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Donne,

Augusto
de Campos
ea A N A H E L E N A S O U Z A

tradução criativa
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E m 1921, o professor e crítico Herbert J. C. Grierson
publicou uma antologia dos poetas metafísicos in-
gleses do século XVII. O jovem poeta T. S. Eliot resenhou essa
edição em um texto que ultrapassou seus limites, ao ressaltar
a importância para a poesia daquele momento de procedimen-
tos poéticos característicos dos metafísicos e ao estabelecer
relações entre esses procedimentos e a poesia coloquial-
irônica dos pós-simbolistas franceses Jules Laforgue
(1860-87) e Tristan Corbière (1842-75). Fazer a re-
senha da antologia citada por Grierson foi, assim,
uma oportunidade para Eliot meditar sobre os me-
tafísicos, dando um impulso fundamental para
tirá-los do lugar secundário ao qual tinham sido
relegados pela crítica inglesa mais tradicional. Ao lado,
o poeta inglês
Além disso, ao criar essa inesperada relação entre
John Donne
a poesia dos metafísicos e a dos pós-simbolistas
franceses, Eliot revelava toda a sua grande capa-
cidade crítica. “The Metaphysical Poets” é um
dos exemplos mais marcantes da propriedade das
reflexões expostas dois anos antes no ensaio
“Tradition and the Individual Talent”, em que ele apre-
senta sua visão da literatura como um todo orgânico,
formado pelas obras já pertencentes à tradição e capaz de
ser modificado pelo surgimento de novas obras. Não haveria
nem imobilidade nem hierarquia fixa neste conjunto, mas uma
dinâmica de iluminações recíprocas. Com isso, Eliot quer cha-
mar atenção para uma leitura viva e renovadora da tradição,
que consiga, examinando-a, encontrar aspectos que sintoni-
ANA HELENA
zem com o presente, bem como aspectos antes não considera- SOUZA
é pós-graduanda
dos, que possam suscitar releituras. na FFLCH-USP

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Tendo em mente os dois textos, vemos que tantos princípios poundianos se encon-
que o resgate dos metafísicos operado por tram no ato de traduzir que suas melhores
Eliot se deu em duas direções: na da atua- traduções existem de três maneiras: como
lização da tradição e na da renovação da janelas para novos mundos, como atos de
poesia inglesa contemporânea, a partir dessa homenagem e como personae de Pound”.
mesma atualização. O próprio Eliot dirá E mais adiante completa: “Suas melhores
mais tarde que sua melhor crítica é “um traduções estão entre a pedagogia, por um
1iiiiT. S. Eliot, “The Frontiers of produto derivado de minha oficina particu- lado, e a experiência pessoal por outro, e
Criticism”, in On Poetry and
Poets, London/Boston, Faber lar de poesia; ou um prolongamento das em contato com ambas” (5). Pound tinha
& Faber, 1986, p. 106.
reflexões que participam do meu próprio mesmo uma grande preocupação didática,
2iiiiNesse sentido um dos livros verso” (1). A “crítica de oficina” exercida e tal preocupação, no seu caso – não no de
mais representativos parece
ser o de Cleanth Brooks, por Eliot encontrou enorme ressonância. Eliot, por exemplo –, fez convergir tradu-
Modern Poetry and the Alguns autores passaram até mesmo a ler ção e tradição. Para Pound, como para Eliot,
Tradition (Chapel Hill, The
University of North Carolina poemas contemporâneos como se fossem era bastante clara a importância da análise
Press, 1967). Há, inclusive,
uma análise do poema “Sailing poesia dos metafísicos (2); outros, mais e da comparação de obras literárias já con-
to Byzantium” de W. B. Yeats discreta e acertadamente, limitaram-se a sagradas e estabelecidas dentro da tradi-
como um poema metafísico
(pp. 62-4). apontar procedimentos poéticos semelhan- ção, não como monumentos do passado,
tes (3). O fato é que não só muitos escrito- mas sim como obras vivas que podiam ser
3iiiiUm dos melhores exemplos
é o livro de F. O. Mathiessen, res, mas também inúmeros leitores se apro- postas em conexão com o presente. A prin-
The Achievement of T. S. Eliot,
an Essay on the Nature of ximaram dos metafísicos ingleses do sécu- cipal finalidade dessas análises e compara-
Poetry (3rd ed. revised and lo XVII através de poemas e poetas con- ções era verificar o que havia no passado
enlarged, New York/London,
Oxford University Press, temporâneos. que pudesse favorecer a criação de algo
1958). Na nota 16 (pp. 28-
32), ele exemplifica como Embora seu alcance tenha sido mais li- realmente novo. É aqui que, no caso de
Eliot usa em sua poesia pro- mitado que o da própria resenha de Eliot, o Pound, entra a tradução. Suas incursões
cedimentos típicos dos me-
tafísicos como: o conceito, a trabalho de Grierson é, sem dúvida, notá- neste terreno são manifestações de sua pró-
comparação mais extensa, as pria crítica de oficina, mas mostram tam-
associações rápidas, a sintaxe
vel, tanto pelo estabelecimento dos textos,
elaborada que compõe uma quanto pela acuidade de suas introduções e bém o seu lado de professor entusiasta, ativo
música e um ritmo também
elaborado, a justaposição e a comentários (4). Porém, quero sublinhar e instigador. A tradução como uma forma
união dos opostos. É interes- aqui um tipo diferente de crítica: aquela de crítica, mas também como uma forma
sante ver também o comen-
tário na página 15, em que que estimula um fazer poético, seja ele um de promover, em suas palavras, “a organi-
Mathiessen relativiza o paren-
tesco da poesia de Eliot com trabalho de criação, como no caso de Eliot, zação do conhecimento de modo que o
a dos metafísicos, ao afirmar ou de recriação, como nas traduções de próximo homem (ou geração) possa sem
que as “transições súbitas”
dos seus versos devem-se Pound. Eliot e Pound partilharam o mesmo muita demora encontrar a parte viva dele e
mais ao método dos simbo- perca o menor tempo possível com ques-
listas franceses.
interesse pelo revigoramento de uma tradi-
ção poética, contribuindo com suas obras tões obsoletas” (6). É com esse espírito que
4iiiiHerbert J. C. Grierson, The
Poems of John Donne, vol. II: para uma renovação tanto crítica quanto Pound usa a tradução: ordenar através de
“Introduction & Commentary”, criativa. No caso de Pound, a tradução ocu- uma seleção crítica as obras pertencentes à
Oxford, The Clarendon Press,
1912; The Metaphysical Lyrics pa um lugar privilegiado como uma ativi- tradição em outras línguas que não a ingle-
& Poems of the Seventeenth
Century, Oxford, The
dade que conjuga crítica e criação. Essa sa. É também no sentido de alargar as fron-
Clarendon Press, 1936 (1a ed., visão poundiana da tradução irá exercer uma teiras do inglês, além de querer com isso
1921).
influência decisiva no trabalho de Augusto exercitar-se em outras formas e dicções
5iiiiHugh Kenner, “Introduction”, de Campos como tradutor. É o que iremos poéticas, numa tentativa de aprimorar o
in Translations of Ezra Pound,
London/Boston, Faber & ver ao analisar suas traduções de John próprio verso. Esses aspectos, como notou
Faber, 1984 (1st published,
1953), p. 10; p. 12. Donne, o mais importante entre os poetas Hugh Kenner, convergem no ato da tradu-
metafísicos. ção, e Ezra Pound possuía uma visão muito
6iiiiEzra Pound, “Date Line”, in
Literary Essays of Ezra Pound, ampla e generosa desse ofício. Em nota de
com introdução de T. S. Eliot,
London/Boston, Faber &
1929 a um texto seu escrito em 1917-18,
Faber, 1954, p. 75. Trata-se TRADIÇÃO E TRADUÇÃO ele diz que a tradução das Metamorfoses de
da famosa noção de
paideuma. Ovídio por Arthur Golding “forma possi-
O crítico Hugh Kenner resume assim a velmente o mais belo livro em nossa lín-
7iiiiIdem, “Notes on Elizabethan
Classicists”, in op. cit., p. 238. relação de Pound com a tradução: “É por- gua” (7). Tal afirmação – não importa sua

