, mas também inclui expectativas sobre quais tipos de coisas são

8
Neste sentido é apropriado lembrar que a palavra grega para teoria se referia a uma viagem para contemplar os instrumentos do
oráculo. Ver o primeiro capítulo de Fossa (2008).
9
A discussão aqui antecede tais questões como as disputas entre os formalistas e os intuicionistas e, portanto, não as abordaremos
aqui. Para a caracterização da matemática por partidários desses sistemas, ver, por exemplo, Curry (1941) e Weyl (1985) e,
especificamente em relação a demonstrações, Otte (1990).
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problemáticas e quais tipos de coisas constituem uma solução. O aparato axiológico é constituído de uma
apologia para a valoração do próprio conceito da verdade, enaltecendo a procura da verdade e fazendo com
que a mesma seja considerada a atividade mais nobre do homem.
Observamos ainda que não há, pelo menos ao conhecimento do autor do presente trabalho, qualquer
evidência para a existência do aparato instrumental, nem do aparato axiológico, antes dos gregos. Muito
pelo contrário, o conceito de teoria é provavelmente uma invenção grega e, portanto, não houve
demonstrações matemáticas antes do desenvolvimento da cultura grega. Interessantemente, parece que o
mesmo não havia chegado à China, ou não foi lá bem recebido, até a época de Zhao e Liu.

Uma Conseqüência da Conseqüência


O fato de que a demonstração matemática tem o caráter de asseverar a relação de conseqüência
lógica significa que a matemática usa demonstrações para validar as proposições matemáticas. De fato,
como Alfred Tarski (1969, p. 77) observou, é o único10 método usado para esse fim na matemática:

Proof is still the only method used to ascertain the truth of sentences within any specific
mathematical theory.

Em conseqüência, podemos definir a matemática como a área de estudos que usa, exclusivamente,
demonstrações, no sentido acima delimitado, para validar as suas proposições.
A definição proposta no parágrafo anterior tem várias vantagens. Em primeiro lugar, evita qualquer
tentativa de definir a matemática em termos do seu conteúdo. É fácil ver que a definição em termos de
conteúdo é problemática porque há uma grande diversidade de conteúdos que são englobados pela
matemática e porque os mesmos mudam com o tempo. Em segundo lugar, a definição mediante o método
de validação não somente identifica a característica mais notável da matemática, mas também paralela a
definição da ciência mediante o seu método de validação, a saber, o de verificação empírica. Assim, o
referido paralelismo promove uma visão unificada desses dois campos de investigação. Em terceiro lugar, é
consoante com a maneira em que os próprios matemáticos concebem a matemática. Finalmente, em quarto
lugar, permite a demarcação conceitual de várias grupos de categorias, incluindo as de matemática pura e
matemática aplicada, bem como “fazendo matemática” e “usando matemática”, que são úteis quando
queremos analisar os fundamentos do conhecimento matemático.
Observamos ainda que a definição não acarreta que a única coisa que o matemático faz é
demonstrar. Muito pelo contrário, matemáticos fazem muito uso da imaginação, procuram padrões, fazem
conjecturas e até fazem experiências. Arquimedes, por exemplo, descobria as áreas de certas figuras por
pesar peças das referidas formas recortadas de finas lâminas de ouro. Como um matemático, porém, ele não
poderia se contentar com essa descoberta e, portanto, teve de demonstrá-la.11 Assim, concordamos com
Davis e Anderson (1979, p. 125), quando sustentam o que chamam da “doutrina do homem completo”12, ou
seja que todos os aspectos da experiência humana deveriam estar envolvidos no desenvolvimento do
pensamento matemática para que o mesmo seja sempre mais rico. Simplesmente acrescentamos que, na hora
da validação dos seus resultados, o matemático, como o sábio Arquimedes, não abre mão do método de
demonstração.

