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KOPYTOFF, Igor.

“A biografia cultural das coisas: a mercantilização como


processo”. In: APPADURAI, ARJUN. A vida social das coisas. Niterói:
EDUFF, 2008. II

A BIOGRAFIA CULTURAL DAS COISAS: A


MERCANTILIZAÇÁO COMO PROCESSO 1, 2
IgorKopytoff
Para os economistas, as mercadorias simplesmente existem. Ou seja, certas
coisas e certos direitos a coisas são produzidos, existem e podem ser vistos
circulando por meio do sistema econômico, conforme vão sendo trocados
por outras coisas, geralmente por dinheiro. Essa visão, evidentemente,
abarca a definição de mercadoria segundo o senso comum: um item com
valor de uso e que também tem valor de troca. Provisoriamente, aceitarei
essa definição, suficiente para levantar certas questões preliminares, mas
mais à frente eu a ampliarei conforme exija a minha argumentação.
De um ponto de vista cultural, a produção de mercadorias é também um
processo cognitivo e cultural: as mercadorias devem ser não apenas
produzidas materialmente como coisas, mas também culturalmente
sinalizadas como um determinado tipo de coisas. Do total de coisas
disponíveis numa sociedade, apenas algumas são apropriadamente
sinalizáveis como mercadorias. Além do mais, a mesma coisa pode ser
tratada como uma mercadoria numa determinada ocasião, e não ser em
outra. Finalmente, a mesma coisa pode, ao mesmo tempo, ser vista por
uma pessoa como uma mercadoria, e como uma outra coisa por outra
pessoa. Essas mudanças e diferenças nas circunstâncias e nas
possibilidades de uma coisa ser uma mercadoria revelam uma economia
moral subjacente à economia objetiva das transações visíveis.

DE PESSOAS E COISAS
No pensamento ocidental contemporâneo, admitimos, como um ponto
relativamente pacífico, que as coisas - objetos materiais e os direitos de tê-
los - representem o universo natural das mercadorias. Situa-
mos as pessoas do lado oposto, representando o universo natural da tinham um valor de troca e eram passíveis de virar mercadorias, fica bem
individualização e da singularização. Essa polarização conceituai entre claro que a mercantilização não era culturalmente limitada ao mundo das
pessoas individualizadas e coisas mercantilizadas é recente e, em termos coisas.
culturais, excepcional. Pode acontecer (como já aconteceu) de pessoas O que percebemos na carreira de um escravo é um processo de retirada
serem mercantilizadas, por vezes sem conta, em muitas sociedades ao inicial de um determinado contexto social original, a mercantilização,
longo da história, por intermédio daquelas instituições bem disseminadas, seguida de uma crescente singularização (ou seja, desmercantilização) no
conhecidas pelo nome genérico de "escravidão". Portanto, talvez seja útil novo contexto, com a possibilidade de futura re-mercantilização. Como
abordar a noção de mercantilização exami-nando-a primeiro no contexto ocorre na maioria dos processos, as sucessivas fases se sobrepõem umas às
da escravidão. outras. Em termos efetivos, o escravo só é uma mercadoria - sem qualquer
A escravidão foi muitas vezes definida, no passado, como a forma de ambigüidade - durante o período relativamente curto entre a sua captura ou
tratamento dada a pessoas consideradas como propriedades ou, em a sua primeira venda e a aquisição de uma nova identidade social. O
algumas definições semelhantes, como objetos. Mais recentemente, escravo se transforma menos numa mercadoria e mais num indivíduo
abandonou-se essa visão de "ou-uma-coisa-ou-outra", e adotou-se um singular durante o processo da sua gradual incorporação à sociedade que o
ponto de vista processual, no qual a marginalidade e a ambigüidade de recebe. Essa forma biográfica de abordar a transformação em escravo
status se tornaram o centro da identidade social do escravo (ver como um processo sugere que pode ser útil examinar a mercantilização de
MEILLASSOUX, 1975; VAUGHAN, 1977; KOPYTOFF; MIERS, 1977; outras coisas da mesma maneira, ou seja, como parte da moldagem cultural
KOPYTOFF, 1982; PATTERSON, 1982). Sob essa perspectiva, a de biografias.
condição de escravo é vista não como um status fixo e unitário, mas como
um processo de transformação social que envolve uma sucessão de fases e A ABORDAGEM BIOGRÁFICA
mudanças de status, alguns dos quais se fundem com outros status (por As biografias têm sido abordadas de várias maneiras na antropologia (uma
exemplo, o de adotado) que, nós, os ocidentais, consideramos muito resenha sobre a matéria é feita por LANGNESS, 1965). Pode-se apresentar
distintos da escravidão. uma biografia de verdade, ou construir um modelo biográfico típico a
A escravidão começa com a captura ou a venda, quando a identidade social partir de dados biográficos montados aleatoriamente, tal como se faz nos
prévia do indivíduo lhe é arrancada, transformando-o numa não-pessoa, recorrentes capítulos das etnografias dedicados ao Ciclo de Vida. Um
que, na verdade, é um objeto e uma mercadoria de fato ou em potencial. O modelo biográfico dotado de maior consciência teórica é um tanto mais
processo continua, no entanto. O escravo é adquirido por uma pessoa ou complicado. Ele é baseado num número razoável de histórias verdadeiras.
um grupo e é reinserido no grupo que o recebe, dentro do qual é re- Apresenta uma variedade de possibilidades biográficas oferecidas pela
socializado e re-humanizado por meio da aquisição de uma nova sociedade em questão e examina a maneira pela qual essas possibilidades
identidade social. O escravo-mercadoria é efetivamente re-individualizado, são concretizadas nas histórias de vida de várias categorias de pessoas. Ele
ao adquirir novos status (nem sempre baixos) e uma configuração única de examina, ainda, biografias idealizadas, eleitas pela sociedade como
relacionamentos pessoais. Assim, esse processo afasta o escravo do status modelos desejáveis, e como são percebidas as variações reais do modelo.
simples de uma mercadoria intercambiável e o aproxima de um status de Como disse Margareth Mead, uma maneira de entender a cultura é ver que
um indivíduo singular que ocupa um nicho social e pessoal particular. No tipo de biografia ela considera representativa de uma carreira social bem-
entanto, o escravo continua a ser uma mercadoria em potencial: ele ou ela sucedida. E evidente que o que é considerado uma vida bem vivida numa
continua a ter um valor potencial de troca que pode ser concretizado sociedade africana tem um perfil diferente do que seria aceito como uma
mediante a revenda. Em muitas sociedades, o mesmo se aplicava aos vida bem vivida ao longo do rio Ganges, ou na Bretanha, ou entre os
"livres", sujeitos a serem vendidos sob circunstâncias definidas. Na medida esquimós.
em que nessas sociedades todas as pessoas
Parece-me que é vantajoso fazer a mesma variedade e modalidades de titui uma mensagem. Assim, hospedar uma visita numa choupana que
perguntas culturais para desvendar as biografias das coisas. No início deste deveria ser uma cozinha diz algo sobre o status do visitante; se não existe
século, num artigo intitulado "The genealogical method of anthropological numa aldeia uma choupana disponível para visitantes, a mensagem dada é
inquiry" (O método genealógico de pesquisa antropológica) (1910), W. H. sobre o chefe da aldeia - ele deve ser preguiçoso, pouco hospitaleiro ou
R. Rivers propôs o que desde então se tornou uma ferramenta padronizada pobre. Nós temos expectativas biográficas similares em relação às coisas.
do trabalho de campo etnográfico. A parte principal do artigo - a maior Para nós, a biografia de um quadro de Renoir que acabe num incinerador é,
responsável pelo fato de o texto ainda ser lembrado hoje em dia - é aquela à sua maneira, tão trágica quanto a biografia de uma pessoa que acabe
que mostra como a terminologia e as relações do parentesco podem ser assassinada. Isso é evidente. No entanto, na biografia dos objetos há outros
sobrepostas a um diagrama genealógico e seguidas por meio da estrutura- acontecimentos que transmitem significados mais sutis. O que dizer de um
social-temporal que o diagrama reflete. Mas Rivers sugeriu também uma Renoir que acabe numa coleção particular e inacessível? Ou de um outro
outra coisa: que, por exemplo, quando o antropólogo busca descobrir as Renoir esquecido no porão de um museu? Como deveríamos nos sentir so-
regras da herança numa sociedade, pode comparar o enunciado ideal das bre um terceiro Renoir que saia da França para os Estados Unidos? Ou
regras com o movimento real de um objeto particular, tal como um lote de para a Nigéria? As reações culturais a tais detalhes biográficos revelam um
terra, por meio do diagrama genealógico, notando concretamente como ele emaranhado de julgamentos estéticos, históricos e mesmo políticos, e de
passa de mão em mão. O que Rivers propôs foi ujna espécie de biografia convicções e valores que moldam as nossas atitudes quanto a objetos
das coisas com base na posse. Mas a biografia pode se concentrar em designados como "arte".
