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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL

Carlos Alexandre Neto


Reitor
Rui Vicente Oppermann
Vice-Reitor
PRÓ-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO
Vladimir Pinheiro do Nascimento
FACULDADE DE ARQUITETURA
Tânia Koltermann
PROPAR
PROGRAMA DE DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA
Claudia Piantá Cabral
Coordenadora do PROPAR

BIBLIOTECA DA FACULDADE DE ARQUITETURA


Margarete Tesainer
Bibliotecária-Chefe

REITORIA: Av. Paulo Gama, 110 - Bairro Farroupilha - Porto Alegre


Rio Grande do Sul. Brasil. CEP: 90040-060
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COLEÇÃO QUERÊNCIAS DE DERRIDA,
MORADAS DA ARQUITETURA E FILOSOFIA

Querências de Derrida, casas de Derrida: casa sem casa, moradas (de)


moradas. Onde está a casa de Derrida, onde moram, pensam e se
constroem suas ideias? Viajaram ao redor do mundo, pararam aqui,
acolá. Derrida, agora, um espectro sempre bem-vindo, bem-chegante.
Querências para arquitetos no sentido exato de uma estância, de uma
pousada para repensar os sentidos perdidos da arquitetura, a arché, e,
sobretudo, pensar sobre aqueles que ainda permanecem sem habitação.
Querências de Derrida, moradas da arquitetura e filosofia é o título do
“I Colóquio Internacional: Arquitetura, Derrida e aproximações”, uma
troca de ideias entre arquitetura e a filosofia. O evento realizou-se na
cidade de Pelotas, Rio Grande do Sul, Brasil, durante os dias 11, 12 e
13 de setembro de 2015, promovido pelo grupo de pesquisa CNPQ:
Arquitetura, Derrida e aproximações, e teve por objetivo apresentar as
reflexões que unem o pensamento filosófico de Jacques Derrida com as
questões do espaço, da arquitetura e da cidade, produzidas nos últimos
anos por arquitetos que pensam com a filosofia e filósofos que pensam
com a arquitetura e a cidade.
A coleção Querências de Derrida, moradas da arquitetura e filosofia
reúne os artigos das apresentações, distribuídos em 5 livros, cada um
destinado a uma temática:

1. Arquitetura e a filosofia da desconstrução. Fernando Fuão (org.)


2. Mover, acolher, cativar. Eduardo Rocha, Marcio Noronha (orgs.)
3. Poéticas do lugar. Celma Paese, Marcelo Kiefer (orgs.)
4. Políticas do lugar. Dirce Eleonora Solis, Marcelo Moraes (orgs.)
5. A porta, a ponte, o buraco, um orelhão. Ana Vieceli, Fernando Fuão (orgs.)

Fernando Freitas Fuão


I Colóquio Internacional: Arquitetura, Derrida e aproximações
Querências de Derrida, moradas da arquitetura e filosofia
Grupo de pesquisa CNPQ: Arquitetura, Derrida e aproximações.

INSTITUIÇÕES PROMOTORAS
Universidade Federal do Rio Grande do Sul. UFRGS
Programa de Pesquisa e Pós-graduação em Arquitetura. PROPAR.
Universidade do Estado do Rio de Janeiro.UERJ
Programa de Pós-graduação em Filosofia. PPGFIL
Universidade Federal de Pelotas. UFPEL
Programa de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo
Universidade Federal de Goias.
Programa de Pesquisa e Pós-graduação em Historia.
COMISSÃO ORGANIZADORA
Dirce Eleonora Nigro Solis. UERJ
Eduardo Rocha. UFPEL
Fernando Freitas Fuão. UFRGS.
Marcelo Kiefer. UFRGS
Marcio Pizarro Noronha. UFGO
COMITÊ CIENTÍFICO COLÓQUIO / COMITÊ CIENTÍFICO EDITORIAL
Dirce Eleonora Nigro Solis. Departamento de Filosofia/Pós-graduação. UERJ
Eduardo Rocha. Faculdade de Arquitetura e Urbanismo. PROGRAU. UFPEL
Fernanda Bernardo. Faculdade de Letras. Universidade de Coimbra. FLUC
Fernando Freitas Fuão. Faculdade de Arquitetura. PROPAR. UFRGS
Igor Guatelli. Faculdade de Arquitetura. Instituto Mackenzie. São Paulo.
Marcio Pizarro Noronha. Faculdade de História e Artes. PPG Historia. UFGO
Marly Bulcão Lassance Brito. Departamento de Filosofia/Pós-graduação. UERJ
Paulo Afonso Rheingantz. Faculdade de Arquitetura e Urbanismo. UFRJ.
Ricardo Barberena. Faculdade de Letras. PUC-RS.
Rosa Maria Dias. Departamento de Filosofia/Pós-graduação. UERJ
Silvio Jantzen. Faculdade de Arquitetura e Urbanismo. UFPEL.
Wilton Medeiros. Universidade Estadual de Goias. Faculdade de Arquitetura

APOIO:

www.querenciasderrida.blogspot.com
CELMA PAESE
MARCELO KIEFER (orgs.)

POÉTICAS DO LUGAR

1a edição

Porto Alegre
UFRGS
2016
Coleção Querências de Derrida, moradas da arquitetura e filosofia - Vol. 3
© de Celma Paese e Marcelo Kiefer
1a edição 2016

Direitos reservados desta edição: PROPAR - UFRGS


Tiragem: 500 exemplares
Projeto gráfico: Ana Paula Vieceli, Fernando Fuão
Editoração Eletrônica: Ana Paula Vieceli, Fernando Fuão
Capa: Fernando Freitas Fuão

CIP – Catalogação na Publicação


_____________________________________________________________
P745
Poéticas do lugar / Organização Marcelo Kiefer, Celma Paese . -
Porto Alegre : UFRGS, 2016. (Querências de Derrida: moradas
da arquitetura e filosofia, 3)

176 p. : il.; 14 x 21cm

1. Arquitetura – Teoria. 2. Filosofia. 3. Desconstrução. 4. Derrida,


Jacques, 1930-2004 . I. Kiefer, Marcelo (org.). II. Paese, Celma (org.).

CDU: 72.01
_____________________________________________________________
Elaborada pela Biblioteca Faculdade Arquitetura/UFRGS

ISBN 978-85-9489-000-9 (Poéticas do lugar)


ISBN 978-85-66106-97-8
(Coleção Querências de Derrida: moradas da arquitetura e filosofia)
Agradecemos ao CNPq e Capes pelo apoio.

Nossos agradecimentos também a equipe que organizou e aco-


lheu com tanto carinho o Colóquio em Pelotas: Eduardo Rocha,
Débora Souto Allemand, Rafaela Barros de Pinho, Talita Vieira,
Luana Pavan Detoni, Otavio Martins Peres, Antonella dos San-
tos Pons, Carolina Magalhães Falcão, Gustavo Nunes, Andre de
Oliveira Torres Carrasco, Lais Portela, Lorena Maia, Jessica Hele-
na Peixoto, Fernanda Tomiello, Barbara de Barbara Hypolito, Glau-
co Roberto Munsberg, Flavia Galbiatti e EMAU João de Barro.
SUMÁRIO

12 APRESENTAÇÃO
Marcelo Kiefer, Celma Paese

18 OS LUGARES DO SEPÉ
Marcelo Kiefer

44 HOSPITALIDADE E DESEJO NO ENSINO DE


PROJETO DE ARQUITETURA
Paulo Afonso Rheingantz

86 PROJETO ENTRE DESÍGNIO E DESVIO


Paulo Reyes

104 A MALDIÇÃO DO ARCONTE


Ricardo Araújo Barberena

128 ESPECTROS E RASTROS DA CIDADE – ESCRITURA,


ARQUITETURA, DESCONSTRUÇÕES
Jonatan Fajardo Cabrera

148 DESENHO E DESCONSTRUÇÃO NA


REPRESENTAÇÃO DA ARQUITETURA DA CIDADE
Beatriz Regina Dorfman

172 SOBRE OS AUTORES


12
Apresentação
Poéticas do Lugar

13
Poéticas do lugar é resultado da compilação de textos, em cinco li-
vros, que compõem os anais do “I Congresso Internacional Arquite-

tura, Derrida e Aproximações”, com o título de “Querências-Estância
de Derrida, Moradas da Arquitetura e Filosofia”, ocorrido no ano de
2015, de 10 a 12 de setembro, na cidade de Pelotas, no Rio Grande
do Sul, realizado pelo Grupo de Pesquisa CNpq: Arquitetura, Derrida

e aproximações. Os seis textos aqui organizados sensibilizam o leitor,
através de diferentes abordagens, para desconstrução do lugar-tempo e
para possíveis construções a partir de outra percepção das preexistên-
cias. Se reconhece a dinâmica da organização do lugar e sua estrutura de
valores e comando através da crítica ao pensamento dualista verdade/
inverdade, ao mal de arquivo e, ainda, ao aprisionar pelo pré-estabe-
lecido. A filosofia da desconstrução, quando levada para o campo da
arquitetura, é vista pelos autores como forma de libertação da prática
logocêntrica. A desconstrução propõe ao arquiteto questionar, des-
montar e rever os conceitos que regem o sentido do pensamento arqui-
tetônico, em concepção e propósito, priorizando a différance, o outro e
os afetos que nascem da alteridade, como veículos do porvir (Derrida).
São manifestos pela diversidade, pelo acolhimento e pela valorização
às aporias, à indecidibilidade, que reconhecem que o desígnio não é
igual nem em si mesmo, tampouco pode definir o lugar e controlar o
futuro, evitar o devir (Deleuze), e justificar o subjugo. Pelo contrário,
entendem que são nesses desvios que o movimento se dá e o tempo-es-
paço se estabelece, juntamente com o instigar do sonho e do desejo,
provocando o rompimento dos limites. Dos conflitos, do encontro das
diferenças, abrem-se novas possibilidades. Nas suas bordas, periferias
e margens, onde a convicção se enfraquece, que se vislumbra o desco-
nhecido, se deseja, e se troca. Não se trata de um futuro sem passado,
da refundação do universo. Trata-se de enxergar a inclusão entre di-
ferentes mundos. Rastros, espectros, ruinas, são fundações das novas
construções, assim como para Paulo Rheingantz, no ensino, não há
construção de conhecimento sem conhecimento prévio. Determina-
se, constantemente, um jogo entre a permanência e a transformação,
entre a repetição e a diferença, a segurança e o risco, o conhecido e o
estrangeiro, com todas suas nuances e sobreposições. São grandezas

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interdependentes, que não se isolam, mas variam de lugar e intensida-
de em um movimento constante de justaposição e interferência, como
uma curva de Moebius. Trata-se do abandono das verdades, porém
com o reconhecimento à existência dos limites, uma resistência à do-
minação, à manipulação, à hipocrisia e à ignorância.
O texto de Marcelo Kiefer, “Lugares do Sepé”, trata do lugar como or-
ganização de valores e comando no tempo, sob diversos de seus aspec-
tos e representações, trabalhando a desconstrução e o porvir no tema
das transformações sociais. São lugares que acolhem e domesticam em
seu interior, enquanto hierarquias, regras e valores são construídos e
potencializados na coexistência diária; que caracterizam e são carac-
terizados pelos valores dos sujeitos; que representam e influenciam as
diferentes relações humanas, de equidade ou de opressão e as possi-
bilidades de mudança. Nos lugares, que são lugares-tempo, o acolhi-
mento habita a força dos desejos ambíguos, de expansão e retração; de
inclusão e de exclusão; de conflito e paz. Kiefer parte da vontade de
potência (Nietsche) para tratar dos conflitos, do desejo e do limite, do
movimento, da consciência como elemento universal e das possibili-
dades através da observação cotidiana, do elogio ao reconhecimento e
valorização da diversidade e da crítica social.
O texto de Paulo Rheingantz, “Hospitalidade e Desejo no Ensino de
Projeto de Arquitetura”, trata da desconstrução e do desejo no ensino
de arquitetura, apoiado nas ideias pedagógicas de Paulo Freire e na
abertura para construção de novos valores e concepções arquitetônicas,
de forma heterogênea, colaborativa e acolhedora, valorizando o co-
nhecimento prévio. Rheingantz propõe ao futuro arquiteto buscar na
memória dos afetos o seu próprio sentido de acolhimento, construindo
o conhecimento pela mediação contextualizada entre os ‘já saberes’ e o
sonho para trazer a arquitetura do desejo à realidade. A afetividade, em
conjunto com a ética, potencializa a seriedade docente e aproxima o
entendimento entre o professor e alunos. Rheingantz entende o ensi-
no-aprendizagem de projeto como uma prática sociotécnica, que trata o
conhecimento como o elemento chave para a permanente transgressão
das fronteiras entre o técnico e o social. Este olhar desloca o foco do
ensino de projeto para as relações entre os diferentes atores de um

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ateliê, que é entendido como um coletivo de criação, onde se extingue
a divisão entre natureza e sociedade, pela ação de reunir os elementos
humanos e técnicos.
O texto de Paulo Reyes, “Projeto entre Desígnio e Desvio”, trata do pro-
jeto arquitetônico como desígnio a ser compartilhado e não incorporado.
Nesse processo, os conflitos e a indecibilidade (desvios) são oportunidades
de desconstrução e abertura de possibilidades sobre as construções an-
teriores. Se é da essência do lugar o conflito e a diferença, não há nele
um único sentido, mas uma multiplicidade de valores que se sobrepõem e
que, não raro, apresentam-se de maneira contraditória, abrindo-se ao por-
vir. Quando o arquiteto se entrega à essa ideia, as possibilidades de ir ao
encontro do outro se multiplicam. Reyes propõe a construção de pensa-
mento por cenários através da observação de um conjunto de imagens do
espaço onde haverá a interferência projetual. A partir do aparelhamento
dialético, criam-se nas rachaduras os espaços entre as imagens, onde o sen-
tido se constrói. É justamente nesta área do entre que o projeto passa a se
delinear e tomar um sentido, direção. Para o autor, a tarefa do arquiteto
é produzir diferentes narrativas sobre o lugar, assim abrindo diferentes
possibilidades de coabitar com o outro.
O texto de Ricardo Barberena, “A Maldição do Arconte”, trata da
crítica do mal de Arquivo. O autor é coordenador do espaço de do-
cumentação da PUC-RS, batizado com o nome de Delfos, não por
acaso. Por sua função, ele se vê envolvido na constante tensão entre a
lembrança labiríntica e o espaço opaco da memória. Assume a função
de arconte quando transita por entre as diferentes estratégias de visibi-
lidade, ainda orientadas de forma dominante por valores tradicionais.
Apesar de confessar que sua função como arquivista é movida por uma
força de extermínio, para ele resta a esperança que a poeira e o bolor
dos arquivos não os transformem em espectros inatingíveis e eclipsa-
dos: nesse imenso labirinto mortuário de identidades, o jogo de blefes
e sombras do tecido social, o que é destroço transforma-se em resíduo;
o impercebível pode ferir o nosso olhar; e o inamovível movimento dos
fichários pode ser porto de viagem de fragmentos amotinados.
O texto de Jonathan Fajardo, “Espectros e Rastros da Cidade: Escri-
tura, arquitetura, desconstrução”, trata da escritura da cidade em seu

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processo dinâmico e de sobreposições entre planejamento arquitetôni-
co e outras predeterminações, o espontâneo, o devir, e a desconstru-
ção: “a cidade não se define ou se caracteriza pelo regramento prévio,
porque, se caminho é feito de aporias, do devir, qualquer antecipação é
uma distorção”. Fajardo reflete sobre a desconstrução no meio educa-
cional, institucional, arquitetural e sobre o projeto como espaçamento
e possibilidade, construção espacial a partir do outro.
O texto de Beatriz Dorfman, “Desenho e Desconstrução na represen-
tação da arquitetura da cidade”, trata do desenho como ferramenta de
pesquisa e chave de acesso à desconstrução; sendo essa uma técnica
a serviço da liberdade: “O desenho ensina a ver e possibilita análises,
recortes, reflexões, processos de criação, através da desconstrução da
imagem”. Se, a representação envolve dimensões filosóficas, estéticas,
românticas, criativas, e de comunicação e cultura, da linguagem do
desenho vem o desvio e a fantasia, e é da fantasia que vem o desejo e
a superação dos limites. Dorfman afirma que a intenção dessa ideia
de desconstrução pelo desenho é questionar a arquitetura como sis-
tema de pensamento, pois a filosofia da desconstrução propõe estra-
tégias que desmontam categorias e conceitos, desmistificando as ver-
dades absolutas do logocentrismo. Nesse sentido, não existe nenhum
pensamento que não possa ser contestado e diferentes caminhos são
sempre instrumentos do porvir.
De forma geral, os textos escolhidos para este livro, apresentam-se crí-
ticos ao aprisionamento e ao subjugo, mas não deixam de valorizar a
preexistência e o pertencimento. Encontram na desconstrução e nos
desvios as possibilidades de uma dinâmica acolhedora e diversa de de-
sígnios, sendo os limites e conflitos o sentido dos movimentos de supe-
ração e encontro, que navegam entre a segurança e o risco, nas bordas
do permanecer e do transformar. Poéticas do lugar convida o leitor a
pensar o lugar como a querência gaúcha, do sentir-se em casa, ‘pago’
que acolhe em qualquer espaço-tempo, mas que, sem submeter-se à
rígida cobrança dos espectros de seus mortos, veste como possibilida-
de a desconstrução de conceitos e dogmas espaciais de modo poético,
priorizando o sensível: lugar da alteridade.
Marcelo Kiefer e Celma Paese