10
Isto não é estritamente verdadeiro, pois os axiomas são validados por estipulação. No contexto do presente argumento, porém,
essa complicação pode ser ignorada.
11
Para mais detalhes, ver Baron (1985).
12
The whole man.
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Vimos acima que tudo indica que a prática de fazer demonstrações originou entre os gregos antigos.
Em seguida, identificamos a matemática como aquilo que adota o método da demonstração como seu
método de validação. Em conseqüência, concluímos que a matemática não existiu antes da época da cultura
grega.
A conclusão do parágrafo anterior parece bastante “politicamente incorreta”. A razão para isto é que
vários historiadores do passado (até recente) sustentavam a primazia dos gregos e o conseqüente
rebaixamento de outros povos, baseados, pelo menos em parte, na alegação de que o referido povo foi o
único da Antigüidade a fazer matemática. Assim, sempre segundo os mencionados historiadores, ou melhor,
apologistas, os outros povos eram menos racionais, enfim, menos humanos, e com isto as mais nefastas
práticas, como, por exemplo, a escravidão, seriam justificadas. Rejeitamos taxativamente não somente as
conclusões desses historiadores, mas também o “raciocínio” que os levaram a essas conclusões.
No entanto, quando reconhecemos que a matemática é um produto cultural do homem, faz sentido
pensar que esse produto tivesse uma origem no tempo e que tivesse algum precursor. O estado atual do
conhecimento histórico indica que essa origem ocorreu entre os gregos antigos. Futuras pesquisas, é claro,
poderiam modificar essa conclusão.
O que podemos dizer sobre o precursor da matemática? É claro que a matemática, propriamente dita,
emergiu de uma matriz muito rica e bastante variada, existente em vários graus de sofisticação em todas as
partes do mundo. Consistia originalmente de símbolos, tanto lingüísticos quanto não-lingüísticos, para
representar quantidades, sistemas de pesos e medidas, sistemas de numeração e operações aritméticas.
Depois desenvolveu-se o estudo de proporções e o de triângulos, desembocando no que reconheceríamos
como a resolução de equações. A forma exata da seqüência de desenvolvimento e o leque de assuntos
abordados aparentemente variavam de lugar para lugar, embora podemos destacar o papel de cálculos
aritméticos e a natureza empírica e aplicada desses desenvolvimentos. Usaremos o nome atividades proto-
matemáticas para referir à matriz acima descrita.
Antes de prosseguir, observamos que os nomes “matemática” e “proto-matemática” são nomes
meramente descritivos, não avaliativos. Em particular, houve partes da proto-matemática babilônica que
foram muito mais sofisticadas do que as correspondentes partes da matemática grega. Ainda mais, a imensa
importância atual da proto-matemática, não somente para o embasamento da matemática, mas também
como um instrumento de compreensão do mundo em que nos achamos, é inegavelmente mostrada pelas
grandes esforços que empreendemos para ensinar esse material às nossas crianças nas escolas primárias e
secundárias.
Finalmente, é importante enfatizar que a distinção entre a matemática e a proto-matemática é um
subsidiário valioso para a formação de julgamentos históricos. Se voltamos, por um momento, à abordagem
que Liu Hui fez sobre o Teorema de Pitágoras, podemos ilustrar esse ponto. Lembrando que Liu vivia uns
seis séculos depois de Euclides, mas mesmo assim, não conseguiu fazer uma demonstração do referido
teorema, a conclusão, do ponto de vista da matemática, é clara: Liu foi um matemático fraco. Quando,
porém, o vemos como um proto-matemático que nem estava tentando demonstrar o mencionado teorema, o
reconhecemos como um baita pensador.

Duas Objeções
Vamos considerar aqui dois possíveis tipos de objeção a visão da matemática apresentada acima. A
primeira sustenta que a definição da matemática está errada porque há, de fato, exemplos de matemática
sem demonstração. Esta objeção é exemplificada por Davis (1972, p. 255), que afirma que
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Secondly, mathematics can and has been done in a “proofless” atmosphere. The
Egyptians and Babylonians had piled up a considerable body of mathematics even before
the Greeks came along with their proofs. If one reads Ptolemy one sees how proofless
material can exist side by side with the mathematics of proof. In today’s world, the
physicist and the engineer often work in absence of proof, it being sufficient to work
formally and symbolically and have the work backed by a physical intuition or by an
experimental confirmation.

