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Contos

Subterrâneos

E. P. Freitas
Ivo Ávila
Leon K. Nunes

1ª Edição

Câmara Brasileira de Jovens Escritores


Copyright©Ivo Ávila

Câmara Brasileira de Jovens Escritores


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Outubro de 2010

Primeira Edição

Coordenação editorial: Gláucia Helena


Editor: Georges Martins
Produção gráfica: Fernando Dutra
Revisão: do Autor

É proibida a reprodução total ou parcial desta obra, por


qualquer meio e para qualquer fim, sem a autorização
prévia, por escrito, do autor.
Obra protegida pela Lei de Direitos Autorais
E. P. Freitas
Ivo Ávila
Leon K. Nunes

Contos
Subterrâneos

Outubro de 2010

Rio de Janeiro - Brasil


Os contos subterrâneos revelados

Afinal, o que é um livro? O que vem a ser esta sequência


de folhas brancas (por vezes tão brancas que ofuscam a vista
na leitura sob o sol) tomada por minúsculas formiguinhas
escravizadas, encarregadas que são por quem as lança no papel,
de enfileirar um novo mundo dentro do mundo?
Enfim, qual o fenômeno que dispara a existência de
um livro? Qual o momento em que a carne se faz verbo?
Estas são algumas questões que, em relação não só aos
livros, mas a toda literatura, atravessam os milênios, com muitas
tentativas de resposta, obviamente nenhuma delas definitiva.
Por sua vez, este livro aqui (ou folhas xerocadas) em
suas mãos (ou na tela de algum aparelho) é uma conexão
subterrânea entre o Rio Grande do Sul e o do Norte.
São dois autores gaúchos (E. P. Freitas e Ivo Ávila) e um
potiguar (Leon K. Nunes) trazendo à superfície ensolarada do
Brasil, em forma de contos, suas personalíssimas visões
subterrâneas acerca de temas humanos tão díspares quanto a vida
e a morte num quarto barato de pensão, o ser e o estar num
tempo relativo e infinito ou simplesmente secreções e odores.
A literatura de contos em si é uma atividade subterrânea
e marginal. Não há para ela, como há para os “espíritos”
escritores, para as biografias das celebridades descerebradas
e para as páginas policiais ou de futebol, espaço ao sol
suficiente, sequer para o mais pálido bronzeado.
É grande a carestia de olhos leitores ávidos, ainda que
detrás de lentes escuras, ou de cérebros inquietos procurando
diversão em palavras perigosas, frases enervantes ou
conceitos desestruturadores.
A realidade é esta mesmo, dura e injusta, e talvez você
não encontre nada disso nesse livro. Ou quem sabe encontre...
Mas, a questão permanece sempre, desafiando:
Afinal, que é um livro?
Lá vai então mais uma resposta não-definitiva: um livro
é a revelação das idéias e dos mundos soterrados sob o peso
insuportável (às vezes cômodo) do que é ignorado.
Apenas isso. Ou não.

Uma boa leitura desses Contos Subterrâneos.

E. P. Freitas
Outubro / 2010
SUMÁRIO

Os contos subterrâneos de E. P. Freitas


Quarto com duas portas .................................................................................................. 11
Raquel .......................................................................................................................................... 19
A Segunda Banda da Noite .......................................................................................... 27

Os contos subterrâneos de Ivo Ávila


Thiago, o bailarino .............................................................................................................. 37
Contato ...................................................................................................................................... 41
O Túmulo da Lenda ......................................................................................................... 45
Noite para esquecer............................................................................................................ 53

Os contos subterrâneos de Leon K. Nunes


Tão Fugaz ................................................................................................................................ 59
Sangria Fria, Porém Sem Gelo .................................................................................... 65
Das secreções e dos odores ............................................................................................. 77
Os contos subterrâneos de
E. P. Freitas
Contos Subterrâneos

Quarto com duas portas

Meu quarto é uma cápsula hermeticamente fechada.


Não tem janelas, possui somente duas portas. A primeira dá
acesso ao corredor que leva à rua, a segunda não é utilizada e
vai dar sabe-se lá onde. Imagino que dê passagem a alguma
peça escura, mofada, cheia de pó e teias de aranha. Por algum
motivo não revelado, ou então já há muito esquecido, foi
condenada a passar o restante dos dias fechada. A imagem de
uma porta que nunca se pode abrir é realmente muito triste.
Talvez seja o retrato dos meus dias atuais.
Minha cama fica encostada em uma das paredes, a que
possui uma cicatriz de concreto, que esconde o espaço
destinado antigamente a algum cano que repousava ali. A porta
que leva à rua fica aos pés da cama, à direita, na mesma parede.
Eu a vejo quando estou deitado. A outra porta, a que leva a
lugar algum, está ao lado de minha cabeceira, à esquerda, e eu
posso vê-la se inclinar a cabeça. Esta porta fica no centro da
parede que corresponde ao que seria o fundo do quarto. Na
parede à minha frente, tenho dois quadros pendurados. Uma
pequena reprodução de uma cena portuária, que sempre me
faz lembrar o navio brasileiro que transportou o Horla de
Maupassant e outro quadrinho com um antigo retrato de
família. Minha família, mas, tão velho, com pessoas mortas há
tanto tempo, que já não as reconheço mais. Na realidade, nunca
Prova 01
CBJE 11
E. P. Freitas

soube quem eram. Pessoas que passaram por este mundo e


restaram somente como uma foto borrada em um quarto
barato de pensão. É através desta parede que ouço todas as
noites conversas sussurradas, ruídos domésticos e uma mulher
que tosse. Costumo chamá-la de minha vizinha.
Moro nesta pensão há quase três anos e sei que existem
outros moradores aqui, em outros quartos, nos quartos
contíguos e nos mais afastados. Eventualmente, esbarro com
algum deles pelo corredor, um que volta do trabalho, outro
que retorna da bebedeira no bar. No entanto, nunca troquei
com nenhum deles mais do que as bem-educadas palavras de
saudação ou os comentários meteorológicos de praxe. Nunca
vi nenhuma mulher, somente homens, tão ou mais solitários
que eu. Afinal, neste mundo, quem não está só?
Mas, eu sei que uma mulher mora na pensão. Eu ouço
todas as noites, vinda da parede, sua tosse fraca, delicada e
aguda. Imagino então os mais diversos motivos e situações
que possam levar esta mulher a tossir durante a madrugada,
interrompendo o seu e o meu sono.

Escuro. Somente uma luzinha muito fraca no ambiente,


uma sala pobremente decorada. É um pequeno abajur que
produz a fraca luminosidade. Há uma cadeira de madeira e
um grande balde metálico no chão. O balde está quase cheio
de água. Não há nada pendurado nas paredes. Ao menos, não
enxergo nada. Vejo um homem de pé. Ele está trajado com
suspensórios, está sem camisa e tem o peito e barriga cobertos
por pelos negros. Usa bigode e fuma um charuto. Na cadeira
está uma mulher agora. Não vejo seu rosto. Os cabelos pretos
e molhados escondem sua face. Ela parece emitir alguns
lamentos fraquíssimos, inaudíveis. Forço o ouvido para captar
algo.
ProvaO01homem segura o charuto entre os dentes. Ele levanta
CBJE 12
Contos Subterrâneos

os cabelos da mulher com a mão esquerda e com a direita


enfia sua cabeça no balde com água. Tento me aproximar para
ajudá-la, não consigo. Depois de quase um minuto, terrível
minuto, a cabeça da mulher emerge do balde e a água escorre
dos seus cabelos. Desesperadamente, ela tenta respirar. Tenta
puxar todo o ar da pequena sala para dentro dos seus pulmões
castigados. Ela tosse.

3h17min. Eu acordo sobressaltado, mas, de certa forma,


aliviado por ter sido somente um sonho. Percebo que deixei a
luz acesa e dormi com um livro sobre o peito. Bebo água e
apago a luz. Em intervalos irregulares minha vizinha tosse.
Não consigo dormir novamente. Fico pensando em mil coisas.

***

Eu odeio não ter janelas no quarto. Sinto-me sufocado,


preso dentro de uma caixa. Pior, dentro de um caixão. Nas
noites quentes eu deixo a porta entreaberta, para não morrer
sufocado. Evito fumar dentro do quarto, pois a fumaça não
sai, se acumula. Eu quase posso cortá-la à faca, tão densa ela
fica. Estranhamente, nunca tusso. Acho que minha vizinha o
faz por mim.
Tenho que escrever. Tenho um prazo para entregar o
novo livro. Esta é uma boa oportunidade para reerguer-me
literariamente. No entanto, ando dormindo mal, insone, e isso
não me tem inspirado. Não tenho mais unhas para roer. Não
aguento mais fumar. Não enxergo nada dentro do quarto, a
neblina do cigarro encobre tudo. Ouço a tosse da minha
vizinha atravessando a parede. Ela deve fumar muito. Deve
ter alguma grave doença respiratória. Saio pra rua e volto
somente
Prova 01 pela manhã. Durante o dia ela não tosse.
CBJE 13
E. P. Freitas

Luz branca. Paredes brancas. Lençóis brancos. Tudo


muito claro, muita luz. Várias lâmpadas. Existem câmeras e
pessoas trabalhando. É um set de filmagem. Um homem nu
está de pé. Tem os braços e o peito tatuados. Uma mulher de
cabelos pretos está ajoelhada à sua frente. Está de costas para
mim, não vejo seu rosto. Ela também está nua, somente com
sapatos negros de salto agulha. Ela é muito atraente e acaricia
o homem. Ele segura seus cabelos e força sua cabecinha em
direção ao seu falo túmido. Faz isso algumas vezes e para.
Volta a repetir. Quando o membro inchado toca sua garganta
a mulher afasta-se e tosse.

Mais um sonho. Estou cada vez mais perturbado com


isso. Preciso me mudar. Não sei se é dia ou noite agora. Deve
ter faltado luz e o relógio mostra somente quatro zeros
vermelhos, separados em duplas por dois pontos, piscando.
Provavelmente é dia, pois cheguei em casa pela manhã. E não
ouço ninguém tossir. Preciso de um banho, vou até o banheiro
comunitário, descubro que está ocupado. Decido procurar o
quarto da minha vizinha. Encontro uma porta que julgo ser a
do seu quarto. Colo meu ouvido nela na esperança de escutar
algum ruído. Não há nada, nem sequer a mais breve respiração,
somente o mais acachapante dos silêncios. O banheiro é
desocupado por um senhor de cabelos brancos e pele preta.
Pergunto-lhe as horas. São quatro da tarde. Lembro que
deveria ter entregado na editora, até o meio-dia de hoje, o
capítulo treze da obra que estou trabalhando. Tarde demais,
inventarei alguma desculpa.

1h51min. Estou deitado, pensando. Tenho andado


muito nervoso. Os sonhos com a mulher tossindo tem se
tornado
Prova 01cada vez mais frequentes. Eles acabam comigo. Fico
CBJE 14
Contos Subterrâneos

enfraquecido. A fumaça no quarto está muito densa. Ligo o


ventilador para que ela se espalhe e suma. Mentalmente, anoto
não esquecer de desligá-lo antes de dormir. Certa vez, li que
um ventilador ligado em um quarto hermeticamente fechado
como o meu pode causar morte por hipotermia. Isso se chama
‘fan death’, a morte por ventilador. Sou muito jovem ainda para
morrer. Ainda mais de uma maneira estúpida dessas. Tenho
andado deprimido, mas não a ponto de querer morrer. Ainda
não... Preciso voltar minha atenção ao livro e terminá-lo dentro
do prazo acordado com os editores. É a minha última chance
de voltar a ganhar dinheiro e ser novamente um autor lido e
reverenciado. Preciso me acalmar e recuperar minha
inspiração. A vizinha ainda não tossiu hoje. Terá saído? Terá
morrido? Terá curado a moléstia causadora dos pavorosos
acessos de tosse?

Um globo multicolorido como aqueles das antigas


discotecas gira sobre o salão vazio. Ao fundo, em um sofá de
couro vermelho, duas mulheres estão sentadas. Entre elas, um
enorme narguilé. Ambas fumam maconha ali. São muito jovens,
talvez adolescentes. Estão gargalhando. Sobre elas, na parede
atrás do sofá, há uma reprodução estilizada da Monalisa. Chego
mais perto, elas parecem não me perceber. Fico assustado ao
notar que no canto direito do salão há uma velha de xale sentada
em uma cadeira de balanço. Cabelos cor de prata e olhos
fundos. Só consigo distinguir os seus olhos no rosto, não vejo
sua boca nem seu nariz. De repente, ela me olha, leva a mão
esquerda até onde seria a sua boca e começa a tossir
violentamente. As duas garotas me apontam rindo muito.

5h28min. Acordo somente abrindo os olhos, sem me


mover. Não movo qualquer outro músculo do corpo. Por um
Prova 01
CBJE 15
E. P. Freitas

momento penso que morri. Sinto frio. Muito, muito frio.


Esqueci o ventilador ligado. A fumaça do cigarro desapareceu.
Estou quase congelado. Pela parede ouço pequenas tosses.

***

Faz uma semana que não escrevo sequer uma linha do


meu livro. Tenho escrito somente neste caderno, relatando a
transformação mental que ocorre em mim desde que passei a
me importar com o que ocorre do outro lado da parede.
Minha Olivetti está sob a cama, coberta de poeira e fuligem
de cigarro. Tenho fumado quarenta cigarros por dia, a maior
parte deles dentro do quarto. Não faço a barba há duas semanas.
Bateram na porta mais cedo. Não atendi. Não consigo nem
ao menos olhar meu próprio rosto no espelho, que dirá, olhar
para os olhos de outra pessoa. Ainda tenho uma lata quase
cheia de bolachas. Acho que posso ficar mais alguns dias sem
sair. Estou precisando descansar. Só vou ao banheiro depois
de escutar os ruídos do corredor por várias horas e me
certificar de que não há mais ninguém lá fora. Além de ouvir
minha vizinha tossir todas as noites tenho sonhado cada vez
mais com isso, às vezes mais de um sonho por noite. Estou
obcecado. Os sonhos tem sido um fardo pesado a se carregar.
Sempre quando acordo de um desses terríveis pesadelos sou
lembrado, imediatamente, através dos sons que vem pela
parede, de que talvez minha vizinha esteja vivenciando
realmente as experiências que tenho em sonho. Preciso fazer
algo. Não posso simplesmente ignorar estes sinais ao meu
redor. Creio que minha vizinha precisa de ajuda. Talvez, eu
também precise. Na noite anterior comecei a tossir.

