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A ESTRUTURA DO SENTIMENTO E
DAS FORMAÇÕES SÓCIO-CULTURAIS:
O SENTIDO DE LITERATURA E DE
EXPERIÊNCIA PARA A SOCIOLOGIA DA
CULTURA DE RAYMOND WILLIAMS1
Paul FILMER2
Tradução: Leila Curi Rodrigues OLIVI3
1
Artigo originalmente publicado no British Journal of Sociology, Londres, v.54, n.2, p.199-219, jun. 2003.
ISSN: 0007-1315 print/1468-4446 online.
2
Sociólogo inglês. University of London. Departamento de Sociologia do Goldsmiths College. Londres –
Inglaterra.
3
UNESP – Universidade Estadual Paulista. Faculdade de Ciências e Letras. Araraquara – SP – Brasil.
148000-901 – leilaolivi@uol.com.br
Introdução
Formulações do Conceito
1980; O’CONNOR, 1989). As figuras semânticas são reais, mas carregam, com
um refinamento conceitual apropriado, a delicadeza das “menos tangíveis partes
de nossa atividade”, às quais Williams se refere em suas formulações anteriores
da ideia de estrutura de sentimento. Elas são, no entanto, vitais para a manutenção
da continuidade com as formulações posteriores e mais incisivas. Elas também
são importantes na ficção de Williams (DAVIES, J. 1993; DI MICHELE 1993;
ELDRIDGE; ELDRIDGE, 1994), em que são adotadas para invocar e representar
a qualidade de movimento como a expressão de subjetividade conhecida pela
experiência vivida por diferentes grupos sociais – famílias, comunidades de trabalho
e de moradia – cujos membros, sob intensas condições internas de tensão ou
momentos de extrema ameaça externa, não podem, ou escolhem não poder, articular
sempre suas diferenças verbalmente por causa de problemas e que, se fizessem isto,
confundiriam a sua integração contínua (WILLIAMS, 1989). As figuras semânticas
também são aspectos de inflexão e timbre de um discurso familiar que carrega o
que já é conhecido, e que não precisa de uma articulação elaborada. Elas ainda são
as inflexões cruciais para o conceito de estruturas de sentimento nos termos em que
gerações conhecem, através de sua língua, as particularidades diferentes da vida
de sua própria cultura comum em contrapartida com as de seus predecessores e de
outros porque “‘nenhuma geração fala a mesma língua que seus predecessores’[...] e
a descrição que mais se adapta à mudança é o termo literário ‘estilo’.” (WILLIAMS,
1977, p.131). Estilo também foi escolhido como o termo que identifica não só culturas
de geração diferenciadas, mas também aquelas da multiplicidade das minorias, que
caracterizam, em larga escala, as formações sociais complexas da modernidade tardia
(veja, por exemplo, HEBDIGE, 1979). O estilo literário, além disso, é um termo que
resume efetivamente algumas características das relações entre as formas estéticas e
as convenções que Williams invoca especialmente como referencial para as figuras
semânticas. As relações reflexivas entre formas e convenções que constituem o estilo
são especialmente significantes para o conjunto de questões do âmago da estética
realista (veja, por exemplo, CAUTE, 1972; FILMER, 1978; LUKÁCS, 1964). Elas
são, assim, significantes também para a identificação e articulação de estruturas
de sentimento, já que são um meio pelo qual as correspondências de estruturas de
consciência entre escritores e outros grupos sociais podem ser diferenciadas das
correspondências de conteúdo. Elas tornam possível a transcendência de relações
de reflexão de conteúdo ao revelar o princípio que organiza a consciência coletiva
e, consequentemente, sustenta a coerência do grupo social que o mantém.
A análise detalhada das relações entre forma e convenção na identificação e
análise de estruturas de sentimento deu a Williams um conjunto de recursos para
pensar e diferenciar seu projeto de outros semelhantes em outras disciplinas e
áreas de trabalho. Já vimos como isto pôde fazer com que Williams diferenciasse
[...] opera de acordo com relativa coerência ... a lógica da prática que fora ...
formada primeiramente na primeira infância dentro da família, pela internalização
de um conjunto de condições objetivas e determinadas tanto pelo material
diretamente, como pelo material mediado através... das práticas dos adultos
presentes no contexto.