inúmeros outros assuntos e eventos. Examinar as biografias das coisas pode dar grande realce a facetas que de
Ao fazer a biografia de uma coisa, far-se-iam perguntas similares às que se outra forma seriam ignoradas. Por exemplo, em situações de contato
fazem às pessoas: Quais são, sociologicamente, as possibilidades cultural, elas podem mostrar aquilo que os antropólogos tantas vezes
biográficas inerentes a esse "status", e à época e à cultura, e como se enfatizaram: o que é significativo sobre a adoção de objetos estrangeiros -
concretizam essas possibilidades? De onde vem a coisa, e quem a e idéias estrangeiras - não é a sua adoção, mas sim a maneira pela qual eles
fabricou? Qual foi a sua carreira até aqui, e qual é a carreira que as pessoas são culturalmente redefinidos e colocados em uso. A biografia de um
consideram ideal para esse tipo de coisa? Quais são as "idades" ou as fases automóvel na África revelaria uma grande riqueza de dados culturais: a
da "vida" reconhecidas de uma coisa, e quais são os mercados culturais maneira como ele é comprado, como e de quem foi conseguido o dinheiro
para elas? Como mudam os usos da coisa conforme ela fica mais velha, e o da compra, o relacionamento entre o vendedor e o comprador, os usos
que lhe acontece quando a sua utilidade chega ao fim? rotineiros do carro, a identidade dos seus passageiros mais freqüentes e das
Entre os Suku do Zaire, por exemplo, entre os quais fiz pesquisas, a vida pessoas a quem ele é emprestado, a freqüência dos empréstimos, as
útil atribuída a uma choupana gira em torno de 10 anos. A biografia típica oficinas mecânicas escolhidas para levá-lo e o relacionamento do dono
de uma choupana começa com a moradia de um casal ou, no caso de uma com os mecânicos, a passagem do carro de uma mão a outra, ao longo dos
família polígina, de uma esposa e os seus filhos. Conforme a choupana anos, e, no fim, quando o carro está em frangalhos, o destino final dos seus
envelhece, ela passa sucessivamente a ser uma casa de hóspedes ou de uma remanescentes. Todos esses detalhes comporiam uma biografia intei-
viúva, um ponto de encontro de adolescentes, uma cozinha e, finalmente, ramente diferente da de um carro pertencente a um membro da classe
um abrigo de cabritos ou galinhas - até a vitória final dos cupins e o média dos Estados Unidos, ou a um indígena Navajo, ou a um camponês
colapso da estrutura. O estado físico da choupana em cada fase da França.
corresponde ao uso particular que se faz dela. Se uma choupana está sendo Cada biografia é feita a partir de alguma concepção prévia sobre o que
usada de uma forma que não corresponde à sua idade, os Suku manifestam deve ser focalizado. Aceitamos que cada pessoa tenha muitas biografias -
mal-estar, e isso cons- psicológica, profissional, política, familiar, econômica e
assim por diante - cada uma selecionando alguns aspectos da história de Portanto, o que faz de uma coisa uma mercadoria? Uma mercadoria é algo
vida e descartando outros. As biografias das coisas não podem ser assim que tem valor de uso e que pode ser trocado por uma contrapartida numa
tão parciais. É claro que uma biografia estritamente física de um automóvel transação descontínua, sendo que o próprio fato da troca indica que a
é muito diferente de sua biografia técnica, conhecida no ramo como o seu contrapartida tem um valor equivalente, dentro do contexto imediato. A
histórico de consertos. O carro pode também fornecer uma biografia contrapartida, de acordo com a mesma lógica, é também uma mercadoria
econômica - o seu preço de fábrica, os seus preços de venda e revenda, sua na hora em que foi trocada. A troca pode ser direta ou pode ser feita de
reação à recessão, seus padrões de custos de manutenção ao longo dos forma indireta mediante dinheiro, que tem como uma de suas funções ser
anos. O automóvel oferece também várias possibilidades de biografia um meio de troca. Assim, tudo que possa ser trocado por dinheiro é, nesse
social: uma biografia pode se concentrar no lugar que ele ocupa na momento, uma mercadoria, seja qual for o destino que lhe seja reservado
economia da família proprietária, outra pode relacionar a história dos seus depois de feita a transação (pode ocorrer que ela seja desmercantilizada).
donos à estrutura de classes da sociedade, e uma terceira pode focalizar o Assim, no Ocidente, tal como numa taquigrafia cultural, em geral
seu papel na sociologia das relações de parentesco da família, tal como o consideramos a capacidade de uma coisa ser vendida como o indicador
seu papel de enfraquecer os relacionamentos familiares nos Estados indiscutível do seu status de mercadoria, enquanto a incapacidade de uma
Unidos e de fortalecê-los na África. outra coisa ser vendida lhe empresta uma aura especial de isolamento
No entanto, todas essas biografias - econômicas, técnicas, sociais -podem daquilo que é mundano e comum. Na verdade, é claro que a capacidade de
ou não ser culturalmente informadas. O que faz uma biografia ser cultural ser vendido por dinheiro não é um aspecto necessário de um de
não é o assunto tratado, mas como e de que perspectiva ela aborda o mercadoria, pois que há trocas de mercadorias em economias não-
assunto. Uma biografia econômica culturalmente informada de um objeto o monetárias.
encarará como uma entidade culturalmente construída, dotada de Para indicar a transação que envolve mercadorias, uso o termo
significados culturalmente específicos e classificada e reclassificada em "descontínua" no intuito de enfatizar que a finalidade principal e imediata
categorias culturalmente constituídas. É desse ponto de vista que eu da transação é a de obter o valor de contrapartida (para o economista, essa
gostaria de propor um esquema para estudar as mercadorias - ou, em é também a sua função econômica). A finalidade de uma transação dessas
termos processuais, estudar a mercantilização. Antes de mais nada, porém, não é, por exemplo, abrir as portas para uma outra modalidade de
o que é uma mercadoria? transação, tal como ocorre no caso dos presentes ofertados para iniciar
negociações em torno de um casamento ou para garantir a patronagem;
O SINGULAR E O COMUM cada uma dessas trocas é uma transação parcial que deve ser examinada no
Suponho que as mercadorias são um fenômeno cultural universal. A sua contexto da transação inteira. Embora as trocas de coisas geralmente
existência é concomitante à existência de transações que envolvem a troca envolvam mercadorias, as trocas que marcam relações de reciprocidade, tal
de coisas (objetos e serviços), sendo o intercâmbio um aspecto universal da como classicamente definidas pela antropologia, são uma exceção notável.
vida social humana que, de acordo com alguns teóricos, é um dos seus Nesses casos, dá-se um presente para evocar uma obrigação de retribuir
fenômenos centrais (ver, por exemplo, HOMANS, 1961; EKEH, 1974; outro presente, o que por sua vez evocará uma obrigação similar, formando
KAPFERER, 1976). As sociedades diferem na maneira como estruturam a uma cadeia infindável de presentes e obrigações. Os próprios presentes
mercantilização como forma especial de troca e na relação desse processo dados nessas trocas podem ser coisas normalmente usadas como
com o sistema social, nos fatores que a estimulam ou a controlam, nas mercadorias (comida, festas, bens de luxo, serviços), mas cada uma dessas
tendências de longo prazo da sua expansão ou estabilização, e nas transações não é descontínua e, em princípio, nenhuma delas é terminal.
premissas culturais e ideológicas que permeiam o seu funcionamento. O fato de uma coisa ser vendável por dinheiro ou intercambiável por uma
grande quantidade de coisas significa ter algo em comum com
uma grande quantidade de coisas passíveis de troca que, tomadas em procedimento de classificar as coisas em categorias que sejam
conjunto, compartilham de um único universo de valores comparáveis. simultaneamente nem muito numerosas, nem muito abrangentes. Em
Para empregar um termo bem forte, mesmo que arcaico, ser vendável ou poucas palavras, o que geralmente chamamos de "estrutura" fica entre a
amplamente intercambiável é ser "comum" - o oposto de incomum, heterogeneidade de um excesso de repartições e a homogeneidade de um
incomparável, único, singular e, portanto, não trocável por qualquer outra excesso de agregações.
coisa. A mercadoria perfeita seria aquela que fosse trocável por tudo o Na esfera dos valores de troca, isso significa que o mundo natural de coisas
mais e por qualquer coisa, tal como um mundo perfeitamente singulares deve ser organizado em diversas classes de valor manipuláveis -
mercantilizado seria aquele em que tudo é trocável ou tudo está à venda. ou seja, coisas diferentes têm que ser selecionadas e cognitivamente
Em oposição, o mundo perfeitamente desmercantilizado seria aquele em assemelhadas entre si quando colocadas dentro de cada categoria, e
que tudo seria singular, único e não trocável. distinguidas entre si quando colocadas em categorias distintas. Esta é a
As duas situações são tipos ideais polarizados, e nenhum sistema base de um fenômeno econômico bem conhecido - o da existência de
econômico de verdade se enquadra em qualquer das duas. Não existe um várias esferas de valores de troca, que funcionam de modo mais ou menos
sistema em que tudo seja tão singular a ponto de apagar quaisquer vestígios independente umas das outras. Todas as sociedades registram esse
de intercâmbio. Da mesma forma, não existe um sistema - a não ser numa fenômeno, embora os ocidentais tendam a percebê-lo mais facilmente em
imagem marxista extravagante de um capitalismo completamente economias não comercializadas e não monetarizadas. A natureza e a
mercantilizado - em que todas as coisas sejam mercadorias e estrutura dessas esferas de troca variam de uma sociedade a outra porque,
intercambiáveis por qualquer outra coisa dentro de uma esfera unitária de como nos alertaram Durkheim e Mauss (1963; publicação original 1903),
trocas. Tais construções do mundo - no primeiro caso, como totalmente os sistemas culturais de classificação refletem a estrutura e os recursos
heterogêneo em termos de valoração, e no segundo, totalmente homogêneo culturais das sociedades em questão. Além disso, como sabemos a partir de
- seriam humana e culturalmente impossíveis. Ainda assim, eles formam Dumont (1972), existe uma tendência a se impor uma hierarquia às
dois extremos entre os quais todas as economias reais ocupam o seu lugar categorias.
especial.