17
Figura 1
– Lugar
da Fam
ília de N
Desenh úbia na
o digita Profetas,
l de Ma Basilinh
rcelo K a em de
iefer staque.

18
Os lugares do Sepé

Marcelo Kiefer

19
A Cooperativa de Educação Ambiental e Reciclagem Sepé Tiara-
ju (CEAR) tem uma organização e uma história repletas de lugares
significativos não só de seu caráter, mas também de aspectos sociais
da sociedade brasileira. Lugares que se sobrepõem como fenômeno e
definição, que estabelecem relações do todo e das partes em cada todo
determinado também como parte do todo que o contém. São como
todos os lugares, mas com particularidades que caracterizam nossas
relações de dominação e segregação e, simultaneamente, as possibili-
dades, as transformações e a libertação.
O lugar se estabelece a partir de relações topológicas dos fenômenos
ou das concepções, observados e definidos em diferentes interpreta-
ções de recortes tempo-espaciais que não abrangem sua complexidade
tempo-espacial, pois esses recortes são, ao mesmo tempo, partes e todo
universal em movimento. O lugar se determina pela disposição espa-
cial de seus elementos, é o entre, mas é também os elementos, pois
um estabelece o outro. O lugar é a casa do fenômeno e da concepção,
onde são dadas as ordens que estabelecem o todo e a posição de cada
elemento que a compõe, além da relação com o que está fora. É na dis-
posição dos elementos, na ordem do lugar que as regras se manifestam;
o nomos determina o lugar e o lugar determina o nomos. Trazer para
ordem do lugar é trazer para a casa, domesticar. O lugar é organização,
é o que dá a ideia de finito no infinito, ainda que mesmo definido, em
recorte, seja “a casa sem paredes” o “infinito no finito” de Derrida1. É
o que está entre elementos organizados espacialmente em qualquer
dimensão; é a estrutura de disposição do fenômeno ou concepção; é a
sua permanência dinâmica (de evolução) ainda que estável, ainda que
efêmera. O tempo também é lugar e o lugar também é tempo.
O lugar está em todo lugar, não só no espaço físico. O lugar está na
relação do sujeito com ele mesmo, dele com seu grupo familiar ou de
trabalho, está na CEAR e em quantas casas puderem existir como
fenômeno e concepção. Na organização do lugar, da casa, estão os
valores sociais, de grupos e individuais.
As regras dessa organização domiciliar têm o sentido de comando que
é paradoxal, entre a restrição de liberdade, a definição, ao ponto da

1 SLOTERDIJK, P. Derrida, um Egípcio. São Paulo: Estação Liberdade, 2009.

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dominação e da escravização (ou da autoescravização) e a ampliação
dos horizontes, uma ponte para as possibilidades, para as transforma-
ções, muitas vezes, condenando o próprio fenômeno à destruição. Não
se trata da pulsão de morte do arquivo2. Esse último não determina a
destruição em si, mas a tendência que esse tem a se destruir em sua
pretensão de imortalidade. O outro trata do fato em si, da transfor-
mação do fenômeno ou da concepção, da mudança de regras que não
remetem mais a um todo, ainda que esse seja relativo. Uma mudança
inter-relacionada com a permanência (que a realiza), seja de forma
dramática, de rompimento, seja de forma suave, até imperceptível, mas
não potencialmente menos radical; revoluções de diferentes caráteres.
De toda forma, as regras tratam do poder, da possibilidade, do mando,
da ordem, ora um poder concentrado ou compartilhado, ora um poder
libertador ou opressor. E o lugar dos elementos reflete e determina a
forma do poder e suas consequências, tal como nos lugares que cons-
troem a história da CEAR, independentemente de sob que aspectos
estiverem definidos e da diversidade infinita de seus caráteres.
Hoje, a CEAR está estabelecida em terreno cedido pela prefeitura de
Porto Alegre, na Rua Frederico Mentz, 1167. Mas a história da Coo-
perativa começa bem antes, na história de vida de seus trabalhadores
e organizadores e em lugares e eventos preliminares, entre os quais
alguns são mais significativos para esse processo.
No lugar Ponte do Guaíba, situado no entroncamento das estradas
BR290 e BR116, que ligam Porto Alegre ao interior o estado, um
evento foi marcante para a história da CEAR. O filho de Flaubiano,
“carrinheiro” como o pai e o irmão que o acompanhava naquele dia
fatídico, foi atropelado ao atravessar a ponte com sua carroça de tra-
balho. A família de Flaubiano, o “tio Caco”, morava às margens da
estrada, em uma das ilhas do delta do rio Jacuí, no bairro Arquipélago:
nas bordas da cidade, na capital estendida além da ponte. As ilhas
são lugares de contrastes: periferia urbana de muita miséria destacada
das casas de luxo voltadas para o rio, que avançam com a especulação
comercial. São lugares de diferença, de segregação. Lugares que retra-

2 DERRIDA, Jacques. Mal de Arquivo: Uma impressão Freudiana. Rio de


Janeiro: Relume Dumará, 2001.

21
tam a posição de cada grupo e indivíduo na sociedade. Essa posição,
por sua vez, estabelece – e é estabelecida – na organização social, em
suas regras e valores. Cada posição social, econômica e cultural é parte
de um lugar. Na ilha dos Marinheiros, como muitos outros, a famí-
lia separava informalmente para vender o que, até então, era tratado
como lixo: lugar da triagem e abrigo. Diariamente, deslocavam-se para
a parte central da cidade, atravessando a ponte para recolher os resí-
duos que pudessem ser transformados em sustento: lugar de coleta. A
interseção desses lugares expôs esses personagens a eventos – como o
da ponte – à vulnerabilidade, não só física, mas de toda ordem.
Antes do evento trágico, a sobrinha de Flaubiano e filha de Basilinha,
Núbia, uma das personagens principais da construção da CEAR, tra-
çou outra trajetória. Também nascida na ilha, se mudou com a mãe
ainda adolescente para a Vila Teodora, na parte continental da cidade.
Todavia, impedidas de terem carroça na casa oferecida pela prefeitura,
voltaram a atravessar a ponte para poder trabalhar.
Entre idas e vindas, aos 18 anos, Núbia engravidou e decidiu procurar
um galpão de triagem para sossegar, um lugar de permanência. No en-
tanto, o tempo no Galpão Reciclando pela Vida, ou “Galpão da Mari-
na” (na Rua Júlio Olszewski, no1), não durou muito. Precisando cuidar
de sua filha adoecida, Núbia deixou para trás uma relação profissional
que não lhe foi acolhedora nem respeitosa, pois a coordenadora do
lugar não lhe pagou todos os dias devidos. A ação foi justificada por
uma penalidade baseada em regras arbitrárias que negam direitos tra-
balhistas: foram descontados dois dias de remuneração para cada dia
de falta do trabalhador. Optando por fechar as portas para um possível
retorno, Núbia, tomada pela indignação, lhe respondeu: “um dia tu vai
conhecer um Galpão de verdade!”3. Em seguida, a filha de Basilinha
passou a bater à porta da Associação Profetas da Ecologia, grupo de
triagem de resíduos que ocupava, à Rua Voluntários da Pátria, lugar

3 Fala de Núbia em entrevistas realizadas na CEAR Sepé com os cooperados,


administradores e colaboradores, em gravações de áudio e vídeo segmentadas e
não editadas. Marcelo Kiefer, Camila Domingues e Eliane Bruél. Porto Alegre:
Projeto de Pesquisa de Pós-doutorado vinculado ao PROPAR UFRGS, 2015.

22
junto aos trilhos da antiga rede ferroviária. Depois de alguma insistên-
cia, Daniel, líder entre os trabalhadores, aceitou o ingresso de Núbia
na Associação, porém, sem a aprovação de Simone, que também tinha
papel ascendente sobre as decisões do grupo.
No lugar que sediava a Profetas havia um túnel, utilizado por certo
tempo como lugar de triagem. Logo, no entanto, um muro de divisa
foi derrubado, e a área adjacente aterrada e ocupada. Tratava-se dos
domínios da Trensurb, terreno sobre o qual passa a linha de trem ur-
bano que liga a capital às cidades metropolitanas. A Associação não
possuía um galpão, esteira nem equipamentos adequados. Os resíduos,
por todos os lados, formavam diferentes paisagens e barreiras de acor-
do com a disponibilidade de material e a etapa do processo de triagem.
A estruturação e administração da Profetas era orientada pelo políti-
co e irmão Marista Antônio Cechin, apoiado por outros personagens
que são importantes para a história da CEAR – os educadores Pedro
Figueiredo, Maria De Lourdes Figueiredo e Natália Soares. Na Pro-
fetas, o lugar de Núbia foi se construindo, estabelecendo relações de
proximidade e também de distanciamento. Ela passou a se envolver
diretamente com a estrutura de regras e de poder desse lugar. Núbia
se aproximou de Pedro e falava muito nas reuniões do grupo, o que
despertou descontentamento em outros trabalhadores. Logo, ocorreu
o acidente com o filho de Flaubiano na Ponte do Guaíba. A família
de Nubia ficou muito abalada, e alguns ficaram preocupados em con-
tinuar atravessando para a ilha todos os dias.
Nesse período, o sistema de produção da triagem, a possível baixa dis-
posição para o trabalho e a inexperiência dos integrantes da Associação
provocavam muito desperdício e sujeira no ambiente. Pedro Figueire-
do chamava a atenção para a grande quantidade de material “útil” que
estava sendo dispensado para o container de rejeito. Aproveitando a
oportunidade, Nubia sugeriu a Pedro que a mãe dela ajudasse – e fos-
se ajudada – na solução desse problema, separando e ficando com os
resíduos “úteis” sobrantes das triagens anteriores. Citou o acidente em
família e a oportunidade de trabalho: sua mãe faria bem aquele servi-
ço, era capaz e dedicada. Pedro aceitou a vinda de Basilinha que veio
com a filha Ilza. A função das recém-chegadas, lugar de ocupação na

23
estrutura das atividades da Associação Profetas, era fazer a limpeza do
corredor, separando o resto do resto dos resíduos, já que os trabalha-
dores antigos, um pouco desgostosos da situação, reclamaram por al-
guns materiais. Prevendo a mudança, os antigos integrantes não foram
acolhedores e trataram logo de colocar as novatas em seu lugar na hie-
rarquia de poder: submetidas às regras de seu domínio. Semanas antes
da vinda de Ilza e Basilinha, Núbia já insistia com seus familiares para
virem trabalhar na Profetas. Mesmo com o acidente e o medo, o grupo
não se dispunha a abandonar o serviço a que estavam acostumados por
outro de incertezas. O sustento estava garantido naquele formato, ape-
sar dos problemas. Ilza e Basilinha, todavia, aceitaram a empreitada,
começando a trabalhar em uma terça-feira. Logo que chegaram foram
surpreendidas. Na sexta-feira anterior, Simone havia colocado muitos
resíduos do chão, esperando que as duas novatas demonstrassem não
estar aptas para o serviço. Núbia, que trabalhava com os outros, ficou
apreensiva ao ver aquilo, mas logo percebeu que subestimara a força
de vontade das duas senhoras. Pela manhã, o caminhão de material
não conseguia entrar para descarregar, como já não conseguira no dia
anterior, resíduos estariam bloqueando a entrada. De longe, Núbia e
os outros entenderam que o acesso ainda estava sujo e logo alguém
reclamou da eficiência do novo serviço. Ao chegar ao local, no entanto,
tudo estava limpo. O que atrapalhara a entrada do caminhão teriam
sido dois sacos colocados no trajeto, mas esses logo foram removidos.
Todos ficaram surpreendidos e alguns se demonstraram irritados com
aquela eficiência.
No mesmo dia, à tarde, chegaram outros trabalhadores da família
de Núbia. Primeiro Macau e logo, Daniel. Com mais gente, Pedro
procurou disponibilizar um lugar para se estabelecerem, mas o lugar
escolhido foi reivindicado pelos outros como lugar de passagem para
a sucata. O grupo, então, desceu o barranco e se alocou debaixo da
linha do Trensurb. Com algumas madeiras, Macau montou um es-
trado para trabalharem sobre trilhos desativados e, em pouco tempo,
estavam separando resíduos. Ao contrário do costume anterior, o pá-
tio agora ficava sempre limpo.

24
Figura 2 - Galpão Profetas da Ecologia, baixios do Viaduto da Av. Sertorio. Porto Alegre.
Desenho digital de Marcelo Kiefer

Figura 3 – Fachada CEAR. Sepé Tiaraju. Desenho digital de Marcelo Kiefer

25
Os novos integrantes do lugar, de fato não integrados, estranhos mal
recebidos, provocaram muito ciúmes. Eram parte apartada do lugar e
da Associação. Ainda assim, era muito recente o momento de encon-
tro, de mudança. Naquela etapa, lugares diferentes mudavam visivel-
mente de relações entre si, ao mesmo tempo em que se transformavam
em outros lugares. O movimento da vontade de potência e dos confli-
tos, em Nietzsche4, estavam ali exemplificados.
Os antigos integrantes da Profetas reagiram com resistência e domi-
nação, potencializando os conflitos. Na semana seguinte, Núbia con-
versou com Pedro e, apesar da advertência quanto às incertezas, desceu
para se juntar aos seus familiares. Ela trocou de lugar ao ir para o outro
grupo, embaixo dos trilhos, e trocou de lugar dentro da estrutura de re-
gras e poder da nova casa. Núbia passou a planejar as ações e coordenar
os conflitos desse novo braço da Associação. Ao mesmo tempo, seu
lugar de trabalho ainda estava associado ao grupo Profetas e ocupava
o terreno invadido da Trensurb. Com a aprovação dos demais, ajudou
a estabelecer as regras de distribuição dos ganhos e das excepcionali-
dades da rotina de trabalho e remuneração. Apesar de o cargo assu-
mido lhe trazer determinado poder, esse poder não era utilizado para
dominar os outros. A relação entre todos se tornava equilibrada, todos
participavam das decisões, e os ganhos eram divididos de forma equâ-
nime, sem discriminações. Não se anulavam as diferenças ou faltavam
conflitos e até brigas, mas esses eram acomodados em movimentos
mais suaves para atender o convívio familiar e pessoal e as pretensões
de trabalho. Logo vieram mais familiares para trabalhar, entre eles
Flaubiano, o Tio Caco. O grupo agora estava maior e mais organiza-
do, chegou ao número de doze integrantes. Ainda assim, continua-
vam separando o que sobrava da triagem do outro grupo e devolviam
vidros, papelões e sucatas que encontrassem. A proximidade familiar
entre a maioria dos integrantes possivelmente facilitou a reunião de
tantas pessoas em um corpo organizado para o trabalho e convivência.
Por outro lado, o que aumenta sua coesão também aumenta a dis-
tância para o que está fora. Nesse momento, não só os trabalhadores
antigos da Profetas viam o novo grupo como estrangeiros invasores,

4 NIETZSCHE, Friedrich. Vontade de Potência. Petrópolis: Vozes, 2011.

26
como o grupo de Núbia se fechava cada vez mais em si, estabelecendo
um afastamento entre ambos, não só determinado pela distância dos
locais de trabalho. Com o tempo, o novo grupo passou a ganhar quase
o dobro dos demais, mesmo mantidas as divisões desiguais de mate-
rial para triagem. Os conflitos entre as partes começaram a aumentar.
As lideranças do grupo mais antigo, que não tinha estrutura de igual
empenho e igual divisão de trabalho e remuneração, estavam insatis-
feitas com o desenvolvimento do pessoal “de baixo”. Segundo Núbia,
membros da Profetas tinham uma estrutura hierárquica que ia além de
uma relação administrativa, onde a ascensão de uns sobre os outros de-
terminava a sorte de todo grupo. Os menos influentes navegavam sob
as regras dos mais influentes: um lugar de desigualdade. Para Maria de
Lourdes, eram comuns situações de exploração nessa relação.5
Como retaliação, os liderados de Daniel passaram a tramar contra os
estrangeiros. Entre outros casos, houve retenção de matéria-prima e
acusações de roubo. Mesmo pagando pela mesma comida feita na co-
zinha comunitária, o grupo de Núbia recebia o alimento em potes de
plástico de sorvete e sem talheres. Tentativa de impor o domínio, de
hierarquizar, de colocar os novatos em seu lugar, seguindo a determi-
nação de suas vontades. Com a humilhação se estabeleceu e aumentou
o distanciamento entre os trabalhadores. Segundo Nietzsche6, o con-
flito entre os grupos se constrói da vontade de potência, a tendência
que uma força tem de se expandir e assimilar outras, sem necessaria-
mente escravizar. Isso se mostra no grupo de Núbia que entrou no
campo alheio e buscou sua expansão.
O grupo antigo da Profetas, por sua vez, tentou assimilar e dominar
os novatos. Também o Irmão Cechin, Pedro, De Lourdes e Natália,
buscaram expandir seus ideais por meio de suas atividades sociais. É
assim também com a disposição de Núbia em mudar sua realidade.
De modo geral são forças em movimento, mas cada caminho tem di-

5 Entrevistas realizadas na CEAR Sepé com os cooperados, administradores e


colaboradores, em gravações de áudio e vídeo segmentadas e não editadas. Marcelo
Kiefer, Camila Domingues e Eliane Bruél. Porto Alegre: Projeto de Pesquisa de
Pós-doutorado vinculado ao PROPAR UFRGS, 2015.
6 NIETZSCHE, Friedrich. Vontade de Potência. Petrópolis: Vozes, 2011.