Prova 01 ***
CBJE 16
Contos Subterrâneos

Não consigo mais dormir. Tenho medo de fechar os


olhos e enxergar as cenas dantescas de uma mulher que sofre,
chora e tosse. Fico acordado a noite toda, fumando, tomando
café bem preto, que esquento no pequeno fogão de duas bocas
sob os quadros da parede, vez que outra o bebo com conhaque.
Resgatei meu velho gravador e fico à espreita, ao lado da
parede, tentando gravar as tosses de minha vizinha, talvez numa
tentativa de provar que nada disso existe, que é tudo fruto da
minha mente. Tenho tossido e sentido febre. Chego a delirar,
imagino que eu possa me comunicar com ela através da tosse.
Uma tossida é sim, duas é não. Ou vice-versa. Um código
rudimentar entre semelhantes.
Estou há um mês sem escrever. Não tomo banho mais,
saio somente quando é inevitável, para ir ao banheiro e quando
preciso buscar alguma comida ou cigarros. O dinheiro está
acabando. Minha vizinha parece ter melhorado. Quase não a
ouço tossir. Por minha vez, tusso cada vez mais. Tenho acessos
que duram horas. Ainda tenho alguns remédios aqui comigo e
os tomo. Parecem não adiantar. Estou emagrecendo
rapidamente. Ouvi minha vizinha tossir agora.

4h04min. Os números vermelhos do relógio parecem


pequenos diabos. Acabei de ter um sonho, o primeiro em muito
tempo que não mostrou uma cena de mulher tossindo. Sonhei
com o que há atrás da porta fechada dentro do quarto. Sonhei
que eu ficava lá dentro durante meus severos acessos de tosse,
para que ninguém me ouvisse através das paredes.

***

Decido abrir a porta interna de meu quarto. Que


segredos
Prova 01 malditos estarão escondidos lá atrás, na outra peça?
CBJE 17
E. P. Freitas

A tarefa de abri-la é mais penosa do que eu poderia imaginar.


Ela parece estar trancada há muito tempo. Parece que os dias,
os meses e os anos a vedaram. Parece ter se tornado parte da
parede. Depois de muitas tentativas, usando toda a pouca força
que me resta, entre um acesso de tosse e outro, finalmente,
consigo abri-la. Estou tão exausto que adormeço com metade
do corpo para dentro do novo quarto de minha humilde
residência. Sono sem sonhos. Ao acordar passo a explorar a
saleta. É profundamente escura e demoro algum tempo
localizando minha lanterna no amontoado de tranqueiras sob
a cama para que possa enxergar algo. O cômodo tem metade
do tamanho de meu quarto. Suas paredes são revestidas por
uma espécie de tecido acolchoado que lembra o formato de
bandejas de ovos. São do mesmo tipo que se encontra em
estúdios musicais. Estou com minha lanterna. Aproveito sua
luz para ficar deitado, escrevendo. Empurro a porta com os
pés. Vou desligar a lanterna e ficar aqui onde não ouço nada
além de minha fraca respiração e onde não posso ser ouvido.

***

Estas cinco folhas de caderno manuscritas foram


encontradas durante o processo de demolição de um prédio
antigo no Centro. Estavam dentro de uma espécie de quarto
secreto, ao lado de um quarto principal no edifício onde já
funcionou uma pensão. As folhas estavam ao redor de um
cadáver em avançado estado de decomposição e de uma
pequena lanterna.

Prova 01
CBJE 18
Contos Subterrâneos

Raquel

Mais um cigarro morto no cinzeiro, foi o pensamento


esquisito que me passou pela cabeça quando terminei de
esmagar o cigarrinho de filtro branco. O cinzeiro era surrado
e cafona, de plástico preto. Foi um pensamento mórbido?
Dramático? Lírico? Eu realmente não sei, só sei que foi um
pensamento bastante revelador acerca do meu humor naquele
instante. A mesa era sem toalha, com manchas ancestrais de
todo tipo de gordura, bebida e secreção. Não era das mais
respeitáveis, porém era a mesa que sustentava meus cotovelos
e pequenos apetrechos de prazer naquela noite: um livro do
Baudelaire, cigarros e a garrafa de cerveja pela metade. O ruído
ao meu redor era tão alto e irritante que imediatamente acendi
outro cigarro, enquanto servia mais um copo da bebida gelada
e amarela. Era uma dessas noites do meio do ano, fria e mais
escura que as outras, onde, sem nada melhor pra fazer, é sempre
conveniente cercar-se de amigos na mesa farta do bar
(fartamente abastecida de bebidas) e conversar animadamente,
tudo regado ao bom e velho companheiro da humanidade, o
álcool etílico. Na falta dos amigos, sempre servirão os colegas
de trabalho, que, por mais medíocres que possam parecer,
tornam-se mais palatáveis quando embebidos em álcool. E
foi numa noite assim, com todas estas características, que
aconteceu essa singela, no entanto interessante história que
passo
Prova a01lhes contar.
CBJE 19
E. P. Freitas

Mais uma hora e estarei livre, foi o pensamento que tive


exatamente um segundo antes de levantar o fone do gancho e
ligar para o primeiro amigo da lista. Era uma sexta-feira, dia
de pagamento, tudo conspirando para uma bela farra. Liguei
pra um, liguei pra dois, liguei pra três e nada. Todos já estavam
de alguma for ma comprometidos naquela noite ou
profundamente imersos em suas pequenas depressões de início
de fim-de-semana. Eu não estava disposto a passar a próxima
hora dependurado no telefone, mendigando a companhia de
meus amigos deveras ocupados. Olhei os meus colegas de
trabalho, cada um em frente ao seu computador, com a mesma
expressão abobalhada de todos os dias, inclinei a cabeça para
trás e gritei: Quem tá a fim de tomar todas hoje? Vários se
manifestaram positivamente. Mesmo não tendo muita
afinidade com aquelas pessoas tão comuns e de ideias tão
provincianas, dogmáticas, separatistas, racistas, sexistas e
homofóbicas segui em frente com o plano. Em verdade,
ficamos todos bastante empolgados e ao sairmos em direção
ao estabelecimento de biritas fomos alegremente cantando A
volta do boêmio por todo o percurso de trinta metros entre o
trabalho e o bar.
Ao entrarmos na lanchonete, logo de cara, reparei que
o movimento estava bom. Poucas mesas vazias e cada uma
das várias mesas ocupadas contando com várias pessoas,
inclusive uma bem ao fundo do estabelecimento onde
sentavam-se quatro — três mulheres e um homem,
bebericando e comendo batata-frita. Dentre as mulheres uma
me chamou a atenção mais especificamente. Aparentava
trinta anos, longos cabelos loiros, os olhos e a boca da Emma
Suárez em Besos para todos. Exercia forte magnetismo sobre
mim e, alheia a isto, bebia apaixonadamente, entre uma
gargalhada
Prova 01 e outra.
CBJE 20
Contos Subterrâneos

Sentamos próximos a esta mesa, eu e mais quatro colegas


de trabalho, dois homens e duas mulheres, e pedimos duas
cervejas pra começar, reforçando que devia vir bem gelada.

Apesar da noite fria, o hábito nesta terra sulina é de


tomar a cerveja completamente gelada, opostamente ao
chimarrão pelando de quente dos fins de tarde no começo e
fim do ano. Não é de estranhar, afinal, estamos em um lugar
do planeta onde a cada dia vinte de setembro comemora-se
entusiasmadamente, fato único no mundo, uma guerra perdida.
Tomar bebida gelada no inverno e quente no verão não causa
mais estranheza quando se conhece essa última notícia.
Bebemos, falamos muitas bobagens, rimos bastante,
falamos mal de colegas ausentes da mesa, comentamos
calorosamente o futebol estampado na tela da TV que ficava
sobre uma velha geladeira aparentemente enguiçada. De certa
forma, o cérebro de muitas pessoas, algumas inclusive
presentes àquela mesa, funciona mais ou menos como aquela
geladeira escangalhada: serve somente pro futebol e seus
comentários em espiral eterna e repetitiva — um apanhado
de informações inúteis.
Quando fui ao banheiro desaguar pela primeira vez,
reparei em um velho sentado numa mesa do canto. No lado
oposto da mesa onde bebia a Emma Suárez da região
metropolitana. À sua frente uma garrafinha plástica de água
mineral sem gás pela metade e um copo trincado com somente
um golinho de água lá no fundo. Velho estranho, mas trajado
distintamente, com chapéu, cachecol e sobretudo preto.
Olhava diretamente pra mesa das três garotas mais o
rapazinho, que, agora eu havia percebido, era homossexual.
O velho tinha olhos indecentemente familiares. E, aqueles
mesmos
Prova 01 olhos, lentamente girando com a cabeça em minha
CBJE 21
E. P. Freitas

direção, fixaram-se em mim. Constrangimento de minha parte


somente. Desviei o olhar e segui ao banheirinho no fundo do
estabelecimento pensando na rapariga e agora no velho
estranho também. Ao voltar, notei que a mocinha ostentava
um belo colar prateado, pequeno e discreto, com a letra R
pendurada. R de Roberta? Renata? Rovana? Sim, conheci certa
vez uma garota chamada Rovana. Já vi muitas coisas estranhas
na vida.

***

A beberagem seguia insana, porém, sem o mesmo


brilho de duas horas atrás. O velho já havia se retirado,
passando ao lado da nossa mesa sem olhar, somente ajeitando
o chapéu, com o cigarro de filtro branco entre os dentes, como
eu costumo fazer quando me sinto pleno de verve e sarcasmo.
A guria da letra R estava se despedindo de suas amigas
também, acho que eram colegas de trabalho, levantaram todas
simultaneamente, inclusive o mocinho delicado, e se dirigiram
ao caixa. Pagaram, riram, deram gritinhos e saíram porta afora.
A essa altura em minha mesa só restava uma tia velha
do meu trabalho, completamente bêbada, deitada na mesa e
um rapaz muito inteligente, com enorme talento artístico,
porém enigmático. Estávamos já no estágio depressivo da
conversa. Cada um, exceto a tia que já roncava sobre a mesa,
provavelmente sonhando com um belo rapaz que desejasse
comê-la, contando seus dissabores, suas agruras, seus
desapontamentos com a humanidade. O rapaz me censurava
duramente, às vezes me apontando o dedo e babando, por
um suposto grave defeito em mim: costumar fazer
julgamento das pessoas. Achei que ele estava me julgando,
mas não
Prova 01 falei nada.
CBJE 22
Contos Subterrâneos

Depois de muito blablablá e lero-lero do mesmo tipo


decidimos ir embora, afinal, as cadeiras já estavam sobre as
mesas e esse papo deprê de final de bebedeira nunca leva a
nada mesmo, nem ao suicídio. Quantas e quantas vezes já
testemunhei esta cena: casa vazia, papo escroto, cadeiras sobre
as mesas e um garçom de braços cruzados, com a maior
tromba, amaldiçoando mentalmente todos os bêbados que
não sabem a hora de pagar a conta e ir pra casa.
Levantamos, pagamos, saímos. Minha colega já se
encontrava alerta novamente, prova disso é que já voltara a
falar mais que a boca. Uma providencial coca-cola havia
restaurado a contento seu metabolismo. De comum acordo,
resolvemos tomar uma saideira em outro bar um pouco mais
distante e que o pessoal gostava de frequentar. A meio caminho
andado, a tia, totalmente descabelada, e o rapaz de semblante
melancólico, embarcaram em um táxi e sumiram, me deixando
sozinho entre os arranha-céus, corredores de ônibus vazios e
prostitutas enregeladas. Sempre desconfiei que fossem amantes.
Entrei na primeira lancheria e pedi café. Fumei mais
um cigarrinho e após esvaziar a xícara pedi mais outro café.
Voltaire tomava vinte e cinco xícaras por dia e morreu em
idade avançada. Não senti culpa em tomar uma dose dupla de
cafeína. Paguei com algumas moedas e saí em direção ao
terminal de ônibus. A noite já estava em estado terminal
mesmo. Na esquina avistei uma mulher.

***

A mulher estava encostada na parede de uma farmácia,


com o telefone na mão, como quem disfarça a timidez perante
olhos inquisidores. Passei por ela, não sem antes reconhecê-la,
era a menina do colar com a letra R. R de Rúbia? De Rita? Pra
mim
Provaainda
01 era a Emma Suárez, talvez mais alta e magra, jovem
CBJE 23
E. P. Freitas

e bêbada. O que ela fazia ali sozinha? Onde estão suas amigas e o
rapazinho afeminado?, pensei. Certamente, eles a haviam
abandonado, como os meus colegas fizeram comigo, nas ruas
hostis e gélidas próximas ao Guaíba.
Será que ela tem pés tão bonitos quanto os de Emma?
Pensamentos desconexos assim me assaltavam, então acendi
um cigarro, olhando ao redor em busca de sombras que
pudessem saltar de repente e me esfaquear. Enxerguei somente
o velho do chapéu e cachecol no outro lado da rua, estático,
defronte a um antigo sobrado, desses os quais o Centro de
qualquer grande cidade ainda guarda aos montes, como
mensagens do passado que insistem em nos dizer ‘ estávamos
aqui bem antes de vocês, que sumirão, e nós permaneceremos aqui’.
Ele apenas fumava a intervalos regulares e imóvel
olhava em minha direção, parecia querer me dizer algo. Parecia
tentar avisar sobre algo que eu deveria fazer. Mesmo de longe,
e no escuro, percebi que seu cachecol era perturbadoramente
semelhante ao meu.
Esse momento foi interrompido pela garota que
estabacou-se pesadamente no chão, produzindo um ruído surdo,
gravíssimo, de corpo batendo no solo. Estava sentada agora,
completamente bêbada. Instintivamente, solidariamente, cheguei
mais perto. Então ela começou a vomitar, com a cabeça baixa,
as pernas abertas, a enorme bolsa de couro artificial deixada de
lado. Devido à posição que estava vomitou no próprio peito.
Agachei próximo a ela, levantando sua cabeça e perguntando
como estava. Por sorte, havia um exemplar da Folha Universal,
que eu havia recebido durante à tarde, dentro da minha mochila.
O jornal serviu muito bem para limpar sua blusa vomitada e
secar seu rosto. Ao menos, naquela noite, um fruto do
cristianismo-pilantra-neopentecostal-dos-telepastores-de-
sotaque-carioca
Prova 01 serviu para ajudar o próximo.
CBJE 24
Contos Subterrâneos

Pedi licença, e, delicadamente, limpei seus seios com


um pedaço rasgado de jornal, enquanto colocava outro
pedaço em suas belas mãozinhas. Não fiquei excitado, graças
a Deus, apesar de todas minhas perversões, seios vomitados
não habitam meus fetiches. Enquanto fazia isso percebi o
colarzinho com a letra R sobre o seu peito. R de Raimunda,
de Ramona, de Raíssa, de Rânia? R de que?, perguntei sorrindo.
E ela respondeu, com a voz escalavrada, que era R de Raquel.
Fiquei falando sem parar tentando fazer com que ela se
mantivesse consciente. Durante a conversa descobri onde
morava, era perto da minha casa. O ônibus chegou, carreguei
sua pesada bolsa, e com o braço esquerdo a levantei e apoiei
até ele. Durante a viagem abri um pouco a janela para que a
brisa da madrugada a refrescasse enquanto ela dormia com a
cabeça sobre o meu peito.
Ao passar pela parada que julguei ser a sua percebi o
equívoco: eu havia confundido os nomes dos bairros. Na
realidade, ela morava bem longe. Que seja, pensei, sem cogitar
abortar a missão de salvá-la dos terrores que podem acometer
uma moça bêbada em plena madrugada da cidade. Ela
continuava dormindo sobre o meu peito, sem imaginar a
dimensão da aventura que me proporcionava. Quando
finalmente o ônibus entrou pela avenida principal do seu bairro
ela automaticamente despertou e levantou para descer. Eu a
acompanhei como um fiel escudeiro, um anjo-da-guarda
zeloso, porém não inteiramente desinteressado. Uma mulher
bonita em apuros é um clichê maravilhoso, que pode se
transformar, se não em um grande amor, ao menos em
algumas belas trepadas. O nome que a psiquiatria daria isso
seria “Síndrome de Popeye”, descontando-se o fato de que Olívia
Palito
Prova não
01 é lá muito bonita.
CBJE 25
E. P. Freitas

Descemos na esquina da sua rua. A segunda casa, com


uma bonita cerquinha de madeira, era a sua. Em frente ao
portão nos abraçamos e ficamos frente a frente, enquanto se
passavam os eternos e atordoantes segundos que precedem o
primeiro beijo. Lembrei que ela havia vomitado menos de uma
hora atrás. Então pedi seu telefone, ela me agradeceu a ajuda e
eu fui embora. Ainda vi, pela última vez, o seu colar e a letra R
refletindo a luz fraca dos postes da periferia. Ao longe, na
escuridão, avistei uma brasa de cigarro. Chegando mais perto
identifiquei o velho do chapéu e cachecol. Intrigado, corri em
sua direção, mas ele foi mais rápido que eu, atravessou a
avenida principal do bairro no momento exato de conseguir
parar um táxi, embarcar e partir, de maneira espantosamente
sincronizada. Ficou olhando pelo vidro traseiro, sorrindo
discretamente. Jogou o cigarro pela janela. Fui até o cigarro
descartado, ainda queimando, e o peguei com a ponta dos
dedos. Era da mesma marca que eu fumava. Nem ônibus, nem
táxis passaram então. Caminhei até casa e cheguei junto com
os primeiros raios de sol, não sem pensar na estranha
testemunha dos meus atos.