Podemos aceitar, juntamente com filósofos, lingüistas e psicólogos, que a ESFERAS DE TROCA
mente humana tem uma tendência inerente de impor uma ordem ao caos do Esta discussão ficará mais clara com a apresentação de um exemplo
seu ambiente por meio da classificação dos seus conteúdos, e que sem essa concreto de uma economia que contém esferas distintas de troca. Numa
classificação não seriam possíveis o conhecimento do mundo e a adaptação análise clássica de uma "economia multicentralizada", Bohannan (1959)
a ele. A cultura é útil para a mente por impor uma ordem cognitiva descreve três esferas de troca desse tipo, conforme funcionavam antes do
coletivamente compartilhada ao mundo que, em termos objetivos, é período colonial entre os Tiv da Nigéria central: (a) a esfera dos itens de
inteiramente heterogêneo e contém uma gama interminável de coisas subsistência - inhames, cereais, temperos, galinhas, cabritos, utensílios,
singulares. A cultura alcança a ordem ao separar, mediante a discriminação ferramentas e assim por diante; (b) a esfera dos itens de prestígio -
e a classificação, distintas esferas de homogeneidade dentro da principalmente gado, escravos, postos de autoridade ritual, tecidos
heterogeneidade geral. No entanto, se esse processo de homogeneização é especiais, remédios e varas de latão: e (c) a esfera dos direitos-na-forma-
levado a limites extremos e o mundo percebido começa a se parecer de-pessoas, que incluía os direitos expressos em esposas, dependentes e
demais com o outro pólo - no caso dos bens, trata-se do pólo da filhos.
mercantilização completa -, a função cultural de discriminação cognitiva As três esferas representavam três universos distintos de valores de troca,
fica prejudicada. Tanto os indivíduos quanto as coletividades culturais três esferas de mercadorias. Os itens de cada esfera eram trocáveis entre si,
devem navegar em alguma faixa entre os extremos polares, por meio do e cada esfera era governada por sua própria espécie
de moralidade. Além disso, havia uma hierarquia moral entre as esferas: a O IMPULSO PARA A MERCANTILIZAÇÃO
esfera da subsistência, com uma moralidade ilimitada de mercado, era a Desse ponto de vista, uma economia multicêntrica como a dos Tiv não é
mais baixa na hierarquia, e a esfera dos direitos-na-forma-de-pessoas, uma versão exóticamente complicada de um sistema de trocas simples. É
ligada ao mundo do parentesco e das relações dos grupos de parentesco, exatamente o oposto - trata-se de um feito de simplificação daquilo que
era a mais elevada. No caso dos Tiv (em contraste com muitos outros naturalmente é uma massa emaranhada de itens singulares. Mas por que há
sistemas similares), era possível ocorrer deslocamento - ainda que de uma três esferas e não, digamos, uma dúzia? A mercantilização parece ter
forma um tanto difícil - entre as esferas. As varas de latão forneciam o elo. chegado ao limite permitido pela tecnologia de trocas dos Tiv, à qual
Em circunstâncias excepcionais, as pessoas renunciavam - sem querer - às faltava um denominador comum de valor mais conveniente do que as varas
varas, em troca de itens de subsistência; no outro extremo da escala, era de latão. Percebe-se assim que cada sistema de trocas tem um impulso
possível usar essas varas para iniciar trocas na esfera dos direitos-na- inerente para atingir uma mercantilização ideal - o impulso de ampliar a
forma-de-pessoas. Os Tiv consideravam gratificante e moralmente noção fundamentalmente sedutora de troca até incluir tantos itens quanto a
apropriado fazer conversões "para cima", da subsistência para o prestígio, e tecnologia de troca existente pode admitir, sem maiores dificuldades. Daí a
do prestígio para direitos-na-forma-de-pessoas, mas consideravam ver- aceitação universal do dinheiro, sempre que ele seja introduzido em
gonhosas as conversões "para baixo", que por isso eram realizadas apenas economias carentes de sistemas monetários, e a inexorável conquista da
em circunstâncias de grande dificuldade. economia interna dessas sociedades pelo dinheiro, independentemente de
O problema do valor e da equivalência entre valores sempre foi um enigma uma rejeição inicial a ela ou de uma insatisfação pessoal com ela - uma
filosófico no campo da economia. Envolve o misterioso processo pelo qual insatisfação bem ilustrada pelos Tiv contemporâneos. Daí vêm também os
coisas patentemente distintas são de alguma forma transformadas em resultados uniformes da introdução do dinheiro numa grande variedade de
coisas semelhantes em termos de valor - fazendo os inhames, por exemplo, sociedades que de outra forma diferem muito entre si: uma mercantilização
de alguma forma comparáveis a, e trocáveis por, massa de construção ou mais ampla e a fusão das diferentes esferas de troca. É como se a própria
uma panela. Nos termos que estamos empregando aqui, isso implica tomar lógica interna da troca adaptasse previamente todas as economias para tirar
o que é patentemente singular e transportá-lo para uma categoria de valor vantagem das novas oportunidades tão obviamente associadas à
juntamente com outras coisas patentemente singulares. Apesar de todas as mercantilização ampliada.
dificuldades da teoria do valor do trabalho, ela ao menos sugere que Pode-se interpretar o trabalho recente de Braudel (1983) a partir dessa
enquanto inhames e panelas podem ser comparados entre si com base no perspectiva - ele mostra como, na Europa das primeiras décadas da era
trabalho exigido para produzi-los (mesmo levando em conta os diferentes moderna, o desenvolvimento de uma variedade de novas instituições
investimentos em treinamento para o trabalho em cada caso), não existe amoldou o que poderia ser chamado de uma nova tecnologia de trocas, e
um padrão comum para comparar inhames e postos de autoridade ritual, ou como isso, por sua vez, levou à explosão da mercantilização que fez parte
panelas com esposas e filhos. Vem daí a enorme dificuldade, e mesmo das origens do capitalismo. A mercantilização ampla que associamos ao
impossibilidade, de agrupar todos esses itens disparatados numa única capitalismo não é, portanto, uma característica do capitalismo em si
esfera de mercadorias. Essa dificuldade fornece a base natural da cons- mesmo, mas da tecnologia de troca que, historicamente, se associou ao
trução cultural de esferas de troca distintas. A cultura assim se dedica à capitalismo e que criou margens dramaticamente ampliadas para a máxima
tarefa mais modesta de criar equivalência de valor dentro de diversas mercantilização possível. Economias modernas, organizadas pelo Estado e
esferas específicas de mercadorias - no caso dos Tiv, itens palpáveis de não-capitalistas, certamente não mostram qualquer evidência de serem
subsistência produzidos pelo trabalho físico, em oposição aos itens de isentas em relação a essa tendência, mesmo quando tentam controlá-la por
prestígio derivados de negociações sociais, e também em oposição ao
domínio mais íntimo dos direitos e das obrigações de parentesco.
intermédio de meios políticos. Na verdade, em virtude de suas carências pintados. Os reis do Sião monopolizavam os elefantes albinos. Os
endêmicas e dos seus ubíquos mercados negros, nessas sociedades a monarcas britânicos conservaram o seu direito às baleias mortas que
mercantilização se expande para novas áreas, nas quais o consumidor, para encalham nas praias. Pode ser que haja um lado prático em relação a essas
poder comprar bens e serviços, é obrigado primeiro a comprar o acesso à pretensões reais, e os materialistas ecológicos e culturais sem dúvida se
transação. esforçarão para descobri-lo. No entanto, o que fica claro nesses
Assim, a mercantilização é mais apropriadamente entendida como um monopólios é que eles expandem o alcance visível do poder sagrado ao
processo de transformação do que um estado de "ser-ou-não-ser". A sua projetá-lo sobre novos objetos sacralizados.
expansão ocorre de duas formas: (a) com respeito a cada coisa, ao torná-la Algumas vezes essa singularização inclui coisas que normalmente são
trocável por um número crescente de outras coisas, e (b) com respeito ao mercadorias - com efeito, as mercadorias são singularizadas exatamente
sistema como um todo, ao fazer um número crescente de coisas diferentes por serem retiradas da sua usual esfera mercantil. Assim, na parafernália
mais amplamente intercambiáveis. ritual da monarquia britânica, encontramos a Estrela da índia, que,
contrariamente ao que seria normal, foi impedida de se tornar uma
SINGULARIZAÇÃO: O CULTURAL E O INDIVIDUAL mercadoria e eventualmente singularizou-se na forma de uma "jóia da
A força que se opõe a essa torrente potencial de mercantilização é a coroa". Da mesma forma, a parafernália ritual dos reis dos Suku, do Zaire,
cultura. Na medida em que a mercantilização torna o valor homogêneo, e incluía antigos itens de troca, tais como copos europeus de cerâmica do
que a essência da cultura é a discriminação, o excesso de mercantilização é século XVIII, introduzidos pelos portugueses, transportados pelos Suku até
anticultural - tal como tantas pessoas perceberam ou sentiram. Se, como o seu território atual e, nesse meio tempo, sacralizados.
pensava Durkheim (1915; publicação original 1912), as sociedades têm Outra forma de singularizar objetos é por meio da mercantilização restrita,
necessidade de resguardar uma determinada parte de seu ambiente, pela qual algumas coisas são confinadas a uma esfera muito restrita de
delimitando-a como "sagrada", a singularização é um meio para alcançar troca. O sistema Tiv ilustra esse princípio. Os poucos itens que constavam
esse fim. A cultura assegura que algumas coisas permaneçam da esfera de prestígio (escravos, gado, cargos rituais, um tecido especial e
inconfundivelmente singulares, e resiste à mercantilização de outras coisas. as varas de latão), embora fossem mercadorias, no sentido de serem
Por vezes, ela re-singulari-za o que foi mercantilizado. trocáveis uns pelos outros, eram menos mercantilizados que o número bem
Cada sociedade tem algumas coisas cuja mercantilização é publicamente maior de itens da esfera da subsistência, que incluía de inhames a panelas.