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pertinência – demonstra com clareza a alta “A percepção do intelecto dada na palavra,
importância dada por Pound à tradução. a das emoções na cadência” (9). As tradu-
Mais ainda, revela sua consciência de que ções do provençal serviriam como exem-
a literatura não pode ser confinada às obras plo de melopéia, já a do Seafarer para que
produzidas num determinado período, possamos “ver mais ou menos onde a poe-
muito menos em uma só língua. Parece uma sia inglesa começa”, e as de G. Cavalcanti
obviedade, mas de fato é pouco comum que para dar uma idéia da profundidade psico-
traduções sejam tratadas com o devido rele- lógica que “permaneceu quase intocada
vo e muito raramente a tradição é revigora- entre o seu tempo [de Cavalcanti] e o de
da através de trabalhos de tradução criativa. James e Ibsen” (10).
Em geral, a crítica encontra dificulda- Depois, temos as traduções do chinês e
des quando lida com traduções mais livres, do poeta latino Propertius. Nesses dois
empenhadas na recriação poética. George casos, Pound desejava assumir a persona
Steiner cria a categoria da imitatio que “[...] dos poetas, apropriando-se de sua criação,
cobre uma área ampla e difusa, estenden- mas submetendo-a aos recursos poéticos
do-se desde as transposições do original existentes na língua inglesa. É possível aqui
para uma linguagem mais acessível até os empregarmos a tipologia usada por Walter
ecos mais livres, talvez apenas paródicos. Benjamin (11) para definir os dois tipos
De acordo com a visão moderna, a catego- básicos de narrador, deslocando-a do seu
ria da imitatio pode legitimamente incluir contexto com o intuito de configurar dois
as relações de Pound com Propertius e até tipos diferentes de tradução em Pound. Para
mesmo as de Joyce com Homero” (8). Essa Benjamin, há o narrador que fica em sua
categoria tem o mérito de apresentar o pro- terra e relata as mudanças nela ocorridas,
blema em toda a sua extensão, nomeando cujo representante é o camponês sedentá-
os diversos tipos possíveis de tradução cri- rio; e aquele que sai pelo mundo e ao retor-
ativa de modo abrangente e desprovido de nar conta as suas aventuras por terras dis-
hierarquizações. tantes, representado pelo marinheiro comer-
A classificação de Steiner serve para ciante. Mais tarde, continua Benjamin, com
mostrar a abrangência, como já assinala- o sistema corporativo medieval, o mestre
mos, assim como a complexidade engloba- sedentário e os aprendizes migrantes vão
das pela tradução criativa. No entanto, essa fazer a síntese dos dois tipos anteriores.
classificação demasiado ampla não nos Cada mestre tinha tido a experiência de vi-
serve aqui, já que nosso propósito é tentar ajar para aprender seu ofício, antes de se
uma abordagem mais específica, capaz de estabelecer. Nesse sistema, o conhecimento
caracterizar o trabalho de transposição de outras terras, trazido pelos aprendizes,
poética de uma língua para a outra, a partir convive com o conhecimento do passado
das traduções mais conhecidas de Ezra local adquirido pelo mestre sedentário.
Pound. É preciso reservar um lugar para as A tipologia de Benjamin nos ajuda a
traduções que lidam com aspectos técnicos dividir as traduções de Pound em dois tipos
relativos ao verso, à estrofe ou à rima, que principais. De um lado, tanto o latim de
não faziam parte da tradição poética de lín- Propertius quanto o chinês de Li Po são
8iiiiGeorge Steiner, After Babel,
gua inglesa. As traduções do provençal, em recriados como se fossem poemas que per- New York/London, Oxford
especial as do poeta Arnaut Daniel, contri- tencessem essencialmente à língua ingle- University Press, 1975, p. 253.
buíram assim para revelar padrões rítmi- sa, como se tivessem sido escritos nessa 9iiiiTranslations, op. cit., p. 23.
cos e estróficos desconhecidos nessa tradi- língua; poemas criados por alguém que
10 Ezra Pound, ABC da Literatu-
ção. A tradução do Seafarer anglo-saxão conhece o inglês profundamente. Da se- ra, 9 a edição, São Paulo,
Cultrix, 1990, pp. 53 e 58; A
trouxe, por exemplo, os recursos inerentes guinte maneira, em Homage to Sextus Arte da Poesia, São Paulo,
ao verso aliterativo; as de Guido Cavalcanti, Propertius, Pound cria de fato uma “nova Cultrix/Edusp, 1976, p. 97.

além de seu ritmo particular, uma alta pre- poesia inglesa [...]; deve-se apreciar o ele- 11 Walter Benjamin, “O Narra-
cisão da linguagem adequada à emoção. mento crítico – o que a tradução enfatiza, o dor”, in Obras Escolhidas, v. I,
São Paulo, Brasiliense, 1985,
Como diz Pound a respeito de Cavalcanti: que ela exclui, e no que ela difere do latim pp. 198-9.

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– tanto quanto o artesanato” (12). Ou seja, Guido Cavalcanti, The Seafarer) do que
a invenção prepondera sobre a tradução. como personae, Pound age como o mari-
12 R. P. Blackmur, “Masks of Ezra
Pound submete o latim ao inglês, e nheiro mercante. Pleno de suas experiên-
Pound”, em Penguin Critical
Anthologies: Ezra Pound, Propertius à sua poesia. Já os poemas de cias com outras línguas, ele quer forçá-las
Middlesex, Penguin Books,
1970, p. 154. Cathay chegaram mesmo a ser considera- para dentro do inglês, ampliando assim seus
dos a melhor justificativa para o imagismo próprios procedimentos poéticos, bem
13 George Steiner, op. cit., p. 358.
(13). Em ambos os casos, Pound atua mais como os de sua língua materna, através de
14 Fica bem entendido que o
mestre sedentário difere do
como o mestre sedentário que vai filtrar a contribuições estrangeiras. Tornando a
camponês sedentário, pois informação vinda de longe e subordiná-la poesia inglesa um pouco provençal, um
este não poderia fazer a trans-
formação necessária por falta ao seu profundo conhecimento da lingua- pouco toscana, um pouco anglo-saxã.
de conhecimento de outras gem local (14). O grau de liberdade dessas
línguas. Já o mestre sedentá-
rio fora aprendiz ambulante traduções as coloca muito próximas da cri-
antes de se fixar em sua ofici-
na e isso permite que ele te- ação propriamente dita, fazendo com que POUND COMO MESTRE
nha condições de subordinar se enquadrem numa das faixas mais extre-
o conhecimento adquirido
fora à linguagem do lugar onde mas da categoria da imitatio, estabelecida Dar importância à tradução, colocá-la
se estabeleceu e ao qual está
mais intimamente ligado.
por G. Steiner e citada anteriormente. lado a lado com a criação ou, quando me-
Porém, nas traduções vistas como mais nos, valorizá-la enquanto atividade criati-
relacionadas ao seu lado pedagógico, mais va é uma característica tipicamente
Ezra Pound encaradas como traduções (Arnaut Daniel, poundiana. Augusto de Campos opera no