***

Deitei e dormi. Sonhei com letras erres. O R do Robin.


O R da marca registrada. O R das Lojas Rei com uma coroa
de três pontas redondas e douradas em cima. O R do Riquinho.
O R do colar de Raquel. Sonhei com erres de todas as formas,
cores e tamanhos. Na semana seguinte, telefonei para Raquel
querendo saber como ela estava, talvez marcar uma cerveja.
No entanto, a voz agora recuperada soava fria, distante,
levemente apressada. Combinamos de conversar mais vezes.
Nunca mais nos ligamos.
Prova 01
CBJE 26
Contos Subterrâneos

A Segunda Banda da Noite

Uma estranha sensação percorreu minha espinha


enquanto a segunda banda da noite entrava no palco e eu
tomava o último gole daquela cerveja barata que já estava
ficando quente. Não sei exatamente o que foi, se a feiúra dos
integrantes da banda adentrando o palco, se a visão dos seus
instrumentos castigados por noitadas selvagens ou se o bando
de malucos ao meu redor gritando sem parar, embalados por
paraísos artificiais, talvez infernos, eu realmente não sei. Só sei
que a sensação se foi tão rapidamente como veio, então fiquei
um segundo sem pensar em nada e deixei cair aos meus pés o
agora vazio copo de plástico vagabundo. Vazio como tinha
sido vazia a sequência de acontecimentos até então nessa noite
que tinha tudo pra ser positivamente inesquecível e não foi.
Mais cedo, enquanto eu e o meu guitarrista fumávamos
um baseado rechonchudo numa pracinha próxima à birosca
onde iríamos tocar naquela noite, uma pomba cagou bem em
cima do meu baixo. Eu fiquei extremamente emputecido com
esse desarranjo intestinal da ave em cima da minha grave
guitarra de quatro cordas, mas não deixei que isso abalasse
completamente meu humor, até porque a essas alturas eu já
estava curtindo a brisa da maconha e meu corpo todo estava
relaxado e mole como uma sopa de minhocas. Depois que
fumamos a vela e saímos caminhando, acabamos esbarrando,
Prova 01
CBJE 27
E. P. Freitas

alguns metros além da praça, com duas gurias já bem altas,


provavelmente de uma mistura de uísque e cola que elas
estavam cheirando. Resolvemos partir pra cima das moçoilas.
Uma era magra e feia de rosto, com os cabelos pretos bem
curtinhos parecendo um espanador de loja bagaceira. Tudo
bem, afinal eu era esquelético e já tinha a cara toda furada por
cicatrizes de espinhas. A outra era meio gorda, mas com peitos
enormes, embora tivesse pouca bunda, era loira e tinha os
olhos verdes. Sem problemas, pois meu guitarrista tinha a
barriga do tamanho do Everest. A magricela de cabelo preto
tinha manchas estranhas na cara, mas era muito charmosa. A
gorda era bonita, mas não parecia ser muito asseada. Ambas
se vestiam como menininhas roqueiras de butique e davam
gargalhadas sinistras que, aliadas a paranoia causada pelo
baseado que havíamos fumado há pouco, me causavam
calafrios. A sensação de que a noite seria uma merda, pra falar
a verdade, já me acompanhava nesse momento.
Chegamos perto das garotas e oferecemos um gole do
vinho que estávamos levando dentro da sacola da guitarra do
meu guitarrista e elas ficaram supercontentes com essa cortesia,
eufóricas, quase histéricas, dando gritinhos agudos de prazer.
Pegaram a garrafa e deram goles enormes como se fossem
muito mais acostumadas a beber do que nós. Realmente,
deviam ser mesmo, apesar de já termos alguma fama como
marginais-bêbados-arruaceiros, as gurias não tinham o aspecto
de moças de família e pareciam bem estragadas por noites
insones regadas a todo tipo de ilicitudes. De qualquer forma,
a conversa tinha engrenado e seguia bem animada quando
contei que a nossa banda se chamava Trupe Maravilhosa e
meu guitarrista, depois de mais um gole do vinho que agora já
findava convidou as raparigas para o nosso show. Continuei
falando
Prova 01da banda e contei que tocávamos diversos sambas
CBJE 28
Contos Subterrâneos

clássicos, em versões extremamente originais, carregados de


velocidade e peso. Tocávamos muitas canções nossas e
planejávamos gravar um disco em breve. Falamos isso tudo
pras gurias e elas ficaram, mais uma vez, superexcitadas
querendo saber o que cada um de nós tocava, quem fazia as
canções, quais nossas influências, onde ensaiávamos, quantos
membros tinha a banda, se tínhamos namoradas, onde
morávamos, quais as drogas que curtíamos... As línguas delas
simplesmente não paravam de se mexer e não ficavam dentro
das bocas, pequena e vermelha, no caso da gorda, grande e
esbranquiçada, cheia de fissuras, no caso da magrela. Então
elas seguiram fazendo milhares de perguntas, alvoroçadas que
estavam agora pelo vinho, pela cola e pelo uísque que haviam
tomado antes, e por terem encontrado dois carinhas de
instrumentos em punho que as estavam convidando para um
show logo mais à noite. Eu agarrei a branquela de cabelo preto
e meu pançudo guitar hero deu o braço para a linda loira fofinha
de peitos enormes e começamos a caminhar em direção ao
pequeno boteco fedido-fodido e decadente onde iríamos tocar
dali algumas horas.
Chegando lá, havia um misto de chicletes, tocos de
cigarro, tampas de garrafa, cacos de vidro, jornais, papéis sujos
(por toda espécie de imundície imaginável, inclusive fecal) e
baratas, tudo isso bailando sobre a calçada defronte a porra
do bar, que, pra fim de conversa até que era simpático. Afinal,
esse era o nosso mundo, a nossa cara, a cara do nosso mundo.
Então, pegamos as garotas e entramos. Lá dentro, de maneira
esquisita, porém usual, cada um foi pra um canto curtir a sua
própria solidão sossegadamente.
Eu estava rememorando, revivendo tudo isso, quando
a segunda banda da noite finalmente deu o primeiro acorde
no palco
Prova 01 e sons extremamente irritantes e desagradáveis
CBJE 29
E. P. Freitas

caminharam pelas paredes infectas do lugar. Pensei em ir buscar


um pouco mais de cerveja quente (na realidade, eu queria bem
gelada) e dei uma olhada em todas aquelas pessoas viajando
dentro do bar e não vi nem as gurias que conhecemos na rua
muito menos meu guitarrista ou o meu baterista, que a essa
hora devia estar transando com a sua nova namorada num
canto qualquer da rua detrás. A propósito o bar se chamava
A Moita. Era um nome estranho para um lugar mais estranho
ainda. Se não era um bom nome ao menos servia pra toda
sorte de trocadilhos infames. Então saí caminhando entre todos
aqueles seres esquisitos da noite e foi quando de repente eu
percebi que havia muito mais gente do que eu imaginara que
haveria. Fiquei um tanto quanto preocupado e nervoso,
temendo por nossa performance. Naquele dia iríamos tocar
pela primeira vez a canção que estávamos preparando desde
um mês antes e ela se chamava Cadência Escrotal. Falava sobre
os movimentos que o saco faz quando estamos trepando em
cima de uma mulher e era na realidade uma alegoria sobre as
eminências pardas. Mesmo não influindo diretamente na
penetração o movimento das bolas é muito importante, ao
menos essa era a desculpa que eu dava quando me
perguntavam sobre como tive a ideia de escrever a canção e
não queria revelar que tinha sido às quatro horas da manhã
depois de um grande porre.
Eu saboreava por antecipação o anúncio da música:
Agora vamos tocar uma nova canção chamada Cadência Escrotal. Eu
sabia que a maior parte daqueles bêbados e degenerados que
frequentavam a espelunca não teria sensibilidade suficiente para
compreender a canção, mas ela era dançante e vigorosa, então
eu sorria antecipadamente pelo efeito que causaria na plateia.
No momento que eu estava bem no meio do lugar, em frente
aoProva
palco
01 vendo a segunda banda da noite estuprar os ouvidos
CBJE 30
Contos Subterrâneos

do público, eu senti alguém me puxando. Puxão forte,


desengonçado, quase me quebrou ao meio. Olhei rapidamente
para o lado de onde vinha esse puxão e vi um cara enorme,
que continuava a me puxar pelas mangas, falando coisas
desconexas. Ele me levou até o fundo da casa e começou a me
falar altas coisas. Ele estava aparentemente muito ligado de
cocaína e com um odor terrível de álcool exalando por todos
os seus poros. Ele me falava coisas sobre naquela noite estar
no bar um cara de uma gravadora que viera somente para nos
ver tocar, pois nossos pequenos e malditos shows já
começavam a chamar a atenção de algumas mídias
especializadas (muitas delas marginalizadas) e dos malucões
mais antenados. Ele soltava essa torrente de informações bem
sobre a minha cara ao mesmo tempo em que seu hálito milenar
de álcool quase me entorpecia e gotículas de saliva espessa e
mal-cheirosa dançavam em torno de sua boca.
Então eu fiquei pensando se aquilo tudo era mesmo
verdade e fui falar com o dono do lugar pra ver se ele estava
sabendo de alguma coisa. Encontrei o cara no balcão, ao lado
de um maço de cigarros Campeão. O cara confirmou a história
e ainda disse que o tal sujeito da gravadora havia perguntado
muitas coisas sobre a Trupe Maravilhosa e que depois de nos
ver tocar gostaria de nos chamar para jantar e trocar algumas
ideias. Isso me deixou perplexo, num turbilhão de ansiedade
extrema e pensamentos delirantes. Perguntei quem era o cara
e onde ele estava, então o dono da birosca me apontou um
sujeito de rosto redondo e olhos oblíquos, impecavelmente
escanhoado e vestido como se fosse um gay aristocrático.
Associei-o imediatamente a Oscar Wilde.
Vivi um grande dilema nesse momento e não soube o
que fazer. Não soube se procurava meu guitarrista ou o meu
baterista
Prova 01 para contar a história incrível ou se chegava na mesa
CBJE 31
E. P. Freitas

do almofadinha e o cumprimentava. Pedi mais uma cerveja


quente (pedi gelada, mas veio quente) pro dono do lugar que
a essa altura acendia mais um Campeão e fiquei ali tremendo
de medo e excitação. A segunda banda da noite, que não
lembro mais o nome, continuavam no palco explodindo os
cérebros mais sensíveis e derretendo os tímpanos dos poucos
que se aventuravam ficar bem em frente às caixas de som. Eles,
de fato, eram muito ruins. Será que nunca ninguém até então
os alertara sobre a total falta de musicalidade da banda? A
verdade é que aqueles ruídos desafinados estavam me irritando
demais, e não somente a mim, mas a todos os malucos do
pedaço, um deles bastante perigoso, e que até o momento
ninguém poderia adivinhar. Houve um breve momento de
silêncio no palco que logo foi rasgado por mais um acorde
estridente e pela voz feia e anasalada do cantor, que nesse
instante enroscava o cabo do microfone em volta do pescoço.
De repente, uma movimentação incomum se deu.
Alguém furava a multidão ensandecida de bêbados, drogados
e maníacos como um cubo de gelo navega pelo uísque recém
servido até o fundo do copo e retorna. No entanto, desta vez
a navegação foi sem volta e a pedra de gelo estacou defronte
ao palco, sacou um revólver prateado e desferiu cinco balázios
bem na cara e no peito do cantor de voz feia, deixando a arma
cair em seguida. Exatamente onde eu havia deixado cair o
copo de cerveja vazio enquanto pensava naquelas coisas todas
vazias da noite. As microfonias dominaram o ambiente e logo
cessaram, acho que pouco antes do corpo tombar para fora
do palco. Estupefação generalizada, quem estava bêbado
curou o porre, quem havia fumado precisava fumar mais um.
Seguiu-se uma correria absurda e pessoas foram pisoteadas
naProva
fuga01bêbada do público.
CBJE 32
Contos Subterrâneos

Eu fiquei paralisado com o assassinato do cara, que


agora jazia ensanguentado e com um cabo de microfone ao
redor do pescoço logo abaixo do rosto desfigurado, ali a cinco
metros de mim, mas, fiquei muito feliz também, pois aquele
barulho pavoroso finalmente terminara.
Mais alguns segundos de incredulidade e percebi algo
que me deixou mais mortificado ainda, além de fazer o meu
copo cheio de cerveja quente cair: o matador era Oscar Wilde,
quer dizer, o cara da gravadora. Alguns caras já imobilizavam
a triste figura que vociferava e espumava de tanto ódio gritando
por silêncio.
Foi muito azar o meu e da minha Trupe Maravilhosa.
O grande homem da gravadora resolveu enlouquecer e
cometer um homicídio bem na noite em que nos descobriria,
ficaríamos ricos, famosos e comeríamos as melhores mulheres
da mídia. Pouco tempo depois a Trupe Maravilhosa se separou
por falta de grana e tempo e agora eu trabalho de garçom,
servindo cervejas quentes e outras nem tanto, no mesmo bar
onde aconteceu tudo isso. E até hoje, meus amigos, eu fico
muito nervoso quando sobe ao palco a segunda banda da noite.