impedida. Algumas dessas proibições são culturais e coletivamente Uma esfera que se restrinja a apenas dois tipos de itens - como no modelo
sustentadas. Em sociedades dotadas de Estado, muitas dessas proibições clássico da esfera de trocas do kula dos Trobriand de faixas para os braços
são determinadas pelo Estado, com a costumeira sobreposição entre o que e braceletes -representa um grau ainda maior de singularização. A esfera de
serve à sociedade como um todo, o que serve ao Estado e o que serve aos troca dos "direitos-na-pessoa" dos Tiv alcançou uma integridade singular
grupos específicos que ocupam o poder. Isso se aplica à grande parte com base num princípio distinto, porém relacionado: o da homogeneidade
daquilo que se considera o acervo simbólico de uma sociedade: terras dos seus componentes. As duas esferas mais elevadas dos Tiv, como se
públicas, monumentos, coleções de arte do Estado, a parafernália do poder pode notar, eram mais singulares, mais especiais e, portanto, mais sagradas
político, moradias reais, insígnias de chefia, objetos rituais e assim por que a esfera mais baixa, que continha os numerosos objetos de subsistência
diante. Muitas vezes o poder se afirma simbolicamente, alegando mundana. Assim, a hierarquia moral das esferas de troca dos Tiv
precisamente o seu direito de singularizar um objeto, ou uma classe de corresponde a diferentes graus de singularidade.
objetos. Chefes e reis africanos reservam para si mesmos o direito a certos Se a sacralização pode ser alcançada mediante a singularidade, a sin-
animais e produtos animais, tais como os dentes e as peles de gatos gularidade não garante a sacralização. Ser uma não-mercadoria não é
selvagens
em si mesmo suficiente para garantir alta estima, e muitas coisas singulares de tentativas legais de limitar a re-mercantilização: na Grã-Bretanha, livros
(ou seja, coisas intercambiáveis) podem valer bem pouco. Entre os Aghem publicados em forma de brochura, muitas vezes, trazem um aviso
do oeste da República dos Camarões, cujas esferas de troca não são muito intrigante que proíbe o comprador de revendê-lo com qualquer capa que
diferentes das dos Tiv, é possível perceber uma esfera ainda mais baixa, não seja a original. Nos Estados Unidos, uma tarjeta igualmente
inferior à dos itens de subsistência. Certa feita, quando tentava descobrir o mistificadora é colocada nos colchões e nas almofadas, proibindo a sua
valor de troca pré-colonial de diversos itens, indaguei sobre o valor de revenda.
permuta da mandioca. A resposta foi um deboche indignado contra a idéia Existem outros fatores além de sanções legais e culturais que podem levar
de que algo tão desprezível como a mandioca pudesse ser trocável por à mercantilização terminal. Afinal de contas, a maioria dos bens de
alguma coisa: "Ela serve para comer, e nada mais do que isso. Ou então é consumo se destina a ser terminal - ou, ao menos, é isso que os seus
dada, se alguém quiser dar. Talvez as mulheres se ajudem umas às outras fabricantes desejam. Essa expectativa é facilmente satisfeita no que toca a
com a mandioca e outras comidas parecidas. Mas ninguém comercializa coisas como ervilhas enlatadas, embora mesmo nesse caso possa haver a
mandioca". Para evitar que esse comentário irritado seja mal entendido e interferência de circunstâncias externas: em épocas de guerra, todos os
sentimentalizado, devo enfatizar que a indignação não foi causada pela tipos de bens normalmente consumíveis começam a servir como reserva de
sugestão de uma corrupção comercial de um item de subsistência altamente riqueza e, em vez de serem consumidos, circulam sem parar no mercado.
valorizado, tal como, talvez, o pão para os camponeses da Europa No que toca a bens duráveis, normalmente surge um mercado de usados, e
ocidental. Os Aghem eram e continuam a ser um povo com tino comercial, a idéia de que possa haver tal mercado é difundida pelos vendedores.
e não desdenham a negociação. O deboche era, ao contrário, parecido com Existe uma área de nossa economia na qual a estratégia de venda depende
o que um membro dos Aghem ouviria de um ocidental a quem ele da ênfase de que a mercantilização de bens comprados para consumo não é
indagasse sobre o valor de troca de um fósforo que ele oferece para necessariamente terminal. Assim, ocorre a promessa de que tapetes
acender o cigarro de um estranho. A mandioca era parte de uma classe de orientais, embora comprados para uso, são um "bom investimento", ou a
coisas singulares de tão pouco valor que não chegava a ter um valor de crença de que certos carros caros têm "um alto valor de revenda".
troca publicamente reconhecido. Ser uma não-mercadoria é ser "sem A existência da mercantilização terminal levanta uma questão central à
preço", no sentido mais amplo possível do termo, indo desde o análise da escravidão, em cujo contexto o fato de uma pessoa ter sido
particularmente valioso até o particulamente sem valor. comprada nada dos diz em si mesmo sobre os usos a que se destinam essa
Além de as coisas serem classificadas como mais ou menos singulares, pessoa (Kopytoff, 1982:223ss). Algumas pessoas adquiridas vão parar nas
existe também o que poderia ser chamado de mercantilização terminal, minas, nas plantações ou nas prisões; outras viraram grão-vizires ou
pela qual trocas posteriores são impedidas por algum tipo de sanção. almirantes imperiais romanos. Da mesma forma, o fato de que um objeto
Algumas sociedades tratam os remédios dessa maneira: o curandeiro tenha sido comprado ou trocado nada nos diz sobre o seu status
fabrica e vende um remédio que é completamente singular, já que ele é subseqüente ou sobre se ele vai continuar ou não a ser uma mercadoria. No
eficaz apenas para o paciente para o qual foi feito. A mercantilização entanto, a não ser que sejam formalmente desmercantilizados, tais objetos
terminal era também uma marca das indulgências vendidas pela Igreja continuam a ser mercadorias potenciais - continuam a ter um valor de
Católica Romana de meio milênio atrás: o pecador podia comprá-las, mas troca, mesmo que tenham sido efetivamente subtraídos da sua esfera de
não podia revendê-las. Na moderna medicina ocidental, essa troca e destituídos - por assim dizer - de sua condição mercantil. Essa
mercantilização terminal é alcançada por meio da lei: ela se baseia na destituição os deixa vulneráveis aos diversos tipos de singularização que
proibição da revenda de um remédio que dependa de receita médica e da mencionei até aqui, mas também a redefinições individuais, distintas das
proibição da venda de quaisquer remédios sem um licenciamento redefinições coletivas.
adequado. Existem outros exemplos
Na região de Bamenda, no oeste da República dos Camarões, as pessoas de valores do sistema de trocas ganha um grande momentuni, produ zindo
valorizavam muito as cabaças vegetais decoradas que vinham da Nigéria. resultados a que tanto a cultura quanto a cognição individual muitas vezes
Os seus intermediários eram os Aku, um grupo pastoril cujas mulheres opõem resistência, embora de formas inconsistentes c mesmo
faziam uso extenso dessas cabaças e que normalmente aceitavam vendê- contraditórias.
las. Eu mesmo tinha comprado várias delas dessa forma. No entanto, houve
um dia em que não consegui convencer uma mulher Aku a me vender uma SOCIEDADES COMPLEXAS
cabaça comum na qual ela mesma tinha feito algumas pequenas Páginas acima, afirmei que as esferas de troca são, para nós, mais visíveis
decorações. Os seus amigos lhe disseram que ela estava sendo boba, em sociedades não-comerciais, não-monetarizadas, como os Tiv, do que
argumentando que o dinheiro lhe permitiria obter uma cabaça muito nas sociedades comerciais, monetarizadas, como a nossa. Em parte, trata-
melhor e mais bonita. Mas ela não se abalou, tal como aquele tipo de se daquele fenômeno pelo qual prestamos atenção ao que é exótico e
pessoa que sempre se destaca na nossa sociedade quando - parcialmente tomamos como um dado o que nos é familiar. Mas há outras coisas a
como um herói, parcialmente como um tolo - se recusa a vender a sua casa considerar.
por um milhão de dólares e assim faz com que o novo arranha-céu seja É evidente que na nossa sociedade existem algumas esferas de troca
construído em torno dela. Existe também o fenômeno oposto: o descontínuas, quase que unanimemente aceitas e aprovadas. Assim, somos
mercantilizador ideológico que defende, por exemplo, a venda de terras inflexíveis no que toca à separação entre a esfera dos objetos materiais e a
públicas como uma forma de equilibrar o orçamento, ou, como vi na das pessoas (mais à frente tratarei disso com detalhes). Também jantamos
África, aquele que defende a venda de alguma parcela da parafernália de uns nas casas dos outros e mantemos essa esfera bem reclusa.