Enquanto sua lógica é empobrecida pelo fato de não poder ser operacionalizada
conscientemente e não poder ser inculcada explicitamente, ela é, no entanto, flexível
o suficiente para “ser aplicada como o princípio estruturante da prática em uma vasta
gama de situações.” (GARNHAM; WILLIAMS, 1986, p.120). “Habitus” é tanto
estruturado como estruturante; é socialmente adquirido, relaciona todas as práticas
que produz até atingir um conjunto unificador de princípios que regula as práticas
individuais comuns às condições sociais coletivas presentes – como tal, é a base do
conceito de classe de Bourdieu. Mas por ser uma estrutura implicitamente adquirida,
uma operação inconsciente, ela permanece, em alto nível, um determinado conjunto
de práticas estruturadas, e, portanto, diferencia-se significativamente do conceito de
Williams de estrutura de sentimento. Por diferenciar o conceito das formas residuais
de hegemonia em sua obra posterior, Williams (1977) descreveu suas estruturas
de sentimento como manifestações emergentes, até mesmo pré-emergentes, de
resistência e oposição às praticas e às ideologias hegemônicas dominantes da ordem
social existente. O conceito de Bourdieu, em contrapartida, é uma formulação
reflexiva tanto do contexto institucional como das práticas informais que produzem,
e, consequentemente, reproduzem as condições socioculturais existentes. – é,
finalmente, uma formulação feita através de uma teoria de reprodução cultural. A
lógica prática de “habitus”, embora seja flexível, é estruturalmente determinada pela
trajetória das expectativas institucionais da ordem social existente: na sociedade de
Estudos de Sociologia, Araraquara, v.14, n.27, p.371-396, 2009 379
Paul Filmer
classe é aquela que tem a mobilidade social legitimada e tem julgamentos estéticos
distintos (BOURDIEU, 1984), por exemplo. Então, apesar de ter seu valor ao
explicar a detalhada prática estratégica reflexiva de reprodução cultural, ela fica, em
comparação com o conceito de Williams, aquilo a que Milner (1994, p.67) chamou
de “um sistema de disposições duráveis antes de ser um padrão de experiência
sentida”, que limita sua capacidade analítica de exploração das possibilidades para
a ação coletiva direcionada à mudança social progressiva.
Igualmente, em comparação com a aplicação de Williams do conceito de
estruturas de sentimento em sua análise das estruturas internas e das linguagens
de textos literários ou não, as análises de Bourdieu são essencialmente análises
das estruturas contextuais, a que ele chama de campo de produção artística. Três
elementos constituem a realidade social deste campo: a história e a posição do
campo artístico no período contemporâneo dentro do campo de poder; a estrutura
das relações do campo entre as posições ocupadas por indivíduos ou grupos
competindo por legitimidade artística em um determinado momento; e a gênesis dos
diferentes produtores do “habitus” (BOURDIEU, 1993, p.194). Em nenhum lugar
há possibilidade para a análise do conteúdo das obras de arte quanto à suas relações
constitutivas reflexivas com o campo. Onde Bourdieu (1993, p.145-160) não usa o
conceito, como por exemplo em sua análise da Educação Sentimental de Flaubert, ele
está preocupado com o conteúdo do romance em termos de estruturas codificadas de
narrativa e caracterização, mas não com a linguagem. Quando ele analisa a linguagem,
ele quer ver como a linguagem da vida diária produz um princípio de interpretação
gerador, tanto na literatura como na biografia, e que a vida é uma narrativa coerente
e que “o fim de uma vida é também seu objetivo.” Bourdieu (1993, p.193), em vez
dessa colocação tácita, propõe, então, que “[...] somente a sociologia genética poderá
perceber [...] a gênesis e a estrutura de um espaço social onde o “processo criativo” se
formou.” Todas as obras de arte, não obstante sua particularidade empírica, social e
cultural ou suas formas estéticas específicas de produção, devem ser sociologicamente
analisadas por suas propriedades comuns analíticas, i.e., como códigos gerados
dentro e através das estruturas do campo cultural de sua produção e interpretação.