Prova 01
CBJE 33
Os contos subterrâneos de
Ivo Ávila
Contos Subterrâneos

Thiago, o bailarino

O quarto da academia era pequeno e um pouco úmido.


Pilhas de jornais se misturavam aos pratos com restos de pizza
de dois dias. Thiago levantou-se com dificuldade, ajeitou os
óculos e pôs-se a revirar gavetas em busca de recortes antigos,
dos tempos do Royal Ballet londrino. Lembrar ajudava a
diminuir um pouco a solidão e a idade e fazia com que ele
encontrasse talvez uma motivação, um resquício do brilho de
quase quarenta anos.
Nas paredes descascadas, cartazes já amarelados
anunciavam um artista reconhecido por seu talento que, no
entanto, agora parecia deslocado no tempo. Ah, mas ele era o
melhor, não tinha dúvida, ninguém tinha.
Guardou os recortes, suspirou e olhou mais uma vez
para o relógio de pulso, uma das poucas peças de valor que
restara desde que se aposentara e retornara para o Brasil.
Decidiu descer logo para o andar de baixo, onde dentro de
uns quinze minutos teria de receber um aluno, o primeiro em
quase seis meses após ter se instalado naquele lugar.
Não pôde deixar de pensar em si mesmo, no seu
primeiro dia de aula de balé clássico, ainda menino chegando
à puberdade, recém saído das ruas e da batalha diária por
sobrevivência na favela. Se havia uma palavra ou um sentimento
que lhe marcara desde aquele tempo era dignidade. Thiago se
Prova 01
CBJE 37
Ivo Ávila

orgulhava de sua integridade moral tanto quanto a física, que


lhe permitira atingir os mais altos níveis da carreira, numa
época em que homem dançar, ainda mais sendo negro, era
uma coisa olhada pelo viés do preconceito. Não que isso
houvesse acabado, mas graças a pessoas como ele, que se
dedicou de corpo e alma à arte em todo o tempo que dispunha,
o profissionalismo evoluíra a ponto de superar as dificuldades
impostas pelo modelo social.
Olhou ao redor do salão, com uma única parede coberta
por um espelho já oxidando, e sentou-se numa cadeira de
madeira colocada numa das extremidades, junto a uma
mesinha de metal onde Dora, a professora que era também
sua sócia, havia colocado uma garrafa grande de água mineral
e alguns copos plásticos. Ultimamente, se sentia cansado com
muita freqüência e precisava supervisionar as aulas, quando
havia, de seu “observatório”, como costumava chamar aquele
ponto de onde podia ter uma visão privilegiada tanto de quem
dançava quanto do espaço em si, ou a “área útil do palco”,
como dizia.
O menino chegou trajando uma malha preta e sapatilhas
da mesma cor, cabelo louro à escovinha e um olhar entre
ansioso e expectante. Thiago o examinou com atenção,
notando o corpo magro e esguio, porém já com traços de
definição na musculatura jovem. Tentou enxergar nele um
futuro bailarino, mas só conseguiu ver a si mesmo de novo,
tímido e indeciso sobre o que fazer na vida.
Foi arrebatado do fluxo de pensamentos pela voz de
Dora, que chegou junto com o novo aluno, já perguntando
seu nome, idade, altura, peso, etc. dados que rapidamente ia
preenchendo numa ficha de cartolina, enquanto o menino, que
se também se chamava Tiago, sem “h”, contou que seus pais
lhe puseram
Prova 01 este nome em homenagem ao grande bailarino
CBJE 38
Contos Subterrâneos

Thiago Soares, que eles admiravam muito. Quando souberam


que ele havia se aposentado dos palcos, mas tinha montado
este curso de balé clássico ao voltar para o país, fizeram questão
que seu filho fosse matriculado e orientado por Thiago.
De onde estava, Thiago apenas esboçou um leve
sorriso, encheu um copo com água mineral e perguntou ao
garoto se ele já havia dançado alguma vez. Tiago disse que só
na escola. Uma vez por ano havia uma apresentação mista de
dança clássica, jazz, hip-hop, e que sempre o escolhiam para
representar a sua turma, pois era o único que gostava de dançar
e ensaiava bastante.
Dora então colocou no aparelho de som um trecho do
Quebra Nozes, de Tchaikovsky, iniciando os movimentos e
pedindo a Tiago que a acompanhasse. Novamente Thiago se
viu transportado no tempo, aos primeiros exercícios na barra,
para aumentar a flexibilidade e dominar a fadiga muscular,
aos primeiros passos com o acompanhamento do piano, aos
primeiros erros e acertos. O som da sinfonia preencheu o salão
e seus ouvidos, induzindo a um estado de relaxamento e
ampliação de consciência. Só percebeu que talvez tivesse
cochilado ao ouvir os sons que agora Dora fazia ao arrumar
suas coisas, remexendo na bolsa, ruído de chaves, passos
rápidos ao seu redor.
O aluno? Fazia mais de uma hora que o jovem Tiago
havia saído, ele nem pôde avaliar qual o potencial do menino.
Confiava em Dora e em seu faro, ela era uma boa e jovem
professora, porém dessa vez ela apenas disse que o aluno tinha
talento.
Thiago chegou a esboçar uma resposta, mas calou-se,
pensando que talvez, um dia desses, ainda tivesse que calçar
novamente suas sapatilhas (se as encontrasse) e assumir o
controle
Prova 01 das aulas. Mas agora estava muito cansado e
CBJE 39
Ivo Ávila

precisando dormir. Subiu as escadas até seu quarto, deitou-se


totalmente vestido, inclusive com o capote de lã que usava
para assistir as aulas, pois o salão era muito frio. Assim foi
encontrado no dia seguinte; o coração havia parado doze horas
antes, conforme disse o legista para Dora, que chegou no seu
horário habitual e não havendo visto nem ouvido nenhum
ruído, subiu até o quarto do bailarino. Desta vez, o adeus aos
palcos fora definitivo e sem despedidas.

Prova 01
CBJE 40
Contos Subterrâneos

Contato

Remexeu-se na cama mais uma vez, sem saber se era


noite ou dia. Sentiu frio, apesar do cobertor de lã. Levantou-
se, esfregando os olhos e ao abri-los, teve a primeira surpresa:
não estava em seu quarto. A cama estava colocada no centro
de uma sala circular, com pé direito muito alto, talvez cinco
metros. Não havia janelas, apenas uma porta de metal cinzento
dava passagem ao recinto. A iluminação escassa vinha de uma
única lâmpada do alto do teto.
Tentou caminhar devagar em direção à porta e
surpreendeu-se de novo, pois seus pés flutuavam a uma
distância de uns trinta centímetros do chão e cada passo era
como andar dentro d’água, tinha de fazer movimentos suaves
para ter direção e equilíbrio. Apesar do inusitado gostou disso,
pois sem precisar fazer muito esforço conseguiu chegar à porta
em dois ou três passos.
Levou a mão à maçaneta circular no centro da porta,
mas recuou em seguida, ouviu vozes, ruídos como o arrastar
de algo metálico se aproximando e alguns gemidos e lamentos.
Tomada de súbito pânico, tentou voltar para a cama, mas ao
virar-se naquela direção, ela não estava mais lá. Começou a
ofegar, o coração disparou, sentiu a cabeça latejar e um
zumbido crescente nos ouvidos foi a última coisa que sentiu,
antes
Provade01desmaiar.
CBJE 41
Ivo Ávila

Ao voltar a si, olhou o pequeno relógio de pulso e mais


uma vez teve certeza de que algo estava muito errado, pois os
ponteiros giravam a uma velocidade espantosa, marcando um
tempo absurdo e muito além do real. - O que é real?- se
perguntou ao mesmo tempo em que olhava ao redor e tentava
ordenar a confusão de pensamentos.
Com seus passos flutuantes, andou novamente em
direção à porta e desta vez conseguiu girar a maçaneta,
cautelosamente abrindo uma fresta para espiar o que havia
fora dali. Agora não ouviu nenhum ruído, nada. Silêncio total
no que parecia ser um túnel ou corredor comprido e estreito,
parcamente iluminado como o aposento anterior.
Resolveu sair, não lhe agradava a idéia de ficar confinada
numa sala sem janelas. Sentiu frio de novo e só agora se deu
conta de que não vestia nada, apenas seu relógio de ponteiros
velozes fazia contato com seu corpo. Vacilou a princípio, mas
em seguida começou a “caminhar”, dando passos cada vez
mais rápidos, ganhando velocidade, dali a pouco era quase
como se voasse, as paredes do corredor passavam rápidas e
ela não queria parar. Foi assim por algum tempo, até que
vislumbrou o final do corredor, uma parede de granito que
lhe pareceu muito próxima, ao ponto de achar que não ia
conseguir parar. Entre pensar em parar e ver que não ia
conseguir, fechou os olhos e gritou.
Atingiu a parede com força, mas a sensação foi
estranha, não sentiu dor nem houve impacto, ao contrário, foi
como se roçasse de leve a superfície dentro do granito e quando
abriu os olhos, viu que além de não ter se machucado, estava
numa estação de trem, cheia de gente. Instintivamente tentou
cobrir sua nudez, mas logo percebeu que ninguém parecia lhe
prestar atenção. O ruído de uma composição chegando fez
todos
Provase
01movimentarem na mesma direção, deixando-a sozinha
CBJE 42
Contos Subterrâneos

no canto em que estava, junto a um painel com os nomes das


estações. Tentou ler, mas não conseguiu entender os nomes
dos lugares que mudavam muito rápido.
Olhou para o relógio da estação e este não mostrava
os ponteiros girando loucamente, marcava então sete horas
de algum dia ou noite, não sabia ao certo. A confusão mental
por vezes voltava com força, mas agora ela já podia prever
quando o zumbido crescente nos ouvidos ia começar e
procurou um lugar para se sentar.
Desta vez não desmaiou, mas um sentimento de perda
e solidão começou a instalar-se, um aperto no peito e a
confusão entre aceitar o que estava vivenciando ou tentar voltar
à realidade. Onde ficava a realidade?
Pensou em como seria bom voltar à sua cidade, sua
família e seus amigos, tomar chocolate com gemada nas manhãs
frias, ir à praia no verão, música, namorar e dar risada, coisas
que fazem sentido quando podem ser vividas. Gente comum,
cotidiano, algumas razões para se continuar em frente, sem
pensar em nada, viver e aproveitar enquanto puder.
O ruído de outro trem se sobrepôs aos pensamentos e
desta vez ela levantou-se, decidindo ir mais além e tentar
descobrir alguma coisa sobre este mundo. Afinal de contas,
também não encontrara mais ninguém como ela ou que pudesse
lhe dar alguma explicação sobre esta estranha condição em
que se encontrava.
Esperou que as pessoas desembarcassem e flutuou até
a porta do vagão. Entrou, sentou-se no banco do lado direito
e logo viu mais pessoas entrando com pressa e se acomodando
como podiam. Pelo menos no interior do trem estava mais
quente e isto lhe deu uma sensação de conforto. Quando o
trem começou a andar, cerrou as pálpebras lentamente,
tentando de novo conectar os pensamentos com suas
referências
Prova 01 do plano “real”.
CBJE 43
Ivo Ávila

Sentiu um leve torpor apossar-se de seu corpo,


adormecendo em seguida.
O zumbido nos ouvidos tornou-se insuportável a ponto
de fazer com que gritasse e foi assim que despertou,
sobressaltada, olhando ao seu redor e lentamente
reconhecendo as paredes brancas de seu quarto, com seus
móveis também brancos, seu notebook na mesa ao lado da
cama, a janela entreaberta por onde entrava a luz do sol e o
ruído de passarinhos. Sentiu o aroma de café e lembrou-se da
sua infância, quando seu pai lhe trazia o café na cama nas manhãs
de domingo e sempre lhe contava uma história.
Afastou as cobertas, constatando que estava vestida
com seu pijama de pelúcia, saiu da cama, bocejando e
espreguiçando-se. Foi até a cozinha, onde seus pais estavam
preparando a mesa do café da manhã. Tinha pão, biscoitos,
geléia, leite e frutas, uma verdadeira refeição.
Não lhe notaram a presença e ao mesmo tempo
pareciam dois desconhecidos, vindos de outro lugar, de outra
época. Havia apenas dois lugares à mesa e isto foi o que mais
lhe causou um estranho ressentimento, como se ela não
existisse, como se ninguém mais lembrasse.
Naquele momento, desejou que os ponteiros do relógio
nunca tivessem voltado ao normal e que aquele trem também
não parasse nunca mais, que seguisse viagem para onde quer
que fosse; qualquer destino era melhor que o esquecimento.

Prova 01
CBJE 44
Contos Subterrâneos

O Túmulo da Lenda

– Onde tá enterrado o Negrinho do Pastoreio?