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mesmo registro, valorizando as traduções, critores que ele enquadrava na categoria
quando a contribuição destas lhe parece mais alta:
realmente válida, devido a seu caráter ino-
vador na língua de chegada. É o caso da “Os inventores, descobridores de um pro-
defesa, mais levada a cabo por Haroldo de cesso particular ou de mais de um modo ou
Campos, embora endossada por Augusto, processo. Por vezes, eles são conhecidos
das traduções de Homero feitas pelo ou podem ser descobertos; sabemos, por
maranhense Odorico Mendes (1799-1864) exemplo, com razoável certeza que Arnaut
e da série de artigos de Augusto de Campos Daniel introduziu certas maneiras de rimar
sobre a tradução do Ulisses de James Joyce e sabemos que certas sutilezas de percep-
por Antônio Houaiss (15). ção apareceram em primeiro lugar num de-
É freqüente o número de referências a terminado trovador ou em G. Cavalcanti.
Pound nos textos de crítica de Augusto de Não sabemos, e provavelmente não chega-
Campos, sempre reiterando a importância remos a saber, nada de definido sobre os
que a obra poética e crítica do norte-ame- precursores de Homero” (19).
ricano tem para ele, bem como para a poe-
sia e o grupo concretista. Ao nos determos Ezra Pound, em toda sua obra, vai se
15 Haroldo de Campos, “Da
sobre alguns pontos de contato em relação à preocupar em apontar esses escritores, em Tradução como Criação e
tradução, encontramos as seguintes atitudes traduzi-los, indicá-los, tornar seus textos como Crítica”, em
Metalinguagem, 3a ed., São
partilhadas entre Pound e Augusto de Cam- acessíveis. Augusto de Campos também dá Paulo, Cultrix, 1976, p. 27;
Augusto de Campos, “De
pos: o respeito pela tradução enquanto ativi- preferência e destaque aos inventores e a Ulysses a Ulisses”, in Augusto
dade criativa e, portanto, forma privilegiada poemas que trazem alguma contribuição e Haroldo de Campos, Pa-
norama do Finnegan’s Wake,
de leitura e crítica; a noção de paideuma; o nova para a poesia, para a língua, com fre- 3a ed., São Paulo, Perspecti-
tradutor como recriador; a incorporação do qüência para ambas. É o caso, por exem- va, 1986, pp. 123-41.

texto traduzido ao repertório literário da lín- plo, das traduções dos trovadores proven- 16 Mais Provençais, 2a ed., revis-
ta e ampliada, São Paulo,
gua de chegada; a tradução como uma ma- çais, dos metafísicos ingleses com desta- Companhia das Letras, 1987,
neira de chamar atenção para o processo de que para John Donne (cujas traduções co- p. 26.

construção do poema. mentaremos mais adiante), da escolha dos 17 Verso Reverso Controverso, 2a
ed., revista, São Paulo, Pers-
As semelhanças entre os tradutores Ezra poemas de Rimbaud que ele traduziu. Nes- pectiva, 1988, p. 7.
Pound e Augusto de Campos podem ser ses exemplos, Augusto privilegia, como já
18 À medida que seu trabalho
depreendidas de afirmações do próprio vimos, a radicalidade e a inovação dos pro- foi se desenvolvendo, suas
Augusto: “Não são, como se sabe, tradu- cedimentos poéticos; em outros casos, usa escolhas foram se afastando
do paideuma poundiano e se
ções literais as que faço. Tento a o método comparativo e cria, assim, uma tornando cada vez mais pes-
soais, como atestam as tra-
‘transcriação’” (16). Dessa maneira, ela poética sincrônica, como definida por duções de poetas com tra-
já se enquadra na definição de Pound do Haroldo de Campos (20), na trilha de balhos de linhas tão diversas
como Paul Valéry, Rilke, en-
tradutor como criador. Para Augusto, tam- Jakobson. Ou seja, quando Augusto apro- tre outros.
bém, a atividade do tradutor está intima- xima Marllamé de Maranhão Sobrinho (21),
19 A Arte da Poesia, op. cit., p. 35.
mente ligada à do poeta: “Tradução para ou quando estabelece relações entre
20 A Arte no Horizonte do Prová-
mim é persona. Quase heterônimo”; e à Sousândrade e Pound (22), Donne e João vel, São Paulo, Perspectiva,
do crítico: “[...] tradução é crítica, como Cabral (23), ele está agindo de maneira 1972, p. 10.

viu Pound melhor que ninguém. Uma das análoga a Pound quando este elabora suas 21 O Anticrítico, São Paulo, Com-
panhia das Letras, 1986, pp.
melhores formas de crítica. Ou pelo me- listas de escritores indispensáveis ou quan- 153-7.
nos a única verdadeiramente criativa, do aproxima, por exemplo, Donne (“O
22 “Pound Made (New) in
quando ela — a tradução — é criativa” Êxtase”) de Guido Cavalcanti (Donna mi Brazil”, in À Margem da Mar-
(17). A lição de Pound está sempre pre- Prega) (24). gem, São Paulo, Companhia
das Letras, 1989, pp. 99-112.
sente. Não só enquanto visão da tradução Esse método comparativo, que Pound
23 Verso Reverso Controverso, op.
como atividade crítico-criativa privilegi- vincula à ciência, em especial à biologia e cit., pp. 125 e 127.
ada, mas também na escolha dos poetas e à física (25), é muito vantajoso, pois per-
24 ABC da Literatura, op. cit., p.
poemas a serem traduzidos, pelo menos mite aproximações e contatos entre siste- 60.
até certo ponto de seu trabalho (18). Pound mas literários diferentes e a possibilidade
25 A Arte da Poesia, op. cit., pp.
sempre deu importância acentuada aos es- de renovar uma tradição já cristalizada. 29-30.