chefia para adquirir um telhado de estanho para a escola. Reconhecemos entediadamente a existência de uma esfera de troca de
O que esses exemplos mundanos mostram é que, em qualquer sociedade, o favores políticos e acadêmicos, mas ficaríamos tão chocados com a
indivíduo freqüentemente se vê imprensado entre a estrutura cultural da proposta de sua monetarização quanto os Tiv de início ficaram com a idéia
mercantilização e suas próprias tentativas pessoais de colocar uma ordem de monetarizar as suas trocas matrimoniais. Tal como os Tiv, que
valorativa no universo das coisas. Parte desse choque entre a cultura e o prudentemente transitavam da esfera das panelas mundanas para a dos
indivíduo é inevitável, pelo menos no nível cognitivo. O mundo das coisas títulos portadores de prestígio, usando a mediação das varas de latão, os
se presta a um número infindável de classificações, baseadas em nossos financistas navegam cautelosamente entre esferas de troca quando
características naturais e em percepções idiossincráticas. A mente tratam de assuntos tais como suas doações para universidades. Uma doação
individual pode brincar com todas elas, construindo uma cadeia infinita de em dinheiro puro e simples para a tesouraria geral da instituição, se for
classes e universos distintos de valores comuns, e modificando esferas de grande, gera suspeitas, porque se parece demais com uma reles compra de
troca. A cultura, por outro lado, não pode ser tão exuberante, e menos influência. Além do mais, tais doações, quando feitas, são geralmente
ainda na economia, na qual as suas classificações devem fornecer diretivas anônimas ou póstumas. Uma doação monetária em prestações seria
não ambíguas para ações pragmáticas e coordenadas. No entanto, se o especialmente suspeita, indicando que o doador retém o poder de sustar o
choque é inevitável, as estruturas sociais que se realizam em seu interior cheque seguinte. No entanto, converter uma doação de grande porte num
variam, dando-lhe diferentes intensidades. Em sociedades como a dos Tiv prédio transporta o dinheiro para uma esfera quase completamente
ou a dos Aghem pré-coloniais, a cultura e a economia estavam em relativa desmercantilizada, congela o presente numa forma visível e irrevogável, e
harmonia; a economia seguia as classificações culturais, e estas serviam protege o doador da suspeita de exercer uma influência duradoura e
bem à necessidade cognitiva individual de discriminação. Em contraste, indevida sobre a universidade. Colocar o nome do doador no prédio é,
numa sociedade comercializada, monetarizada e altamente mercantilizada, assim, uma honra não apenas para o doador, mas também para a
o ímpeto homogeneizador universidade, que assim declara estar isenta de quais-
quer obrigações permanentes em relação àquele doador específico. Os outras "artes primitivas"). Era possível também doá-los como presentes. Os
valores subjacentes a transações desse tipo abrangem, no seu conjunto, a estudantes que voltavam de suas excursões do campo geralmente traziam
sociedade como um todo, ou são pelo menos compartilhados pelos grupos um ou dois desses objetos como presentes para os seus orientadores,
que detêm hegemonia cultural na nossa sociedade e definem a maior parte inserindo-os, dessa forma, numa outra esfera circunscrita, a dos
daquilo que tendemos a chamar de nossa cultura pública. "Todos" são relacionamentos acadêmicos do tipo patrão-cliente. A moralidade que
contra a mercantilização daquilo que foi publicamente eleito como singular governava essa esfera não permitia que esses objetos fossem vendidos, a
e transformado em sagrado: parques públicos, marcos nacionais, o Lincoln não ser para um museu, e pelo preço dc custo. Ainda assim, tal como
Memorial e a dentadura de George Washington em Mount Vernon. ocorria entre os Tiv, para quem era admissível, embora vergonhoso, vender
Outros valores singularizantes são adotados por grupos mais restritos. Há uma vara de latão em troca de comida, aqui também a necessidade extrema
esferas explícitas de troca reconhecidas apenas por certos segmentos da justificava a "liquidação" desses objetos no mercado comercial de artes,
sociedade, tais como grupos profissionais e ocupacionais, que adotam um mas isso deveria ser feito com a discrição apropriada, e, essa troca
código cultural comum e uma moralidade muito focalizada. Esses grupos certamente era vista como uma conversão "para baixo".
formam partes das redes de solidariedade mecânica que mantêm unidas as Como mostram Douglas e Isherwood (1980) a cultura pública das
partes da estrutura orgânica da sociedade mais ampla, sendo esta última sociedades complexas fornece marcações de valor amplamente
regulada na maior parte de suas atividades pelos princípios mercantis. discriminadoras para bens e serviços. Ou seja, a cultura pública dá
Permitam que eu prossiga essa discussão examinando uma atividade que classificações discriminadoras em nossa sociedade da mesma maneira que
ocorre num grupo desse tipo: a atividade de colecionar arte africana, o faz em sociedades de pequena escala. Mas essas classificações são
praticada por norte-americanos que estudam a África. obrigadas a competir continuamente com as classificações feitas por
Nos dias mais simples de 30, ou mais, anos atrás, peças de arte africanas indivíduos e pequenas redes sociais, cujos integrantes pertencem também a
obtidas aleatoriamente durante excursões de trabalho de campo acabavam outras redes, que por sua vez sustentam outros sistemas de valores. Os
inteiramente confinadas numa esfera fechada formada por um elenco de critérios de discriminação que cada indivíduo ou rede pode contribuir para
coisas sagradas. Os objetos colecionados eram fortemente singularizados; a tarefa de classificação são extremamente variados. Não apenas ocorre
supunha-se que elas tinham um valor sentimental pessoal para os seus que a versão de cada indivíduo ou rede das esferas de troca seja
colecionadores, ou um valor puramente estético, ou ainda um valor idiossincrática e diferente das versões alheias, mas ela também se modifica
científico, lastreado no conhecimento que o colecionador supostamente contextual e biográficamente, conforme mudam as perspectivas, as
teria sobre o contexto cultural do objeto. Não era considerado inteiramente afiliações e os interesses do classificador original. O que resulta disso é
adequado adquirir um objeto de arte de negociantes africanos de arte ou, uma polêmica não apenas entre pessoas e grupos, mas também no interior
pior, de negociantes europeus na África ou, pior ainda, de negociantes na de cada pessoa. É claro que as sementes dessas polêmicas existem também
Europa ou nos Estados Unidos. Um objeto desses, adquirido de segunda em sociedades como os Tiv dos tempos pré-coloniais, mas nelas a cultura e
mão, tinha pouco valor científico e ficava vagamente contaminado por ter a economia se uniam para suprir um modelo aprovado de classificação.
circulado numa esfera monetarizada de mercadorias - uma contaminação Numa sociedade comercializada, heterogênea e liberal, a cultura pública
que não era erradicada pela decisão de mantê-lo daí em diante nas mesmas cede espaço muitas vezes ao pluralismo e ao relativismo e acaba não
categorias que os objetos adquiridos "legitimamente" no campo. A esfera fornecendo diretrizes firmes, enquanto a única lição que a economia pode
de troca a que pertenciam os objetos de arte africanos era extremamente ensinar é a da liberdade e do dinamismo claramente causados pela
homogênea no seu conteúdo. Era permitido trocá-los por outros objetos mercantilização cada vez mais ampla.
africanos (ou de Os resultados podem ser vislumbrados por meio do que aconteceu com a
atividade de colecionar peças de arte africanas nos últimos 25
anos. As regras se tornaram mais frouxas, numa forma bastante parecida A DINÂMICA DA SINGULARIZAÇÃO INFORMAL EM
com a monetização que (de acordo com Bohanann) afrouxou as regras SOCIEDADES COMPLEXAS
entre os Tiv - principalmente pela fusão de esferas de troca anteriormente As sociedades complexas têm um evidente desejo de singularização.
distintas. Por exemplo, hoje em dia não existem mais restrições sobre a Grande parte desse desejo é satisfeita individualmente pela singularização
aquisição de objetos de arte africanos num leilão realizado nos Estados particular, baseada em princípios tão corriqueiros quanto os que
Unidos, e muito menos sobre compras feitas diretamente com um determinam o destino de grandes patrimônios, ou de chinelos velhos - a
negociante de arte africana na África. A monetarização em si mesma se longevidade do relacionamento de algum modo os assimila de tal forma à
tornou menos contaminadora na medida em que se tornou mais sedutora, pessoa que torna impensável uma separação entre eles.
pois ninguém ignora que esses objetos são o que todo jornal ou revista Por vezes esse desejo assume as propriedades de uma fome coletiva, que se
chama de "colecionáveis". No entanto, a mudança mais notável foi, evidencia nas respostas generalizadas a renovadas formas de
simplesmente, tornar as regras menos claras e mais abertas às singularização. Coisas velhas, como latas de cerveja, caixas de fósforo e
interpretações individuais e aos sistemas idiossincráticos de valores. Antes, revistas em quadrinho, de repente assumem valor, e passa a ser vantajoso
a cultura profissional decretava que o valor desses objetos era sentimental, colecioná-las; assim, elas passam da esfera do que é singularmente sem
quando não científico, mas agora o valor sentimental é conferido por valor para a esfera do que é singularmente caro. Existe uma contínua
escolha individual, talvez mais sinceramente, mas também menos atração pela coleção de selos - universo no qual, aliás, os selos são
amplamente. Ao mesmo tempo surgiram puritanos que acusam a preferencialmente carimbados, para que não haja dúvidas sobre a sua falta
imoralidade de qualquer forma de circulação desses objetos e defendem a de valor no mundo das mercadorias para o qual eles originalmente se
sua completa singularização e sacralização dentro dos limites fechados da destinavam. Tal como entre os indivíduos, grande parte da singularização
sociedade que os produziu. Em poucas palavras, as regras da cultura coletiva é alcançada pela referência à passagem do tempo. Como
profissional se tornaram menos rígidas e as regras sobre o que é adequado mercadorias, os carros vão perdendo valor conforme ficam mais velhos,
se tornaram mais idiossincráticas. A rejeição generalizada, ocorrida desde mas, quando chegam mais ou menos à idade de 30 anos, começam a
a década de 1960, da própria noção de restrições culturais levou nesse transitar para a categoria de antiguidades e passam a ganhar valor com
caso, como em outros, ao surgimento de uma grande variedade de cada ano que passa. O mobiliário velho passa, é claro, pelo mesmo
definições por indivíduos e por pequenos grupos. processo, num compasso mais vagaroso - o período exigido para que
Estou argumentando que a diferença crucial que existe entre sociedades ocorra a sacralização é aparentemente igual ao intervalo de tempo que
complexas e as de pequena escala não reside simplesmente na extensa separa uma pessoa da geração dos seus avós (no passado, era preciso mais
mercantilização que encontramos nas primeiras. É bom lembrar que houve tempo ainda, pois havia menos mobilidade e mais continuidade nos
sociedades de pequena escala nas quais a mercantilização (com ajuda de estilos). Existe ainda a adaptação moderna e adequadamente não-histórica
dinheiro indígena) era muito extensa, tal como os Yurok do norte da do processo de transformação de objetos em antiguidades, estudada tão
Califórnia (KROEBER, 1925) ou os Kapauku da Nova Guiné ocidental perceptivamente por Thompson (1979) - a singularização instantânea de
(POSPISIL, 1963). O que é peculiar às sociedades complexas é que a sua objetos ao estilo "da-pilha-de-lixo-para-a-sala-de-jantar", adotada pelos
mercantilização publicamente reconhecida opera lado a lado com inúmeros jovens profissionais ascendentes que detestam a aridez escandinava tão
esquemas de valoração e singularização propostos por indivíduos, querida pela geração anterior de pessoas de sua classe.