27
ferentes implicações, principalmente se considerarmos a condição do
humano. A força que assimila ou escraviza não elimina a outra, pode
transformar ou inibir. A inibição trata da exclusão, do isolamento, do
qual faz parte também o sentimento de exclusão e da autoescravização.
Segundo Pearls7, existem dois tipos de controle, um é o que vem de
fora, o eu sendo controlado pelos outros, por ambientes; o outro é o in-
terior, incorporado no organismo; o controle que estabelece a própria
origem do fenômeno ou da concepção.
Em exclusão e sentimento de exclusão, não raro, nos encontramos to-
dos, em diferentes momentos e em diferentes lugares de nossa vida.
No lugar das regras econômicas e sociais, especificamente, tanto o
grupo antigo da Profetas quanto o da Núbia, encontram-se severa-
mente oprimidos. A construção dessa relação é complexa e também se
estabelece na construção de cada indivíduo e de seus grupos na ideia
de não merecimento e impotência. Como essas forças não podem ser
extintas e, de uma forma ou de outra procuram se movimentar, movi-
mentam-se, e não se homogeneízam, pois a tendência ao movimento
e a diversidade é uma força natural (para haver tempo e espaço há mo-
vimento, ainda que o não movimento também esteja presente).
Em todas as forças, que são parte e, ao mesmo tempo, todo, mesmo
sob a pressão de outras forças anulando seu movimento, está esta von-
tade e toda potencialidade de transformação. No sujeito oprimido, sua
vontade de movimento nem sempre se manifesta forte suficientemente
para mudar sua condição, mas procura a saída em suas fronteiras e, na
direção do desconhecido, perde o medo de abraçar o estranho e expe-
rimenta a direção disponível.
Talvez a força mais potente para sua força ser comprimida, tal qual
uma mola, ou girar em círculos, é o poder do veto a si mesmo. Na con-
dição de oprimido, como expressa Paulo Freire8, o próprio oprimido
também pode se tornar opressor. É uma forma de expansão e depende,
é claro, da elaboração de valore . Na relação entre os trabalhadores da
Profetas, o grupo mais antigo optou por oprimir o outro grupo que o
incomodava, mas não optou pela transformação do seu modo de vida e

7 PERLS, Frederick. Gestalt-Terapia Explicada. São Paulo: Summus, 1977.


8 FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. São Paulo: Paz e Terra, 2014.

28
de produção que os colocaram em oposição aos demais. A vontade de
potência, no entanto, é também a vontade de possibilidade, de poder
fazer, de transformar, de desejar; desejo que possivelmente não está
apenas no homem, é universal. Sim, o desejo talvez possa também ser
visto como uma força que não é só vontade de potência, mas também
orientada pela escolha. O desejo das coisas em um universo que não é
só caos, mas procura. A vontade de potência talvez não seja apenas a
de expandir, mas também a de poder retrair; há uma vontade de potên-
cia no sentimento de exclusão do sujeito que entra em conflito com a
própria vontade de mudar. A vontade de expandir parece apenas tratar
de superar limites, porém há vontade e poder também em impô-los,
em isolar, ainda que o isolamento seja apenas uma tendência ou um
conceito, um recorte, já que tudo está sob algum julgamento separado
e unificado no universo. É como o lugar que tem uma origem no fenô-
meno ou na concepção, mas que é definível apenas conceitualmente,
e seus limites são relativos a essa origem do lugar, apartado na análise.
Os limites não estabelecem apenas o corte e o isolamento total – são
também o que une, a fronteira, o elo. Limites são bordas, ainda que
mais ou menos penetráveis mais ou menos estreitas e definidas, que
pertencem ao que está fora e ao que está dentro: lugar da mudança, da
transição. O limite é uma força universal, como oposição e em equilí-
brio com a infinitude. Cada parte do todo do universo, envolve sempre
o infinito, dentro e fora de si, e estabelece diferentes forças, mas a parte
– como parte – necessita da força limitante para ser como tal, mesmo
que, para determiná-la, seja necessário um recorte no tempo-espaço.
Da borda o sujeito enxerga o outro lado, o estranho o desconhecido,
lugar onde se atiça o desejo e onde se realiza a vontade de potência. É
preciso que haja esse limite, e que ele seja ao mesmo tempo possibi-
lidade, para que haja desejo e movimento. Não há desejo sem limite,
nem limite sem desejo. O movimento das forças, por sua vez, dá vida
ao universo, impede sua morte térmica nos termos da física; grau de
entropia que se dá pelo calor do desejo. Para Nietsche, a felicidade
consiste em aceitar a existência dos conflitos entre diferentes forças,
mas isso não significa que não sejam diferentes os conflitos desde sua
origem até a dissipação. São diversos em toda infinitude das possibi-

29
lidades submetidas ao caos e ao desejo, onde está também a intenção,
planejada e construída. São diferentes como exemplificadas nos casos
do grupo Profetas. As intensidades e os resultados dos conflitos va-
riam, ainda que em todo encontro de força haja o conflito; não só o
que destrói ou anula, que escraviza, mas o conflito que desenvolve, que
cria, que confronta com o diferente, que o aproxima, mas que também
o recebe. Há conflito também no acolhimento, ainda que seja feito de
abertura e amor, há a vontade de potência, há o poder em desapego,
em libertação. O conflito faz o contraponto com a paz, a segurança,
com o pertencimento e a individualidade, em uma dinâmica interde-
pendente que condena o equilíbrio na permanência do sossego, e que,
no esforço por sua manutenção, imputa-lhe uma pulsão de morte, o
mal de arquivo.
Ao contrário do que julga Nietzsche, essas forças – provavelmente –
não são finitas no universo, assim como não procuram somente a ex-
pansão. As forças são infinitas e simultâneas, comportando-se também
como parte infinita no finito no todo universal que, por sua vez, é
infinito. Não sendo assim, a probabilidade de uma força assimilar as
outras e dominar um lugar que é controlável, finito, seria muito maior,
e ao chegar ao limite desse finito, a vontade de potência não poderia
mais se realizar, não haveria, nesse caso, a vontade de potência de di-
visão, que poderia restabelecer os conflitos – o movimento cessaria,
não haveria tempo nem motivo para o tempo que, esse sim, Nietzsche
considera infinito.
Nesse sentido, as forças deveriam se manter como unidades autôno-
mas que não realizam a vontade de potência, para não assimilar outras
forças, determinando, por sua vez, apenas uma promessa de conflito
e não sua realização. Ainda que as forças fossem somente infinitas,
sem a vontade de divisão, uma força poderia constantemente assimilar
outras e seu movimento seria único, ampliando-se ao infinito em uma
única direção, de dentro para fora, potencializando a homogeneização
e não a diversidade. É necessário que haja a retração, o rompimento, o
conflito na própria força, o infinito em todos os sentidos, convivendo
com o finito em todo o lugar, no tempo e no espaço. O grupo de Nú-
bia, desde antes de sua passagem pela Associação Profetas até viver a

30
experiência da CEAR, não foi uma única força desejando se expandir,
limitada apenas por forças externas, e sim, se compôs infinitas inter-
pretações de forças em desejo de expansão e retração, em processos de
união e rompimento que delinearam esta sucessão de eventos referida.
Por outro lado, considerando-se apenas vontade de divisão, as forças
até poderiam ser finitas, mas aí, essas se movimentariam, expandindo-
se ou se retraindo, pelo espaço infinito até – possivelmente – não mais
se encontrar, precisando de uma força de atração que estabelecesse um
lugar específico de forças, renegando o além infinito à morte térmica.
A vontade de divisão associada à de expansão estabelece a diversidade
como princípio dinâmico que precisa do encontro, do conflito, infi-
nitamente. Há em qualquer caso, uma superposição de forças e con-
flitos que tornam as relações mais complexas do que estas análises. A
vontade de potência não deixa de ser a de movimento, a vontade de
conflito, que se realiza no desejo pelo diferente e no apego ao conhe-
cido, na contraposição das permanências e transformações, repetições
e diferenças9.
Voltando ao caso analisado, em meio à relação conturbada entre os gru-
pos, foi solicitado à Associação que a área embaixo dos trilhos fosse de-
socupada. Com urgência, Pedro reuniu todos os trabalhadores e apelou
que o grupo de Daniel e Simone recebesse o grupo de Núbia, visando ao
desenvolvimento em conjunto da Profetas. Pela união, todos ganhariam.
Em princípio, a solicitação foi acatada; logo depois da articulação de seus
líderes, no entanto, a decisão tomada foi revisada, não sendo aceita a di-
visão de espaço e trabalho com os demais.
Ao se manifestarem, usaram palavras desdenhosas e de discriminação.
Como responsabilizaram Pedro pela acolhida e alocação dos novos tra-
balhadores, colocaram nele a obrigação de levá-los embora. Pedro ficou
arrasado, sem saber o que fazer.
Antes de o prazo de saída se extinguir, um grupo de políticos da esfe-
ra municipal, acompanhados de jornalistas, foi até a Associação Pro-
fetas da Ecologia para conhecer o trabalho realizado e saber de suas
dificuldades. Com o silêncio da maioria, Núbia se apresentou para
falar e cobrou das personalidades ali presentes o que poderiam fazer

9 DELEUZE, Gilles. Diferença e Repetição. Rio de Janeiro: Graal, 2006.

31
pelos trabalhadores, apontando para a importância da atividade que
desempenhavam para a cidade, sem receber da sociedade contrapar-
tidas, nem sequer equipamentos e condições de trabalho. Encantados
com a espontaneidade, questionaram Núbia sobre seu trabalho. Ela,
constrangida, não se identificou como associada da Profetas e apontou
para o seu lugar de trabalho, logo adiante, embaixo dos trilhos. Curio-
sos todos se deslocaram até lá para conhecer e fotografar. O foco não
era mais os trabalhadores da Profetas, e sim o grupo de Núbia.
Em seguida, a Prefeitura de Porto Alegre ofereceu um terreno com gal-
pão para que fosse ocupado por um grupo de triagem. Pedro, que já não
mantinha a mesma relação de afinidade com Irmão Cechin em relação a
Profetas, assumiu com De Lourdes, Natália e o Grupo de Núbia o novo
lugar. Nesta mudança, fundaram a Cooperativa CEAR Sepé Tiaraju10,
associando a triagem à educação ambiental e cozinha comunitária: No-
vos lugares físicos e de organização, novas ordens, novas possibilidades.
O lugar do galpão, no terreno da Prefeitura no Bairro Navegantes em
10 Segundo Maria de Lourdes Figueiredo, em entrevista, o nome Sepé Tiaraju
surgiu como referência ainda na Profetas, com a sugestão do Irmão Cechin para a
criação de “Os Caminhos de Sepé”, um trajeto de peregrinação como o de Santia-
go de Compostela, na Espanha, mas direcionado para a conscientização ambiental.
Com a fundação da CEAR, depois da vivência do caminho, o nome se mostrou
significativo para a nova empreitada. Sepé Tiaraju ficou conhecido como “herói
guarani missioneiro rio-grandense”, chefe indígena dos Sete Povos das Missões, e
liderou a resistência contra portugueses e Espanhóis. A posição e a postura deste
líder são coincidentes, em vários aspectos, com a realidade do grupo da CEAR e
com o espírito pretendido. Ao mesmo tempo, Sepé era catequizado pelos jesuítas,
influenciado por valores externos à cultura de seu povo (o próprio nome Sepé foi
dado pelos padres, simulando foneticamente seu nome original na grafia dos ca-
tequizadores) e era protagonista da sua história, lutando contra a dominação que
provocou o ocaso de uma organização social que, apesar imposição religiosa e “ci-
vilizatória”, era de boa convivência e sobrevivência da cultura indígena. Sepé, com
seu povo, ainda guardava o espírito de seus ancestrais e o hábito de conviver em
harmonia com a natureza. Aparecem aí os valores de resistência, transformação so-
cial, ação e educação ambiental presentes na CEAR, que tinha seu grupo formado
em sua maioria por cooperados de origem indígena. Nas missões, não havia salário,
nem comércio: a produção era dividida entre todos, segundo sua necessidade, in-
clusive entre velhos e enfermos.

32
Porto Alegre, é plano e regular, um lote largo e profundo na área in-
dustrial da cidade. Ocupando parte da testada, uma casa abriga atual-
mente uma cozinha, uma padaria, um refeitório, a administração, a bi-
blioteca, um telelecentro, uma sala de convivência e o quarto do guarda
com um banheiro. No centro do terreno está o galpão de estrutura de
concreto modular, fechado parcialmente por tijolos aparentes. Ambas
as edificações estão alinhadas pela lateral direita de quem olha a fa-
chada, pois na esquerda está o portão e a pista de acesso do caminhão
de resíduos, que entra até o fundo do terreno para descarregar o lixo.
Hoje o material é colocado em uma gaiola, mas até a pouco tempo ele
era acumulado no chão. Entre a casa e o galpão estão os novíssimos
vestiários. Todos ficaram realizados com a mudança, em agosto de
2011, e não valorizaram as dificuldades iniciais como trabalhar sobre o
piso que ainda era de barro.

Figura 4 – Vista do interior do Galpão antes da esteira. Desenho digital de Marcelo Kiefer

33
Entre os desafios, os mais emblemáticos, superados com iniciativa, fo-
ram as tentativas de dominação impostas por outros grupos interessa-
dos no local e na estrutura que seria oferecida pela Prefeitura.
A briga mais relevante foi – logo – a primeira, com os trabalhadores
que foram chamados para ocupar – simultaneamente – o galpão quan-
do o lugar foi disponibilizado. O líder desse grupo impunha controle
sobre os demais e se favorecia com o lugar que ocupava na estrutura de
trabalho, exigindo, além de sua parte da remuneração, mais comissões
sobre o material vendido, entre outros desmandos.
O Grupo de Núbia passou a se concentrar em um canto do galpão,
mantendo a mesma organização e divisão da remuneração que foi
desenvolvida quando estavam embaixo dos trilhos do trem: o lugar
no tempo era outro, mas valores em permanência estabeleceram ba-
ses para novas conquistas, para transformações sólidas e desejadas; no
lugar do tempo, os valores ocupam seus lugares no sujeito – dinamica-
mente – entre permanências e transformações.
Para aumentar o domínio, o líder desse outro grupo trazia novos tra-
balhadores que pudessem lhe dar apoio, ocupando os lugares do gal-
pão. Certo dia, o sujeito chamou Pedro Figueiredo e acusou Núbia de
roubo. A tensão que se criava até então eclodiu em evento de brigas e
pressão política. O objetivo era solicitar a saída de Núbia, utilizando
argumentos graves que justificariam essa ação.
Em sua defesa e aproveitando-se de sua organização, Núbia trouxe o
caderno com as anotações contábeis que registravam todas as movi-
mentações de seu grupo, demonstrando – inclusive – a equidade das
divisões que praticavam: estava lá, cada número no seu lugar, remon-
tando o fluxo do caixa que incluía todo o período desde a vinda para
o galpão. Com isso, Núbia provou sua inocência e cobrou que Pedro
fizesse o mesmo que, sem poder fazê-lo, recuou. Os trabalhadores que
assistiam ao episódio, reagiram em favor de Núbia, inclusive aqueles
associados ao outro grupo. O sujeito que era líder, até então, deixou o
galpão depois de algum tempo.
A história da CEAR seguiu seu curso, e o grupo se fortaleceu.
Aos poucos, foram conquistando recursos e melhorando o lugar para
suas atividades: o telhado da casa foi trocado, acabando com a chuva no

34
interior do refeitório, e o piso externo foi executado. A cozinha e o refei-
tório chegaram a funcionar como restaurante, atendendo trabalhadores
da redondeza com almoços a preços reduzidos, o que logo foi suspenso
por falta de autorização para o modelo de atividade estabelecido. Logo,
também os cooperativados deixaram de utilizar o serviço, pois a cozi-
nheira se exonerou do trabalho e não foi substituída imediatamente.
De qualquer forma, muitos trabalhadores preferiam gastar mais no bar
em frente, comprando Coca-Cola e outros produtos industrializados e
menos saudáveis. Para eles – como para a maioria – o dinheiro é pas-
saporte para o pertencimento social, pois lhes permite realizar os mes-
mos valores de consumo estabelecidos: em valores, pertencem ao mes-
mo lugar social; em participação e direito, porém, estão à margem do
seu próprio conceito de pertencer, sentem-se excluídos e não exprimem
nem desenvolvem sua individualidade, não se impõem; ao contrário,
poderiam ser tratados com os mesmos direitos e espaço de participação,
serem mais livres assumindo suas diferenças, sendo indivíduos e ainda
assim, se sentirem pertencentes.
A cozinha, no entanto, não deixou de funcionar e hoje produz itens de
padaria que são vendidos na feira e que, brevemente, serão vendidos no
quiosque da estação Farrapos. O lugar que foi cedido pela Trensurb
fica embaixo do viaduto do trem, ao lado do acesso à estação e perto da
sede da CEAR. O comércio ocuparia um lugar de abandono, um nicho
desocupado na estrutura de apoio da linha do trem.
Os cooperativados desenvolveram o seu método de trabalho e conse-
guiram atingir uma boa média de remuneração para a realidade conhe-
cida. Até então, a triagem era feita em cima das mesas, e os sacos de
resíduos eram rasgados no chão. Quando a produção estava boa, mais
pessoas integravam o grupo; assim que ela diminuía, muitos voltavam a
ser carrinheiros ou procuravam outros empregos. Mesmo com a remu-
neração em alta, alguns trocavam o trabalho no galpão por um serviço
de carteira assinada que – normalmente – pagava menos, mas oferecia
benefícios sociais: o serviço de triagem ainda tem um lugar marginal à
sociedade organizada, não só como aceitação e tratamento, como tam-
bém em assistência. Apesar da sazonalidade do número de trabalha-
dores, a família de Núbia era – relativamente – constante e permanecia

35
como núcleo do grupo. Ela, por sua vez, continuava no lugar de coorde-
nação, alocando os trabalhadores nas diferentes posições de produção,
de acordo com o número de pessoal e o desenvolvimento de processo.
Núbia também se fortalecia como líder e representante dos coopera-
dos. Ela, Maria de Lourdes e Natália compunham a estrutura de cargos
oficiais e se somavam a Pedro Figueiredo na administração da CEAR.
Em meados de 2014, o coletivo Coca-Cola, um projeto de parcerias
da empresa Coca-Cola para ações sociais, doou à Cooperativa uma
esteira elétrica para apoiar o desenvolvimento do galpão. A CEAR foi
escolhida pelo destaque na atividade de triagem de resíduos em Porto
Alegre. O novo maquinário trouxe, contudo, conflitos que afetaram
o cotidiano dos cooperados de diferentes maneiras. Por um lado, as
condições de trabalho melhoraram.
A confecção da gaiola da esteira para armazenar os resíduos recebi-
dos permitiu que os sacos fossem rasgados na sequência de chegada,
evitando o acumulo e o mau cheiro. A mesa e a esteira de entrada
diminuíram o esforço e as lesões dos “rasgadores”. Os demais traba-
lhadores da esteira agora fazem menos esforço para puxar e empurrar o
material. Por outro lado, a produção caiu muito, e não só por questões
de adaptação dos trabalhadores ao maquinário. O modelo de triagem
nas mesas da CEAR tinha sua eficiência e oferecia bom retorno finan-
ceiro, porém a introdução da nova tecnologia não foi moldada a ele, à
estrutura existente, e a tecnologia manual foi simplesmente substituí-
da por outra, mecânica. Aos poucos, todavia, os trabalhadores foram
se adaptando e retomaram parte das perdas: a remuneração só agora
começa a ser comparável a anterior. Para isso, foi necessário também
que as máquinas sofressem adaptações, ou seja, um pouco de protago-
nismo dos cooperados no encontro das tecnologias.
O gesto de doação da Coca-Cola, ainda que configure uma ação so-
cial que traz benefícios para o desenvolvimento da Cooperativa, traz
consigo também o desejo da marca em expandir seus negócios e se
firmar junto a valores sociais positivos. A Coca-Cola, assim, reafirma
seu lugar de referência e de domínio no mercado de produtos: lugar
de prestígio, de respeito e de poder, valor de referência que influencia
todas as posições políticas e ideológicas que assume.