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Aqui no Brasil, a atividade tradutória, crí- onze poemas de John Donne: “O Êxtase”,
tica e de revisão poética empreendida por “Em Despedida: Proibindo o Pranto”, “Ele-
Augusto e Haroldo de Campos sobressai gia: Indo para o Leito”, “A Pulga”, e mais
como uma grande contribuição nesse sen- tarde, “A Relíquia”, “Jardim de
tido. As traduções de diversos poemas e as Twicknam”, “O Triplo Louco”, “Magia
revisões de Sousândrade (1833-1902) e pela Imagem”, “A Mensagem”, “A
Pedro Kilkerry (1885-1917), a revaloriza- Expiração” e “A Aparição” (27). A justifi-
ção da obra de Oswald de Andrade (1890- cativa para a escolha desses poemas é dada
1954), o constante relevo dado à obra satí- pelo próprio Augusto de Campos nos en-
rica de Gregório de Matos (1633-96) e à saios que precedem as traduções. Vejamos
poesia trovadoresca galego-portuguesa fa- uma das primeiras como exemplo.
zem parte desse importante trabalho para a “Em Despedida: Proibindo o Pranto” é
literatura brasileira, por iluminar com no- um poema praticamente indispensável a
vas leituras autores e obras relegados a um uma apresentação de Donne. Nele, há uma
plano secundário ou quase desconhecidos. de suas imagens mais citadas: a compara-
ção dos amantes às pernas de um compas-
so. É através desse poema e de “O Êxtase”
JOHN DONNE: O SENTIDO que Augusto de Campos mostra pontos de
DE UMA ESCOLHA contato entre procedimentos poéticos e
imagens em Donne e João Cabral de Melo
A partir de algumas análises e comentá- Neto (VRC, p. 127). Não há dúvida de que
rios que faremos sobre os poemas de John Augusto estabeleceu uma comparação per-
Donne traduzidos por Augusto de Campos, tinente, podendo mesmo estendê-la, ainda
poderemos compreender tanto as escolhas que de maneira muito sucinta, a outros
implícitas na tradução de cada verso, quan- poemas que não apenas os de teor amoroso
to as características que guiam esse traba- de João Cabral. No caso, a aproximação
26 Exemplos e análises mais de-
talhadas se encontram na lho e sua alta qualidade (26). Em O entre imagens de “Em Despedida: Proibin-
minha dissertação de mestra-
do “A Tradução dos Poetas
Anticrítico, Augusto de Campos, no final do o Pranto” e “O Ovo de Galinha”. Essa
Metafísicos Ingleses por de uma análise pormenorizada da sua tra- descoberta revela a preocupação do tradu-
Augusto de Campos”, defen-
dida em abril de 1993 na Uni- dução de “A Expiração”, pergunta-se: “Va- tor em situar os poemas não só em relação
versidade de São Paulo, De- lerá a pena radiografar assim um poema, à poesia contemporânea, como também em
partamento de Teoria Literá-
ria e Literatura Comparada/ mostrar os elétrons pulsando sob o laser? relação à literatura brasileira. A aproxima-
FFLCH, sob a orientação do
prof. dr. João Alexandre Bar- Um poema não é o seu espectro e nele há ção se dá, sobretudo, através da caracterís-
bosa. sempre algo que nenhuma análise (por mais tica da racionalidade, comum à poesia
27 Os dois primeiros foram pu- capaz) consegue captar. Mas como experi- metafísica e à moderna (VRC, p. 125). Há
blicados por Mário Faustino
na sua página “Poesia-Experi-
enciar a fundo a criação sem desvendar o uma coerência notável entre a visão da tra-
ência” no “Suplemento Lite- véu de sua oculta urdidura subjacente?”. dução enquanto leitura crítica, e principal-
rário” do Jornal do Brasil em
28/10/56 e 5/5/57, respecti- Nossas análises pretendem demonstrar da mente enquanto atividade criativa, e o modo
vamente. Os quatro poemas maneira mais clara e sólida possível a qua- como Augusto de Campos apresenta os
foram reunidos mais tarde no
livro Verso Reverso Controver- lidade dessas traduções. Para tal, é neces- poemas por ele selecionados e traduzidos.
so junto com outras traduções
de poetas metafísicos: de sário uma análise minuciosa das soluções No ensaio “A Meta Física dos ‘Metafísi-
George Herbert (1593- trazidas pela tradução, assim como uma cos’” (VRC, pp. 123-30) ele faz essas com-
1633), Asas da Páscoa e O
Altar; de Thomas Carew (c. certa reiteração do teor dessas análises, com parações, bem como aborda as caracterís-
1595-1640), A Mediocridade
no Amor Rejeitada; de John
a finalidade de trazer à tona as característi- ticas mais marcantes da poesia dos metafí-
Suckling (1609-42), uma Can- cas básicas dos valores artísticos dessas sicos e dá suas razões pessoais para tradu-
ção; de Richard Crashew
(1612-49), Desejos à sua (Su- traduções. À nossa maneira, também ten- zir alguns representantes da poesia “meta-
posta) Amada; e de Andrew tamos fazer a radiografia desses valores e física” inglesa do século XVII.
Marvell (1621-78), A Defini-
ção do Amor e À Amada Esqui- “desvendar o véu de sua oculta urdidura A semelhança entre “Em Despedida:
va. Já no livro O Anticrítico
foram republicadas as quatro subjacente”, até onde, dentro de nossos li- Proibindo o Pranto” e “O Ovo de Galinha”
primeiras traduções de mites, podemos levar essa análise. se configura através de uma característica
Donne, acrescidas das outras
sete citadas no texto. Augusto de Campos traduziu, ao todo, poética identificada pelo crítico e poeta

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inglês Samuel Johnson (1709-84), ao ob- cada uma imagem de completude e abran-
servar que as tentativas dos metafísicos gência.
eram sempre analíticas. No poema “Em A escolha desse poema vem ilustrar
Despedida: Proibindo o Pranto” as três com muita propriedade os traços mais ca-
estrofes finais procedem a um desenvolvi- racterísticos dos metafísicos: “concentra-
mento desse tipo, “analítico”, do famoso ção, concisão e conceito” que, aponta o
conceito citado acima até que o leitor, no tradutor, assemelham-se a características
final, se convença de sua adequação: poéticas de João Cabral de Melo Neto
(VRC, p. 126). Na verdade, a aproxima- João Cabral
“Se são duas, o são similarmente ção que Augusto de Campos faz entre os de Melo Neto
Às duas duras pernas do compasso:
Tua alma é a perna fixa, em aparente
Inércia, mas se move a cada passo

Da outra, e se no centro quieta jaz,


Quando se distancia aquela, essa
Se inclina atentamente e vai-lhe atrás,
E se endireita quando ela regressa.

Assim serás para mim que pareço


Como a outra perna obliquamente andar.
Tua firmeza faz-me, circular,
Encontrar meu final em meu começo”

(VRC, p. 143).

Aqui vemos explicitada a comparação


das almas dos amantes às pernas de um
compasso através da descrição da maneira
como elas se movimentam. Essa compara-
ção é o clímax do poema, no qual há ainda
outras três imagens: a da separação dos
amantes de modo tranqüilo (“Como esses
santos homens que se apagam! Sussurran-
do aos espíritos: ‘Que vão...’”); a da mes-
ma separação como a inocente “trepidação
do firmamento”; e a das almas dos amantes
que não encaram a separação como “Um
rompimento, mas uma expansão,/ Como
ouro reduzido a aéreo pó”. Nenhuma delas,
entretanto, é tão desenvolvida quanto a do
compasso. Em todas, porém, é estabeleci-
da uma relação entre as almas dos amantes
e a virtude, da qual o círculo, e o círculo
justo (“Thy firmness makes my circle just”), metafísicos e a poesia moderna fundamen-
é o ápice. Essa imagem não pôde ser man- ta-se, como ele próprio afirma, na
tida integralmente na tradução, embora a “consciencialização da linguagem poéti-
solução dada, com o isolamento da palavra ca”. “O poeta, cada vez mais, utiliza a lin-
circular (verbo/adjetivo) entre vírgulas, guagem, em lugar de ser utilizado por ela”
consiga um bom resultado, ao incorporar (idem, ibidem). Quer dizer, não só os tra-
na própria palavra e na sua posição desta- ços estilísticos citados acima aproximam