categorias sociais e grupos, e que esses esquemas apresentam um conflito No entanto, tal como no caso da arte africana, estes são processos que se
insolúvel com a mercantilização pública e entram também em conflito uns passam dentro de pequenos grupos e de pequenas redes sociais. O que para
com os outros. mim é um patrimônio é, evidentemente, uma
mercadoria para o joalheiro, e o fato de que compartilho da cultura do organizações de bairro preocupadas com o "embelezamento", e assim por
joalheiro fica claro na minha disposição de dar um preço ao meu diante. Quem controla essas instituições e de que forma isso se dá dizem
patrimônio invendável (sempre superestimando o seu valor enquanto muito a respeito de quem controla a apresentação que a sociedade faz de si
mercadoria). Do ponto de vista do joalheiro, eu confundo dois sistemas de mesma para si mesma.
valores diferentes: o do mercado e o da esfera fechada de coisas Há alguns anos atrás houve uma polêmica pública na cidade de Filadélfia a
pessoalmente singularizadas, sendo que ambos convergem para o objeto respeito da proposta de instalar uma estátua do herói cinematográfico de
em questão. Muitas coisas "colecionáveis" como latas de cerveja também boxe Rocky na avenida em frente ao Art Museum - uma instituição que
vivem esse paradoxo: conforme vão sendo transformadas em algo mais serve ao mesmo tempo de monumento público ao establishment social
singular e mais atraente para colecionadores, ganham valor; e quando se local e para satisfazer as necessidades da intelligentsia profissional. A
tornam valiosas, adquirem um preço e se transformam numa mercadoria, o estátua vinha diretamente dos sets de filmagem de Rocky, que narra a
que de certa forma sabota a sua singularidade. Essa interpenetração de história do sucesso de um campeão de boxe ítalo-americano oriundo da
princípios de mercantilização e de princípios de singularização dentro do zona sul da Filadélfia. Para o setor "étnico" dos trabalhadores residentes
mesmo objeto é aproveitada por empresas que se especializam em fabricar em Filadélfia, a estátua era um objeto singular de orgulho étnico, de classe
o que podemos chamar de "as coisas futuramente colecionáveis", tais como e regional - ou seja, um monumento público valioso. Para os grupos cuja
edições encapadas com couro dos livros de Emerson, versões em baixo- identidade social passava pelo museu, a estátua era um pedaço de lixo,
rele-vo das pinturas de Norman Rockwell esculpidas em pratos, ou merecendo ser revendida instantaneamente como ferro-velho. Neste caso,
medalhas de prata que comemoram eventos perfeitamente esquecíveis. Nas as questões da singularização e da mercantilização estavam ligadas di-
suas propagandas, essas empresas apelam de forma complexa para a sede retamente a sistemas morais muito distintos e fortemente carregados de
de obter lucros: compre esse prato agora, enquanto ele ainda é uma simples sentido. No entanto, os opositores da estátua tinham ilustração suficiente
mercadoria, pois mais tarde ele vai se transformar num item singular para enfeitar a sua argumentação com apelos para a estética pública, campo
"colecionável" cuja própria singularidade fará dele um dia uma mercadoria no qual detinham hegemonia cultural. A estátua não foi instalada no Art
muito valiosa. Não consigo imaginar a possibilidade de algo análogo Museum, mas na zona sul de Filadélfia, ao lado de um estádio esportivo.
acontecer entre as esferas de troca dos Tiv. No entanto, a maior parte do conflito entre a mercantilização e a
A singularização de objetos dentro de uma sociedade cria um problema singularização nas sociedades complexas ocorre no interior dos indivíduos,
especial. Como é feita por grupos, ela porta um certificado de aprovação causando o que parece ser anomalias cognitivas, inconsistência de valores
coletiva, canaliza os impulsos individuais de singularização e assume o e incertezas para a ação. Nessas sociedades as pessoas sempre têm uma
peso da sacralidade cultural. Assim, uma comunidade formada por alguns versão privada da hierarquia das esferas de valor, mas a explicação dessa
poucos quarteirões pode de repente se mobilizar, presa de indignação hierarquia não se liga integralmente à própria estrutura de trocas, tal como
coletiva, contra a proposta de retirar do bairro o enferrujado chafariz ocorre entre os Tiv. Ao contrário, a justificativa deve ser importada de fora
vitoriano e de vendê-lo como ferro-velho. Muitas vezes esses conflitos do sistema de trocas, de sistemas autônomos e geralmente paroquiais tais
públicos significam mais do que meras questões de estilo. Por trás de como a estética, a moralidade, a religião ou as culturas profissionais
declarações extraordinariamente veementes, de valores estéticos podem especializadas. Quando sentimos que um Rembrandt está sendo vendido ou
estar conflitos de cultura, classe e identidade étnica, e o conflito em torno que um patrimônio está sendo trocado por algo inferior, a explicação para a
do que se poderia chamar de "instituições públicas de singularização".3 Nas nossa atitude é que as coisas chamadas de "arte" ou "objetos históricos"
sociedades liberais, essas instituições são as comissões governamentais de são superiores ao mundo do comércio. Este é o motivo pelo qual o alto
alto nível ou as comissões apenas quase-governamentais - comissões valor de objetos singulares nas sociedades complexas facilmente se asse-
históricas, conselhos que tomam decisões sobre monumentos públicos,
melha ao esnobismo. O valor elevado não reside no próprio sistema de O único momento em que o status de mercadoria de uma coisa não é
troca - como ocorria tradicionalmente entre os Tiv, quando, por exemplo, a colocado em dúvida é quando ela é efetivamente trocada. Na maior parte
superioridade do prestígio (mais do que a mera troca) das varas de latão do tempo, quando a mercadoria está efetivamente fora da esfera das
sobre as panelas era palpavelmente confirmada pela possibilidade de as mercadorias, o seu status é inevitavelmente ambíguo e sujeito ao jogo de
varas serem trocadas por tecidos e escravos. Numa sociedade complexa, a vai-e-vem dos fatos e dos desejos, na medida em que vai sendo seguido
falta de uma tal confirmação visível de prestígio, de uma amostra do que pelo fluxo da vida social. Esta é a fase em que ela se expõe às quase
vem exatamente a ser uma conversão "para cima", faz com que se atribua infinitas tentativas de singularização. Assim, vários tipos de
um valor elevado, mas não-mo-netário aos objetos esotéricos, estéticos, singularizações, muitas delas efêmeras, acompanham constantemente a
estilísticos, étnicos, de classe e genealógicos. mercantilização, principalmente quando ela se torna excessiva. Existe neste
Quando as coisas participam simultaneamente de esferas de troca caso uma espécie de mercado negro da singularização que é a imagem
cognitivamente distintas, mas efetivamente interligadas, constantemente exata do mercado negro mercantilizador mais familiar que acompanha as
ocorrem paradoxos de valoração. Uma pintura de Picasso, embora tenha economias singularizadoras reguladas, e tão inevitável quanto ele. Dessa
valor monetário, simplesmente não tem preço se encarada de um ponto de forma, mesmo as coisas que claramente têm valor de troca - em termos
vista distinto, superior. Assim, ficamos incomodados e mesmo ofendidos formais, as mercadorias - acabam absorvendo o outro tipo de valor, que é
quando um artigo de jornal nos diz que um quadro de Picasso vale 690 mil não-monetário e vai além do valor de troca. Podemos considerar que esse é
dólares, pois não se deveria colocar um preço em coisas que não têm o lado ausente e não-econômico daquilo que Marx chamou de fetichismo.
preço. Numa sociedade pluralista, no entanto, a falta de preço "objetivo" de Para Marx, o valor das mercadorias é determinado pelas relações sociais
um Picasso só pode ser confirmada sem ambigüidades pelo seu enorme ocorridas na sua produção; mas a existência do sistema de troca faz com
preço de mercado. Mesmo assim, a falta de preço ainda faz, de alguma que o processo produtivo se transforme em algo remoto e mal entendido, e
maneira, o Picasso valer mais que a pilha de dólares que ele poderia obter - ele "mascara" o valor real da mercadoria (tal como no caso dos diamantes,
e isso será adequadamente destacado pelos jornais se o Picasso for por exemplo). Isso permite que a mercadoria seja socialmente dotada de
roubado. Em poucas palavras, a singularidade não é confirmada pela um "poder" de fetiche que não se liga ao seu valor real. No entanto, a nossa
posição estrutural do objeto num sistema de troca, mas pelas suas incursões análise sugere que parte desse poder é atribuída às mercadorias depois que
intermitentes na esfera das mercadorias, logo seguidas por reentradas na são produzidas, e que isso ocorre por meio de um processo autônomo,
esfera fechada da "arte" singular. No entanto, os dois mundos não cognitivo e cultural de singularização.