36
A ação social é – simultaneamente – uma reafirmação do poder da
estrutura comercial de multinacionais e de uma condição que coloca a
maioria dos sujeitos no lugar de coadjuvante, recebedor ou consumi-
dor de tecnologia, o papel passivo do recebedor de valores. A entrega
da esteira como apoio à Cooperativa é a transformação que valoriza a
permanência, a manutenção de regras que, em nossa sociedade, estão
associadas à dominação por parte de grupos e à submissão dos demais;
lugar onde se forma a exclusão e o sentimento de exclusão, fortemente
presente nos trabalhadores da CEAR.
Todavia, o fato isolado não é determinante; o como essas ações são
conduzidas é que determinará a construção de valores no futuro e o
papel histórico desse processo. No caso da CEAR, a tecnologia veio
de fora, veio como referência de progresso e desenvolvimento, status de
salvação para o desenvolvimento social, mas coube e cabe ao recebedor,
a ação de transformação, de adaptação com protagonismo, utilizando
a tecnologia recebida, absorvendo-a e adaptando-a à realidade e
necessidade da Cooperativa. Desde a Profetas, o trabalho de Pedro,
Maria de Lourdes e Natália, a pró-atividade de Núbia, e o empenho dos
demais cooperados, não só cuidaram do funcionamento e da estrutura-
ção pragmática da CEAR, relacionados com a administração, sistema
produtivo, relações interpessoais e outros aspectos da vida cotidiana da
atividade, mas também transformaram as construções pessoais e sociais
do grupo. Essas contribuições, direcionadas ou indiretas, conduziram a
novos lugares de protagonismo e possibilidades de transformação, tanto
de condições sociais como de satisfação pessoal.
O lugar como sede da Cooperativa trouxe alegria, estrutura e dignidade.
O lugar do grupo, determinado pelas relações pessoais e pelos valores
cultivados, criou um ambiente que, apesar de eventos intensos de de-
sentendimento, é respeitoso e de equidade na distribuição de tarefas
e remuneração. Ainda que a personalidade de liderança de Núbia e a
escolaridade e posição administrativa e de orientação de Pedro, Maria
de Lourdes e Natália trabalhem para a transformação de uma realida-
de de opressão, elas – simultaneamente – determinam uma leitura de
hierarquia que, facilmente, pode ser confundida com superioridade ou
dominação, principalmente por aquele que se sente não potente.

37
O lugar do grupo em relação à sociedade também mudou e trouxe mais
visibilidade e respeito para o trabalho de triagem, atividade de funda-
mental importância para a relação entre homem e natureza, princi-
palmente para as grandes cidades. Os novos lugares determinaram a
possibilidade, ainda que não realizada em seu potencial, do autorreco-
nhecimento e aceitação, do aumento da autoestima. Os lugares foram
construídos e construíram a história da CEAR. Eles marcam – topo-
logicamente – as etapas do processo, são organizações dinâmicas de
valores resultantes do movimento de forças, constituídas de repetições
e diferenças, podendo ser opressoras ou libertadores e, em diferentes
intensidades, são – simultaneamente. No caso da CEAR, em seus lu-
gares potencializou-se a possibilidade da transformação.
Uma mudança de realidade na condição de vida e na posição ocupada
na organização social, de forma mais sustentada, todavia, é uma cons-
trução ainda mais árdua, pois essa transformação não depende apenas
do sujeito, e sim de muitas escalas de relações humanas e suas físicas
de poder. Ainda assim, o sujeito pode ser protagonista de sua história e
influenciar mudanças mais abrangentes. Para isso, é preciso que tenha
uma conquista em si mesmo, liberte-se da dominação do sentimen-
to de opressão, de não merecimento, que se reconheça e se imponha
como indivíduo (podendo ainda assim viver com respeito e tolerância
ao outro), que tenha – de forma crítica – consciência sobre sua situação
de exclusão e aprisionamento, e que se sinta pertencente, aceitando e
desenvolvendo seus valores livremente.
Essa revolução interna pode ser também uma revolução social, ao se
somar e influenciar outras experiências, potencializando-se em grupo.
Tal abertura dá reflexos para as ações externas, corroborativas às trans-
formações, que a aumentam em efeito e escala, e que, sem ela, não
teriam repercussão. Essa mudança está no sujeito, porque ele é o lugar
onde se dispõem os valores como regras, ele é quem os cultiva como
permanência e ele quem reconhece, submete-se às leis e determina a
domesticação, seja de forma opressora e ou oprimida. Os valores no
sujeito diferem e repetem, simultaneamente, valores em outros sujeitos
em uma estrutura social de valores. Essa luta, todavia, segundo Paulo

38
Freire11 “... somente tem sentido quando os oprimidos, ao buscarem
recuperar sua humanidade,..., não se sentem idealistamente opresso-
res, nem se tornam, de fato, opressores dos opressores, mas restaura-
dores da humanidade em ambos”, o que pode ser entendido, mesmo
na crítica de seu pensamento humanista, que esta revolução não é de
troca de poderes, de substituição, e só encontra legitimidade em ser
almejada quando as intenções dos homens, como forças de diferen-
tes direções, em necessidades e desejos, não sejam do poder como de
dominação, opressão, mas que sejam de encontro das diferenças (e
repetição) e das possibilidades.
Essa ação interna de libertação não é facilmente alcançável pelo sujeito
submerso na prisão das regras que o oprimem. Para desenvolver uma
consciência sobre si e crítica sobre sua condição, desenvolvendo o poder
de protagonismo, muitas vezes se fazem necessários o apoio e a reflexão
vindos da interação com o outro. A CEAR.
Nesse sentido, e além de seus orientadores, pode contar, em seu desen-
volvimento, com o apoio de diversos tipos de colaboradores como arte-
terapeutas, psicólogos, jornalistas, fotógrafos, arquitetos, entre outros,
que desenvolveram atividades com grupo.
Por meio de diferentes atividades e filosofias, foram trabalhados a des-
construção de valores, o aumento da autoestima, o empoderamento, o
protagonismo, a revisão e reconstrução histórica, as perspectivas e dese-
jos, o reconhecimento dos valores em permanência e as potencialidades
para transformação, individualidade e do pertencimento: O lugar que
cada sujeito ocupa e quer ocupar, sua relação com o mundo, tentando
superar a dominação dos sentimentos de exclusão que ainda fazem for-
ça contrária a essa revolução que se constrói. A superação do domínio
do sentimento de exclusão (caminho para a reestruturação do lugar,
mudanças de regra para inclusão, e reversão da opressão externa) é um
processo para a libertação do sujeito. O reconhecimento e a estima por
valores em permanência no sujeito, por sua vez, dão a ele, segurança
e confiança para essa transformação, pois fortalecem o sentimento de
pertencimento e de individualidade: o sujeito como lugar de perma-
nência e transformação de valores.

11 FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. São Paulo: Paz e Terra, 2014, p.41.

39
Figura 5 - O Lugar da esteira na CEAR. Desenho digital de Marcelo Kiefer

Figura 6 - Exercício de fotografia com cooperados, autorretratos.

40
O pertencimento o conecta, ele se vê em pessoas, objeto e eventos,
repetindo, na diferença, valores. A individualidade o faz perceber-se
único como fenômeno e concepção, o sujeito é parte da diversidade
em que valores se diferem na repetição. O trabalho com os valores em
permanência, ou identidade não idêntica, dá referências, raízes como
sustentação para o desenvolvimento, ainda que, em certo tempo, haja
alteração da origem. O sujeito se torna protagonista para escolher, par-
ticipar e assimilar as mudanças que lhe ocorrem, impondo-se sobre as
submissões. O excesso de apego por valores em permanência também
pode se caracterizar como uma prisão, uma autossubmissão. De outra
forma, o sujeito que está oprimido acaba sentindo-se não merecedor
de atuar e de receber, não reconhecendo os próprios valores, tampouco
os vivenciando e os desenvolvendo. O sujeito submetido ao sentimen-
to de exclusão (originado por fatores externos ou não) sente-se mais
inseguro, esconde-se e ou agride, e está mais suscetível à imprevisibili-
dade dos eventos, como o evento do acidente da ponte.
Em nossa sociedade e condição humana, essa possibilidade de mudan-
ça dificilmente se traduz em libertação, o sujeito muda ainda que preso
à sua própria dominação e a dos outros, expõe-se e é exposto a todo
tipo de dificuldade; as transformações apenas reafirmam sua prisão.
Para transformar a realidade de opressão e o sentimento de excluído,
faz-se necessária a busca do ailleurs (Derrida12) a partir da descons-
trução da arché, do princípio e do comando, do nomos estabelecido;
posicionar-se absolutamente fora desse fenômeno ou concepção, su-
blimar. Na possibilidade de atingi-lo de fato, desloca-se o sentido para
o caminho inverso da construção até a origem, por meio da linguagem
e das representações acessíveis, para se aproximar, no aqui e agora, ao
lugar sem lugar, à origem, ao tempo antes do tempo, denominados
por Khôra e messiânico. Compreender criticamente as amarras e o so-
frimento antes das leis que a determinam, dos valores que cultivamos,
de toda a história dos valores que nos precede, fazendo isso na própria
realidade que nos cerca, no cotidiano das questões que determinam
as opressões, no aqui e agora. Contudo, A CEAR, com seu grupo e
seus parceiros, é lugar de revolução integradora, de encontro; do poder

12 D’ailleurs Derrida. Safaa Fathy. Argélia/ França, 1999. Documentário, 78’.

41
como possibilidade, busca pela liberdade e inclusão, apesar das dificul-
dades com o lugar sociedade e condição humana e pessoal. Revolução
como a da Pedagogia do Oprimido, de Paulo Freire13, que trabalha a
superação do medo da liberdade, do sentimento de exclusão, da edu-
cação como empoderamento, do aprendizado como possibilidade, da
divisão ou análise como compreensão do que não está no fragmento,
mas permite entender o todo: o lugar que não é apenas do conheci-
mento, mas da consciência e do poder de escolha, de transformação,
mas também de permanência, da construção do próprio caráter e do
próprio caminho na liberdade das possibilidades. Espírito transfor-
mador que pode se estabelecer não somente pela pedagogia, mas tam-
bém nas reflexões e práticas que despertam a consciência crítica, a con-
fiança e o protagonismo. A CEAR ocupa também lugar estratégico e
importante no desenvolvimento humano equilibrado com a natureza,
principalmente para o meio urbano: a triagem encaminha toneladas de
resíduos para a reciclagem em vez de lixões e aterros sanitários, e faz
isso com geração de renda e educação ambiental.

Fonte das ilustrações. Todos desenhos eletrônicos de Marcelo Kiefer

13 FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. São Paulo: Paz e Terra, 2014.

42
Referências bibliográficas
DELEUZE, Gilles. Diferença e Repetição. Rio de Janeiro: Graal, 2006.
DERRIDA, Jacques. Mal de Arquivo: Uma impressão Freudiana. Rio de Janeiro: Relume
Dumará, 2001.
FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2015.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. São Paulo: Paz e Terra, 2014.
KIEFER, Marcelo. Permanência, Identidade e Rearquitetura social, outro olhar para a pre-
servação, Tese de doutorado. Porto Alegre: PROPAR, 2013.
NIETZSCHE, Friedrich. Vontade de Potência. Petrópolis: Vozes, 2011.
PERLS, Frederick. Gestalt-Terapia Explicada. São Paulo: Summus, 1977.
SLOTERDIJK, Peter. Derrida, um Egípcio. São Paulo: Estação Liberdade, 2009.

Filmografia
Entrevistas realizadas na CEAR Sepé com os cooperados, administradores e colaboradores, em
gravações de áudio e vídeo segmentadas e não editadas. Marcelo Kiefer, Camila Domingues
e Eliane Bruél. Porto Alegre: Projeto de Pesquisa de Pós-doutorado vinculado ao PROPAR
UFRGS, 2015.
D’ailleurs Derrida. Safaa Fathy. Argélia/ França, 1999. Documentário, 78’.

43
Figura 1 - Casa Grande antes da reforma. 1940

44
Hospitalidade e desejo
no ensino de
projeto de arquitectura

Paulo Afonso Rheingantz

45
É ... o senhor do lugar que faz as leis da hospitalidade.
Jaques Derrida (2003: 131)

O acolhimento se situa em todas as coisas que esperam na espera, na natureza do mundo,


no recortado de suas aberturas, de seus sorrisos, nos braços abertos, na mão estendida, ‹en la
mano de lo hu-mano’.
Fernando Fuão (2012)

Preâmbulo:
O tema do evento – querências, estâncias e moradas – me faz lembrar
a infância. Até os 11 anos de idade, residi com meus pais, irmão e 2
irmãs mais velhas no Cascalho, antiga charqueada onde meu bisavô,
Pedro Osório iniciou sua atividade profissional e que também abrigou
o primeiro engenho de arroz de Pelotas. Com seus 860 hectares o
Cascalho poderia ser descrito como uma “quase-estância multifuncio-
nal”, pois produzia frutas e legumes que abasteciam parte da produção
da fábrica de conservas Helomar, arroz, soja além de uma cabanha de
gado holandês e de uma leitaria.
Morávamos em uma casa centenária – a “Casa Grande”– localizada na
beira do Arroio Pelotas, reformada por meu pai em meados dos anos
1940 (fig. 1). A casa recebeu uma ampla varanda com arcadas e móveis
de vime (figs. 2a e 2b) e diversos ambientes foram transformados em
duas grandes salas contíguas com lareiras (fig. 3). Cercada por densa
arborização – grandes paineiras em frente à varanda circundada por
ciprestes e pinheiros – o entorno tinha uma ambiência de privacidade
e acolhimento. O aceso era realizado por uma alameda de eucaliptos
com 2km (fig. 4). Durante o ano, a vida familiar se concentrava, ba-
sicamente, em torno do amplo espaço aberto frontal, da varanda e das
duas salas. À noite, após o jantar, costumávamos ler, fazer os deve-
res escolares. Meus pais também tocavam piano ou ouviam discos de
música americana do pós-guerra. Não havia televisão e a luz elétrica,
produzida por um gerador, era desligada as 22 horas. No inverno as
duas lareiras funcionavam praticamente 24 horas. No verão, a casa era
“invadida” por parentes de Porto Alegre, São Paulo e, principalmente,
Rio de Janeiro. Com até 20 pessoas, a vida na casa se transformava.

46
Figura 2a – Vista Casa Grande pós-reforma.

Figura 2b – Varanda da Casa Grande. 1958

47
Minhas lembranças de acolhimento e hospitalidade da infância se-
guem muito vivas: a alameda, a varanda e a lareira do Cascalho. Esse
foi o topos onde se iniciou minha experiência de vida relacionada com
todas palavras-chave do evento - querência, estância, acolhimento e
hospitalidade.

Figura 3 – Vista da lareira da sala de estar. 2015

Figura 4 – Alameda de eucaliptos. 1977

48
Introdução
Quando Fernando Fuão me convidou para participar de um evento
sobre Derrida e suas conexões com a arquitetura, a primeira reação
foi de susto: que contribuição um professor de projeto de arquitetura
alinhado com a Pedagogia da Autonomia de Paulo Freire, com a Pe-
dagogia do Conflito de Moacir Gadotti e com a Alegria da Escola de
George Snyders e com o campo dos estudos Ciência-Tecnologia_So-
ciedade (CTS) poderia trazer para um evento que busca “uma troca de
ideias entre a arquitetura e a desconstrução de Jacques Derrida e suas
aproximações com outros filósofos e escritores da desconstrução”?
Com essa pergunta iniciamos uma troca de e-mails. Em dado momen-
to Fuão sugeriu que explorasse o exercício de projeto de arquitetura A
Casa dos Desejos1 concebido em parceria com minha esposa Ana, que é
pedagoga, com a colaboração de professores e alunos da Faculdade de
Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Resolvida a questão do tema, as incertezas se deslocaram para um novo
problema: como relacionar um exercício de projeto inspirado na Poé-
tica do Espaço de Bachelard, de Eckambi-Schmidt e no Poema dos
Desejos de Hanry Sanoff com a questão da hospitalidade e do aco-
lhimento? Foi então que lembrei de Michel Serres e o sentido por ele
atribuído ao termo interface: em lugar de uma imagem de junção “lisa”
na conexão entre diferentes saberes e experiências, o termo faz emergir
espaços com margens dentadas, cheias de irregularidades e variáveis
“entre” os saberes e experiências, de tal modo que os “encaixes” pre-
cisam ser produzidos – e isto requer trabalho e disposição para correr
riscos. Por que não explorar as irregularidades, arestas, rugosidades
das margens dentadas dos espaços “entre” o pensamento de Bachelard,
Eckambi-Schmidt e Derrida?
Ao receber o material de divulgação do colóquio, com a bela fotografia
de Marcelo Kiefer (Fig. 5), uma paisagem típica de estância do Pampa
gaúcho, pensei em sua correspondência com o desafio de explorar as
interfaces possíveis entre o pensamento de Bachelard, Eckambi-Sch-

1 Apesar do exercício ter sido designado A Casa dos desejos, minha preferência
sempre foi por A Casa dos Desejos, palavra que me fascina tanto quanto esperança,
segundo Paulo Freire, a palavra mais bela da língua Portuguesa.