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João Cabral de Donne, mas um modo de Cabral – ele é exclusivamente a análise dos
trabalhar a linguagem poética, uma per- sentidos gerados por uma forma, o ovo –, o
cepção da realidade, dos sentimentos, das procedimento analítico de “desenrolar” o
emoções, que, para se transformarem em novelo aproxima muito esses dois poetas,
poesia, passam necessariamente pela aná- sem, é claro, transformar Donne num con-
lise, pelo intelecto, pela racionalidade. temporâneo ou João Cabral num metafísi-
Esse procedimento mais analítico, mais co. Ressaltamos apenas aquelas afinidades
“intelectualizado”, por outro lado, parece que, como Augusto de Campos apontou,
sempre gerar críticas semelhantes. dão a esse poeta inglês do século XVII um
Augusto de Campos cita algumas críticas traço vivo, de proximidade com o contem-
a poemas de João Cabral quase nos mes- porâneo.
mos termos das dirigidas, mais de duzen-
tos anos antes, por Dryden e Johnson aos
metafísicos (VRC, p. 125). LENDO AS TRADUÇÕES COMO
Em “O Ovo de Galinha” (28), o que POEMAS
sustenta a construção do poema é o cho-
que entre uma forma bem acabada e a coisa A análise de três poemas de John Donne
viva que ela encerra. Isso é o que leva traduzidos por Augusto de Campos irá nos
Augusto de Campos a comparar os dois ajudar a mostrar suas qualidades como tra-
últimos versos de “Em Despedida” a estes dutor/recriador. Começaremos com o já
de João Cabral: “a pura forma concluída/ citado poema “A Valediction: Forbidding
não se situa no final:/ está no ponto de Mourning”, pois, além de ser um dos poe-
partida” (VRC, p. 127). Nas estrofes se- mas mais conhecidos de Donne, foi tradu-
guintes podemos ver como o procedimen- zido não só por Augusto de Campos (VRC,
to poético usado por João Cabral se apro- pp. 141-3), mas também por Paulo Vizioli
xima bastante do de Donne, tanto pela (29) e Aíla de Oliveira Gomes (30). Uma
relação inesperada que se estabelece na comparação, neste caso, não deixa de ser
comparação, quanto pelo seu modo de produtiva e útil, já que a intenção aqui é
explicitá-la: valorizar a tradução de poesia enquanto
atividade criativa, para revelar, na medida
“A presença de qualquer ovo, do possível, o que faz com que as traduções
mesmo se a mão não lhe faz nada, “funcionem” ou não como poemas na lín-
possui o dom de provocar gua de chegada.
certa reserva em qualquer sala. O título desse poema foi traduzido de
O que é difícil de entender três maneiras diferentes: “Despedida para
se se pensa na forma clara Evitar o Pranto” (P. V.), “Em Despedida:
que tem um ovo, e na franqueza Proibindo o Pranto” (A. C.) e “Uma Despe-
28 João Cabral de Melo Neto, de sua parede caiada. dida: Proibido Chorar” (A. O. G.). O título
Poesias Completas, 3a ed., Rio
de Janeiro, José Olympio, de Paulo Vizioli elimina os dois-pontos,
1979, pp. 64-6. A reserva que um ovo inspira adquirindo um tom ao mesmo tempo mais
29 Poetas da Inglaterra, trad. e é de espécie bastante rara: cursivo e mais prosaico. Ao eliminar a
notas de Péricles Eugênio da
Silva Ramos em colaboração
é a que se sente ante um revólver pausa, também perde-se o caráter impe-
com Paulo Vizioli, col. Texto e não se sente ante uma bala. rativo do título, que fica ainda mais ate-
e Documento, Sec. da Cultu-
ra, Esportes e Turismo, São nuado pela escolha do verbo “evitar” ao
Bernardo do Campo, Bandei- É a que se sente ante essas coisas invés de “proibir”.
rante S. A. Indústria Gráfica,
1970, p. 75. que conservando outras guardadas Essa característica imperativa que apa-
30iiPoesia Metafísica: uma Anto-
ameaçam mais com disparar rece no título é, sem dúvida, reforçada por
logia, São Paulo, Companhia do que com a coisa que disparam”. Aíla de Oliveira Gomes que, no entanto,
das Letras, 1991, p. 49.
parece carregá-lo ainda mais ao traduzir o
31ii Joan Bennet, op. cit.; ver, tam- Apesar do caráter mais abstrato e tam- verbo “mourn” por “chorar”. É uma alter-
bém, Grierson, op. cit., pp. 9-
10 e 40. bém mais extremado do poema de João nativa plausível, dicionarizada, porém eli-

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mina o caráter mais nobre do verbo (pran- puridade”, onde se perde completamente
tear, lamentar); e é essa nobreza que está a imagem de um amor entre iniciados,
presente em todo o poema. Afinal, esta vetado aos leigos. As soluções dos outros
“Valediction” pertence a uma série de po- tradutores: “Seria profanação de nossos
emas que “celebram aquele amor mais raro júbilos/ Aos leigos anunciar o nosso amor”
no qual os sentidos são apenas instrumen- (P. V.); “Fora profanação nossa ao ouvi-
tos e a união é um ‘casamento de mentes do/ Dos leigos descerrar todo este encan-
verdadeiras’” (31), em contraste com o tom to” (A. C.). Os versos de Paulo Vizioli
entre libertino e desabusado de poemas, seguem de forma literal a sintaxe e a se-
cujo tema é o amor através da sua concre- mântica do verso original (“T’were
tização sensorial (por exemplo: “A Pul- profanation of our joys/ To tell the laity our
ga” e “A Aparição”). O título dado por love”). Essa, inclusive, parece ser a grande
Augusto de Campos, por outro lado, con- diferença entre as traduções de Paulo Vizioli
segue manter a mescla de autoridade e e as de Augusto de Campos. Este é sempre
ternura, ao trocar o artigo indefinido – que mais inventivo e livre que aquele. Entre-
em inglês se justifica porque Donne es- tanto, a capacidade de encontrar soluções
creveu várias valedictions – que parece poéticas à altura do original e ao mesmo
diminuir o valor da despedida (uma des- tempo manter-se fiel ao teor dessas pró-
pedida, uma entre muitas, uma qualquer?) prias soluções é que dá às traduções de
pela preposição “em”, e minorar a força Augusto de Campos uma alta qualidade
autoritária dos dois-pontos seguidos pelo literária. O apego literal de Paulo Vizioli
verbo “proibir” ao pô-lo, como faz Donne, ao verso de Donne logo encontra um limi-
no gerúndio. De resto, a escolha do subs- te: toda vez que se trata de encontrar uma
tantivo “pranto”, ao invés de um verbo solução para uma imagem mais arrojada,
como faz Aíla, parece-nos muito mais ele não consegue reproduzi-la em sua tra-
aceitável no contexto, no tom do poema e dução, optando por soluções convencionais.
no cotejo com o original. Além disso, a Desse modo, perde o que parecia ser seu
suavidade que o título dado por Augusto principal objetivo: manter-se fiel ao origi-
de Campos possui pode ser percebida atra- nal; o poema fica preso pela metade, por
vés das assonâncias e das aliterações em assim dizer, à sua fonte, e não conquista
“m” e “n” e “pr” que ele conseguiu: Em sua “autonomia” na língua portuguesa.
Despedida: Proibindo o Pranto. Este efei- Revela-se por fim uma glosa métrica – para
to está presente no original. Notá-lo na usarmos os termos de Pound –, que ajuda
tradução, longe de significar preciosismo, na leitura do original e só sobrevive na
denota um cuidado e uma atenção espe- dependência dele. Vamos mostrar um
cial para com os detalhes, dos quais a exemplo bem claro do que dissemos na
poesia é feita. segunda estrofe do poema que estamos
Augusto de Campos e Paulo Vizioli examinando:
usaram decassílabos tanto no título quan-
to na tradução do poema, enquanto Aíla “So let us melt, and make no noise,
de Oliveira Gomes optou pelo dodecassí- No tear-floods, nor sigh-tempests move
labo. Sua escolha por um metro mais lon- T’were profanation of our joys
go leva a acréscimos muitas vezes redun- To tell the laity our love”.
dantes ou meramente explicativos, em
detrimento de um dos elementos mais ca- “Assim nos confundamos, sem ruídos,
racterísticos dos metafísicos: a concisão. Cheias de pranto, ou ventos de clamor;
Isso pode ser constatado através da esco- Seria profanação de nossos júbilos
lha de certas palavras, da introdução de Aos leigos anunciar o nosso amor” (P. V.).
adjetivos, das inversões de frase: “Que
nossa emoção se profana em alheio ouvi- “Nos dissolvamos sem fazer ruído,
do – / Falar de nosso amor, só muito à Sem tempestades de ais, sem rios