Enquanto recoloca historicamente a análise estruturalista das obras de arte, também
abstrai inevitavelmente as obras para poder chamá-las de representativas, típicas e
sintomáticas de uma particular manifestação de processos mais gerais: isto faz com
que Bourdieu mostre as relações estruturais reflexivas de qualquer obra de arte em
seus contextos sócio-culturais de produção e recepção. Mas, em contrapartida, não
mostra como as práticas artísticas de qualquer obra(s) específica(s) contribuem para
a realização e a manutenção dessas relações e como, desta forma, elas contribuem
para o processo empírico de estruturação da mudança social. O método de Bourdieu
mostra claramente como os códigos da produção artística e de interpretação reforçam
[...] uma tarefa distinta da sociologia reduzida das instituições, formações e relações
comunicativas, e, como sociologia, é também radicalmente distinta da análise
de formas isoladas. Muitas vezes, as duas tendências dominantes dos estudos
culturais burgueses – a sociologia de uma reduzida mas explícita ‘sociedade’ e
Parte dessa unidade e conexão do processo material social exige que se debruce
de novo sobre a linguagem e sua relação com as formas de literatura e de escrita.
Estas formas têm uma certa autonomia, que é a chave para sua relação reflexiva
com as formas de convenções lingüísticas de expressão e comunicação, e, portanto,
constituem o estilo.Há um ponto no processo de escrita no qual Williams (1989,
p.86) sempre insiste, “[...] que qualquer pessoa que tenha observado cuidadosamente
seu próprio processo de escrita pode achar eventualmente que ... o que está sendo
escrito, enquanto não for separado dele, não é somente ele, mas ... esta outra força,
a forma literária.”
Tudo isto complementado pelo comprometimento do autor com a linguagem
em que foi criado e “sentida como natural” e que é, igualmente e simultaneamente,
a chave constitutiva da original “situação social com todas as suas perspectivas”,
das quais posteriormente os indivíduos podem abstrair –se. Isto significa que a
forma pode distanciar a linguagem de sua habilidade de articular a especificidade
da experiência, da mesma forma como Williams (1989, p.86) sugere que o romance,
a forma literária burguesa, foi “[...] virtualmente impenetrável para os escritores da
classe trabalhadora por três ou quatro gerações.”
A hipótese cultural da estrutura de sentimento, então, operacionaliza a
metodologia para a análise das formas estéticas e da continuidade da linguagem que
é concebida especialmente para garantir a sua autonomia como fenômenos sócio-
culturais. É feita para se opor não só ao cientificismo redutor da sociologia normativa,
mas também ao determinismo bruto de base simplista/ modelos de superestrutura de
linguagem e forma literária. Williams 1977, p.133) assinala que
[...] como assunto de teoria cultural, este é o caminho para definir formas e
convenções na arte e literatura como elementos inalienáveis de um processo
material social: [...] mas, como uma formação social de um tipo específico que
pode se transformar em articulação... de estruturas de sentimento..., são muito
mais amplamente experimentadas.
[...] como sempre acontece em situações relativamente isoladas, que são vistas
mais tarde como composição de uma geração significativa, (de fato, uma minoria);
em geral, uma geração que se liga substancialmente a seus sucessores. É, então,
uma estrutura específica de ligações, ênfases e supressões particulares, onde estão
frequentemente as formas mais reconhecíveis, pontos de partida e conclusões
profundos e particulares. (WILLIAMS, 1977, p.133).
4
N.T. no original “in solution”
5
N.T. no original “have been precipitated”
Críticas ao Conceito
6
N.T. no original “experientiality”
[...] é também a marca de limite do próprio pensamento dele (Williams) que, para
ir além da noção de complexo-de-sentimento em direção à noção de estrutura-de-
sentimento, ...carece os termos teóricos que podiam especificar as articulações
precisas desta estrutura. É, consequentemente, reduzido ao estatuto de mero
“padrão”. (EAGLETON, 1976, p.33-34).
7
N.T. no original “objectifiable”
8
N.T. no original “literacy”.
9
N.T. no original “sociality”.
quando ele percebeu que “[...] somente em algum momento no século 19, em um
período posterior da literatura inglesa, a maioria da população inglesa sabia ler e
escrever.” Em segundo lugar,
[...] sua preocupação com a grande mudança cultural em nosso próprio período,
no qual as relações entre escrita, fala e... ação dramática, e, de formas totalmente
novas, entre a escrita e a composição de imagens, mudaram ou foram se
desenvolvendo em radio, televisão e filmes.
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