49
midt, Sanoff e o de Derrida e Fuão; de explorar seus rebatimentos no
exercício de projeto da Casa dos Desejos.
or sugestão de Fuão, li Anne Dufourmantelle convida Jacques Derrida a
falar da Hospitalidade2 onde o autor explora as implicações da negocia-
ção entre a soberania do poder do senhor da casa ou “dono do lugar”
(Klossowski apud Derrida)3 e a identidade do hóspede, do Outro, ine-
rentes ao acolhimento e duas hospitalidades:
• a hospitalidade absoluta ou incondicional – uma hospitalidade que
declina de interrogar quem chega para saber seu nome e proce-
dência para garantir sua identidade, que abre a casa e acolhe ou dá
lugar a um desconhecido sem exigir reciprocidade;
• a hospitalidade de direito ou condicional – uma hospitalidade con-
trolada e inscrita num direito, praticada por dever, que impõem
aos hospedeiros e hospedeiras condições que, seja pelo poder, pela
moralidade ou por força das leis, violentam a lei incondicional da
hospitalidade.
Também me interessou a questão do deslocamento da problemática da
hospitalidade para as ameaças das tecnociências para a interioridade do
entendimento de “em casa” e seus efeitos nas fronteiras entre o familiar
e o não-familiar, entre o público e o privado, entre o cidadão e o não-
cidadão; para aquilo que “nos chega, o que vem sobre nós pelo e-mail
ou pela Internet”4: estou “em casa”, mas “conectado com o mundo”.
Especialmente a partir da alegação [do Estado] de que o espaço da
Internet não é privado, mas público ou de acessibilidade pública:
A partir do momento em que uma autoridade pública, um estado, tal
ou qual poder de Estado se dá ou se vê reconhecer no direito de con-
trolar, vigiar, interditar trocas, que os trocadores julgam privadas, mas
que o Estado pode interceptar já que essas trocas privadas atravessam
o espaço público e nele se tornam disponíveis, então todo o elemento
da hospitalidade se encontra perturbado.

2 DERRIDA, Jacques. Anne Dufourmantelle convida Jacques Derrida a falar da


Hospitalidade. São Paulo: Escuta, 2003.
3 Op.cit.
4 Op.cit. p.41.

50
Figura 5 – Querência-Estância. Marcelo Kiefer

51
Meu “em-casa” era constituído pelo campo de acesso de minha linha
telefônica ... Ora, se meu “em-casa”, em princípio inviolável, é assim
constituído, e de maneira cada vez mais essencial, interior, por minha
linha telefônica, mas também por meu e-mail, também por meu fax,
também por meu acesso à Internet, então a intervenção do Estado
torna-se uma violação do inviolável, ali onde a inviolabilidade conti-
nua uma condição da hospitalidade.5 Ameaças ao sossego e violações
do espaço doméstico que são sentidas “por todo o lado” no sossego
doméstico e comprometem seriamente a liberdade de receber quem se
quiser. Como os novos dispositivos sociotécnicos estendem e reestru-
turam de tal forma os domínios da espacialidade e da territorialidade.
A exemplo do que acontece com as janelas e portas de uma casa, tudo o
que constitui a interioridade de um espaço de propriedade controlada
e circunscrito fica sujeito à intrusão decorrente das passagens – abertu-
ras – que a conectem com a exterioridade ou alteridade, com o Outro.
“Não existe casa ou interioridade sem porta e sem janelas”6.
Segundo Derrida,7 “o desejo é a espera daquele que não espera”. Passar
o umbral é entrar, ir ao encontro de um Outro [impaciente], preso à sua
subjetividade, que espera seu hóspede e, no seu desejo de hospitalida-
de, corre o risco da precipitação, de deixar a desejar ... E foi assim que
comecei a vislumbrar o exercício A Casa dos Desejos como um convite
de um professor – ou dono do lugar sala de aula – que deseja acolher
com hospitalidade paciente, mas não absoluta8, seus alunos e alunas;
que convida a explorar as conexões ou interfaces que se produzem en-
tre suas múltiplas subjetividades em torno de os desejos e sonhos que
emergem durante esse exercício de projeto. Mas foi lendo um texto
de autoria do próprio Fuão – As formas de acolhimento na Arquitetura
(apud Solis e Fuão)9 – que explora os sentidos de acolhimento e da

5 Op.cit.; p.45.
6 Op.cit.; p..55.
7 Op.cit.; p.107.
8 A disciplina se insere em um contexto maior – região, universidade, unidade,
curso, projeto pedagógico.
9 FUÃO, Fernando F. As formas do acolhimento na arquitetura, in SOLIS, Dirce;

52
“hospitalidade na arquitetura, na cidade, numa porta, num banco de
praça, ou até mesmo nos materiais que empregamos numa obra”10 ou,
ainda, a possibilidade da hospitalidade vir a ser “compreendida como
a inclusão do outro na prática da disciplina do projeto arquitetônico
nas faculdades”11 – que encontrei um fio condutor a explorar: a inos-
pitalidade crescente das cidades e da prática da arquitetura que corro-
boram um isolamento que produz mais violência; uma inospitalidade
que somente poderá ser revertida na medida em que nos abrirmos para
o sentido da hospitalidade, “abrindo fisicamente o que deve ser real-
mente aberto; universalizando o mundo sem torná-lo igual, abrindo e
colando em simultaneidade as diferenças produzidas”12.
Sua observação sobre as múltiplas formas de acolhimento na arquite-
tura, a começar pela ideia de “restabelecer uma ética da arquitetura”13
de inclusão do Outro, de abrir passagem e dar espaço para a chegada
do Outro foi esclarecedora. Um “’dar passagem’ [que] adquire muitas
formas, de acordo com a ideia de abertura e ligação ... O ‘dar passagem’
desloca o projeto para o plano ético da arquitetura”14. Nesta abertura
para o sentido de hospitalidade, neste dar passagem e neste restabe-
lecimento de uma ética de inclusão do Outro na arquitetura encontrei
uma rica interface com as referências que fundamentam a proposta pe-
dagógica da disciplina Projeto de Arquitetura I e, por consequência, o
exercício A Casa dos Desejos, a saber:
Os três itens indissociáveis da Pedagogia da Autonomia de Paulo Frei-
re15 “uma pedagogia fundada na ética, no respeito à dignidade e à
própria autonomia do educando” na qual ensinar exige alegria e es-

FUÃO, Fernando F. (Orgs.) Derrida e arquitetura. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2014,


p. 43-113.
10 Op. cit.; p. 43-44.
11 Op. cit.; p. 44.
12 Op. cit.; p. 43.
13 Op. cit.; p. 43.
14 Op. cit.; p. 43.
15 FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educa-
tiva. São Paulo: Paz e Terra, 1999, p.11.

53
perança “de que professor e alunos juntos podemos aprender, ensinar,
inquietar-nos, produzir e juntos igualmente resistir aos obstáculos à
nossa alegria”16:
- Ensinar exige alegria e esperança;
- Ensinar exige disponibilidade para o diálogo; e
- Ensinar exige querer bem aos educandos;
A proposta de uma escola alegre, viva e pulsante de George Snyders,
capaz de romper com a fragmentação e com a descontextualização
de suas práticas: o ateliê de projeto e a própria escola devem ser obra
comum de estudantes e professores. Sua relação deve ser uma troca
onde todos dão e todos recebem. A Pedagogia do Conflito de Moacir
Gadotti (1980)17 cuja prática reconhece e incentiva a divergência cons-
ciente dos estudantes dizerem ‘não’ ou ‘eu’; que, em lugar de esconder
o conflito, o afronta, o explicita. Sua observação de que “os mestres só
se tornam mestres quando desobedecem aos seus mestres, do contrá-
rio seriam seus discípulos pelo resto da vida”18 me faz pensar no que
teria acontecido com a arquitetura brasileira se os estudantes adeptos
do modernismo e tantos outros renomados arquitetos brasileiros que
os sucederam não tivessem desobedecido a seus mestres. E a Zona de
Desenvolvimento Proximal (ZDP) de Lev Vygotstky19, que pode ser
entendida como a distância entre o nível de conhecimentos prévios –
desenvolvimento atual – que um aluno ou aluna se vale para solucionar
um determinado problema sem ajuda e o nível de informações poten-
ciais – desenvolvimento potencial – que este aluno ou aluna produz, em
colaboração de outros colegas mais experientes e sob a orientação do
professor. Segundo Vygotsky, para que um aluno ou aluna seja capaz

16 Op. cit.; p.80.


17 Por “sociedade em conflito” Gadotti entende “aquela sociedade que conquis-
tou o direito de falar, de dar voz ao seu grito sufocado. É assim que vejo nossa
sociedade hoje. ... uma sociedade “em conflito” ... entre a liberdade e a opres-
são, entre o medo de gritar e a coragem de ser, entre a revolta e a resignação,
enfim, uma sociedade onde duas forças contrárias medem seu poder (Gadotti,
1980, p. 75; grifo meu).
18 GADOTTI, Moacir. História das Idéias Pedagógicas, São Paulo: Ática, 1993, p.33.
19 VIGOTSKI, Lev. A Formação Social da Mente. São Paulo: Martins Fontes, 1994.

54
de construir conhecimento novo, ele ou ela precisa recorrer a algum
conhecimento anterior relacionado – os ‘já saberes’ de Paulo Freire – a
partir do qual se estabelece um processo de mediação com o conheci-
mento em andamento.
A ZDP configura um processo de mediação contextualizada nas rela-
ções que se produzem no ateliê de projeto. E é esse entendimento que
nos permite compreender o conhecimento como uma construção que,
a um só tempo, é coletiva e individual. Como regra geral ou princípio,
se a ZPD – o grau de acolhimento do coletivo ateliê PA1 – propicia
e favorece a produção de conhecimento dos alunos e alunas, esse co-
nhecimento é um produto coletivo e qualquer descoberta ou desejo
individual pode ser apropriado por qualquer aluno ou aluna. Ou seja,
todo conhecimento produzido no ateliê é propriedade do coletivo.
Este é o fundamento do ambiente de acolhimento e hospitalidade que
procura atenuar ou mesmo eliminar as arestas e irregularidades em
suas múltiplas conexões.
Para que a sensação de acolhimento se consolide e dissemine basta
que se estabeleça um diálogo alegre e esperançoso entre quem sabe
mas que também aprende e quem está aprendendo mas que também tem
um conjunto de já saberes acumulado. A afetividade, quando respaldada
pela ética potencializa a seriedade docente. Potencializa e aproxima
o entendimento do professor dos sentidos e das muitas maneiras de
acolhimento e da hospitalidade resultantes da inclusão do Outro no
ensino-aprendizagem de projeto de arquitetura entendido como uma
prática sociotécnica – prática vinculada ao campo dos Estudos Ciência-
Tecnologia-Sociedade (CTS) que trata o conhecimento como «uma
construção em permanente transgressão a fronteiras arbitrárias entre
o ‹técnico› e o ‹social›, [e] gera uma legião de híbridos de ciência e
cultura»20. O olhar sociotécnico desloca o foco no objeto – predomi-
nante no ensino de projeto – e no sujeito – herança humanista presente
nas abordagens construtivistas da pedagogia – para as relações que se

20 CUKIERMAN, H.; TEIXEIRA, C.; PRIKLADNICKI, R. (2007) Um Olhar


Sociotécnico sobre a Engenharia de Software. Revista de Informática Teórica e Apli-
cada, 14, 199-219, texto da orelha. Disponível em < http://goo.gl/kW1Rpk >,
acesso em 11mai2015.

55
estabelecem entre os diferentes atores de um ateliê, entendido como
um coletivo que apaga as fronteiras entre natureza e sociedade e reúne
atores humanos e não-humanos.
O olhar sociotécnico possibilita explorar os exercícios de projeto como
interfaces na relação de troca de saberes e experiências entre professor,
alunos e alunas ou, seguindo Derrida e Fuão, nas formas de acolhi-
mento e de hospitalidade ou de inclusão do Outro – seja ele humano
ou não-humano – na prática da disciplina e, mais especificamente, no
exercício A Casa dos Desejos.
Outra questão importante a considerar, também decorrente do alinha-
mento com os CTS, é que as condições de possibilidade do que se en-
tende por ‘realidade’ não são dadas na partida do exercício: a ‘realidade’
é entendida como uma questão em aberto que “não precede as práticas
banais nas quais interagimos com ela, antes sendo modelada por essas
práticas” (Mol, 2008, p. 63).
A reflexão de Bruno Latour sobre a definição de corpo não como mo-
rada temporária de uma alma imortal e do pensamento, mas como
uma “interface que aprende a ser afetada por muitos mais elementos; como
algo que deixa uma trajetória dinâmica que nos possibilita aprender a re-
gistrar e a ser sensíveis àquilo de que é feito o mundo”21 é esclarecedora.
Diante da impossibilidade de uma «interioridade sem porta e sem
janelas»22 que se abrem ou fecham para o risco de, por precipitação, fa-
zer com que o Outro deixe de desejar, o sucesso ou fracasso do exercício
depende da vontade irrestrita e coletiva de acolher e de ser acolhido(a)
pelos(as) outros(as). Depende do grau de acolhimento ou de hospita-
lidade e da confiança, alegria e respeito mútuos.
Na medida em que essas interfaces são trabalhadas e incorporadas, se
reduzem as arestas e rugosidades produzidas no coletivo.
Um coletivo cujo lugar em particular em que cada ator ou atriz ope-
ra sua parcialidade, que constitui o “privilégio do ‘conhecimento si-
tuado’, deixando claro que há um corpo que busca conhecer e que,

21 LATOUR, Bruno. Como falar do corpo? A dimensão normativa dos estudos so-
bre a ciência. In J. Nunes; R. Roque Objetos Impuros: Experiências em Estudos
sobre a Ciência. Porto: Edições Afrontamento, 2008, p. 39-62, p.39.
22 DERRIDA, J.; op. cit.; p. 34

56
portanto, este conhecimento origina-se neste corpo em particular”
(Haraway apud Cukierman, 2007)23.
Com isso se desfaz a mística transcendental da objetividade, redefinida
por Haraway como um ‘encorpamento’ particular e específico: “a mo-
ral é simples: somente a perspectiva parcial pode prometer uma visão
objetiva” (Haraway apud Cukierman)24.
Resumindo, penso ser possível considerar o coletivo Ateliê de Projeto de
Arquitetura I como um lugar particular, alegre, vivo e pulsante de inclu-
são, de produção de hospitalidade, acolhimento e conhecimento situado;
um lugar que explora os espaços entre, as irregularidades e encaixes pro-
duzidos nas interfaces das relações envolvendo a multiplicidade da au-
tonomia dos atores que configuram esse coletivo; um lugar situado que:
- Reconhece e valoriza os conhecimentos prévios dos seus alunos e alunas;
- Reconhece e fomenta o direito à divergência consciente deles
- Os convida a embarcar na fascinante e desafiadora aventura de explo-
rar o conhecimento novo;
-Os convida a compreender o conhecimento como uma construção
que é coletiva e individual.
A seguir procuro explorar as associações entre o ensino de projeto de
arquitetura, entendido como “lugar propício para encontro” dos alunos
e alunas e suas “querências” – seus sonhos, desejos, aspirações, receios,
medos – e a necessidade de se configurar um ambiente de acolhimento
e hospitalidade onde o coletivo configurado por professor(a), alunos e
alunas, conteúdos, sítio e entorno urbano, conhecimentos prévios e
construídos, práticas e ateliê têm um papel fundamental. Explorar a
importância da construção de um “lugar propício para o encontro” em
torno do tema da habitação e do habitar.

23 CUKIERMAN, H.; TEIXEIRA, C.; PRIKLADNICKI, R. (2007) Um


Olhar Sociotécnico sobre a Engenharia de Software. Revista de Informática Teóri-
ca e Aplicada, 14, 199-219, p.301. Disponível em < http://goo.gl/kW1Rpk >,
acesso em 11mai2015.
24 CUKIERMAN, H.; TEIXEIRA, C.; PRIKLADNICKI, R. Revista de In-
formática Teórica e Aplicada, 14, 199-219, p.301 . Disponível em < http://goo.
gl/kW1Rpk >, acesso em 11mai2015.

57
A disciplina Projeto de Arquitetura I
Projeto de Arquitetura I (PA1) é a primeira disciplina obrigatória do
tronco de projeto de arquitetura, coluna dorsal do Curso de Gradua-
ção em Arquitetura e Urbanismo da Faculdade de Arquitetura e Ur-
banismo da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Sua ementa trata
dos seguintes conteúdos:
Projeto de temas arquitetônicos de médio porte. Teoria do projeto:
conceituação dos mecanismos projetuais adstritos ao nível da discipli-
na. Tipos e paradigmas precedentes. Prática do projeto: implantação
no terreno, relação com a circunvizinhança, relevo do terreno, incidên-
cia do sol, de ventos e visuais. Relação entre formas e usos dos com-
partimentos. Tecnologia do projeto: noções de estrutura, cobertura,
sistemas construtivos, instalações elétricas e hidráulicas.
E a temática envolve a elaboração de estudos e projetos de HABI-
TAÇÃO UNIFAMILIAR a partir da reflexão sobre o contexto ur-
bano e sobre as transformações experimentadas na concepção e no
uso da habitação no final do século XX e seus reflexos sobre a cidade
e sobre a arquitetura.
Em 1998 minha turma de PA1 é incorporada ao projeto de ensino
-pesquisa A Construção do Conhecimento no Ateliê de Projeto de Arqui-
tetura e sua proposta pedagógica busca contornar meu desconforto
com a inconsistência do Projeto Pedagógico25 do Curso de Arquitetura
e Urbanismo da FAU/UFRJ. Em especial pela ausência de um Marco
Doutrinário – problema comum à maioria das escolas de arquitetura
brasileiras – que, associada à recomendação de formação de um pro-

25 O Projeto Pedagógico aprovado em 2006 e disponível em < http://nova.


fau.ufrj.br/uploads/71-Projeto%20Pedag%C3%B3gico.pdf > subverte os prin-
cípios e a natureza do Marco Referencial proposto por Danilo Gandin (1994)
– um processo efetivamente participativo que contempla três vertentes comple-
mentares: Marco Doutrinário, Marco Situacional e Marco Operacional – men-
cionado como referência na configuração de seu Marco Situacional. A proposta
de Gandin trabalhada na disciplina Teoria e Prática do Ensino de Projeto de
Arquitetura, ministrada para os cursos de Mestrado e Doutorado em Arquitetu-
ra teve parte do seu conteúdo parcialmente [e incorretamente] incorporada ao
Projeto Pedagógico (2006).