A pergunta ainda dançava no ar, tal a sua repercussão,
feita assim, de supetão, quando Praxedes atendera ao toque
insistente do telefone naquele morno fim de tarde setembrina.
Com o corpo meio sentado, meio que levantando, já
na hora de terminar o expediente, custou a assimilar o impacto
daquela questão, formulada por uma voz grossa e trovejante,
de quem parecia estar aflito e ao mesmo tempo dotado de
imperiosa urgência por uma resposta.
Seu primeiro impulso foi o de desligar, podia ser um
trote, esse questionamento absurdo, mas quando já estava
quase na porta da sala, toca o telefone de novo, uma, duas, na
terceira Praxedes atendeu, podia ser Zoraide, sua mulher,
pedindo para que passasse no supermercado e comprasse
alguma coisa.
– Alô? É do Instituto de Folclore, não é?
– Sim, é o Praxedes falando... quem...
– Pões então tchê, me explica, afinal aonde tá enterrado
o Negrinho.
– Er... bom, como o senhor sabe o Negrinho do
Pastoreio é uma lenda gauchesca, nunca existiu de verdade.
– Conversa, tchê, lá pras bandas de Soledade o pessoal
mais
Prova“da
01 antiga” fala que chegou a conhecer até o patrão dele.
CBJE 45
Ivo Ávila

– Mas meu senhor, uma lenda existe e é contada em


prosa e verso apenas para compor o imaginário folclórico de
um povo, de uma região, acrescentado o componente lúdico
à história dos fatos, a verídica.
– Olha, nem sei quem é esse tal de “lúdico” de quem
tu falas, mas de algum modo vais ter que me dizer aonde se
localiza o túmulo, pois eu e mais a gurizada aqui do CTG
“tamos” organizando excursões pelos locais históricos do
Rio Grande e só falta conhecer o lugar exato onde tá
enterrado o Negrinho.
Praxedes olha o relógio, angustiado, o sol só uma
fina nesga de luz alaranjada e aquele cidadão insistindo
com veemência:
– E tem mais tchê, se todas essas outras lendas e causos
têm lugar, nome e sobrenome, como não pode haver um lugar
aonde foi enterrado o coitado? Até a Salamanca do Jarau eu já
visitei, existe de verdade sim, como não?
Minha nossa! – pensou Praxedes – O caso é mais sério
do que eu imaginava... o homem é doido de atar em poste,
obstinado ainda por cima...
– Senhor...?
– Trajano é meu nome, a seu dispor!
– Pois bem, “seu” Trajano, o que acontece é que as
lendas do Rio Grande do Sul são a versão gauchesca das
fábulas, assim como o senhor deve ter ouvido, quando criança,
a lenda de João e o Pé de Feijão, a própria lenda do Rei Artur
e da Távola Redonda e várias outras, que são histórias de outros
continentes, de outras bandas, mas que tem a mesma função,
que é retratar fatos similares aos do cotidiano ou da História,
através do imaginário popular. Trata-se de passar para o
lendário algum fato impressionante, marcado por terror e
piedade,
Prova 01 na lembrança dos campeiros.
CBJE 46
Contos Subterrâneos

– Mas bah, tu queres me dizer que tudo aquilo é


invencionice e o povo acredita até hoje e não é verdade
verdadeira?! Duvido! Não vem que não tem, eu não saio desse
telefone enquanto não descobrir direitinho onde é essa tumba.
Acho que nem com tratamento de choque vai adiantar
– pensa Praxedes, enquanto acende um cigarro e olha as luzes
da cidade e dos carros lá embaixo, gente indo prá casa e ele
ali, naquele nó...
Por um momento divagou se não era melhor indicar
um lugar, qualquer um que fosse, descrever um mapa, só para
que aquele homem o deixasse em paz. Mas logo abandonou a
idéia, visto que ele poderia ligar mais e mais vezes ou, até
mesmo, ir pessoalmente “tirar satisfação”.
– Alô? Tu não desliga tá, afinal eu sei que tu és um
pesquisador de renome e não vais me deixar na mão – lascou
o gauchão.
– Claro, “seu” Trajano, mas retomando o que eu lhe
disse antes, uma lenda existe só na imaginação, faz parte do
folclore popular, na ficção que faz analogias entre fatos reais,
contados pela ótica do escritor, do poeta, do contador de
causos. Na verdade, o Negrinho do Pastoreio é um ícone que
representa todas aquelas histórias de escravidão e maus tratos
sofridos pelos negros, por isso mesmo um simbolismo, uma
lenda que só existe nos livros.
– Ih, tchê, agora tu me confundiu com essa história de
ícone “fricção” e outros que tais.
– O que eu sei é que ele era um moleque bueno no trato
com os cavalos e só porque perdeu a tropilha umas duas ou
três vezes, o patrão o matou por pura maldade. Vai daí, se ele
morreu, tem que tá enterrado em algum lugar.
De nada adiantava explicar, cada vez a coisa piorava
mais e Praxedes já estava ficando sem saber o que dizer ao
Prova 01
CBJE 47
Ivo Ávila

homem, para que ele afinal se convencesse de que o Negrinho


do Pastoreio era uma história.
Pelo jeito, o senhor Trajano era bem capaz de acreditar
em Papai Noel, Coelho da Páscoa e na Branca de Neve, além
do que, provavelmente, conhecia-os pessoalmente...
Suou frio, pensando seriamente em arrancar o fio do
telefone da parede e deixar aquele louco falando sozinho, mas
resolveu por um ponto final na história.
– Olha, “seu” Trajano, o senhor me desculpe, mas parece
que não quer ouvir minhas explicações, então vou lhe dizer e
afirmar, com toda a propriedade e conhecimento de
pesquisador que sou, e o senhor preste bem atenção: - O
NEGRINHO DO PASTOREIO É UMA LENDA!! NÃO HÁ
TÚMULO ALGUM! ELE NÃO EXISTE!! – gritou, nessa
altura já perdendo a calma que ainda lhe restava e fazendo com
que o vigia, que estava no corredor, viesse ver o que acontecia:
– Tá tudo bem aí, “seu” Praxedes?
Do outro lado da linha não se ouvia nenhum som,
alguns segundos se passaram até que o senhor Trajano falou:
– Olha meu amigo, tudo bem se tu não queres assumir a
tua ignorância, pois eu tenho prova mais do que suficiente que
ele existiu, contada pelo povo mais antigo da região, que afirma
e jura de pé junto que conheceu o patrão dele e o próprio
Negrinho, até ajudaram a tirar o pobre de cima do formigueiro...
A cabeça e as costas de Praxedes doíam, do esforço
para manter a compostura e não mandar aquele indivíduo à
merda ou procurar um psiquiatra, se bem que nem o Analista
de Bagé adiantaria nesse caso. “Aquentou” um resto de café
da tarde já, nessas alturas, esvaída no negror da noite, enquanto
pensava numa saída para convencer aquele homem de que uma
lenda não se materializa assim, do nada, assentando tumbas
deProva
mortos
01 imaginários.
CBJE 48
Contos Subterrâneos

Anos e anos de estudo e pesquisa num repente já não


valiam meia pataca, diante da avassaladora ignorância e
determinação demonstradas pelo campeiro. Respirando
fundo, resolveu mudar de tática:
– “Seu” Trajano, o senhor acredita que Nossa Senhora
existe? Quero dizer, assim, que ela pode aparecer a qualquer
momento, em qualquer lugar e que qualquer um pode vê-la?
– Olha, tchê, da mãe de Cristo não se duvida, que ela
existe, existe, mas daí a enxergar mesmo, acho que cá nestas
bandas só o Negrinho do Pastoreio via, pois tá lá na história
que ela é a madrinha dele, dos desamparados e coisa e
tal....mas o quié que tu qué dizê cum isso? – disparou à
queima-roupa o guasca.
– Pois então, o senhor mesmo acabou de concordar
que tal fato, para ser visto e aceito como real é muito difícil de
provar, até mesmo as aparições famosas da Virgem, na França
e em Portugal têm lá o seu grau de dúvida até hoje. Vai daí,
para que a história do Negrinho fosse real, de verdade
verdadeira, como o senhor diz, precisaria comprovar também
que a própria Senhora realmente aparecia e se comunicava
com o menino, protegendo-o e livrando-o do mal. Ninguém
questiona a existência de Maria, porém todo mundo sabe que
ela não aparece de repente assim, no mais, materializada na
frente dos viventes.
– Humm... pode ser, tchê, afinal a Senhora Mãe de Jesus
não tá aí “de graça” para qualquer cousa... tu queres dizer que
a presença dela na história vem “passar um atestado” de que
o Negrinho é lenda mesmo, que prova que todo aquele
palavrório que tu me disseste, do imaginário, “fricção” e tudo
o mais? Que o guri é o próprio tal de simbolismo, do lendário
eProva
coisa01
e tal?
CBJE 49
Ivo Ávila

– Isso mesmo “seu” Trajano! – Assentiu Praxedes,


suspirando de alívio, afinal nem tudo estava perdido e ele
poderia finalmente tomar o rumo de casa; quase dez horas da
noite, o que será que sua mulher estaria pensando?
– Como disse o escritor Alcides Maia, a lenda do
Negrinho do Pastoreio “originou-se por piedade e como
desafronta e castigo, nos sofrimentos da escravidão, sendo uma
lenda de fundo essencialmente cristão”. Todos os folcloristas,
autores e intérpretes assim a compreendem.
Após alguns segundos de silêncio do outro lado da
linha, ouve-se a voz do gauchão:
– Mas bah índio veio, tu me deste uma ponchada
das grandes de conhecimento e me ajudou a decifrar este
mistério, afinal de contas, pra que perder tempo procurando
uma coisa que nunca vai se achar, aqui nesse mundão de
Deus? Além de coberto de vergonha de ter teimado tanto,
por satisfeito fico e mui grato ao amigo, te peço mil
desculpas pelo entrevero e prometo, pela Virgem, tomar
tenência daqui por diante e não embarcar em qualquer
canoa. Isso me serve por demais pra prestar atenção e
separar as coisas da imaginação e do faz-de-conta, das
coisas vividas no mundo real.
Não tem de que, “seu” Trajano, por aqui sempre tem
gente pronta a ajudar e esclarecer as dúvidas que muitas vezes
aparecem, na pesquisa e no estudo do universo gauchesco.
– Bueno, aceite um quebra-costela desse seu criado, até
mais ver e muchas gracias, mais uma vez.
– Apareça, “seu” Trajano, qualquer dia, para matear e
trocar umas idéias.... – Disse Praxedes, já meio que quase se
arrependendo do convite. Mas em seguida aliviou-se ao
pressentir
Prova 01 que o outro já havia desligado.
CBJE 50
Contos Subterrâneos

Pensando numa boa explicação para a “patroa”, foi


descendo lentamente os dois lances de escada do Instituto
de Folclore, acendendo outro cigarro, quando o vigia o
atalhou, uma cara meio amarelada, entre apreensivo e cioso
de seu dever:
– “Seu” Praxedes, tem qualquer coisa se mexendo no
pátio do estacionamento, eu vi e não parecia gente, não! Tinha
como que um brilho meio esquisito, que não era todo
brilhante, meio opaco e parecia que se mexia tal e qual nuvem
de vaga-lumes...
– Não esquenta a cabeça, Jorge, deve ser algum ratão
das bandas daquele lixão ali perto e os gatos estão fazendo
uma caçada.
– Tome cuidado, nunca se sabe...
– Boa noite Jorge! Tome um café e não se preocupe.
Por via das dúvidas, enquanto caminhava rumo ao carro
estacionado, Praxedes colocou a “prateada”, uma adaga
fininha que sempre carregava, no “mol da barriga”, como se
diz no gauchês, pronta para uso.
Ao entrar e sentar no carro, quando olhou para o pátio
mais uma vez, ainda teve tempo de ver o luzir esguio e
semiprateado da M´Boitatá, serpenteando em direção do
matagal ao fundo, desvanecendo no escuro das moitas...
Deu a partida e sem pensar em mais nada, acelerou
para casa.

Prova 01
CBJE 51
Contos Subterrâneos

Noite para esquecer


Baseado em fatos reais

Finalmente saí. Parecia que o dia não acabava nunca,


trabalho chato e repetitivo. Menos mal que era sexta-feira.
Na rua soprava um vento abafado, céu sem estrelas e
forrado de nuvens que certamente trariam chuva.
Aquele 24 de agosto tinha algo diferente, como um
presságio de que algo muito marcante aconteceria e nada nem
ninguém poderia impedir.
Tudo isso de certa forma combinava com meu estado
de espírito, que a esta altura era de pura ansiedade e
expectativa, já que tinha por missão esperar três amigos que
estavam chegando do Uruguai e levá-los até a casa de uma
amiga que havia se prontificado a hospedá-los.
Um dos caras estava vindo negociar cavalos na
Expointer e, apesar de querer ficar em hotel, não pode recusar
o convite de Clara (*), que era como se chamava nossa amiga,
pois assim teria mais tempo também para sair e curtir a noite
na cidade.
Às nove, finalmente eles apareceram na esquina
combinada e embarquei na camionete dirigida por Francisco,
oProva
criador
01
de cavalos, para irmos até a casa de Clara.
CBJE 53
Ivo Ávila

No trajeto até lá estranhamente pouco conversamos,


apesar de todo mundo não se ver há uns dois anos e logo um
silêncio pesado dominou o ambiente, só quebrado pelo ruído
do motor diesel. Além disso, uma dor aguda instalou-se na
minha cabeça, me acompanhando todo o caminho.
Quando chegamos à casa de Clara, a ansiedade cresceu
num volume quase insuportável, como se intimamente já
soubéssemos que alguma coisa fora do normal tivesse
acontecido. As luzes estavam acesas, o que fazia supor que
havia gente em casa. Tocamos a campanhia mais de quatro
vezes sem resposta, batemos na porta, na janela e nada. Como
eu tinha a chave, para casos em que precisasse ficar na cidade
e cuidar da residência quando ela viajava, abri a porta e
adentramos a sala.
Todos os piores temores se confirmaram neste
momento, pois do corredor era possível ver a cozinha, onde
apareciam os pés descalços de Clara, que estava deitada, com
a cabeça apoiada no botijão de gás. Suas mãos estavam
contraídas, assim como suas pernas e seus olhos tinham uma
expressão fixa, mirando um ponto qualquer no infinito.
Cheguei perto e ao tocá-la tive certeza de que estava
morta; o corpo frio e rígido e o tom acinzentado que cobria
sua pele morena não deixavam dúvidas.
Fiquei alguns minutos paralisado entre a vontade de
chorar e sair correndo, mas logo senti que precisava reagir de
forma prática. Os outros todos tinham na cara uma expressão
entre chocados e tristes, pois ela era uma amiga comum de
muitos anos e o inusitado da situação nos pegara de jeito, como
se alguém puxasse o tapete de repente e caíssemos todos num
poço sem fundo.
Passado o primeiro momento de comoção, lembrei de
chamar
Prova 01a Polícia e o SAMU, para que comprovassem a morte
CBJE 54
Contos Subterrâneos

e levassem o corpo, não sem antes recomendar aos três que


não tocassem em nada, pois provavelmente a Polícia colheria
impressões digitais pela casa. Pensando melhor, disse-lhes que
entrassem na camionete e fossem embora para qualquer lugar
longe dali, pois assim evitariam milhares de explicações.