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[de pranto, sons d-t-p-b-q-p de “À da outra perna, a
Fora profanação nossa ao ouvido oblíqua, se compara” provoca um efeito de
Dos leigos descerrar todo este staccato, num verso que se mantém decas-
[encanto” (A. C.). silábico por meio de uma elisão (“da ou-
tra”), uma crase a mais uma elisão (“perna,
Na estrofe acima, fidelidade e invenção a oblíqua”). Esses recursos, no entanto, não
aparecem juntas na tradução de Augusto disfarçam a deselegância do aposto expli-
de Campos, quando ele recria o humor cativo, “a oblíqua”, antes põem em relevo
implícito na hipérbole forjada por Donne uma certa ginástica versificatória sem re-
ao montar os compostos “tear-floods” (li- sultados agradáveis. O verso de Augusto
teralmente “inundações de lágrimas”) e de Campos, embora também possua uma
“sigh-tempests” (“tempestades de suspi- seqüência mais dura que a dos versos ori-
ros”). Nesse caso, então, a fidelidade – sig- ginais (os sons t-p-b-q do segundo verso
nificando aqui a atenção dispensada aos citado), consegue um tom muito mais cur-
procedimentos poéticos do original – une- sivo ao manter o advérbio “obliquamente”
se à invenção presente em: “Sem tempesta- e introduzir o infinitivo “andar”. Já no ver-
des de ais, sem rios de pranto”. Por sua vez, so final, os dois tradutores conseguiram
Paulo Vizioli, que em todo poema procura perfeitos decassílabos heróicos (com acen-
uma equivalência verso a verso, distancia- tuação na sexta e na décima sílabas), só que
se aqui ao adotar uma solução tradicional, Paulo Vizioli utilizou-se de um recurso de
ignorando o humor da imagem, que não versificação chamado sinérese – a trans-
mais pode ser encontrado em: “Cheias de formação de um hiato em ditongo: “i-ni-ci-
pranto, ou ventos de clamor”. a-ra” torna-se “i-ni-cia-ra”. É um recurso
Outra observação quanto à recriação do válido, porém seu emprego neste verso fi-
poema será melhor demonstrada se nal vai privá-lo da fluência que tem o ori-
enfocarmos a última estrofe; ponto mais ginal, bem como da idéia de perfeição re-
alto do poema, deslinde do famoso concei- velada através da completude do círculo.
to que aproxima, numa comparação inusi- Pode-se argumentar que tal idéia já fora
tada, as almas dos amantes às pernas de um transmitida através do verso anterior, mas
compasso: não é o que entendemos. O verso anterior
(“Tua firmeza justo faz meu círculo”), pelo
“Such wilt thou be to me, who must contrário, soa duro e pesado, não só por
Like th’other foot, obliquely run; causa da anteposição do adjetivo, como por
Thy firmness makes my circle just, sua própria escolha; “justo” e “círculo”
And makes me end, where I begun”. prejudicam a leveza do andamento do po-
ema pelas assonâncias em “u” que confi-
“Tal será para mim, cuja viagem guram, relegando a equivalência da tradu-
À da outra perna, a oblíqua, se compara; ção a um plano apenas semântico. Nesse
Tua firmeza justo faz meu círculo, sentido, a aparente perda da imagem do
E faz-me terminar onde iniciara” (P. V.). “círculo justo” nos versos de Augusto de
Campos revela, no resultado final da estro-
“Assim serás para mim que pareço fe como um todo, uma grande eficácia,
Como a outra perna obliquamente andar conseguida através de uma rede de
Tua firmeza faz-me, circular, aliterações e assonâncias que, de fato, re-
32 “Un Poema de John Donne”, Encontrar meu final em meu começo” metem o final ao começo.
in Traducción: Literatura y
Literaridad, 2a ed., Barcelona, (A. C.).
Tusquets Editores, 1981, pp.
30-1. Esta tradução foi feita
em 1958 e revista em 1965; O segundo verso dessa estrofe, na tra- ELEGIA: INDO PARA O LEITO
a de Augusto de Campos é
do final da década de 60 e foi dução de Paulo Vizioli, perde o efeito de
publicada pela primeira vez De “Elegy: Going to Bed” podemos
no livro Traduzir e Trovar (Edi-
deslizamento dado pelos “l’s”, “r” e “n”
ções Papyrus, 1968). em “obliquely run”, pois a seqüência de comparar a tradução de Augusto de Cam-

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pos com uma para o espanhol de Octavio as conexões mais explicativas. Voltaremos
Paz (32), autor de uma obra poética e a essa questão da afinidade com a poesia
ensaística de grande importância. São duas contemporânea mais adiante. Por enquan-
traduções bem diferentes, ambas com gran- to, vale dizer que essa habilidade na com-
des méritos. A de Augusto de Campos se posição dos versos, com ênfase nos aspec-
atém mais ao desenho formal do original, tos formais e, sobretudo, musicais do poe-
utilizando decassílabos com rimas empa- ma, é uma das características mais peculi-
relhadas. Octavio Paz, por sua vez, prefere ares do tradutor Augusto de Campos.
empregar versos livres. Augusto de Cam- De uma maneira geral, a tradução de
pos mantém o mesmo número de versos do Octavio Paz toma muito mais liberdades
original, enquanto Paz acrescenta um. Os com o original como veremos com o trecho
dois empregam nas traduções uma espécie seguinte:
de sistema de compensações, uma vez que
em traduções do inglês para línguas como “Off with that happy busk, whom I envy,
o português e o espanhol há, quase sempre, That still can be, and still can stand so nigh.
a necessidade de uma maior condensação Your gowns going off, such beauteous state
semântica. Tal sistema de compensações [reveals,
proporciona aos tradutores suficiente liber- As when from flowery meads th’hills
dade criativa para com o original, a ponto [shadow steals.
de permitir a eliminação de adjetivos, a con- Off with your wiry coronet and show
densação de imagens, o realce do tecido The hairy diadem which on you doth grow:
sonoro do poema ou do seu tom, transfor- Off with those shoes, and then safely tread
mando assim possíveis perdas em ganhos. In this love’s hallowed temple, this soft bed”.
Vejamos como funciona.
Em Augusto de Campos, o sistema de “Ese feliz corpio que yo envidio,
compensações pode ser percebido nesta tra- Pegado a ti como si fuese vivo:
dução, através das soluções notáveis en- Fuera! Fuera el vestido, surjan valles
contradas pelo tradutor para manter o es- [salvajes
quema métrico adotado; o uso de aliterações Entre las sombras de tus montes, fuera el
e assonâncias, da medida regular e das ri- [tocado,
mas. Uma das soluções mais encantadoras Caiga tu pelo, tu diadema,
nesse sentido é a dos versos “Your gowns Descálzate y camina sin miedo hasta
going off, such beauteous state reveals,/ As [la cama”.
when from flowery meads th’hills shadow
steals”, que em português ficaram assim: “Tira o espartilho, quero descoberto
“O corpo que de tuas saias sai/ É um campo O que ele guarda, quieto, tão de perto.
em flor quando a sombra se esvai”. Há uma O corpo que de tuas saias sai
combinação dos aspectos sonoros citados É um campo em flor quando a sombra
acima que mantém a musicalidade dos ver- [se esvai.
sos, cuja mestria está na concisão Arranca essa grinalda armada e deixa
conseguida pelo tradutor. O que foi elimi- Que cresça o diadema da madeixa.
nado, a parte mais “explicativa” que intro- Tira os sapatos e entra sem receio
duz a metáfora (“such beauteous state Nesse templo de amor que é o nosso leito”.
reveals”), deixa entrever uma sensibilida-
de poética afinada com seu tempo. Ao fa- Octavio Paz, como se vê acima, opera
zer do desdobramento mais elucidativo da uma concisão maior através da eliminação
metáfora uma transição mais abrupta, de imagens, por exemplo, as imagens con-
Augusto de Campos opta por uma solução tidas em “this love’s hallowed temple, this
intimamente ligada à poesia contemporâ- soft bed” desaparecem já que todo esse tre-
nea, que se caracteriza, em grande parte, cho se reduz simplesmente a “la cama”.
pela elipse e pela justaposição, eliminando Nos versos 2, 3 e 4 citados, verificamos o