58
fissional generalista26 induz a um estado de laisser faire no qual cada
professor ou professora se sente à vontade para naturalizar seus va-
lores e modelos como se fossem os únicos válidos; para estabelecer
diretrizes, procedimentos e doutrinas específicos de sua disciplina, que
se configura como um verdadeiro minicurso autônomo. Os alunos,
por sua vez, se veem obrigados a “transitar”, a se ajustar em meio a
um variado e instável conjunto de “valores” e “verdades” que variam
significativamente entre os professores e professoras que, em comum,
tendem a desprezar os desejos, os interesses e as expectativas de seus
alunos e alunas. A proposta pedagógica adotada foi inspirada na con-
cepção dida-lé-tica27 da educação,28 que entende o conhecimento como
um processo situado29 de transformação da realidade, que parte da prá-
tica (sincretização), teoriza sobre esta prática (teorização ou análise) e
volta à prática para transformá-la (síntese). Basicamente, a experiência
teórico-prática da disciplina PA1 pode ser considerada uma narrativa
que é tecida em torno da hospitalidade, que se configura como uma
“geografia – impossível, ilícita – da proximidade” (Dufourmantelle
apud Derrida)30 de Derrida.
O plano de ensino e o texto do exercício da Casa dos desejos se con-
figuram como um convite para que professor, alunos e alunas partici-

26 BRASIL. MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO, CONSELHO NACIONAL


DE EDUCAÇÃO. Resolução n. 06 de 02 de fevereiro de 2006 – Diretrizes Cur-
riculares Nacionais do Curso de Graduação em Arquitetura e Urbanismo. Brasília:
DOU 03/02/2006, Seção I, p. 36-37, 2006.
27 Cf. Corazza (1991, p. 1), “ O neologismo dá conta de uma DIDÁTICA
DIALÉTICA. Mais do que ‘dar conta’, manifesta um desejo por uma prática
didática que, para além do imbrincamento entre duas palavras, tenha realizado
em ato esta unidade”.
28 CORAZZA, Sandra M. Manifesto por uma “dida-lé-tica”, in Contexto &
Educação. Ijuí/RS: UNIJUÍ, 1991, p.82-99.
29 Cf. John Law e Annemarie Mol, o conhecimento é sempre produzido em
algum lugar, em um local específico. Ele é regional, não universal. Mas esse en-
tendimento não é tão simples assim, “porque os fatos científicos também viajam
entre as regiões”. (Law; Mol, 2000, p. 2)
30 DERRIDA, J.; op. cit.; p.6.

59
pem de uma experiência didática de projeto fundada na autonomia,
no acolhimento e na hospitalidade. Por ser a primeira disciplina de
projeto, localizada no quinto período do curso, sua proposta pedagó-
gica considera a ansiedade e o desejo dos alunos e alunas de projetar
– minha experiência como professor de projeto permite considerar
que a atividade de projeto segue sendo a mais característica da ativi-
dade dos(as) arquitetos(as) no imaginário da grande maioria dos(as)
estudantes. Assim, nada melhor do que começar a projetar com um
exercício de livre criação e expressão que opera como convite para
que explorem suas vivências, experiências e desejos em torno da ha-
bitação e do habitar.

O Exercício a Casa dos Desejos [Sonhos]


Exercício projetual inspirado no Wish Poem,31 nos ensaios sobre A Poé-
tica do Espaço32, e no entendimento de casa como refúgio pessoal e
familiar cuja afetividade e intensidade são sentidas e vividas esponta-
neamente por seus habitantes33. Foi originalmente concebido com o
objetivo de avaliar os conhecimentos prévios e a percepção dos alunos
e alunas na resolução de um projeto de concepção livre.
O Wish Poem ou Poema dos Desejos é um instrumento não estruturado
e de fácil aplicação para interlocução com os estudantes. Seu propósito
é encorajar que os autores dos projetos se expressem, por meio de um
conjunto de sentenças livres escritas ou desenhadas, ideias, demandas,
sentimentos e desejos relativos à sua Casa dos Desejos, tendo como
ponto de partida uma sentença iniciada com: Eu gostaria que a minha
casa dos desejos ...
Foram dois os motivos de sua escolha para a construção do exercício
de projeto: a eficácia do poema dos desejos quando se deseja valorizar
um caráter mais global e exploratório da observação nas pesquisas,
consultorias, dissertações e teses desenvolvidas pelo grupo Qualidade

31 SANOFF, Henry. Integrating Programming Evaluation and Participation in


Design. Raleigh: Henry Sanoff, 1992: 16-17.
32 BACHELARD, Gaston. A Poética do Espaço. Rio de Janeiro, Martins Fontes, 1988.
33 ECKAMBI-SCHMIDT, Jèzabelle. La percepción del hábitat. Barcelona:
Gustavo Gili, 1974.

60
do Lugar e Paisagem (ProLUGAR), e; a possibilidade dele vir a con-
tribuir para reduzir – senão eliminar – as ameaças ao sossego e viola-
ções do “espaço doméstico”, dos valores, pensamentos e interesses dos
alunos e das alunas.
Diferentemente das rimas entre as sentenças de um poema tradicio-
nal as declarações espontâneas compõem um conjunto mais livre de
informações que fazem emergir um imaginário coletivo e a riqueza de
um contexto múltiplo que é vivenciado pelos usuários. A atividade
da escrita ou do desenho permite que os respondentes expressem e
narrem sua visão sobre um determinado ambiente ou organização, ex-
plicitem suas predileções e indiquem os elementos que consideram
mais significativos34.
Uma escolha reforçada pelo reconhecimento de Rubem Alves de que,
paralelamente à nossa relação de dependência e fascínio com a Ciência
e com a tecnologia, também somos fascinados pela beleza de um poe-
ma ou de um quadro, pela melodia de uma canção, pelo aroma do pão
fresco ou pelo sabor de uma feijoada. Além do conhecimento técnico
e científico precisamos das qualidades percebidas, que não são Cien-
tíficas. Elas são qualidades relacionais ou conhecimentos produzidos
durante a experiência do nosso viver-no-mundo35.
O exercício foi concebido com a intenção de motivar a turma a explo-
rar as qualidades relacionais e a beleza em seus projetos da Casa dos
Desejos. É importante que a turma seja incentivada a reconhecer que
existem edifícios e lugares que emocionam e provocam a imaginação
de muitas pessoas, assim como outros que são ambíguos e agradam
alguns, mas desagradam outros; que estas qualidades não podem ser
fielmente interpretadas a partir de conceitos, nem representadas ou re-
sumidas por teorias, pois “podem ser rígidos ou limitados demais para
expressar a natureza dinâmica dos sentidos do corpo e da mente”36;

34 SANOFF, Henry. School Building Assessment Methods. Washington DC, Na-


tional Clearinghouse for Educational Facilities, 2001. Disponível em < www.
edfacilities.org/pubs/sanoffassess.pdf > acesso em 20 de maio de 2007.
35 ALVES, Rubem. Entre a ciência e a sapiência. São Paulo: Edições Loyola, 2005.
36 TULKU, Tartang. Conhecimento e Liberdade. (2ª Ed.) São Paulo: Instituto
Nyingma do Brasil, 1997, p229.

61
que não existem edifícios ou lugares belos em si; que suas qualidades
são produzidas nas interações entre as entidades com eles implicadas.
A beleza do Palácio Gustavo Capanema é resultado de um processo
envolvendo as características físicas do edifício, as cores e texturas de
seus materiais, suas dimensões; seu diálogo dinâmico com a paisagem
natural e construída, com os fluxos das pessoas, veículos ou animais;
com a temperatura ambiente, as sonoridades e aromas; com os artigos
e reportagens. Mas sua plenitude só pode ser reconhecida e usufruída
quando interagimos com eles. Como a doçura do açúcar, sua beleza
se produz durante a experiência. Depois ela fica armazenada em nos-
sa memória e, a qualquer momento, podemos ‘senti-la’, ‘revivê-la’.
Mas quem nunca ‘provou’ as suas qualidades não tem possibilidade
de reviver a experiência do outro. omo todos os alunos e alunas já
‘provaram’ e ‘sentiram’ a experiência de habitar, o exercício explora e
incentiva a recorrer e a reviver suas memórias no exercício. Explora a
possibilidade de contornar ou até mesmo de superar as limitações dos
trabalhos acadêmicos de projeto que, por raramente serem construí-
dos, impossibilitam que seus autores e autoras usufruam da plenitude
de sua experiência.
Também incentiva que explorem os desenhos e maquetes físicas ou
virtuais, animações, analogias e metáforas como um meio de explicar
seus projetos, de reduzir as arestas das diferenças e de utilizar criativa-
mente todos os sentidos e recursos disponíveis37.
Assim como não é possível usufruir um projeto da mesma forma como
se usufrui um edifício em uso, também é necessário estabelecer uma
forma de comunicação com construtores, operários, usuários e clientes
– no caso do exercício, com professor e colegas – de modo que todos
possam imaginá-los e “visualizá-los”. Para tanto, é importante que
alunos e alunas sejam incentivados a explorar seus desenhos e modelos
como interfaces de comunicação entre todas as pessoas envolvidas no
processo. O exercício inicia com a distribuição de cópias impressas do
texto-roteiro, seguida de sua leitura comentada.
Tanto o exercício quanto as “regras do jogo” devem ser claramente

37 DAMÁSIO, António. O Erro de Descartes. Rio de Janeiro: Companhia das


Letras, 1996.

62
explicadas: seus objetivos e procedimentos, porque deve ser resolvido
sem orientação, porque alunos e alunas devem recorrer às suas habi-
lidades e conhecimentos prévios. Especial atenção deve ser dedicada
à explicação do processo de avaliação – auto-avaliação com base no
grau de atendimento e correspondência com a frase-conceito e com os
desejos expressos no poema dos desejos.
Uma vez concluída a apresentação do exercício a turma é convidada
a ler o texto de motivação, baseado na poética do espaço de Gaston
Bachelard e na percepção do habitat de Jézabelle Eckambi-Schmidt
– que reforça a afetividade, a espontaneidade vivenciada pelos habi-
tantes em suas habitações e a dinâmica das transformações relaciona-
das com a percepção do entorno imediato (Anexo 1). O texto finaliza
com três perguntas propostas pela autora e que devem ser respondidas
pelos alunos e alunas com vistas a conceber habitações representativas
de seus anseios:
Quando você pensa em sua “casa” no sentido de “meu lar” ou “meu lugar”,
que imagens ou ideias esse pensamento sugere? Que características deve ter
a sua casa? Quais são os critérios mais importantes para você eleger a sua
habitação?
A seguir, cada aluno(a) formula uma frase que seja representativa da
ideia e do caráter de sua casa dos desejos; para evitar problemas de
comunicação, pode ser utilizado o seguinte exemplo:
Imagine que você ganhou uma bolsa de estudos e está distante do Rio e quer
resumir em uma frase as qualidades e a personalidade de seu namorado ou
namorada para parentes e amigos(a).
Uma vez escritas as frases, a turma é convidada a complementar as
frases-conceito com um conjunto de dez sentenças ou frases sempre
iniciadas com
Eu gostaria que minha casa dos desejos ...
Inicialmente o poema era uma construção livre. Em virtude da recor-
rência de frases pouco relacionadas com a materialidade dos projetos,
foi incluída a sugestão de que as sentenças do poema deveriam con-
templar os seguintes aspectos: entorno urbano, configuração/implan-
tação, volumetria e aparência externa, materiais utilizados e/ou siste-
ma construtivo, espaços abertos do terreno e sua relação com a rua, e

63
indicações de cores, texturas e massas vegetais.
Como recomendação, o texto do exercício destaca que a redação deve
ser clara, evitando: (a) questões ambíguas do tipo “eu gostaria que a
minha Casa dos Desejos fosse bonita” (como o conceito de beleza é
relativo, seria necessário precisar melhor); (b) simples indicações de
compartimentos ou equipamentos como “eu gostaria que a minha
Casa dos Desejos tivesse uma sala de reuniões, uma biblioteca, um pátio
coberto etc.”
O texto também contém exemplos de sentenças escritas por ex-alu-
nos da disciplina:
“Eu gostaria que a minha Casa dos Desejos ....
... tivesse os ambientes e equipamentos dispostos de forma a facilitar o seu
uso diário;
... tivesse iluminação natural e artificial muito bem planejadas;
... tivesse harmonia com seu entorno;
... tivesse o mínimo de paredes, para que os ambientes ficassem mais
integrados;
... fosse construída com materiais naturais;
... tivesse um amplo pátio coberto e fosse cercada por bastante área verde;
... fosse naturalmente arejada;
... tenha cobertura plana e clara, com amplos beirais para proteger da chuva
e do sol;
... tivesse uma volumetria, tamanho e ritmo das aberturas integrados com
os edifícios vizinhos;
... tivesse cores suaves e tons pastéis.
Concluída a etapa de redação da frase-conceito e do poema dos dese-
jos, cada estudante é orientado a escrevê-los em uma prancha de papel
sulfite branco formato A3 de modo que possam ser facilmente lidos a
uma distância de, pelo menos, 3 metros. Todas as pranchas devem ser
fixadas nos quadros de avisos ou nas paredes do ateliê. A seguir cada
estudante é convidado a ler e explicar sua frase-conceito e poema dos
desejos, de modo a eliminar eventuais dúvidas ou ambiguidades.
Um bom exemplo para reforçar a importância dessa etapa é o desenho
da jiboia que engoliu um elefante de O Pequeno Príncipe, de Exupéry,
mas que é visto pelos adultos como o desenho de um chapéu.

64
Durante o processo, todos os estudantes devem ser incentivados a ano-
tar as críticas e sugestões, a ouvir e a opinar sobre os trabalhos dos
colegas. Ao final da aula, o professor ou professora deve fazer uma
síntese do conjunto de ideias e poemas, de sua riqueza e multiplicida-
de. Ele ou ela também deve incentivar os estudantes a se apropriarem
de parte das propostas dos colegas, com base no argumento de que
tudo o que se produz no ateliê resulta do ambiente e da colaboração
de todos(as), ou seja: que toda a produção é coletiva. Como trabalho
de casa, todos devem ser orientados a produzirem pranchas mais bem
apresentadas e com maior legibilidade – tendo como parâmetro a fa-
cilidade ou a dificuldade que tiveram na leitura das frases e poemas
produzidos no ateliê.
O conjunto de frases e poemas e os debates se configuram como in-
terfaces que exploram os espaços entre, as rugosidades e irregularida-
des das bordas que se produzem no processo de comunicação que se
estabelece na turma. Eventualmente, isso pode dificultar os encaixes
necessários para a construção de um ambiente de acolhimento e hospi-
talidade. Também pode evidenciar a multiplicidade de ideias, valores e
querências, que operam como janelas e portas que se abrem ou fecham
nas relações interioridade-exterioridade que “perturbam” o “espaço ou
o sossego doméstico”.
A possibilidade dos estudantes se apropriarem uns dos outros das
ideias e desejos resulta em um ambiente que incentiva a interdepen-
dência. Neste processo o papel de mediador do professor é funda-
mental, especialmente para contornar ou eliminar riscos de imposição
ou de violação dos interesses e desejos dos estudantes e evitar que se
transformem em meras extensões dos braços e pensamentos do profes-
sor ou professora. Ele também procura reconhecer as frases-conceito e
poemas dos desejos como reflexões teóricas, explicitar a eles e elas que
estão produzindo conceitos e explicitando um conjunto qualitativo de
informações e valores.
Nas quatro aulas seguintes, os estudantes são convidados a utilizarem
até cinco pranchas formato A3 para expressar graficamente, com liber-
dade e criatividade, suas propostas de projeto. Ao final do exercício, a
turma se reúne em torno de uma grande mesa e as propostas são apre-

65
sentadas, explicadas e debatidas. Para tanto, as pranchetas devem ser
dispostas ao longo das paredes, configurando um “U” e cada estudante:
expõe as pranchas com a frase-conceito, o poema e os desenhos de
sua Casa dos Desejos e uma ficha de avaliação previamente discutida,
a ser preenchida por todos os estudantes e professores e professoras,
contendo os itens a serem avaliados: frase-conceito, sentenças do poe-
ma dos desejos, coerência e correspondência entre a Frase-conceito, o
Poema dos Desejos e a Proposta de Projeto; clareza e a objetividade das
informações; criatividade e qualidade da proposta.
Ao final da avaliação, é recomendável que se comemore o final do
exercício com uma festa inspirada na festa de cumeeira, tradicional na
construção de habitações.
Antes da proposta pedagógica ser adotada em todas as turmas de PA1
– que oscilam entre seis e sete por período letivo – se costumava expor
os trabalhos de todas as turmas no corredor do andar correspondente.
Uma vez fixados todos os trabalhos nas paredes, se escolhiam dois ou
três estudantes de cada turma que explicavam o exercício, o programa
e o contexto de projeto para os professores, professoras e estudantes
das outras turmas. Nesta época, cada professor(a) tinha liberdade de
propor os exercícios a serem desenvolvidos em suas turmas. Em co-
mum, todos(as) deveriam respeitar as datas de entregas.
Quando os estudantes da turma vinculada ao projeto de pesquisa com-
paravam os resultados dos seus trabalhos, realizados sem orientação
e com liberdade de expressão, sentiam-se mais felizes e confiantes ao
reconhecerem a importância do uso de seus “já saberes acumulados” e
da liberdade de expressão na formulação de suas propostas.
Como reflexos dessa descoberta, estabelece-se um clima de confiança
ao longo de todo o processo pedagógico, que valoriza a autonomia e a
alegria. Concluído o processo de avaliação, o professor ou professora
distribui uma ficha de auto-avaliação e solicita que cada estudante, a
partir do conjunto de trabalhos produzidos, avalie seu desempenho
com relação a um conjunto de em torno de um conjunto de conheci-
mentos ou habilidades, a saber: conceituação, clareza e precisão da re-
dação; empenho/dedicação; assiduidade e pontualidade; criatividade;
contextualização do problema; expressão gráfica; qualidade do dese-

66
nho; diagramação das informações; coerência da implantação; confi-
guração de planta; composição da massa/volume; qualidade estética;
conforto ambiental e construtibilidade.
Depois de preenchidas e entregues as fichas, o professor tabula os re-
sultados em um quadro-resumo utilizando legenda de cores para iden-
tificar os conceitos auto-atribuídos pelos(as) alunos(as). Verde [exce-
lente], verde claro [bom], amarelo [regular], laranja [fraco], vermelho
[inadequado], cinza [não verificado].
Com base nos resultados expressos no quadro-resumo, o professor ou
professora negocia com a turma um conjunto de conteúdos de refor-
ço a serem ministrados em palestras, exercícios ou trabalhos comple-
mentares, com vistas a reduzir ou eliminar as carências. A ordem de
prioridade, em geral, obedece à maior frequência de resultados ina-
dequados ou fracos. A seguir, apresento alguns exemplos ilustrativos
do processo.