conseguem ficar separados por muito tempo. De um lado, os museus têm
que colocar os seus acervos no seguro. Por isso, os museus e os DUAS ESFERAS OCIDENTAIS DE TROCA: PESSOAS VERSUS
negociantes de arte colocarão etiquetas de preço nas peças, serão acusados OBJETOS
do pecado de transformar a arte numa mercadoria e, ao reagirem, se Até aqui, enfatizei a natureza avassaladora da mercantilização na sociedade
defenderão acusando-se mutuamente de criar e manter um mercado de ocidental como representativa de um tipo ideal de sociedade altamente
bens. Mas estaríamos errando o alvo de nossa análise se concluíssemos que comercializada e monetarizada. Mas o mundo ocidental é também uma
o discurso sobre a singularidade da arte é apenas uma camuflagem entidade cultural única, dotada de um conjunto historicamente
ideológica de um interesse mercantil. O que é culturalmente significativo condicionado de predisposições para encarar o mundo de determinadas
neste caso é precisamente que existe uma compulsão interna de as pessoas formas.
se defenderem, perante outras e perante si mesmas, da acusação de estarem Já me referi a uma dessas predisposições: a de separar conceitualmente as
fazendo "merchandising" da arte. pessoas das coisas, e de ver as pessoas como os territórios naturais da
individuação (ou seja, singularização) e as coisas como os territó-
rios naturais da mercantilização. Essa separação, embora tenha suas raízes "escravidão assalariada". O desconforto conceitual com a junção de
na Antiguidade Clássica e no Cristianismo, se tornou mais visível com o pessoas e mercadorias faz com que, na maioria das sociedades liberais do
início da modernidade européia. O seu desmentido mais cabal era, é claro, mundo ocidental, a adoção de uma criança seja considerada ilegal se ela
a prática da escravidão. Ainda assim, a sua importância cultural pode ser implica compensação monetária para os pais naturais -algo que a maioria
medida precisamente pelo fato de que a escravidão realmente representava das sociedades tem encarado como uma satisfação das demandas evidentes
um problema intelectual e moral para o Ocidente (ver DAVIS, 1966, da eqüidade. No moderno mundo ocidental, porém a adoção por meio de
1975), coisa que não ocorria em quase nenhum outro lugar. Sejam quais compensação monetária é vista como a compra de crianças, coisa parecida
forem as razões complexas, em meados do século XX, a distinção com a escravidão, independentemente do amor que os pais adotivos
conceitual entre o universo das pessoas e o universo de objetos tinha se possam oferecer a elas. Assim, na Grã-Bretanha, na maioria das províncias
tornado axiomática no Ocidente. Assim, não surpreende que a polêmica canadenses e em quase todos os estados dos Estados Unidos a lei pune
cultural em torno do aborto tenha se tornado mais violenta no século XX especificamente compensações monetárias desse tipo.
do que jamais o foi no século XIX, nem que essa polêmica seja colocada A grande marca da mercantilização é a troca. Mas a troca abre o caminho
pelos dois lados nos termos da definição exata da linha que separa as ao tráfico e o tráfico de atributos humanos carrega um estigma especial.
pessoas das coisas e se centre na questão da gênese da "pessoalidade". As Por exemplo, nós não criticamos - nem podemos mais fazê-lo, a esta altura
forças antiaborto e pró-aborto concordam numa coisa: "coisas" podem ser - a mercantilização e a venda do trabalho (por sua própria natureza, uma
abortadas, mas não "pessoas". Daí vêm as ocasionais lutas judiciais em que mercadoria terminal). Mas reclamamos do tráfico de trabalhadores que
os grupos favoráveis ao aborto tentam obter ordens judiciais contra as seria causado por uma mercantilização integral do trabalho. Abolimos a
tentativas dos inimigos do abqrto de ritualizar o descarte dos fetos servidão temporária, e os tribunais derrubaram a mercantilização dos
abortados, já que um descarte ritual pressupõe a condição de pessoa. Em contratos de atletas e atores. A argumentação cultural contra o fato de um
termos de concepções básicas, os dois lados neste caso concordam entre si, clube esportivo ou de um estúdio cinematográfico "venderem" um jogador
num notável contraste cultural com os japoneses. Os japoneses têm poucos ou um ator a outro empregador é construída no idioma da escravidão. A
problemas morais com o aborto, mas reconhecem que as crianças transferência de um contrato obriga o trabalhador a labutar para alguém
abortadas são pessoas, dando-lhes o status especial de misogo, almas que ele não escolheu, e assim o força a trabalhar involuntariamente. Pode-
perdidas, e reverenciando-os em altares especiais (ver MIURA, 1984). mos ver aí um detalhe cultural significativo da mercantilização do trabalho
Assim, existe no pensamento ocidental uma preocupação moral perene, no mundo ocidental - a mercantilização deve ser controlada pelo próprio
qualquer que seja a posição ideológica do pensador, com a mercantilização trabalhador. Por outro lado, contratos de pagamento obrigatório, tais como
de atributos humanos tais como o trabalho, o intelecto, a criatividade ou, notas promissórias ou compras à prestação, e contratos de aluguel são
mais recentemente, os órgãos humanos, a capacidade reprodutiva das legalmente negociáveis; eles podem e são regularmente vendidos e
mulheres e os óvulos. O lastro moral nessas questões vem, em parte, da revendidos. Pela mesma lógica cultural, a noção de impostos quase
longa polêmica travada sobre a escravidão e da vitória da abolição da confiscatórios é para nós menos chocante do que até mesmo uma pequena
escravatura. Daí vem a tendência de recorrer à escravidão como a metáfora quantidade de trabalho compulsório. Assim como o tráfico do trabalho,
mais imediata quando a mercantilização ameaça invadir a esfera humana, consideramos a mercantilização direta de serviços sexuais (também uma
pois a escravidão é o caso extremo no qual a totalidade de uma pessoa é mercadoria terminal) pelo fornecedor imediato menos censurável do que o
mercantilizada. Tanto Marx quanto o papa Leão XIII condenaram tráfico desses mesmos serviços por meio de cafetões. Da mesma forma,
moralmente o capitalismo com base na noção de que o trabalho humano consideramos a iminente possibilidade de vendas terminais de óvulos
não deveria ser uma mera mercadoria - daí o poder retórico de termos tais humanos um pouco mais aceitável do que a noção de um tráfico comercial
como de óvulos.
No entanto, a pergunta se mantém: qual é a solidez das trincheiras culturais logia discutiam entre si, o preço de uma mãe de aluguel chegou ao nível de
do mundo ocidental que defendem a esfera humana contra a 25 mil dólares (SCOTT, 1984).
mercantilização, especialmente numa sociedade secularizada na qual é Existe, é claro, um precedente para a mercantilização de atributos físicos
cada vez mais difícil apelar para quaisquer sanções transcendentais para as humanos: o suprimento de sangue na prática médica americana depende
classificações e discriminações culturais? Mostrei que as economias enormemente de um mercado aberto de sangue - o que contrasta, por
inerentemente dão resposta às pressões pela mercantilização e que elas exemplo, com a maioria dos países europeus, que deliberadamente
tendem a mercantilizar as coisas tanto quanto for permitido pela tecnologia rejeitaram a solução de mercado (COOPER; CULYER, 1968).
de troca. Podemos, pois, perguntar: quais são os efeitos do Atualmente, os progressos alcançados nos transplantes de órgãos e a oferta
desenvolvimento da tecnologia de transferência de atributos humanos inadequada de órgãos estão colocando a mesma questão de política pública
sobre as barreiras entre a esfera do humano e a esfera das mercadorias? enfrentada no passado a respeito do sangue: quais são as melhores
Estou me referindo a progressos médicos recentes na transferência de maneiras de assegurar uma oferta adequada? Nesse meio tempo, já
órgãos e óvulos e ao aparecimento da maternidade de aluguel. No reino da surgiram propagandas com ofertas de compra de fígados para uso em
reprodução humana, é particularmente difícil estabelecer a diferença entre transplantes.
pessoas e coisas. São muito frágeis todas as tentativas de traçar nele uma Como lidar com óvulos é uma questão que está apenas começando a ser
linha demarcatória simples em que existe um continuum natural. discutida. Culturalmente, considera-se que a situação é percebida como
A noção de maternidade de aluguel direta - na qual uma mulher sim- mais complexa do que a do esperma, que já se tornou mercadoria há um
plesmente dá à luz uma criança para a futura mãe legal - evidentemente bom tempo, sem despertar tanta controvérsia. Será que isso ocorre porque
exigiu mudanças que foram mais jurídicas do que tecnológicas. A noção os óvulos são vistos como a origem básica dos futuros seres humanos? Ou
começou a parecer viável ao mesmo tempo em que avanços técnicos na porque se espera das mulheres sentimentos de maternidade em relação aos
abordagem da infertilidade feminina começaram a fortalecer as esperanças seus óvulos e, portanto, a recusa a vendê-los, enquanto não se espera dos
dos casais sem filhos que, no entanto, não conseguiram ajudar muitos homens sentimentos paternais em relação ao seu esperma?4 (Muitas
deles. Ela foi também uma reação à diminuição da oferta de bebês na sociedades descrevem a geração da vida por meio da união de dois
década de 1960 (com a pílula) e na década seguinte (com a ampliação da elementos; os ocidentais, porém, preferem a metáfora científica que fala da
legalização do aborto). Mais recentemente, o quadro foi complicado pelo fertilização do óvulo pelo esperma, fazendo do óvulo um homúnculo
desenvolvimento de meios técnicos para o transplante efetivo de óvulos, acionado para a vida). O inevitável desenvolvimento de procedimentos
abrindo a possibilidade de trocas na esfera dos meios físicos de rotineiros como o transplante e o congelamento de óvulos para estocagem
reprodução. As críticas mais comuns à maternidade de aluguel são aumentará as possibilidades da tecnologia de troca desses atributos
geralmente construídas no idioma da impropriedade da mercantilização. humanos, incluindo a possibilidade de ocorrer tráfico desses atributos. A
Um secretário provincial de serviços sociais canadense expressou a sua questão é se isso aumentará a permeabilidade da fronteira entre o mundo
oposição com as palavras seguintes: "E impossível comprar um bebê em das coisas e o mundo das pessoas, ou se essa fronteira será deslocada pelo
Ontário". No entanto, a coisa se torna mais aceitável, pelo menos para recurso a novas definições, mas, ainda assim, se manterá tão rígida quanto
alguns, quando a mãe de aluguel anuncia que está recebendo não um antes.