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mesmo processo de redução de imagens. [contigo
Aqui, o poeta mexicano recorre mais uma A un cielo mahometano me conduces.
vez ao sistema de compensações. É no re- Verdad que los espectros van de blanco
forço do tom imperativo do poema que Pero por ti distingo al buen del mal espíritu:
Octavio Paz, apesar da condensação a que Uno hiela la sangre, tú la enciendes”.
submete as imagens, consegue manter a
força do original. Isso se dá através da re- “Os anjos mostram-se num branco véu
petição da palavra “Fuera!”, transposta Aos homens. Tu, meu Anjo, és como o Céu
como exclamativa, criando assim uma ên- De Maomé. E se no branco têm contigo
fase cuja intenção é compensar a perda das Semelhança os espíritos, distingo;
imagens. O quinto e o sexto versos do ori- O que o meu Anjo branco põe não é
ginal são transformados por Paz num só, O cabelo mas sim a carne em pé”.
numa belíssima solução que condensa dois
versos longos (“Off with your wiry coronet Octavio Paz, no ensaio que precede o
and show/ The hairy diadem which on you poema, alertara para o fato de que não fize-
doth grow”) num curto (“Caiga tu pelo, tu ra uma tradução literal. Sobre o último verso
diadema”), sem que, dessa vez, haja perda do trecho acima citado, por exemplo, ele
da imagem. Pode-se notar a semelhança diz: “Conservar a expressão inglesa teria
entre os procedimentos de condensação parecido uma enormidade de gosto duvi-
usados por Paz e aqueles que já apontamos doso” (op. cit., p. 29). Essa sua observação,
nas traduções de Augusto de Campos. Re- contudo, soa como uma censura ao próprio
cuperando os termos da tipologia de Walter Donne e, no entanto, no mesmo ensaio Paz
Benjamin, que adaptamos para falar das valoriza exatamente a capacidade que ti-
traduções de Pound mais acima, Octavio nha Donne de “expressar-se de uma forma
Paz age como o mestre sedentário nesse ao mesmo tempo elíptica e direta”. Octavio
trecho da tradução, submetendo o poema Paz, parece-nos, não conseguiu manter a
do século XVII a procedimentos poéticos referência direta contida no verso “They
marcadamente contemporâneos, como a set our hairs, but these the flesh upright” e
eliminação de conectivos, adjetivos, uso da recorreu a uma antítese desgastada: “Uno
elipse, etc. Ou seja, moldando a “língua” hiela la sangre, tú la enciendes”.
de Donne pela de sua época, exatamente A possibilidade de recriar aqui o origi-
como faz Augusto de Campos, ainda que nal sem rebaixar o tom do poema está na
este se imponha limites precisos, a come- tradução de Augusto de Campos. Augusto
çar pela manutenção do metro e das rimas. não se detém tanto na distinção entre espí-
Um outro trecho do mesmo poema que ritos bons e maus; ele faz essa marcação ao
se impõe a nosso comentário é o seguinte: diferenciar os anjos (que seriam bons, pois
ele se dirige à amante com “Anjo branco”)
“In such white robes, heaven’s Angels dos espíritos (também brancos, porém as-
[used to be sustadores). Ele se concentra mesmo no
Received by men; Thou Angel bringst final do conceito, que é seu clímax, obten-
[with thee do com elegância o realismo e o humor di-
A heaven like Mahomet’s Paradise; retos do original (“O que o meu Anjo bran-
[and though co põe não é/ O cabelo mas sim a carne em
Ill spirits walk in white, we easily know, pé”). Esse tipo de solução é outra das ca-
By this these Angels form an evil sprite, racterísticas do tradutor Augusto de Cam-
They set our hairs, but these the pos. Ela se baseia na capacidade de leitura
[flesh upright”. crítica e na decisão de buscar, na tradu-
ção, o equivalente mais próximo em por-
“También de blancas ropas revestidos tuguês dos procedimentos – sonoros, me-
[los ángeles tafóricos, sintáticos, conceituais, etc. –
El cielo al hombre muestran, mas tú, blanca, que, segundo a ótica desse leitor privilegi-

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ado, merecem ser ouvidos/lidos em nossa so, “O Êxtase” traz uma sintaxe extrema-
língua. Nesse caso, o mais importante é a mente elaborada e até mesmo tortuosa, tor-
manutenção dessa metáfora em particu- nando, assim, o desenvolvimento dos ar-
lar, que tem a vantagem de mostrar ao leitor gumentos ainda mais explícito e vivo. São
a força da precisão da poesia metafísica essas características de linguagem poética
do século XVII, especialmente a de John – a sintaxe, a visualidade, a dramaticidade
Donne. – que nos parecem sustentar, de modo de-
Octavio Paz trabalhou esses versos em cisivo, o vôo argumentativo do poema. Ezra
direção oposta à de Augusto de Campos: Pound, num elogio ao poema, diz: “Donne
para modificar o verso final sem maiores escreveu o único poema inglês (‘O Êxta-
perdas, aproximou-se bastante do original se’) que se pode medir com Donna mi Pre-
nos versos que o precedem. Sua tradução ga de Cavalcanti” (34). A complexidade e
do poema de Donne, nesse trecho, saiu a singularidade de “O Êxtase” não poderi-
perdendo em realismo e engenho, pois a am deixar de atrair um tradutor como
imagem escolhida é muito mais conserva- Augusto de Campos, que o comparou a
dora e tradicional. São, no entanto, duas poemas de João Cabral de Melo Neto (VRC,
boas traduções, que deixam bem à mostra p. 127), mostrando, como já vimos, a se-
o sistema de compensações utilizado pelos melhança entre alguns procedimentos po-
tradutores, assim como os níveis de leitura éticos.
crítica e habilidade poética envolvidos nas As principais estrofes de “O Êxtase”
recriações, que tentamos aqui analisar se- estabelecem o cenário do poema:
gundo sua maior ou menor eficácia dentro
da tradução como um todo. “Where, like a pillow on a bed,
A pregnant bank swel’d up, to rest
The violets reclining head,
O ÊXTASE Sat we two, one anothers best”.

Do poema “O Êxtase” não possuímos “Onde, qual almofada sobre o leito,


nenhuma outra tradução para servir de con- Grávida areia inchou para apoiar
traponto e realizarmos comentários com- A inclinada cabeça da violeta,
parativos como fizemos até o momento. Nós nos sentamos, olhar contra olhar”.
Por outro lado, trata-se de um poema reco-
nhecidamente complexo, com uma fortuna Nessa primeira estrofe, o tradutor man-
crítica bastante controversa devido à sua teve as imagens com a atenção voltada para
tentativa de unir platonismo e sensualida- a escolha semântica do original, que se des-
de. Dois dos mais importantes estudiosos taca pelo inusitado da antropomorfização
da poesia de John Donne, Herbert Grierson da violeta e do banco de areia. Com essas
e Helen Gardner, fazem apreciações quase imagens Donne põe os amantes em contato
opostas do poema. No entanto, há uma muito próximo com a natureza; não uma
unanimidade em se considerar “O Êxtase” natureza confinada à mera contemplação,
como o mais característico dos poemas de mas uma natureza dotada de um lado “car-
John Donne, e que jamais poderia ser atri- nal” (“Grávida areia”), por assim dizer. Essa
buído a nenhum outro dos “metafísicos” aproximação terá importância acentuada ao
ingleses (33). Tais fatos nos instigam a longo do poema, que tematiza a tensão entre
comentar a tradução desse poema, compa- o amor espiritual e o físico. Portanto, é a 33 Grierson, op. cit., p. xlvi; Helen
Gardner, “The Argument
rando-a tão somente ao original. manutenção não só dessas imagens, como About ‘The Ecstasy’” (1969),
in Julian Lovelock (ed.),
Há, no poema, uma característica dra- também desse vocabulário bastante preci- Donne: Songs and Sonets,
mática bastante acentuada, bem como ima- so e concreto, que nos parece crucial na London & Basingstoke, The
MacMillan Press Ltd., 1973,
gens visuais muito marcantes, presentes primeira estrofe. No seu último verso (“Sat pp. 218-48.
tanto no estabelecimento do cenário, quan- we two, one anothers best”), Augusto de
34 ABC da Literatura, op. cit., p.
to no processo de argumentação. Além dis- Campos introduz uma modificação (“Nós 60.