Exemplos de Frase-conceito e Poema dos Desejos [Sonhos]


Em função das necessárias limitações de espaço e bytes algumas frases-
conceitos e os textos dos poemas dos desejos foram intercalados com
outras em figuras escolhidas por sua expressividade, a começar com
a capa de um trabalho que serve de homenagem a Marcelo Kiefer e
Fernando Fuão e suas colagens (fig. 6).
As autorias foram omitidas, em função da exigência de submissão às
comissões de ética da área da saúde de todos os trabalhos envolvendo
humanos – obrigação que se aproxima das limitações e inconsistências
da hospitalidade de direito de Derrida38.
Frase-conceito e poema dos desejos do aluno “A” da turma 2001-239,
cujo terreno está localizado no Morro da Conceição, na Zona Portuá-
ria da cidade do Rio de Janeiro:
Minha casa é um local onde posso receber amigos. Espaços integrados pro-
movem descontração, mas a privacidade da área íntima é mantida.
Eu gostaria que minha casa tivesse ...

38 DERRIDA, J. Op .cit.
39 Este poema foi concebido antes de se estabelecer a exigência de atender aos
quesitos/exigências indicados na página 60.

67
... uma garagem confortável para manobras de veículos;
... um jardim ou um quintal para ter elementos verdes sempre por perto;
... lavanderia para lavar minha roupa em casa mesmo, que vá simplesmente
jogá-la na máquina de lavar como nas lavanderias de rua;
... uma cozinha integrada para fazer refeições rápidas e não parar a conver-
sa com os amigos e hóspedes para preparar o que comer;
... um escritório para trabalhar em qualquer horário do dia ou da noite;
... uma varanda para puxar uma cadeira para fora de casa no fim da tarde
e relaxar;
... uma suíte completa para que possa espalhar minha bagunça sem ouvir
reclamações e organizá-las quando quiser;
... um lavabo;
... quarto de hóspedes para receber amigos e parentes que precisem de estadia
com conforto;
... uma claraboia para que os raios solares sejam trazidos para dentro de
minha casa também pelo teto.

Figura. 6 – Capa do trabalho de aluno da turma 2001-2

68
Frase-conceito e poema dos desejos do aluno “B”, turma 2002-1, em
terreno situado no Engenho Novo:

Figura 7 – Frase-conceito e Poema dos Desejos do aluno “B” turma 2002-1

Frase-conceito e poema dos desejos do aluno “C” da turma 2002-1


(Fig. 8):
Minha casa dos desejos é ampla, leve e social.
Gostaria que fosse branca;
… que tivesse muitas aberturas;
… com materiais diversificados;
Gostaria que fosse high tech;
… que tivesse uma parte social enorme;
… com salão de jogos e espaços integrados;
Gostaria de móveis do Stark;
… de uma biblioteca
… e de um escritório.

69
Figura 8 – Frase-conceito e Poema dos Desejos do aluno “C” turma 2002-1

Frase-conceito e poema dos desejos da aluna “D” da turma 2002-2:


TODA CASA É DIFERENTE DE TODA CASA Que é diferente
de toda casa que é diferente.
De toda casa que é diferente DE TODA CASA. Minha casa dos de-
sejos é sempre diferente, sempre leve, cheia de surpresas.
Gostaria que minha casa dos desejos ...
... fosse um jogo de planos, definindo os espaços sem limitá-los, criando am-
bientes flexíveis;
... fosse leve e moderna;
... fosse prática e social;
... tivesse pés-direitos diferentes;
... tivesse um telão com home theater;
... tivesse um ateliê e escritório;
... tivesse uma suíte que fosse um mezanino para a sala;
... tivesse jardins internos;
... tivesse um espaço ‘mágico’, com som da água, velas ...

70
Frase-conceito e poema dos desejos da aluna “E” da turma 2002-2:
Além da riqueza e diversidade de informações, que permitem imaginar
uma habitação que possa dar conta de cada conjunto de desejos, penso
que o a frase-conceito e o poema dos desejos são incomparavelmente
mais expressivos e representativos das intenções projetuais de seus(as)
autores(as) do que quando se limitam a cumprir as exigências programá-
ticas previamente formuladas e impostas pelos(as) professores(as). Elas
também funcionam como interface de acolhimento dos(as) Outros(as).

Exemplos de projetos de Casa dos Desejos


Por sua expressividade, escolhi dois projetos dentre os cinco cujas fra-
se-conceito e poema dos desejos foram apresentados na seção anterior:
Projeto da Casa dos Desejos do aluno “C” da turma 2002-1 (figs. 9,
10, 11 e 12):

Figura 9 – Projeto aluno “C” - Planta Situação e Cobertura

71
Figura 10 – Projeto aluno “C”- Plantas Baixas

Figura 11 – Projeto aluno “C”- Cortes e Fachadas

72
Figura 12 – Projeto aluno “C”- Perspectivas
Projeto da Casa dos Desejos da aluna “D” da turma 2002-2 (figs. 13, 14, 15 e 16):

Fig. 13 – Projeto aluna “D” - Situação e Locação

73
Fig. 14 – Projeto aluna “D” - Plantas Baixas

Fig. 15 – Projeto aluna “D”- Cortes

74
Fig. 16 – Projeto aluna “D”- Perspectiva

A qualidade dos projetos e da sua representação e comunicação falam


por si. Mesmo tendo selecionado os melhores trabalhos apresentados
ao longo de dez anos da disciplina, cabe observar que eles não se di-
ferenciam muito dos demais. A coerência e correspondência dos pro-
jetos com as frases-conceito e com os poemas dos desejos facilitam o
“grand finale” do exercício: o processo de autoavaliação. É neste mo-
mento que a potencialidade da ZDP e do acolhimento dos Outros e
Outras se potencializam.

75
Fig. 17 – Processo de Apresentação dos Projetos

Fig. 18 – Processo de Auto-avaliação

76
Fig 19 - Festa de Comemoração do Final do Exercício

Fig. 20 – Exposição coletiva dos trabalhos das Turmas

77
Cada estudante dispõe todos os elementos de sua proposta sobre uma
grande mesa ocupada por toda a turma (fig. 17), que observa, anota e,
após cada apresentação, se discute a proposta sempre valorizando os
pontos fortes e sugerindo eventuais melhorias. Esta atividade ocupa
uma aula de quatro horas. Na aula seguinte, se procede à auto-avalia-
ção (fig. 18), atividade que é finalizada com a festa de confraternização
(fig. 19). Por fim, em alguns períodos os trabalhos de todas as turmas
são expostos no corredor do andar onde a disciplina foi ministrada (fig.
20). A figura 20 foi escolhida em homenagem a dois queridos colegas
já falecidos, Ivan Gil de Mello e Souza (de camisa amarela escura) e
Roberto Segre (ao fundo, de camisa branca). Esta atividade também
ocupa uma aula de quatro horas.

Considerações Finais
Espero ter evidenciado a natureza e o potencial do exercício da Casa
dos Desejos como um convite ou acolhimento para que alunos e alunas
explorem o potencial criador do sonhar – aqui entendido como con-
junto de pensamentos a que o espírito se entrega, imaginação, ideia ou
aspiração a ser defendida com paixão – e do desejar – palavra derivada
do latim clássico desidia, que significa vontade, anseio, interesse, aspi-
ração ou ambição de conseguir algo ou de que algo aconteça – como
uma tentativa de superar a banalização funcionalista do processo de
projeto que, penso, impera nas disciplinas de projeto de arquitetu-
ra. Ter reforçado a importância do pensamento de Paulo Freire, que
pode ser resumido na frase “Ensinar exige rejeição a qualquer forma de
discriminação”40.
Também espero ter evidenciado as relações entre a ideia da rejeição a
qualquer forma de discriminação, de respeito à autonomia e à digni-
dade de cada aluno ou aluna como um imperativo ético com a hospi-
talidade e a interioridade do entendimento de “em casa” e seus efeitos
nas fronteiras entre o familiar e o não-familiar, entre o público e o
privado, entre o cidadão e o não-cidadão; para aquilo que “nos chega”,
ou melhor, que nos acolhe ou “aconchega”.

40 FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educa-


tiva. São Paulo: Paz e Terra, 1999, p.39.

78
Já com reação à minha possível [e, talvez, improvável] contribuição
para a reflexão sobre as conexões entre o pensamento de Derrida sobre
acolhimento e hospitalidade e a arquitetura, espero ter tido algum su-
cesso nesta primeira tentativa de explorar o ‘espaço entre’ e as muitas
‘rugosidades’ resultantes das interfaces de uma hospitalidade que, acre-
dito, não está nem no indivíduo nem na arquitetura ou na natureza,
uma hospitalidade que está, sim, nas relações interdependentes que se
produzem nos encaixes possíveis que emergem nos ‘espaços entre’ os
saberes dos alunos e alunas, que possibilitam que se conectem com as
“bordas dos outros”.
Parodiando Fernando Pessoa, o exercício pode ser resumido em uma
única frase:
DESEJAR É PRECISO, VIVER NÃO É PRECISO41.

Agradecimentos
Agradeço a minha esposa Ana Rheingantz pela parceria na construção
da proposta pedagógica da disciplina e a contribuição das professoras
Vera Tângari, Luciana Andrade, Denise de Alcantara, Ethel Pinhei-
ro, Cristiane R. Duarte, Maria Ligia Sanches, Genoveva Fruet e dos
professores Joacir Esteves, Ivan Gil de Mello e Souza, Roberto Segre
e Alfredo Britto no refinamento do exercício da Casa dos Desejos em
suas diferentes versões e designações – casa dos sonhos, minha primei-
ra casa, casa dos desejos; o apoio do CNPq [Bolsa de Produtividade –
processo 300947/2013-5 e Edital Universal – processo 475549/2012-
0] e da CAPES [Bolsa professor visitante nacional sênior junto ao
Programa de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo da Univer-
sidade Federal de Pelotas, processo nº 23038009722201321].

41 Do original Navegar é preciso, viver não é preciso, poema de Fernando


Pessoa inspirado em frase atribuída por Plucarco ao general romano Pompeu
(106-48 aC), dita aos marinheiros que, amedrontados, se recusavam a viajar
durante a guerra. Disponível em < http://www.jornaldepoesia.jor.br/fpesso05.
html > acesso em 27jul2015.

79
ANEXO 1: EXERCÍCIO A CASA DOS DESEJOS [SONHOS]
Disciplina: PROJETO DE ARQUITETURA I / DPA/FAU/UFRJ
Professor: Paulo Afonso Rheingantz
Assunto: EXERCÍCIO A CASA DOS DESEJOS. Descrição/Detalhamento

Exercício inspirado no Wish Poem de Henry SANOFF e nos ensaios de Gaston Bache-
lard (1988) sobre A Poética do Espaço e originalmente concebido com o objetivo de avaliar
os conhecimentos prévios e a percepção dos alunos e alunas na resolução de um projeto livre.
01. Problematização:
Segundo BACHELAR (1988), a casa é o nosso canto do mundo, o nosso primeiro
universo, um verdadeiro cosmos: todos os abrigos, todos os refúgios, todos os aposen-
tos têm valores oníricos (Relativo a, ou próprio de sonhos) consoantes. ... Os verdadei-
ros bem-estares têm um passado. Todo um passado vem viver, pelo sonho, numa casa
nova. ... Pelos sonhos, as diversas moradas de nossa vida se interpenetram e guardam
os tesouros dos dias antigos. .... Vivemos fixações, fixações de felicidade... A casa abriga
o devaneio, a casa protege o sonhador, a casa permite sonhar em paz. ... a casa é uma
das maiores (forças) de integração para os pensamentos, as lembranças e os sonhos
do homem. ... Ela mantém o homem através das tempestades do céu e das tempesta-
des da vida. É corpo e é alma. É o primeiro mundo do ser humano.... É pelo espaço,
é no espaço que encontramos os belos fósseis de duração concretizados por longas
permanências. ... Mais urgente que a determinação das datas é, para o conhecimento
da intimidade, a localização nos espaços da nossa intimidade. ... os espaços das nossas
solidões passadas ... são indeléveis em nós ... têm valor de concha. ... No plano de uma
filosofia da literatura e da poesia em que nos colocamos, há um sentido em dizer que
“escrevemos um quarto”, que “lemos um quarto”, que “lemos uma casa”. ... foi escutar
as lembranças ... do ser que domina o recanto de suas lembranças mais valorizadas.
... A casa natal é uma casa habitada. ... A casa natal gravou em nós a hierarquia das
diversas funções de habitar. Somos o diagrama das funções de habitar aquela casa; e
todas as outras não passam de variações de um tema fundamental. ... existe para cada
um de nós uma casa onírica, uma casa de lembrança-sonho, perdida na sombra de um
além do passado verdadeiro. Para Bachelar (1988), “a casa é um corpo de imagens que
dão ao homem razões ou ilusões de estabilidade”.
Ekambi-Schmidt (1974), por sua vez, vê a casa como refúgio pessoal e como espaço
social familiar. Segundo a autora, diferentemente do que um simples esquematismo
poderia nos levar a pensar, a casa é vivida e sentida espontaneamente por seus habi-

80
tantes de diversas maneiras; ela também é uma intensidade, uma afetividade, um ser
cujos elementos materiais móveis e equipamentos constituem unicamente uma heran-
ça. “A casa é um ser dotado de vida própria e está intensamente ligada à vida de seus
habitantes, embora, às vezes, redescubra uma espécie de autonomia, de poder benéfico
ou maléfico”. Para explicitar as lamentações e atual nostalgia em relação ao hábitat
tradicional, a autora apresenta o artigo intitulado A habitação e a civilização, extraído
da enciclopédia Larousse: A habitação é tributária das tradições e os costumes. Ao ser
sua duração maior do que vida humana, transmite ao homem a maneira de viver de
seus antepassados e ajuda assim a perpetuar as características comuns de uma época.
Está marcada pela presença da mulher, tanto se sua planta está concebida pensando
no harém ou no gineceu, como se está pensando na mãe de família que preside a vida
cotidiana como nos quadros de Vermeer ou de Chardin. A habitação reflete também
de modo evidente as diferenças sociais. Blondel escreve: “se se ergue um palácio para
um príncipe, se deve pensar em tudo o que convém à comodidade dos funcionários e
outros domésticos que hão de servi-lo; se se constrói uma casa para um senhor menos
ilustre, há que consultar, igualmente, o lugar que ocupa e o número dos que estão a seu
serviço a fim de determinar adequadamente a magnitude e a extensão de seu edifício.
Se se edifica para um homem que ocupa um cargo público, é preciso distribuir os
ambientes segundo as exigências de seu ministério. A época contemporânea: um novo
conceito de habitação ... O homem contemporâneo tem um sentido da precariedade das
coisas. Vê ameaçada toda civilização. Vive a incerteza a respeito do amanhã. A veloci-
dade faz dele um novo nômade. A casa contemporânea, surgida da casa japonesa, acusa
também as características desta instabilidade e esta precariedade. Segundo a autora, a
oposição verificada entre as noções do hábitat que aparecem nos dois parágrafos do
texto acima, evidencia a precariedade do entorno em que estamos e das coisas nele
existentes, assim como esse retorno a uma certa forma de nomadismo que se manifesta
de certa forma na mobilidade residencial dentro de uma mesma cidade ou entre duas
cidades. Partindo do reconhecimento deste fenômeno da mobilidade, e da sua impor-
tância para a percepção do hábitat, a autora questiona: “Estaremos assistindo a uma
transformação radical da percepção do entorno imediato? ”
Quando nossos antepassados ocupavam suas casas familiares, as enchiam de diferen-
tes estratos de objetos herdados de geração a geração que lhes serviam de marco de
referência, e ainda se preocupavam com os problemas de seu tempo e estavam perfei-
tamente integrados em seu presente, esses apoios os mantinham em constante contato
com o passado, com a ética desse passado, com seus costumes. E, além disso, esse