Fiquei por uns minutos a sós com o corpo de Clara na


cozinha, os sentimentos de incredulidade, revolta e tristeza se
misturando numa lágrima insistente. Pensei em quanta coisa
fizéramos juntos e quantas mais faríamos. Sempre pronta a
ajudar os amigos, a estender a mão a quem precisasse. Se
pudesse definir aquela garota numa palavra, a primeira que
me vinha à mente era generosidade. A cabeça sempre a mil
com ótimas idéias. Vinte e cinco anos é uma idade em que não
paramos nunca de fazer planos, viver a vida, curtir adoidado,
etc. Agora nada mais importava, nada mais faria sentido daqui
pra frente.
Em seguida, tomei coragem para ligar para seus pais,
que viviam separados há alguns anos. Nessa tarefa inglória,
tive que usar de muito tato para não dar a notícia assim de
chofre, até porque não sabia qual seria a reação deles.
Seu pai mostrou-se muito incomodado por ter de sair de
casa após as 10 da noite, alegando que estava gripado e
perguntando várias vezes se precisava mesmo ir. Minha história
era que havia acontecido um acidente doméstico e que Clara estava
desmaiada, e como eu estava sozinho, precisava da ajuda dele.
Sua mãe foi a primeira a chegar e custou a acreditar no
fato, perguntando se ela ia se recuperar. Quando viu que não
tinha mais volta, desabou num choro convulsivo, sendo
necessário alguém lhe dar um calmante.
Acho que a pior parte de tudo isso foi ter de dar
depoimentos
Prova 01 na Polícia, enfrentando a desconfiança daqueles
CBJE 55
Ivo Ávila

que pensavam em uso de drogas em primeiro lugar, depois


suicídio ou homicídio, coisas que a autópsia posteriormente
revelou serem improváveis. A única certeza era que a causa
mortis havia sido uma pancada forte na base da cabeça, na região
da medula.
A dor na minha cabeça e o bolo no estômago aumentaram
violentamente e permaneceram por muitos dias. Já não conseguia
dormir tranqüilo, tinha pesadelos todas as noites.
Um dia, acho que um mês depois da morte de Clara,
fui conversar com o guarda do museu onde ela trabalhava,
pois éramos velhos conhecidos e ele também havia ficado
muito triste com o ocorrido. Disse-lhe que não conseguia
dormir direito e que a imagem da Clara não me saía da cabeça.
Ele me contou que há dois dias havia se deitado após o
almoço como fazia sempre, para “tirar uma pestana” e havia
sonhado com Clara. No sonho ele perguntou como é que
aquilo foi acontecer com ela, assim de repente. Ela respondeu
dizendo que só se lembrava de ter acordado lá pelas seis e
meia da tarde sentindo sede e que tinha ido até a cozinha tomar
água. Tinha aberto a garrafa e depois se lembrava de ter
escorregado e caído.
De repente, algumas coisas passaram a encaixar, pois
me lembro de quando a Polícia chegou, os investigadores
olhando tudo e um deles perguntando se aquela garrafa aberta
em cima da pia era de água.
A vida segue, mas não somos mais os mesmos. Nunca
mais haverá uma pessoa como ela e tenho certeza de que jamais
esquecerei essa noite. Tento, mas não posso.

(*) Os nomes das pessoas e lugares foram trocados, para resguardar a privacidade.
Prova 01
CBJE 56
Os contos subterrâneos de
Leon K. Nunes
Contos Subterrâneos

Tão Fugaz

Eu estava sentado diante do computador quando


acordei, no meio da madrugada, com os olhos ardendo. Estava
escrevendo algo novo, trabalhando num conto, mas fui além
dos limites esperados, o texto estava muito extenso, parecia
uma novela, como sempre acontece quando eu escrevo depois
de beber por toda a noite. Eu estava com bastantes doses de
aguardente no sangue, voltara a essa bebida porque é a mais
barata, porém ela tem me deixado com uma dor de cabeça
enorme logo depois, e foi com essa dor latejante que despertei
e notei que, a despeito das tantas páginas produzidas, sequer
havia terminado o conto, e, pior, não gostei do rumo que
houvera dado; não é sempre que gosto de produzir enquanto
estou bêbado, porque às vezes fica parecendo que escrevo no
piloto automático — mesmo que eu não o faça nunca, nem
creio que escritores autênticos o façam —, então selecionei
todo o texto e em um clique apaguei tudo.
Levantei meio tonto, acendi as luzes e olhei para o
relógio de parede. Eram 4 da manhã. E o dia era o meu
aniversário, um sábado. Eu havia preparado um bolo de ovos
na noite anterior para comer quando o sol subisse, faria uma
comemoração intimista, por assim dizer, no café-da-manhã
para dormir o resto do dia. Entretanto, preferi não esperar o
sol e logo fui catar uns pedaços. Ainda estava muito tonto e
Prova 01
CBJE 59
Leon K. Nunes

não conseguia parti-lo de forma coesa, ficando muitos farelos


jogados pela mesa e pelo chão. Comi um pequeno pedaço e
fiz uma careta, porque o bolo estava ruim, as bordas estavam
queimadas. Na geladeira só tinha água e outras amenidades,
como vinagre, tomates, presuntos e margarinas, coisas que não
uso muito e só compro quando penso em trazer alguma garota
pra casa. Como fazia tempo que isso não acontecia, então os
produtos ali já não estavam mais dentro de seu prazo, e o mau
cheiro começava a se apoderar da cozinha. Eu ia juntar tudo e
pôr numa sacola e na lixeira, mas retardei o processo para a
manhã seguinte, da mesma maneira que fizera no dia anterior.
O cacho de bananas preso na parede também já estava deveras
apodrecido, chegando até a pingar no chão, como se os fungos
nascentes das bananas começassem a pesar, sendo, assim,
expelidos, tudo sob a forma de um líquido meio mucoso, que
grudava no piso, e eu percebi que parecia um muco quando
passei o dedão do pé sobre a mancha na cerâmica para
dispersar o líquido e tentar diluir um pouco o fedor — sem
sucesso. O líquido já estava incrustado.
Sentei-me à janela até o dia amanhecer.
Quando já eram umas 8 horas, o sol forte me batendo
na cara e ofuscando minha vista, permanecia no mesmo
lugar, impassível e resistente, observando a rua vazia, com
uns e outros senhores barrigudos se dirigindo às suas fábricas,
oficinas e mercearias, umas e outras garotas maquiadas e com
a barriga de fora a se dirigirem às escolas para novas
artimanhas, tantos uns e tantos outros, até que ouvi o telefone
tocar. Era Rafaela, uma garota que havia se tornado amiga
minha noutros tempos por pura insistência, querendo saber
se eu organizaria algo, se cantaria parabéns. Não, não vai ter
nada disso, eu lhe disse. Como ela quisesse sair, e se
importasse
Prova 01 mais comigo hoje do que se importara nos anos
CBJE 60
Contos Subterrâneos

anteriores em que nos conhecíamos, eu topei. Só que o


programa terá que acabar cedo porque já tenho outro
compromisso marcado para mais tarde, alertei, inventando
uma história qualquer. Ela aceitou.
Depois do telefonema fui deitar e só me levantei por
volta das duas da tarde, perto da hora de encontrá-la. Por
falta de opções, fomos ver uma peça de teatro dos meus alunos,
que estavam em temporada, se apresentando toda semana lá
na Casa da Ribeira. Eu já havia assistido na noite de estreia, e
havia achado muito bom. Porém, assistir pela segunda vez
não foi tão bom assim. Vários erros, cortes de luzes, falta de
sincronia na cenografia, o espetáculo foi um fracasso tão
grande que achei que a razão era o fato de ser meu aniversário,
eu, um pé-frio dos piores.
Quando comentei a peça depois com a Rafaela, ela disse
que não havia notado nada disso, e que eu estava sendo muito
rude com o trabalho de meus alunos. Fiquei pensando se esses
erros não foram frutos da minha imaginação. Mas eu
permanecia insistindo:
Pois eu vi muitos erros.
É que sua chatice é potencializada no seu aniversário,
seu bobo, disse ela.
Talvez tivesse razão.
Estou brincando, viu, completou sorrindo.
Eu sabia que ela não estava brincando.
Depois disso, nem tivemos muito tempo a mais.
Ficamos algum tempo num bar, nos beijamos e eu a chamei
para casa, porém ela ignorou o convite. Falei que poderíamos
ir a um motel, e ela novamente deu de ombros. Disse-me que
tinha que ir para a casa do namorado, e só então eu me lembrei
de que ela tinha um namorado, a despeito de toda corda que
me oferecesse
Prova 01 e de todos os sarros que me dava no bar. Pensei
CBJE 61
Leon K. Nunes

no pobre coitado que deveria estar esperando por ela e


realmente concordei que era melhor que ela se fosse. De
alguma maneira, isso, para ela, pareceu uma atitude minha no
sentido de expulsá-la. Ficou irritada e saiu repentinamente,
sem dizer nada. Que se dane pra lá, pensei. Antes de sair do
bar, ainda voltou na mesa uma última vez e ressaltou, para
quem quisesse ouvir — frase meramente retórica, afinal não
tinha mais ninguém para ouvir isso naquele bar vagabundo —
, que nenhuma outra pessoa aceitaria um convite meu para
sair no dia do aniversário. Eu concordei, porque ela dizia
mesmo a verdade; ninguém sequer me ligou, mas a isso tudo
eu já estava acostumado.
Depois que ela foi embora, eu continuei por ali, agora
bebendo várias cachaças. Aproveitei e esperei a coroa que
costumava fazer um pequeno show naquele mesmo boteco,
ela devia ter uns 45, no entanto mantinha o corpo turbinado,
era a dançarina do recinto, e eu, cliente velho, talvez ganhasse
umas carícias a mais sem precisar pagar, por ser aniversariante.
Como ela não aparecesse, eu percebi que o meu
aniversário não iria muito além daquelas frustrações todas.
Enquanto eu me aprofundava na bebida, um trio de alcoólatras
malditos apareceu e se ateve a me aporrinhar por bastante
tempo, ora convidando a me sentar com eles, ora questionando
a minha presença.
Por que bebe tanto, bicho?, pergunta um deles
pendendo a cabeça na minha direção. Garotas? Trabalho?
Esquece, ele não deve ter nem uma coisa nem outra,
diz o seu colega de mesa.
Eles já sabiam que eu esperava a rapariga do bar. Estava
mesmo na cara.
Pois é garoto, deu azar hoje!, disse, gritando, o mais
velho deles,
Prova 01 o que tinha mais mal-hálito.
CBJE 62
Contos Subterrâneos

Dizem que ela é uma grande chupadora, é verdade?,


perguntou-me um outro. Ele estava certo. A coroa era uma
tagarela, afinal. Isso faz com que pratique bastante a língua.
Depois de umas risadas, um dos três velhos ainda sentenciou:
É, só que as mulheres que falam muito geralmente
pensam pouco.
Isso também vale para os homens, pensei.
Ainda troquei alguns papos aqui e ali, mas passei quase
todo o tempo a ignorá-los, e só parei de beber quando vi que
já era meia-noite, quando o garçom fazia sinal de que fechariam
dali a uma hora, no máximo, e pensei que não teria mais
condução para o meu bairro. O trio continuava lá, bebendo e
falando alto. Eu paguei a minha conta e já ia sair do bar, porém
estava muito cambaleante, e dei um tropeço no batente que
há na porta do recinto, caindo na pavimentação sobre os
joelhos e o braço direito. Tentei me levantar logo, mas não me
sentia nada forte, fiquei ali de quatro ouvindo a risada dos
caras lá dentro do bar e com vergonha de mim mesmo, a
diverti-los assim, como se fosse um palhaço. Então, com muito
esforço, pus-me de pé e ainda lhes lancei um olhar astuto, para
depois sair andando altivamente, como se eu, bêbado e
sozinho, tivesse mais poder que dez mil deuses juntos, todavia
enquanto caminhava eu ainda escutava suas risadas.
Mesmo depois que saí do bar, muito trôpego e fraco,
decidi comprar uma pequena garrafa da mesma cachaça para
continuar a beber sozinho em casa. Quando estava me
acomodando, percebi, na cozinha, que havia duas pizzas lá, e
um bilhete. A minha mãe havia passado em casa enquanto eu
estive ausente e deixara essa pequena surpresa. Mas eu não
tinha a menor vontade de comer qualquer coisa. Deixei as
pizzas para o dia seguinte, peguei um copo e, silencioso por
todo
Provao01
tempo, me sentei à mesa, com os dois braços sobre
CBJE 63
Leon K. Nunes

ela, à luz baixa do abajur. Sorvia o álcool em doses silentes e


homeopáticas. Lamentava cada gota que tragava, ao ver a
bebida sumindo e sumindo e sumindo. Quanto mais eu a
possuía, mais eu a perdia, como fora também com todas as
garotas que tive. Fiquei, de repente, estático, mudo.
Completamente inerte. Parecia que não havia mais nada em
que pensar no tal instante. Depois desse momento impassível,
passei a beber num ritmo cavalar, desfocando minha atenção
de todas as outras coisas do mundo, ignorando os meus
sentidos que começavam a perder forças, mas sentindo um
prazer crescente, inebriante e incomparável. Tudo havia
ficado pra trás, a frustração por mais um dia errante, os
joelhos que não mais sentia doer ainda que agora estivessem
sangrando, as humilhações rememoradas pelos alcoólatras
do boteco. Frustração, dor, abatimento. Eram esses
pensamentos que me acompanhavam enquanto eu bebia a
mil por hora. Foi assim até o momento em que só me restou,
no fim, o copo vazio e a solidão.

Prova 01
CBJE 64
Contos Subterrâneos

Sangria Fria, Porém Sem Gelo

Do outro lado da avenida se escuta o choro gritado


de Leto Pereira, um caboclo de 21 anos que está internado
no leito onde ficam os casos de emergência do Hospital
Clóvis Sarinho, sob o olhar vigilante e o sorriso sarcástico
de dois policiais militares que guardam a porta de sua sala
— do lado de dentro —, desejosos de ver estampado ali,
diante deles, o sofrimento de um dos criminosos mais
odiados da cidade, podendo-se assim deduzir que não se
trata de um bandido perspicaz e inteligente — se assim fosse,
seria, antes de odioso, admirável —, e sim cruel e sanguinário,
a ponto de matar parentes, crianças, inocentes, muitos de
maneira tão brutal quanto compreensível a um sujeito que
cresceu envolto numa rede de extermínio na qual era apenas
mais um membro cujo projeto, se é que se pode assim chamar
(afinal não era ambicioso de fato), se limitava a poder utilizar-
se da pistolagem — da matança, assassínio, qualquer palavra
que não soe tão ingênua e provinciana — para sustentar sua
vida, uma experiência sacal e vagabunda recheada de nenhum
luxo e cercada de muitas necessidades.
Quando Leto Pereira fez 14 anos, o mais próximo de
um amigo que ele tinha era um sujeito conhecido como Josias,
25 anos, muito falado e temido nas rodas de malandragem e
transgressão
Prova 01 do bairro decrépito de Mãe Luiza, incluindo aí
CBJE 65
Leon K. Nunes

relatos infinitos de latrocínios e torturas. Josias sempre o


cumprimentava na rua antes de conhecê-lo; depois que se
aproximaram, então, passou a ser uma espécie de mentor,
constantemente oferecendo orientação, como se capacitado
fosse, para as decisões que o Leto tomaria na sua vidinha
infantil e maçante, e mesmo depois de tudo isso Josias também
era o único que presenteava o garoto nos aniversários, o que o
achegaria de tal maneira que para Leto Pereira seu baluarte
passou a ser o Josias, e sua família apenas mais um fardo que
teria de suportar, tornando-se, esta relação, algo meramente
burocrático. Entre os presentes que Josias lhe fornecia ano a
ano, assim comprando a confiança do moleque, não havia nada
de relevante — gibis, revistas pornográficas, minigames e afins
—, mas aos 14 tudo mudaria. Do alto do morro de Mãe Luiza,
donde se poderia ver todo o bairro de Petrópolis com os
edifícios pomposos da elite potiguar, Josias se postava,
aguardando Leto Pereira para o encontro que houvera
marcado, deixando claro que se tratava de algo que para
sempre mudaria seu futuro. Como qualquer pessoa que preza
pela vida, Leto não arriscaria furar o compromisso marcado.
Josias, bem-humorado como frequentemente se
encontrava, pôs o braço negro, liso, até brilhante, sobre o
ombro mirrado do Leto e, estando ambos virados para o
bairro de prédios e cores, pronunciou-lhe algumas palavras
que o moleque não esqueceria jamais.
Não faça merda se não ganhar nada com isso, foi
algumas das coisas que disse, apontando então para um
embrulho de pano que estava com a metade enterrada na areia
e outra metade exposta. O Leto foi pegar o embrulho assim
que o Josias lhe deu permissão, desenterrando-o rapidamente,
sujando toda a mão de barro quente, ficando com as unhas
pretas de tanto tentar cavar, e depois tirando a poeira que
Prova 01
CBJE 66
Contos Subterrâneos