Assim, o referido autor alega que há três exemplos distintos de matemática sem demonstração. O primeiro
exemplo é o dos egípcios e babilônios. O exemplo, no entanto, pressupõe que não há uma distinção13 entre a
matemática e a proto-matemática. É equivalente a definir a matemática por enumeração, ou seja, mediante
de uma lista (na prática subentendida) das coisas que serão consideradas matemáticas. Esse procedimento é
possível, mas geralmente fornece resultados que são intelectualmente menos satisfatórios do que definições
conceituais, pois não mostra a unidade dos objetos definidos. Poderemos, por exemplo, definir os números
primos por enumeração da seguinte forma: 2 é primo, 3 é primo, 5 é primo, 7 é primo, 10 é primo, ... Visto
que se trata de uma definição, não é errado, mas a presença de 10 entre os “primos” causa sérios problemas
para o desenvolvimento de raciocínios posteriores. Em contraste, se usamos uma definição conceitual, como
“um inteiro positivo cujos únicos divisores positivos são ele mesmo e a unidade”, obtemos um conjunto de
primos mais interessante. O mesmo princípio é aplicável no caso em aprecio. Em vez de dizer matemática é
o que os egípcios fizeram e o que os babilônios fizeram e ..., é muito mais interessante dar uma definição
conceitual, como aquilo que usa o método de demonstração para a validação, e depois ver quais exemplos
satisfazem os critérios da definição.14
No segundo exemplo, Davis aponta para um matemático que fazia poucas demonstrações.
Lembramos, porém, que a matemática (1) é composta de várias atividades (conjeturar, experimentar, ...)
além de demonstrar e (2) é colaborativa. Assim, podemos imaginar a colaboração entre dois matemáticos
em que um fornece proposições a ser demonstradas pela outra. O mesmo acontece na comunidade de
matemáticos em geral – não é necessário que cada indivíduo esteja envolvido em cada aspecto da atividade
matemática. O que é importante é que a comunidade só aceita proposições como validadas depois de
demonstradas.
O terceiro e último suposto exemplo de matemática sem demonstração dada por Davis é o dos físicos
e engenheiros, pois esses, notoriamente, tendem a não fazer demonstrações. Mas, claramente os físicos e
engenheiros não estão fazendo matemática (e, por isto, são chamados físicos e engenheiros, não
matemáticos!), mas usando a matemática. Isto é, apropriam resultados validados pelos matemáticos e os
aplicam a situações de interesse. Assim, nenhum dos três exemplos de Davis é convincente.
O segundo tipo de possível objeção a visão da matemática dada acima é ilustrada pela seguinte
afirmação de Peter Damerow (2007, p. 478) ao discutir a natureza de problemas matemáticos da antiga
Babilônia:

But the complexity of some of the problems and their solutions make it impossible to
believe that they should not be the result of sophisticated deductive reasoning.

13
Claramente Davis (1972) não conheceu a referida distinção que só foi elaborada, pelo autor do presente trabalho, por volta de
2004.
14
O argumento no texto é claramente uma simplificação de uma situação muito complexa, mas esperamos que servirá como uma
primeira aproximação.
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Observamos, em primeiro lugar, que essa objeção é de um tipo completamente diferente do
primeiro, pois o primeiro procurava invalidar a definição de matemática, enquanto o presente tipo só disputa
o ponto de origem. A matemática, segundo essa objeção, não nasceu entre os gregos, mas entre os
babilônios.
O presente autor não teria qualquer problema com isto se viesse a ser comprovado. Acredita, no
entanto, que a evidência dada por Damerow é muito fraca, pois simplesmente sustenta que a complexidade
de vários problemas babilônicos implica que foram elaborados usando raciocínio dedutivo. Já vimos,
contudo, que técnicas computacionais, típicas da proto-matemática, permitem a obtenção de resultados
bastante sofisticados. Ainda mais, é de supor que todo mudo usa algum tipo de raciocínio dedutivo. A
questão é, entretanto, se é usado sistematicamente como método de validação. Não vimos, até agora
evidência convincente que isto ocorreu entre os babilônios.

Um Pequeno Devaneio
Abro aqui um pequeno parêntese para relatar as minhas impressões pessoais, não-científicas, referente à
leitura de alguns textos antigos de matemática, especificamente do ponto de vista do aluno (leitor) da época.
Neste sentido, imagino – a partir da minha leitura dos referidos textos – que a resposta de um aluno egípcio
ou babilônio só poderia ser “Sim, senhor!” O aluno chinês poderia responder “Não estou entendendo; o
senhor poderia repetir isto?” É só o aluno grego que poderia responder “Não senhor, isto não pode ser por
causa disto e daquilo!” Dito de outra forma, os textos egípcios e babilônios tendem a ser receituosos e
autoritários, enquanto os fins pedagógicos aparecem um pouco mais nos textos chineses. Os textos gregos,
em contraste, são claramente argumentativos e, portanto, estão sujeitos a serem criticados quando a relação
de conseqüência não é estabelecida de forma satisfatória.