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nos sentamos, olhar contra olhar”), cuja Tentamos explicitar a opção do tradu-
justificativa encontraremos na segunda es- tor pela fidelidade semântica, pois o máxi-
trofe, tornando coerente a solução grifada: mo de fidelidade semântica é imprescindí-
vel à recriação do poema. Isso não quer
“Our hands were firmly cimented dizer, por outro lado, que haja um descaso
With a fast balme, which thence quanto à sonoridade. Pelo contrário, o po-
[did spring, ema está traduzido em decassílabos e as
Our eye-beams twisted, and did thred rimas foram quase sempre mantidas. Onde
Our eyes, upon one double string”. não foi possível mantê-las integralmente,
há a compensação de uma rima toante.
“Nossas mãos duramente cimentadas Quanto às aliterações e assonâncias, os dois
No firme bálsamo que delas vem últimos versos da segunda estrofe provam
Nossas vistas trançadas e tecendo a habilidade do tradutor em manejá-las.
Os olhos em um duplo filamento”. Mais adiante, na nona estrofe, encon-
tra-se um excelente caso de invenção poé-
Ao transpor one anothers best por “olhar tica, no qual o tradutor se vale, inclusive,
contra olhar”, o tradutor remete à segunda do próprio repertório literário da língua
imagem (“Nossas vistas trançadas e tecen- portuguesa.
do/ Os olhos em um duplo filamento”) da
estrofe seguinte, dando coerência à sua “But as all several souls contain
solução. Jamais poderíamos dizer, por Mixture of things, they know not what,
exemplo, que a solução se sustenta apenas Love, these mixed souls, doth mix again,
pela rima, com “apoiar”, do segundo verso And makes both one, each this and that”.
da primeira estrofe. Já comentamos o siste-
ma de compensações utilizado por Augusto “Mas assim como as almas são misturas
de Campos; vemos aqui, novamente, como Ignoradas, o amor reamalgama
sua leitura atenta vai lhe fornecer soluções, A misturada alma de quem ama,
que se integram habilmente no poema como Compondo duas numa e uma em duas”.
um todo. Nessa segunda estrofe, o tradutor
continua a manter as imagens e, principal- Sobre essa estrofe não é o caso de fazer-
mente, o já tão comentado conceito dos seus mos comparações com o original. Como
dois primeiros versos, em que as mãos são indica o próprio Augusto de Campos em O
“duramente cimentadas/No firme bálsa- Anticrítico, é na tradição poética de Sá de
mo”. Este é o tipo de passagem que deve ser Miranda e do padre Antônio Vieira que ele
mantida fielmente pelo tradutor. Octavio aprendeu o jogo paronomásico empregado
Paz disse dos metafísicos: “Seus poemas na estrofe acima – reamalgama/alma/ama.
estão feitos de contrastes violentos e de Além disso, ele mantém a “equação
conjunções bruscas”. E mais: “entre os conceitual nas camadas fônicas e gráficas
‘metafísicos’ ingleses é freqüente o cho- do poema” (p. 74), como ele afirma que
que entre a linguagem literária e a coloqui- Donne faz em outro poema, “A Expiração”.
al, a abstrata e a concreta, o novo e o anti- Essa é mais uma boa amostra do traba-
go” (op. cit., p. 28). No caso acima, o cho- lho do tradutor como “mestre sedentário”.
que é entre elementos prosaicos (cimento) Não há só a transposição de procedimentos
e literários (bálsamo); fica clara a presença literários, há também a leitura cuidadosa
do wit, que une coisas díspares como o ci- desses procedimentos e sua transposição
mento e o bálsamo. Donne forjou uma ca- para o português, tendo em vista o repertó-
racterística comum a ambos os termos – a rio poético da língua. É, portanto, a presen-
consistência – para operar a elaboração do ça desses aspectos que faz com que a tradu-
conceito, transformando os termos utiliza- ção alcance em nossa língua um valor equi-
dos através de uma mútua contaminação valente ao original. É a isso que chamamos
de características. de ler as traduções como poemas.

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Apontaríamos ainda como estrofes ex- quantidade de belas soluções que Augusto
tremamente bem construídas na tradução de Campos obteve. Ao final, sua tradução
de “O Êxtase” a 13a, a 15a, a 16a e a 18a. de “O Êxtase” é uma recriação extrema-
Nesta última, Augusto de Campos usa na mente hábil de um poema célebre por sua
sua tradução – mais um exemplo do siste- dificuldade.
ma de compensações – a sinédoque da se-
guinte metáfora: “But yet the body is his • • •
book”/ “Porém o corpo é as páginas que
lemos”. Dessa forma, ele consegue manter Por fim, voltamos a afirmar que muito
a rima com o primeiro verso da estrofe raramente a tradição é revigorada através
(“Aos corpos, finalmente, retornemos”), de trabalhos de tradução criativa. Este pa-
empregando um outro tipo de recurso rece ser o grande objetivo do tradutor
estilístico para manter a imagem. Augusto de Campos. Suas traduções pro-
A última estrofe, no entanto, não nos curam estabelecer um diálogo criativo com
parece ter sido tão bem realizada: a tradição literária de língua portuguesa,
não apenas por meio de seus ensaios como
“And if some lover, such as we, quando o vimos aproximando Donne de
Have heard this dialogue of one, João Cabral, mas, principalmente, através
Let him still mark us, he shall see da recriação, no poema, de procedimentos
Small change, when we are to bodies literários – incluindo aqui sonoridades,
[gone”. imagens, escolha semântica, ritmo – con-
sagrados na nossa literatura (o jogo
“Se alguém – amante como nós – tiver paronomásico em “O Êxtase”, a escolha do
Esse diálogo a um ouvido a ambos, decassílabo em diversas traduções).
Que observe ainda e não verá qualquer Outra característica de Augusto de
Mudança quando aos corpos nos Campos como tradutor é a intensa leitura
[mudamos”. crítica que pode ser percebida ao nos apro-
ximarmos mais analiticamente de suas tra-
O uso de travessões no primeiro verso duções. Augusto é um leitor de grande so-
tira-lhe a cursividade, já que vêm entre fisticação, cujo conhecimento dos poetas
sujeito e verbo. A solução do segundo ver- e poemas que traduz se mostra quando,
so, no original tão simples e direto, torna- por exemplo, da manutenção rigorosa de
se rebuscada e pouco eficiente quanto à aspectos essenciais ao poema, sejam eles
sonoridade, devido às pausas forçadas pela a escolha semântica (como nas primeiras
preposição “a”. Assim, os dois últimos estrofes de “O Êxtase”) ou a força de uma
versos ficam prejudicados pela utilização imagem (no caso de “Elegia: Indo Para o
do par “Mudança/mudamos”, que não fun- Leito”). Finalmente, nunca é demais res-
ciona tão bem como as repetições saltar – e este aspecto parece ficar claro na
paronomásicas da nona estrofe, comenta- comparação de “Em Despedida: Proibin-
da anteriormente. Naquela estrofe, há uma do o Pranto” com as outras traduções bra-
naturalidade impressionante na composi- sileiras – a habilidade na realização dos
ção; esta soa até artificial, não conseguin- versos, o cuidado com o artesanato formal
do manter-se na altura criativa das outras. do poema: rimas, metro, aliterações,
Por outro lado, se lida isoladamente, en- assonâncias, ritmo. A qualidade artística
contramos nela também um nível de da maior parte das traduções de Augusto
versificação elevado, com uma rima rica e de Campos nos permite lê-las como poe-
outra toante, a manutenção do decassílabo, mas autônomos em língua portuguesa, de
a presença de assonâncias e aliterações, bem uma natureza bastante especial, já que não
como do tom argumentativo do poema e do deixam de ser traduções, mas que, por sua
seu sentido original. Mais uma vez, con- qualidade, acabam por se inserir na tradi-
vém lembrar a dificuldade desse poema e a ção da língua.

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