estava incrustada no pacote, que na verdade era uma caixinha,


devia ser pouco maior que uma caixa de perfume, o Leto não
imaginava o que seria, nem chegou a balançar para ver se fazia
tique-taque, então depois que enfim desembrulhou — não era
um embrulho comum de presente, era apenas uma flanela que
o prendia —, ele conseguiu abrir a caixa e então viu aquilo
que lhe atiçara a curiosidade desde que o Josias lhe prometera
que ofereceria algo de novo à sua vida. Josias estava certo,
aquele instrumentozinho, que, até então, nem passava pela
cabeça do Leto possuir, tornou-se imediatamente um objeto
de extrema necessidade: era uma arma de fogo calibre 38.
Mas para Josias nada era de graça. E ele foi bem claro,
novamente, quando lembrou isso para o Leto.
Você será o meu garoto, disse, dando-lhe umas tapinhas
no ombro do menino deslumbrado com a arma que brilhava
e às vezes refletia a luz do sol ofuscando a visão. Era incrível
como era linda, tão envolvente, tão digna de contemplação,
mesmo estando guardada numa caixa semi-enterrada na areia;
depois de uns dez minutos de pura fascinação, enfim o Leto
voltava a si e começava a ouvir as palavras do Josias, que
lembrava que aquilo ali não era um adorno para servir de
memória ou enfeite. Era para ser usado. E deu-lhe uma tarefa.
Leto Pereira ficou encarregado de matar Wilson Silva,
um ex-parceiro de Josias que agora havia abandonado a rede
de tráfico e criminalidade e vivia uma vida pacata, de igreja e
cursinho comunitário. O pobre Wilson sabia que abandonar a
parceria seria uma sentença de morte, no entanto tentou mesmo
assim sair dessa rota. Não foi possível. Enquanto fazia o seu
trajeto cotidiano de casa até a igreja, pelo labirinto de vielas
de Mãe Luiza, foi surpreendido por Leto Pereira. Os dois
tinham se visto algumas vezes no bairro, mas eram
absolutamente
Prova 01 estranhos entre si. Desta vez, não mais: tanto
CBJE 67
Leon K. Nunes

para um como para o outro, esse encontro ficou marcado com


significado tal que ali se delimitava o destino de ambos. Para
Wilson, o fim definitivo; para Leto, apenas o início do fim.
Wilson levou três tiros e ainda permaneceu de pé
por cinco segundos antes de cair na escadaria que ligava a
Travessa Guanabara à Via Costeira. Levaria outros cinco
segundos até que o corpo se aninhasse, em definitivo, ao
sopé do último degrau.
O ato não saiu barato para Leto Pereira. Sentiu algo
vigoroso porém desagradável dentro de si, um furor
traumatizante. Foi correndo até a casa de Josias, sendo,
naturalmente, muito mal-recebido.
Seu mané, tá fazendo o que aqui?!, perguntou Josias,
muito irritado.
Eu fiz o que me pediu, ele está morto!, disse o Leto,
meio abalado com aquilo tudo.
A despeito da raiva inicial, Josias tentou ser
compreensivo com o garoto e buscou amenizar o trauma que
ele sofrera. Ofereceu algum deleite, na forma de grana, pó e
baseados. Leto gostou. E acostumou.
Na semana seguinte, matou três. Embora tivesse apenas
um alvo determinado pelo Josias. Fez plantão num barzinho
da Rua Papa Pio, bebericando cervejas atrás de cervejas
esperando que sua vítima aparecesse, mantendo, esta também,
uma rotina que desembocaria na própria morte — aliás, a
morte é um dos elementos mais constantes na rotina dos
viventes de Mãe Luiza que têm ligação direta ou indireta com
as drogas, com o tráfico, com Josias. Mal apareceu Pinóia (o
alvo em questão) e Leto meteu-lhe, sem sequer se levantar de
sua mesa ou olhar para os lados com alguma pretensão de
fazer algo fora das vistas policiais, duas balas na sua cabeça;
Pinóia,
Prova 01sujeito alto e gordo, caiu para trás machucando dois
CBJE 68
Contos Subterrâneos

moleques que deviam ter a idade do Leto e que estavam


sentados em uma mesa atrás do alvo abatido, sendo esmagados
pelo corpanzil do, agora, defunto... E, como se levantaram
bradando mil reclamações pelo fato de terem sido banhados
pelo sangue sujo do morto, receberam, ambos, mais três balas
de Leto cada um. Depois disso, o silêncio reinou. Leto olhou
para os lados, observou o dono do bar e os outros clientes
em silêncio, estáticos, de olhos arregalados, alguns em nítido
estado de choque, levantou-se, enfim, pegou sua CG Titan
125cc célere e barulhenta, e se foi.
No casebre de Josias, quando Leto aparecia dois dias
após cada crime — nunca antes —, as conversas eram cada
vez menos duradouras.
Feito?, perguntava o Josias.
Leto corroborava com a cabeça.
Josias lhe passava um envelope com algumas notas e
papelotes de pó.
Mesmo com o distanciamento visível na relação entre
Josias e Leto, este acreditava piamente que o elo entre os dois,
agora mantido pelo crime, era inquebrantável. E, excluindo a
lealdade que mantinha ao seu orientador, Leto passaria a viver
em absoluta licenciosidade de costumes, procurando fazer
tudo de ruim, desde matar como hobby — Leto saia nas
manhãs de domingo de moto pelo interior para matar pessoas
solitárias em praças ou açudes — até coisas menos
compreensíveis, como ficar tirando paralelepípedo das ruas à
base de marretadas e cortar fios de telefones públicos. Tornara-
se definitivamente um pária social, à vista grossa de sua família;
quando comprava pão, segurava o pacote e a nota de 1 real na
mão direita, pois a esquerda estava sempre no bolso,
preparada para puxar o três-oitão caso fosse necessário. Ainda
que nunca
Prova 01 fosse necessário.
CBJE 69
Leon K. Nunes

As pessoas do bairro relevavam esses hábitos do


adolescente matador que tinha o rei na barriga. Foi assim por
uns cinco anos. A coisa só mudou quando ele fez o que não
devia, mesmo para sua condição: matou o Tião. O Tião
poderia ser só mais um na lista das estatísticas semanais de
assassinatos em Mãe Luiza — se não tivesse sete anos de idade.
Essa tragédia aconteceu quando a Leto havia sido incumbida
a tarefa de apagar Tinoco, um coroa, cinqüentão, ex-traficante
e que agora tinha um açougue no bairro. Leto chegara no
açougue como os primeiros clientes faziam, às oito da matina.
Só que não tinha clientes nesse dia. Leto, então, não precisou
nem fazer cerimônia (posto que nunca fizesse mesmo),
descarregando metade das balas na cabeça do açougueiro. Mas
o Leto começou a ouvir gritos e choro vindos detrás do balcão
e antes que pensasse em ir ver do que se tratava, o próprio
autor dos gritos, o menino Tião, filho de Tinoco, de voz
estridente e rosto enlameado de lágrimas, tinha saído pra ver
quem havia desferido aquelas balas em seu, agora inocente e
agora morto, pai. Leto, sempre impaciente, mandou o chorão
calar a boca, sem sucesso. Então foi até ele, esperou o menino
gritar cada vez mais, e mais, e mais, até que enfim esvaziou
toda a munição na cabeça de Tião, gerando por instantes uma
confusão calamitosa de sons onde se misturavam os gritos do
garoto infante, o estampido dos disparos nada discretos e o
barulho do pequeno corpo moribundo que caía sobre o balcão
até que, após toda essa situação caótica, tudo apenas silenciou
ordinário, porém repentinamente, como no frenético desfecho
do Rito da Primavera, de Stravinski.
O caboclo Leto, após cinco anos na rotina de matança,
estava completamente acomodado com a emoção do que
chamava de profissão e com os trocados que recebia do Josias
— que01o enganava deliberadamente, afinal o pagamento
Prova
CBJE 70
Contos Subterrâneos

ofertado era sempre irrisório, mas Leto, que nunca conhecera


médias de preço por assassinato, jamais questionaria seu
mentor. De fato, nunca o fez. Porém, quando de fato precisou
dele — assim que a população soube da morte de Tião e partiu
em busca do assassino —, Josias ignorou os chamados de Leto.
Quando Leto o procurou, já não encontraria mais nada; Josias,
já conhecedor da merda que Leto cometera, havia sumido do
bairro. A história se espalhou rapidamente, assim como a
certeza de que era Leto quem havia matado o Tião. Leto se
desesperou. Saiu do bairro sendo caçado por moradores,
policiais e até mesmo outros bandidos, uma vez que já estavam
cientes de que a barra começaria a pesar em Mãe Luiza com a
repercussão do assassinato do menino. Leto conseguiu sair
do morro e da cidade, foi viver em Vila Flor, um pacato
município no litoral sul do estado, perto da Paraíba.
Sem comunicar parentes ou quaisquer amigos que
pudesse ter, Leto chegou lá e tentou viver como mecânico
de motos. Somente sabia das notícias da cidade pelo que via
na TV da suíte fajuta onde morava com um aluguel de 50
reais. Leto passou um ano em Vila Flor. Deixou até de cheirar,
pois não tinha mais contatos com fornecedores. Mas voltou
quando soube, pelo programa televisivo sensacionalista
Patrulha Policial, da morte de Josias. Leto ficou transtornado.
Estupefato. Mais ainda quando descobriu, por intermédio
de outrem com quem fizera contato, dos caminhos que
levaram até o fato trágico: a sua irmã mais velha, uma colegial
de vinte e três anos, é quem denunciara Josias para a polícia,
quando fora testemunha de um dos crimes cometidos por
ele. A polícia o abordara em casa e ele resistiu de todas as
maneiras, gerando um confronto que desembocaria no seu
falecimento e numa capa de jornal altamente escatológica,
como se orgulhosa de mostrar a foto do sujeito baleado e
Prova 01
CBJE 71
Leon K. Nunes

morto no seu quarto desarrumado; mas a capa do jornal,


pelo menos, Leto não veria; ele nunca olhava os jornais
impressos, pois não sabia ler.
Leto passou a nutrir ódio pelo que sua irmã fizera.
Considerava Josias como sua família, e agora Josias estava
morto, justo pela denúncia de uma familiar de fato.
Pensamentos confusos povoaram a sua mente. Em grande
parte, se sentia culpado pela morte de Josias, afinal, depois do
seu desaparecimento, Josias ficara sem parceiro, sendo
obrigado, desse modo, a sair à busca de seus alvos para
consumar os atos, e Leto sabia que Josias não tinha tato para
isso, pois ele, Leto, era o melhor matador da área, conforme
vivia a repetir para si mesmo. E agora Josias estava morto, seu
mentor, que o abandonara, mas que ainda assim não era objeto
de nenhum tipo de ressentimento da parte do caboclo. Foi
então que Leto decidiu voltar.
Quando Lidayane, a mana de Leto, estava caminhando
às 23h00 pela Rua Maciel Pereira, vinda da sua aula noturna
numa escolinha do bairro que oferece Educação para Jovens e
Adultos, foi abordada no caminho, em um trecho escuro.
Tentou gritar, no entanto o sujeito que a interpelara já a havia
amordaçado. Ela ficou desesperada, porém inerte. O
abordador, então, saiu caminhando com ela, segurando-a por
trás, uma mão segurando um pano a tapar sua boca e outra a
prendê-la pela barriga ao seu corpo. Quando chegaram num
trecho iluminado, o rapaz fez sinal para que ela fizesse silêncio,
pois ele tiraria a mordaça, e somente então se mostrou. Era o
Leto. Ela se espantou. Nunca imaginava que fosse ele. Só que
não se assustou. Perguntou como ele estava. O que andava
fazendo. Leto disse que só queria ir pra casa. Foram juntos. A
Lidayane estava afável, delicada, querendo proteger aquele que,
por bandido
Prova 01 que fosse, ainda era seu irmão caçula.
CBJE 72
Contos Subterrâneos

Chegando à casa, Leto estava nervoso. Crescera ali, mas


nutria agora algum receio de entrar. Mesmo assim, Lidayane
o acalmou; garantia que estava em segurança. Deixou que ele
entrasse primeiro e entrou depois, trancando a porta, ainda
no escuro. Quando enfim acendeu a luz e olhou para o irmão,
ele estava lhe apontando o 38. Disparou.
O soar da arma, conhecido no bairro, causou um
rebuliço dentro da casa. Leto percebeu que, na porta ao lado,
o quarto de seus pais, o seu pai já estava se levantando
apressadamente para ver o que houvera acontecido, pois tinha
certeza de que o grito viera de dentro de sua casa, enquanto
sua esposa tentava abafar o próprio berro de desespero. A
porta abriu e Leto deu de cara com seu pai, de olhar arregalado
e completamente desarmado, e, sem pronunciar uma palavra,
atirou nele — e, sabendo o quanto seu pai era forte, atirou
novamente; e novamente; e novamente! Os tiros trespassaram
o cocorote do pobre velho, cuja face, após o fim, mantinha o
semblante espantado em ver o filho apontar-lhe um revólver.
Agora a mãe de Leto já não abafava seus gritos e tentou
correr em socorro ao marido, mas não tinha mais jeito, todo
o chão já estava ensopado de sangue pelas cinco balas que
acertaram em cheio a cabeça do morto — o Leto era sempre
muito eficiente na hora de mirar cabeças —, e depois ela voltou
sua ira ao filho, jogando-se em cima dele e chamando-o de
assassino, lembrando-o que ele não era mais parte daquela
família, como se isso fosse alguma falta para ele. Leto tentou
matá-la também em um puxar de gatilho, entretanto a arma
estava descarregada, e enquanto sua mãe continuava pulando
nele e surrando-o, chegando até a machucá-lo, ele buscava
munição nos bolsos, mas não tinha nada, o jeito então foi pegá-
la pelo pescoço, vigorosamente, e a força era tanta que a pobre
mulher
Prova 01salivou até perder a consciência. Leto a poria no canto
CBJE 73
Leon K. Nunes