Demonstração e Conhecimento
Philip Kitcher (1981) alega que a verdadeira finalidade de demonstrações matemáticas é que mostram
porque uma proposição é verdadeira. Mas, mesmo ele reconhece que há dois tipos15 de demonstrações, a
saber, um que mostra apenas que uma dada proposição é verdadeira (demonstrações indiretas são
freqüentemente desse tipo) e um que mostra porque é verdadeira. Não obstante, embora os matemáticos até
têm preferência por demonstrações do segundo tipo, as do primeiro tipo são perfeitamente16 aceitáveis.
A tendência dos matemáticos, observada acima, a fazer várias demonstrações para a mesma proposição
poderá causar um pouco de perplexidade aqui, pois na presença de várias demonstrações, poderíamos
perguntar sobre as “verdadeiras” razões (pois essas serão múltiplas no caso em aprecio) da verdade da
proposição. Quando voltamos à natureza da demonstração, porém, a perplexidade desaparece, pois
demonstração revela relações de conseqüência lógica e não há nada estranha no fato de uma proposição ser
conseqüência lógica de dois, ou mais, grupos distintos de pressupostos. De fato, o que vemos no fenômeno
de demonstrações múltiplas é teorização em ação, pois o matemático não visa apenas a validação de
proposições avulsas, mas a construção e articulação de uma grande rede de relações.

15
Irinei Bicudo (2002) aponta para dois tipos de demonstrações em um outro sentido, a saber, as que exibem a relação de
conseqüência passo por passo (típicas de lógicos) e as usadas pelos matemáticos nos seus trabalhos do dia-a-dia. O que é que esse
segundo tipo demonstra? Acreditamos que a resposta é que revela o suficiente sobre a estrutura de uma demonstração do primeiro
tipo a permitir um matemático competente de construí-la caso queira.
16
Intuicionistas, como L. E. J. Brouwer (1881-1961), não concordaria com isto. Constituem, porém, uma decidida minoria dentro
da comunidade matemática.
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Alfred Tarski (1969) faz um desafio mais contundente quando afirma que o conhecimento matemático não
pode ser identificado com o demonstrável em virtude dos teoremas de Gödel. Esses teoremas, segundo
Tarski, afirmam que há verdades que não podem ser demonstradas. Mesmo assim, como já vimos, o referido
autor elege demonstração como o único método para a asseveração da verdade matemática. Claramente há
algo errado.
De um ponto de vista, os teoremas de Gödel são bastante inusitados, mas, de outro ponto de vista, nem
tanto. Fomos criados, nos dizem, na imagem de Deus, o Criador. Logo, nosso atributo mais saliente é a
nossa criatividade. Não obstante, somos limitados e, portanto, não podemos criar sistemas perfeitos. A
verdade matemática é relativa ao sistema matemática que criamos e os teoremas de Gödel apenas reitera que
nenhum sistema matemático é perfeito. Dito em outras palavras, o método matemático de validação é
limitado no sentido de que não é adequado para decidir todas as questões matemáticas. O mesmo acontece
em todos os outros campos de investigação – o método de verificação empírica, por exemplo, não é
adequado para decidir todas as questões científicas. Pensar o contrário é nada mais do que hybris.

Conclusão
Começamos a nossa investigação no presente trabalho com uma indagação aparentemente muito simples, a
saber, se o procedimento usado pelo matemático chinês Liu Hui na sua abordagem do Teorema de Pitágoras
era, de fato, uma demonstração do referido teorema. Para respondê-la, porém, foi necessário investigar a
natureza de demonstrações matemáticas. Isto feito, fomos levados a usar o conceito de demonstração para
definir a própria matemática e contrastá-la com a proto-matemática. Isto, por sua vez, nos levou a tecer
algumas rápidas considerações sobre o conhecimento matemático, suas limitações e suas relações com
outros tipos de conhecimento humano.
O curto espaço de tempo de alguns minutos, portanto, serviu a mostrar que a matemática não é somente um
produto cultural do homem, mas um produto inserido na cultura geral do homem. Assim, a maneira em que
concebemos a matemática influenciará e será influenciada pela maneira em que vemos outros aspectos dessa
cultura, às vezes de modos bastante surpreendentes. Voltando à questão da criatividade como um atributo
essencial do homem, por exemplo, poderemos obter uma visão do ser humano como um agente que cria
novas realidades. Assim teremos, referente à ontologia dos objetos matemáticos, uma alternativa atraente à
insustentável dicotomia entre o “realismo platônico” e o “nominalismo moderno.” Como outros “objetos
não-existentes,” esses objetos matemáticos são reais e sabemos disto, não somente porque são nossas
criaturas, mas também porque têm conseqüências para a maneira em que vivemos as nossas vidas. E se há
consolação para the slings and arrows of outrageous fortune17, ela poderá está no pensamento de que a vida
não é sem conseqüência.

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