"pagamento", mas uma "compensação" de 10 mil dólares - "por causa dos
inconvenientes causados à minha família e dos riscos envolvidos". A CONCLUSÃO: TIPOS DE BIOGRAFIAS
agência que organiza a produção de crianças pelo método da substituição Embora o singular e a mercadoria sejam opostos, nenhuma coisa consegue
faz questão de declarar "Nosso negócio não é o aluguel de úteros". Nesse alcançar o lado mais extremo da mercadoria neste continuum entre ela e a
meio tempo, enquanto os estudiosos de ética e de teo- singularidade. Não existem mercadorias perfeitas. Por outro lado, a função
de troca de toda economia parece ter um mecanismo embutido que dirige o
sistema de troca no sentido do maior grau de mercantilização permitido
pela tecnologia de troca. As forças que se contrapõem a esse processo são a
cultura e o indivíduo, com os seus impulsos de discriminar, classificar, interação de indivíduos e grupos. Em contraste, no passado, a estrutura das
comparar e sacralizar. Isso significa que tanto a cultura quanto o indivíduo economias das sociedades de pequena escala levava a uma relativa
estão engajados numa batalha de duas frentes - uma contra a harmonia entre valorações econômicas, culturais e privadas. Essas
mercantilização homogeneizadora de valores de troca, a outra contra a diferenças conduzem a perfis biográficos das coisas bem distintos entre si.
singularização integral das coisas nas formas em que elas se apresentam na Cabe aqui uma palavra de cautela. Nesta discussão eu focalizei os
natureza. contrastes muito fortes que existem entre dois tipos ideais e polares de
Nas sociedades de pequena escala, não-comercializadas, o impulso de economias. No entanto, os casos mais interessantes a serem investigados -
mercantilização era geralmente contido pela inadequação das tecnologias em última instância, os que oferecem os retornos teóricos mais elevados -
de troca, especialmente pela ausência de um sistema monetário bem são os intermediários. E no estudo desses casos que podemos ver como as
desenvolvido. Isso abria margem para uma categorização cultural do valor forças da mercantilização e da singularização se ligam de maneiras mais
de troca das coisas, geralmente na forma de esferas de troca fechadas, e sutis do que sugere o modelo ideal, como se quebram as regras ao se passar
satisfazia as necessidades cognitivas do indivíduo para fins de de uma esfera a outra quando tais esferas são supostamente isoladas umas
classificação. Dessa forma, a classificação cultural coletiva criava das outras, como se convertem coisas formalmente inconversíveis, como se
constrangimentos à exuberância natural a que tendem as classificações disfarçam essas ações e quem dá cobertura a elas, e, não menos importante,
puramente idiossincráticas e privadas. como as esferas são reorganizadas e como as coisas são reembaralhadas
Nas sociedades de grande escala, comercializadas e monetarizadas, a entre essas esferas ao longo da história de uma sociedade. Igualmente
existência de uma tecnologia de trocas sofisticada escancara a economia a interessantes seriam aqueles casos em que os sistemas de mercantilização
uma enxurrada de mercantilização. Em todas as sociedades industriais de sociedades diferentes interagem. Por exemplo, Curtin (1984) mostrou a
contemporâneas, quaisquer que sejam as suas ideologias, a mercantilização importância das diásporas comerciais para a história do comércio mundial.
e a monetarização tendem a invadir todos os aspectos da existência, seja Nestes casos, os comerciantes, formando um grupo distinto e quase
abertamente, seja por meio de um mercado negro. Novas descobertas cultural, supriam os canais para a movimentação de bens entre sociedades
tecnológicas (como, por exemplo, na medicina) também abrem áreas muito distintas entre si. É manifesta a utilidade desses grupos de
anteriormente fechadas às possibilidades de troca, e essas áreas tendem a comerciantes na mediação entre os diferentes sistemas de trocas. Ao
ser rapidamente mercantilizadas. O achatamento dos valores que se segue à amortecerem o impacto direto do comércio mundial, poupam-se as
mercantilização e a incapacidade da cultura moderna de lidar com esse sociedades envolvidas de verem desafiadas as suas noções particulares de
achatamento, de um lado, frustram o indivíduo e, de outro, deixam ampla mercantilização. Os seus sistemas barrocos de troca ficam protegidos pelo
margem para uma enorme quantidade de classificações feitas por paroquialismo cultural. Isso, talvez, poderia explicar a notável viabilidade,
indivíduos e por pequenos grupos. No entanto, essas classificações são ao longo da história, de sistemas econômicos paroquiais que sobrevivem
sempre privadas e, exceto nos casos de grupos culturalmente hegemônicos, em meio às redes mundiais de trocas. Talvez possa explicar também o que
não alcançam apoio público. há muito tempo é um enigma para a antropologia econômica - a
Assim, as economias das sociedades complexas e altamente monetarizadas disseminação limitada, até o século XX, de sistemas de moeda "para todos
têm um sistema duplo de avaliação: de um lado fica a área homogênea das os fins", já que tais moedas se espalharam muito menos do que se esperaria
mercadorias, no outro, fica a área extremamente variada das avaliações a partir da teoria difusionista e do utilitarismo de senso comum. Apesar de
privadas. A situação se complica porque as avaliações privadas tudo que disse, vou voltar ao forte contraste entre as sociedades "com-
constantemente se referem à única avaliação pública confiável disponível - plexas, comercializadas" e as sociedades "de pequena escala", assunto do
a da área de mercadorias. Se um preço é dado ao valor, é inevitável que o qual estou tratando ao longo do texto.
preço corrente de mercado se torne a medida desse valor. O que resulta Pode-se traçar uma analogia entre a maneira pela qual as sociedades
disso é um entrelaçamento complexo da esfera de troca de mercadorias constroem indivíduos e a maneira pela qual constroem coisas. Em
com o universo infinito de classificações privadas, o que causa anomalias e sociedades de pequena escala, as identidades sociais de uma pessoa são
contradições e leva a conflitos tanto na cognição de indivíduos quanto na relativamente estáveis e as mudanças são geralmente condicionadas mais
por regras culturais do que por idiossincrasias biográficas. O drama de uma mundos simultaneamente e da mesma forma, construindo objetos da
biografia de uma pessoa normal está ligado ao que acontece dentro do seu mesma forma que constroem pessoas.
status. Ele reside nos conflitos entre o self egoísta e as demandas nada
ambíguas das identidades sociais bem definidas, ou nos conflitos que NOTAS
1
nascem da interação de atores com papéis definidos dentro de um sistema Tradução feita por José Augusto Drummond. Não está autorizada a
social bem estruturado. A emoção das biografias é picaresca. Ao mesmo reprodução da tradução. Copyright da EdUFF. [N. do E.]
2
tempo, o indivíduo que não cabe em determinados nichos é singularizado Devo agradecimentos a Arjun Appadurai e Barbara Klamon Kopytoff
na forma de uma identidade especial - sagrada ou perigosa, ou por vezes pelas discussões que levaram à composição deste ensaio, e a Jean
ambas -ou ele é simplesmente excluído. Nessas sociedades de pequena Aldeman, Sandra Barnes, Muriel Bell, Gyan Prakash, Colin Renfrew e
escala as coisas são modeladas da mesma forma. O seu status nos sistemas Barbara Herrnstein Smith pelos comentários e sugestões que contribuíram
de valores de trocas e nas esferas de troca bem estruturados não apresenta para dar forma à sua versão final.
3
ambigüidades. A biografia rica de uma coisa é na sua maior parte uma Gostaria de agradecer a Barbara Herrnstein Smith por ter chamado a
série de acontecimentos que ocorrem dentro de uma mesma esfera. minha atenção para a importância de tais instituições no processo que estou
Qualquer coisa que não se enquadre nas categorias é claramente anômala e descrevendo.
4
a sua circulação normal é encerrada, ou para ser sacralizada, ou para ser Sou grato a Muriel Bell por essa sugestão.
isolada ou excluída. O que se vislumbra por meio das biografias tanto das
pessoas quanto das coisas nessas sociedades é, acima de tudo, o sistema
social e as formas coletivas de conhecimento nas quais esse sistema se
baseia.
Nas sociedades complexas, em contraste, as identidades sociais das
pessoas são numerosas e, além disso, freqüentemente conflituosas. Não
existe uma hierarquia clara de biografias que faça uma identidade dominar
as outras. Nesse caso, o drama das biografias pessoais tem se tornado cada
vez mais o drama das identidades - dos seus choques, da impossibilidade
de escolher entre elas, da ausência de pistas fornecidas pela cultura e pela
sociedade para ajudar nessas escolhas. Em poucas palavras, o drama reside
na incerteza da identidade - um tema cada vez mais dominante na literatura
ocidental, deslocando os dramas ligados à estrutura social (isso ocorre até
mesmo nos casos eminentemente estruturais abordados nos escritos sobre
mulheres e "minorias"). A biografia das coisas nas sociedades complexas
mostra um padrão semelhante. No mundo homogeneizado das
mercadorias, uma biografia rica de uma coisa é a história de suas várias
singularizações, das classificações e reclassificações num mundo incerto
de categorias cuja importância se desloca com qualquer mudança do
contexto. Tal como ocorre com as pessoas, o drama aqui reside nas
incertezas da valoração e da identidade.
Tudo isso sugere um aperfeiçoamento da substancial noção durkheimiana
de que uma sociedade ordena o mundo das coisas a partir do mesmo
padrão da estrutura que prevalece no mundo social das suas pessoas. O que
acontece também, sugiro eu, é que as sociedades restringem ambos esses

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