da sala como se colocam os sapatos; dando pequenos chutes


até deixar o corpo onde queria.
O que tinha que fazer, Leto fizera. Saiu rápido dali,
por algumas vielas e becos nos quais sabia que não seria
perseguido pelas dificuldades. A tal justiça que lhe
interessava, ele já havia feito.
Leto passou um ano parado. Quando estava, em algum
bar da Zona Norte, bebendo cerveja e pensando no que faria
agora, sem parceiros, sem dinheiro, ele achou por bem buscar
novas rotas. Foi quando decidiu colocar a elite local como seu
alvo primordial. O primeiro que pensava era o filho do dono
de uma grande loja de departamentos.
Mas o Leto cometia, agora, o grave erro de colocar o
assassínio por esporte na frente de suas necessidades — antes,
ele matava em troca de algo, ainda que dinheiro, ainda que
cocaína. Agora, mataria por nada. Apenas por inveja de
pessoas em suas colunas sociais. A pouca visão de Leto para
essas coisas somente ficou clara para ele em sua primeira
tentativa de orquestrar o que planejara. De moto, ficou
observando o horário em que André Souto, filho do grande
comerciante Rafael Souto, saía da escola e era pego de carro
por alguém, provavelmente um motorista particular. Leto o
observou nessa rotina por três dias e decidiu agir no quarto.
Mas subestimara o cautela que o pai do André mantinha
sobre o filho.
No quarto dia, Leto seguiria o carro que levava André
até chegar próximo aos condomínios da Zona Sul, escondidos
por trás de longas ruas sinuosas. Decidiu, então, agir. Acelerou
sua moto e postou-se diante do carro, fechando o caminho e
apontando uma arma mandando que o motorista saísse. Leto
falava grosso. Sabia que não poderia falhar. Apesar disso, estava
nervoso
Prova 01 demais, tanto que de repente perdera a respiração e
CBJE 74
Contos Subterrâneos

parte dos movimentos do corpo, deixando a arma cair no


asfalto. Só depois Leto percebeu que isso não ocorrera por
acaso: ele havia sido atingido no peito por alguma coisa, pois
sangrava, embora não fosse muito. Nitidamente não era um
tiro de revólver, pois provavelmente já estaria morto. Mas
antes que pensasse sobre isso e conseguisse distinguir de onde
viera o projétil que o atingira, Leto caiu no chão, inconsciente.
Ao acordar, Leto estava em uma cadeira no centro de
um quarto bem-arrumado, porém todo fechado. Alguém
comentou que ele havia despertado. Os dois rapazes do local,
então, se aproximaram. Eram guardas protetores do André.
E agora mostrariam ao Leto porque ele cometera um grave
erro em tentar atacar justo esse garoto. Leto tentou reagir, no
entanto estava preso, amarrado pelas mãos, pelas coxas e pelos
pés. Logo tomou socos e chutes nas pernas, barriga e cabeça.
Pediu que parassem; era inútil. Os golpes se seqüenciaram até
ele desmaiar. Quando reanimou, apanhou novamente. E mais
uma vez.
Desta vez, Leto somente acordaria no hospital. Por
muito pouco, não morrera. Estava grogue, com uma dor de
cabeça enorme, além de dores no corpo, dormência em
algumas partes devido a fraturas e ele chegara até mesmo a ter
uma hemorragia e um pulmão perfurado, mas nada disso foi
pior que ver os dois policiais na porta do quarto e reconhecê-
los: eram os mesmos sujeitos que, nas horas vagas, trabalhavam
na vigilância do garoto André Souto. Leto se desesperou.
Enquanto os observava, sorridentes e quietos guardando a
porta, Leto começou a gemer, no início um gemido ainda fraco
e mirrado, e depois foi puxando força que sequer ele sabia
que guardava, e mesmo com todas as dores que sentia foi aí
que o Leto começou a gritar altíssimo, a dizer que quer sair
dali, que
Prova 01 quer voltar, que quer a Lidayane, que quer o Josias,
CBJE 75
Leon K. Nunes

que sente pelo Tião, e pelos outros tantos; os gritos fizeram


com que a enfermeira entrasse correndo no quarto e o alertasse
de sua condição, que exigia repouso, além de tê-lo repreendido
por ainda não ter defecado — já está na hora, não faça manha,
vou ali e quero ver tudo na volta, ela diz antes de sair. Por
instantes, Leto fica absorto, mas os policias logo o lembram
que lá fora existe uma população fanática exigindo que seu
corpo seja oferecido ao linchamento público, além de
telejornais sensacionalistas que querem explorar a sua morte
mais do que fizeram com a do Josias, oh pobre Josias, resmunga
baixo o Leto sem dar atenção ao policial, que foi requerê-la a
seu modo: com os dedos indicador e médio, prendeu o nariz
do enfermo com tanta força que ao soltar, o nariz ainda
permaneceu fechado por alguns segundos. O Leto, então, na
sua inconseqüência, dá uma cusparada na cara do policial, que
dá uma mostra do que é capaz puxando o revólver e colocando
sem nenhuma delicadeza na testa do caboclo, que sente até
um arrepio pelo contato do cano frio com o seu corpo, e,
enquanto ouve o policial fazer-lhe todo tipo de ameaça, dá
uma olhada no revólver — por acaso, um calibre 38 —, que o
faz se lembrar da sua arma, a velha companheira, além de todos
os momentos e todas as pessoas que apagou com ela e,
especialmente, do dia em que recebera o mais especial dos
presentes de sua vida, no alto do morro de Mãe Luiza, diante
da vista faustosa dos bairros do Centro; permeado por essas
lembranças, mesmo timidamente, no canto da boca, Leto puxa
um sorriso. Pela última vez.

Prova 01
CBJE 76
Contos Subterrâneos

Das secreções e dos odor


secreções es
odores

Enquanto o otorrinolaringologista fazia uma lavagem


no meu ouvido, eu poderia jurar que voltaria a ouvir
perfeitamente depois do processo. Tive problemas de audição
recentemente e, ao que me constava, restringia-se somente a
ouvido sujo. Muito sujo. Cera acumulada por meses e meses,
uma mistura inglória de secreções produzidas por glândulas
situadas no conduto auditivo externo junto a elementos vindos
de fora, como pó e areia, resultando num tampão que me
dificultara até mesmo a ouvir as coisas mais bobas como o
chamado de uma pessoa a dez metros de mim, sendo um
obstáculo para tudo o que gosto e tudo o que faço, porque eu
sou professor, e sem o meu ouvido em pleno estado, eu não
consigo me comunicar com meus alunos; há momentos em
que eu sequer ouço o que eu mesmo falei! É comum, se eu não
falar com firmeza. Os obstáculos se refletem em outros lugares
também. No trânsito, se dentro de meu Fusca envelhecido eu
já ouvia o motor em preponderância diante de todos os outros
sons, agora eu ouço — somente — o motor, e ainda assim
muito abafado; todo o resto fica preso num mundo silencioso,
como se eu estivesse debaixo d’água. O problema maior foi
quando recebi do médico o diagnóstico definitivo de que não
era cerume o problema da minha audição; era perda
progressiva
Prova 01 da audição, ou seja, no final das contas se reduzia
CBJE 77
Leon K. Nunes

a surdez mesmo. Apesar do atestado que eu recebera, válido


por muitos dias — afinal, o médico me recomendara uma
audiometria, que deixei para lá —, fiquei triste e cabisbaixo,
pois sentia que meu corpo estava se degenerando. Esse
diagnóstico foi apenas parte de um processo continuado que
se iniciou logo depois que saí da prisão, onde eu tinha passado
algumas semanas levianamente, pelo mero uso de benzina, que
eu cheirava numa boa com meu primo na praça central de
uma cidade pequena do interior até ser abordado por policiais
mal-humorados, que levaram a nossa benzina e nos puseram
em xadrezes separados, onde permaneci por dez dias, pelo
menos. Depois disso, como se estivesse enfeitiçado, comecei
a ver meu corpo ser atacado por furúnculos e doenças até
então estranhas a mim e a qualquer pessoa que tenha pouco
mais de vinte anos, estando, portanto, no auge de sua saúde e
virilidade; isto já não significada nada. Eu sentia mesmo o
estrago. Primeiro foi o retorno de meus sintomas de asma,
que eu não manifestava desde meus três anos de idade. Eu
sofria também de adenoide e isso agravava o problema, pois
gradativamente minha respiração ia sendo mais e mais
obstruída devido a infecções e acúmulo de catarro, um fato
que era tão corriqueiro que se tornou crônico, impedindo-me
de ter horas seguidas de sono, pois enquanto durmo, respiro
somente pela boca, e o catarro vai se acumulando à medida
que o tempo passa, e se eu durmo mais de quatro horas é
suficiente para guardar tanto catarro nas adenoides que acordo
com asfixia total, correndo para o banheiro e tentando
desesperadamente colocar tudo para fora. Passei a acordar
três vezes durante um sono de sete horas. Tempos depois, passei
a acordar ainda mais vezes. Posteriormente, passei a dormir
menos; parecia uma solução mais racional. De fato, amenizou
em muito
Prova 01 os problemas, pois, dormindo duas ou três horas
CBJE 78
Contos Subterrâneos

por noite, eu não chegava a sofrer com respiração obstruída.


No início, eu controlava o sono com o uso de despertadores.
Depois, passou a ser natural dormir e acordar pouco tempo
depois. Perdi um pouco de vigor no dia a dia por causa disso.
Passei a ser menos dinâmico, passei a falar menos, a pensar
mais devagar. Criei menos preocupação com os problemas
de rotina, sofri com dores no corpo mais constantemente —
em especial no pescoço, mas também nas costas, pois, nas
poucas horas em que durmo, estou no sofá. Como forma de
me livrar dos conflitos do cotidiano, cada vez mais eu me
tornava recluso. Assim, minha falta de sono e meus
pensamentos lentos não incomodavam ninguém. Tomei
contato com cada vez menos pessoas. A maioria desistia de
me telefonar ou me visitar. Eu raramente os atendia. Quando
eu conhecia alguém, era por acaso. Aconteceu recentemente,
quando recebi uma ligação e uma garota queria falar com um
sujeito chamado Rafael. Não sou eu, esse número não é dele,
eu respondi. Ela entendeu e desligou. Mas ligaria depois,
novamente procurando Rafael. Como ela ligasse ainda outras
duas vezes, eu notei que isso já ia além de um reles engano;
notei que se tratava de uma brincadeira. Na ligação seguinte
dela, começamos a conversar. Era uma tal Cecília, morava em
Areia Branca, a 330 quilômetros daqui de onde moro. A Cecília
não perde tempo. Entre as primeiras perguntas que fazia, era
se eu tinha namorada, se estava disponível e bobagens afins.
Ela disse que vez ou outra visitava a cidade. Depois da
conversa por telefone, procurei informações da Cecília na
internet, até que encontrei numa página de relacionamentos, o
seu perfil no qual a foto principal não esboçava sorrisos nem
olhares, mas sim seu traseiro, grande e pomposo. O resto da
página se continha de informações inúteis. A Cecília, como
prometido,
Prova 01 fez contato quando veio à cidade e marcamos de
CBJE 79
Leon K. Nunes

nos encontrar. O encontro foi numa praia, o decorrer do papo


num barzinho, o fim da noite num motel, e no dia seguinte ela
voltaria para Areia Branca jurando que ficaria mais tempo na
próxima vez. Torci para que ela não voltasse nunca mais. Por
sua causa, peguei uma maldita gonorréia, que pelo menos não
se manifestava no pênis em si, e sim em uma área da virilha
que ficou machucada, por onde escoava um corrimento
amarelado e sórdido, que não doía tanto, mas coçava bastante
e por vezes me impedia até de andar normalmente. Eu devia
saber, por experiência própria, que uma foda nunca traz o
prazer esperado, pelo contrário, gera muito mais problemas.
Aliás, qualquer busca que se faça ao prazer, coletivo ou solitário,
é uma busca por novas chagas. No processo em que me tornei
recluso, eu ampliei o consumo de drogas. Não fumava, mas
bebia muito e cheirava mais ainda. Comprava cocaína nos
lugares mais suspeitos possíveis. Como o uso se tornasse mais
freqüentes nos últimos meses, senti as conseqüências nasais
desse exagero na dose. Não conseguia mais controlar o nariz,
do qual escorria, quase o tempo todo, mucos clareados,
resultados da perfuração do septo nasal e da irritação crônica
que havia se tornado parte dessa região. Havia dias em que as
feridas se abriam simultaneamente, e eu ficava com pus
descendo pelas pernas, mucos escorrendo pelo nariz e catarro
acumulado na garganta, num sofrimento louco tentando pôr
tudo pra fora e sem conseguir. A minha cama, ao acordar, era
um amontoado de líquidos apodrecidos e fedorentos. A suíte
em que eu dormia transformou-se no lugar mais sujo que eu
já conheci, sendo possível detectar no balcão do computador,
no lençol e no piso as secreções que meu corpo evacuava sem
me pedir licença. Toda a casa ficou assim, porém a suíte estava
num estado de decomposição avançada, pois lá eu passava
quase todo o meu tempo. Para completar, tive também
Prova 01
CBJE 80
Contos Subterrâneos

problemas com o banheiro da suíte; era decorrência da reforma


que eu fizera, meses antes, da fossa séptica que ficava lá nos
fundos da casa. Na verdade, não se tratava de uma reforma.
Eu tapei a fossa para construir sobre ela uma casa de cachorro.
Não poderia ter cometido erro maior. O cachorro morreria
três semanas depois, por leptospirose causada pelos roedores
que ele costumava atacar e matar a dentadas e sacolejos. Com
a fossa tampada, não havia possibilidade de o mau cheiro
esvair-se, ficando acumulado dentro daquele esgoto doméstico.
O odor passaria, então, a seguir o caminho óbvio: voltaria
pelo encanamento ao lugar de origem. Como só havia um
banheiro na casa — o banheiro da minha suíte —, meu quarto
passou cada vez mais a ser invadido por fedor de merda vinda
do banheiro. Quando eu percebia algum barulho ocorrente
no vaso sanitário, constatava o óbvio: eram borbulhas que
denunciavam a chegada desse novo ente para apodrecer ainda
mais aquele cômodo. Não adiantava manter o vaso tampado.
Eu percebi que o filete de argamassa que o prendia ao chão
estava rachado. Só tive certeza quando, certa vez, depois de
dar a descarga notei uma parcela de líquido descendo junto
com excremento pelo piso. Cercado dessas porcarias, pus,
merda, muco, catarro, busquei várias tentativas, racionais,
emocionais e religiosas de me livrar disso, mas se há algo que
aprendi é que precisaria aceitar a condição, pois eu deveria
saber que nenhuma dessas secreções ocorrem por acaso, pelo
contrário, são fruto de um processo químico e biológico do
corpo com propósito de se livrar de substâncias nocivas ao
organismo, de maneira que após adquirir tal compreensão eu
pude ter enfim o sono desejado, ciente do fato de que toda
essa nojeira era um elemento intrínseco à minha natureza, que
estava apenas cumprindo a sua necessidade de esvair-se.
Prova 01
CBJE 81
Livro produzido pela
Câmara Brasileira de Jovens Escritores
Rio de Janeiro - RJ - Brasil
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E-mail: cbje@globo.com

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