81
passado lhes parecia “familiar” por familiar. Segundo Schmidt (1974), “estas casas
inspiravam uma profunda segurança no indivíduo. ” Em contrapartida a mobilidade
elimina esses apoios materiais do habitar. Em outro tempo se habitava em função do
nível social da família, ou quase poderíamos dizer, do nome da família. Na atualidade,
a mudança é constante, rápida, profunda, e as tradições não têm o mesmo caráter
normativo. O indivíduo conquistou uma liberdade de expressão muito mais ampla. E
cabe perguntar-se se também não têm evoluído consideravelmente sua percepção do
entorno, do hábitat?
02. Enunciado do trabalho:
Acreditando nesta postura, faça uma reflexão pessoal (e individual) sobre sua vivência
da “habitação”, de modo a estabelecer as principais qualidades a serem observadas no
projeto da sua Casa dos desejos e, a partir desta reflexão, escreva uma breve frase-con-
ceito representativa de sua ideia-desejo, seguida de um conjunto de 10 (dez) desejos
– Poema dos Desejos – que sua Casa dos Desejos deve, necessariamente, atender.
03. Objetivos:
Redigir uma frase-conceito e um poema dos desejos relacionados entre si e representativos
de sua ideia de casa dos desejos. Explicitar a relação existente entre a frase-conceito e o poe-
ma dos desejos. Projetar e representar graficamente uma casa dos desejos coerente com a fra-
se-conceito e com o poema dos desejos. Apresentar e explicar o projeto da casa dos desejos.
04. Procedimentos:
Passo 1: Com base em sua experiência e vivência relacionadas com o tema de projeto
proposto responder às 3 questões abaixo indicadas: Que imagens ou ideias você tem sobre
a sua Casa dos Desejos? Que características deve ter a sua Casa dos Desejos? Quais qualida-
des você considera mais importantes em sua Casa dos Desejos?
Passo 2: Com base nas respostas às 3 questões, procure escrever, em poucas palavras,
uma frase-conceito representativa de suas ideias sobre a sua Casa dos Desejos.
Passo 3: Com base em sua frase-conceito escreva um Poema dos Desejos – conjunto
de, pelo menos 10 (dez) desejos que o projeto da sua Casa dos Desejos deve atender. O
poema deve, necessariamente, contemplar os seguintes aspectos: (a) entorno urbano, (b)
partido arquitetônico e urbanístico; (c) volumetria e aparência externa, (d) materiais utili-
zados e/ou sistema construtivo, (e) espaços abertos do lote/terreno e sua relação com a rua, e
(f ) indicações de cores, texturas e massas vegetais.
[A redação deve ser clara, evitando: (a) questões ambíguas do tipo “eu gostaria que a
Casa dos Desejos fosse bonita” (como o conceito de beleza é relativo, seria necessário
precisar melhor); (b) simples indicações de compartimentos ou equipamentos como

82
“eu gostaria que Casa dos Desejos tivesse uma sala de reuniões, uma biblioteca, um
pátio coberto etc.”]
Exemplos de poema dos desejos: “Eu gostaria que a minha Casa dos Desejos .... (1) ...
tivesse os ambientes e equipamentos dispostos de forma a facilitar o seu uso diário”; (2) ... ti-
vesse iluminação natural e artificial muito bem planejadas”; (3) ... tivesse harmonia com seu
entorno”; [(a) entorno urbano] (4) ... tivesse o mínimo de paredes, para que os ambientes fi-
cassem mais integrados”; (5) ... fosse construída com materiais naturais”; [(d) materiais uti-
lizados e/ou sistema construtivo) (6) ... tivesse um amplo pátio coberto e fosse rodeada com
bastante área verde”; [(b) partido arquitetônico e urbanístico] (7) ... fosse naturalmente
arejada”; (8) ... tenha cobertura plana e clara, com amplos beirais para proteger da chuva e
do sol” [(b) partido arquitetônico e urbanístico] (9) ... tivesse uma volumetria, tamanho
e ritmo das aberturas integrados com os edifícios vizinhos. ” [(c) volumetria e aparência
externa] (10) ... tivesse cores suaves e tons pastéis. ” [(f ) indicação de cores e texturas]
Passo 4: Preparar uma prancha de papel sulfite branco ou papel manteiga, formato A3,
contendo sua Frase-conceito e seu Poema dos Desejos.
Passo 5: Com base na Frase-conceito e no Poema dos Desejos, preparar uma proposta de
projeto representativa da sua Casa dos desejos a ser implantada em terreno e sítio de
sua livre escolha.
Passo 6: Apresentação e defesa da proposta de projeto, enfatizando sua relação com a
Frase-conceito e com o Poema dos Desejos.
05. Produto:
Propostas de projeto com apresentação e escolha dos elementos gráficos em até 3
pranchas formato A3. A primeira prancha deve conter a Frase-conceito e o Poema dos
Desejos. A proposta deve conter as informações necessárias e indispensáveis para re-
presentar sua proposta de projeto.
Como um dos objetivos do trabalho é avaliar os conhecimentos prévios dos alunos, a
forma e as técnicas de representação dos trabalhos são livres.
06. Avaliação:
Na avaliação, serão considerados os seguintes critérios, a serem aplicados nas duas
etapas do trabalho: (a) individual, (b) pequeno grupo, (c) grande grupo:
A pontualidade, a clareza e a objetividade da informação; a criatividade e a qualidade
da proposta serão avaliadas em função da coerência e correspondência entre a Frase-
conceito, o Poema dos Desejos e a Proposta de Projeto.

83
Fonte das ilustrações
Todas as fotos do autor, exceto a figura 1: acervo da família, e a figura 5 de
autoria de Marcelo Kiefer.

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85
86
Projeto entre
desígnio e desvio

Paulo Reyes

87
Primeiras delineações
Quando entre meus dedos tomo um grafite e faço com que ele escor-
ra sobre uma folha em branco, desenho. Quando desenho, designo.
Quando designo, projeto. Quando projeto, construo um sentido de
futuro – um futuro que se faz presente nesta folha que me olha. Vocês
poderiam dizer que quando projetamos uma parte da cidade nunca
estamos frente a uma folha em branco, pois ela já traz em si marcas de
um passado, vestígios de outro tempo que se deixa vir à tona. Pode ser.
Então reconhecemos no presente traços de um passado que poderão
ser resgatados no projeto do lugar. O projeto parece buscar as marcas
de um passado para preencher os vazios do presente.
Projetar significa se movimentar, incessantemente, na busca de um
sentido que represente a problemática posta de início de maneira a ser
sintetizado pela figura do desenho. Quando risco, me arrisco sempre
por um campo nebuloso. Os espaços em branco são momentos de
angústia nesse processo de construção. “É a angústia de olhar o fun-
do – o lugar – do que me olha, a angústia de ser lançado à questão de
saber (na verdade de não saber) o que vem a ser meu próprio corpo,
entre sua capacidade de fazer volume e sua capacidade de se oferecer
ao vazio, de se abrir”1.
É com esse sentido de vazio que nos ocupamos – o vazio do ato de
projetar. O ato de projetar é pensado neste texto a partir da relação
entre desígnio e desvio: por um lado, o ato como designação de um
sentido que é dado por quem projeta; por outro lado, o ato como desvio
de sentido a partir das diferentes visões sobre o lugar de projeto. Esta
reflexão segue por uma crítica ao conceito de genius loci como organiza-
dor do sentido de lugar. A busca de um sentido, a dificuldade de lidar
com a fresta, a necessidade de preencher qualquer espaço, acaba por
encaminhar o projeto a um percurso que encontra na figura do genius
loci uma resposta mais rápida. O processo de projeto que se pauta na
busca desse preenchimento fica reduzido a um caminho linear, pouco
poroso, porque não se abre às laterais, somente busca um percurso fo-
cado no objetivo final. O projeto que se faz por uma linha direcionada

1 DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. São Paulo:


Editora 34, 2010, p.38.

88
perde a oportunidade de estabelecer diferentes conexões com aquilo
que é diferente, pois frente às diferenças e aos nós conflitivos, a saída é
pela resolução mais direta. Portanto, há que se permanecer em suspen-
so, por um tempo, a fim de criar espaço, espaço de pensamento. Espaço
de pensamento significa encontrar na não designação, mas na espera,
um momento de reflexão passiva capaz de abrir o projeto para o desvio,
para deixar que o sentido escorra por outros caminhos. Esse espaço
é o que aparecia nos cortes, nas fissuras, nas rachaduras das obras de
Gordon Matta-Clark para produzir formas de pensar, para produzir
vazios. Essa inquietação sobre o ato de projetar me ocupa por longo
tempo, surgido a partir de uma prática de ensino sobre a cidade, mas
também muito concentrado em (pre)ocupações sobre o lugar expresso
nas minhas pesquisas. As primeiras intuições debruçavam-se sobre a
constituição do espaço como dimensão pública em relação às alterações
de sentido produzidas pela lógica digital. Desse trabalho, transbordou
o interesse pelo “processo de projeto em si”. Foram abertas algumas
frentes, expressas em linhas desviantes: por um desvio, buscou-se recu-
perar a dimensão do imaginário no campo do projeto; por outro desvio,
as questões metodológicas, instrumentais e procedurais ganharam cer-
ta concretude de maneira especulativa, provisória e aberta.
Pelo desvio do imaginário, optou-se por centrar esforços na capaci-
dade do imaginário de gerar “ação projetiva”. A intenção de operar
o projeto pelo imaginário foi uma tentativa de desconstruir o sentido
científico e racional do projeto. Apoiado pelos estudos da fenome-
nologia de Bachelard, percebi o potencial do campo do imaginário
como construtor de um pensamento criativo que permitia rachaduras
no próprio processo de projeto. Como consequência desses ensaios,
investi na desconstrução do sentido totalizante que o projeto, na sua
forma tradicional, encaminha cada vez que designa. O outro desvio,
foi pelas metodologias, especulando por algumas estruturas e procedi-
mentos, conscientemente, provisórias. Esse caminho produziu alguns
ruídos naquilo que parecia ser um percurso certo de projeto, o consenso.
A todo momento, buscava-se o atrito, a estruturação do projeto pela
diferença. A diferença me levou a um tipo de pensamento que se or-
ganizava pela desconstrução das certezas de sentido. Essa especulação

89
teórica se alimenta no campo da arte e da filosofia, principalmente
de origem francesa, utilizando como interlocução o pensamento de
Michel Foucault, Jacques Rancière, Gilles Deleuze, Félix Guattari,
Georges Didi-Huberman, e mais recentemente, Jacques Derrida.
A intenção é vincular o conhecimento da filosofia da arte e da cultura
como instrumento de leitura da cidade com os saberes sobre o projeto
como produção de pensamento. As pesquisas que suportam essa dis-
cussão tecem essa urdidura entre ambos os campos da filosofia da arte e
do projeto, produzindo um deslocamento – do pensamento da filosofia
para uma filosofia mais operativa e do projeto como técnica para o pro-
jeto como pensamento. Ao transitar por esse entre campos se produziu
um olhar sobre o projeto que desconstrói o sentido de consenso. Esse
olhar se estrutura como uma sobreposição de diferentes narrativas, no-
meadas por mim de “projeto por cenários”. O projeto por cenários são
representações do conflito e da diferença presentes na esfera sensível da
realidade expressa no espaço público. Portanto, constituída no e pelo
que é público. É o espaço entre os espaços construídos de domínio pri-
vado. É sobre esse espaço entre que minhas investigações se debruçam.
É nessa disputa por essa dimensão pública que venho posicionando
minha lente. O motivo que recai, então, sobre este ensaio teórico, é
produzir um estranhamento sobre o “conceito de genius loci”, ajudado
pelo pensamento de Derrida sobre a desconstrução. O “genius loci” é
um conceito romano. Segundo uma antiga crença romana cada ser
independente tem seu gênio, seu espírito guardião. Esse espírito dá
vida às pessoas e aos lugares, os acompanha desde o nascimento até a
morte, e determina o seu caráter ou essência. [...] O gênio indica, as-
sim, que uma coisa é, ou o que “quer ser” [...]2. É sobre essa designação
presente nesse conceito que a crítica deste artigo se ocupa.

O reconhecimento de um “espírito do lugar”, o genius loci


Mesmo correndo o risco de ser reducionista, é possível pensar o sen-
tido de projeto marcado por duas fortes correntes: uma, apoiada em
uma “visão racionalista”, vê o projeto como uma resposta a um proble-

2 NORBERG-SCHULZ, Christian. Genius loci: towards a phenomenology of


architecture. New York: Rizzoli, 1980, p.18.

90
ma que pode ser generalizado à diferentes contextos, produzindo uma
idealização a partir de pressupostos genéricos – esta abordagem tem na
mente sua figura emblemática; outra corrente, apoiada em uma “visão
fenomenológica”, vê o projeto como uma representação que reconhece
o valor do lugar, respeitando o existente e as condições do próprio con-
texto – esta abordagem tem no corpo sua figura emblemática.
Na racionalista, a mente expressa a visão totalizadora, distante, que não
reconhece as particularidades do sítio, privilegiando as grandes linhas
estratégicas e o sentido global. O sentido global é dado por valores que
estão para além da situação concreta e são marcados por categorias que
expressam e organizam qualquer espaço, independentemente de seu
contexto histórico. Na fenomenológica, o corpo, ao contrário, expressa
a visão curta, situacionada, tática, experimental, construindo um ponto
de vista a partir dele. É através da lógica do movimento corporal que
as linhas, não mais estratégicas, mas táticas, se organizam. O sentido
local é dado por relações e categorias que se arranjam a partir de um
ponto (o corpo) localizado em um espaço determinado historicamente.
Sobre a visão racionalista, expressa nos valores da Carta de Atenas,
muito já se produziu de crítica, principalmente ao longo da segunda
metade do século XX. A principal crítica que recai sobre essa aborda-
gem é o esvaziamento do “sentido de lugar”. Essa crítica tomou várias
formas, mas podemos sintetizar através dos seguintes pensadores: Jane
Jacobs, com a dimensão social do espaço; Christopher Alexander, com
a crítica à hierarquia do modelo racional; Kevin Lynch, com a percep-
ção do espaço e as questões de orientabilidade e de inteligibilidade;
Aldo Rossi, com os valores históricos; Léon e Rob Krier, com a valo-
rização do lugar e os estudos tipológicos; Christian Norberg-Schulz,
com a valorização de um espírito do lugar; Yi–Fu Tuan, com os estudos
sobre espaço e lugar; para ficar entre os principais fenomenologistas.
A intenção aqui, neste ensaio, não é fazer um recorrido histórico sobre
essas vertentes de projeto, mas debruçar-se sobre o sentido de “genius
loci” ou de um “espírito do lugar” que surge como argumento principal
dentre todas essas abordagens fenomenológicas. Diferente das estraté-
gias apoiadas em “verdades genéricas” ou “valores de projeto”, o genius
loci nasce em um contexto de crítica da falta de sentido particular que

91
esses projetos constroem, ou melhor, não constroem. As reflexões sobre
o genius loci surgem de maneira estruturada nos meados do século XX
como uma forte crítica ao esvaziamento de sentido atribuído aos es-
paços públicos pelo projeto racionalista. Dentre esses pensadores, que
seguiram a vertente fenomenológica, gostaria de investigar o sentido
de genius loci através do pensamento de Christian Norberg-Schulz. Ele
talvez tenha sido o teórico que mais se debruçou sobre o “significado
dos lugares” através de suas derivações semânticas: identidade, caráter,
vocação, espírito do lugar e genius loci. A partir das distinções entre
espaço e lugar, Norberg-Schulz afirma que “um lugar é um espaço que
apresenta um caráter distinto. Desde tempos remotos, o genius loci, ou
“espírito do lugar”, tem sido reconhecido como a realidade concreta
que o homem tem de enfrentar a fim de adequar a seu cotidiano”3. Di-
ferentemente do espaço, que é por definição uma dimensão abstrata, o
lugar carrega consigo uma certa estabilidade, sendo essa dada pelo sen-
tido de estar em uma situação definida. O lugar produz significado. A
principal crítica à abordagem racionalista é o fato de que a organização
física das cidades é toda pensada por relações abstratas espaciais e não
há diferenciação situacional. O sentido de lugar é menos contemplado
do que um sentido de amplitude produzido por essas relações espa-
ciais. Nessa perspectiva e por contraponto, a noção de lugar expressa
pelo genius loci funciona como o “carro chefe” da vertente fenomeno-
lógica. Norberg-Schulz busca através desse conceito, pautar a noção de
um espaço existencial, ou seja, trazer, para a dimensão abstrata, o cor-
po em situação. Assim, a arquitetura funcionaria como a concretização
desse espaço existencial, a partir do momento em que o ser humano se
sente “habitando” um lugar.
É meritório o fato de Norberg-Schulz buscar um valor cultural para
o sentido de lugar expresso por genius loci como algo que vincula e
dá sentido à existência humana no espaço imediato. Nessa acepção
em que o ambiente influencia o ser humano, a busca por valores ex-
pressos na arquitetura do lugar passa a ser um foco de projeto. Para
ele, o lugar tem um caráter, uma atmosfera geral. Por um lado, é um

3 NORBERG-SCHULZ, Christian. Genius loci: towards a phenomenology of


architecture. New York: Rizzoli, 1980, p.5.

92
conceito mais geral e mais concreto do que espaço e, por outro lado, é
a forma específica e a sua essência é definida por elementos espaciais.
Ou seja, o caráter diz como as coisas são, trazendo os valores para uma
situação concreta no cotidiano. Se, indiscutivelmente, há mérito nesse
enfoque, há também um perigo reducionista, que, por vezes, deriva
disso. Falar em genius loci, associado a caráter, vocação, identidade nos
remete a pensar o espaço urbano como portador de uma essência que
dá e garante o “sentido de lugar”, e, como diz Norberg-Schulz, “o ato
básico da arquitetura é compreender a “vocação” do lugar”4.
A questão que se desdobra aqui é: quem compreende a vocação do
lugar? Que poder é esse que o arquiteto tem de desvelar o sentido do
lugar? Pensar nessa direção, recobre o sentido de espaço público. O
espaço, justamente por ser público, não tem um único sentido, mas
uma multiplicidade de valores que se sobrepõem e que, por muitas
vezes, se apresentam de maneira contraditória. Se podemos falar em
“essência”, é da essência do lugar o “conflito”, ou seja, a diferença. A
perspectiva do genius loci posiciona o ser humano no espaço, dando
a ele um lugar, mas esse lugar é carregado de diferenças. Portanto, é
imperativo desconstruir uma noção redutiva de “genius loci” para ser
possível pensar o projeto do espaço público como espaço de alteridade.
O genius loci posiciona o corpo e dá sentido de lugar, mas não esque-
çamos que esse lugar só se efetiva na presença do outro; e é justamente
na presença do outro e no compartilhamento da diferença que o lugar
se expressa como público. É preciso lembrar, a partir do pensamento
de Lefebvre que o espaço público, infelizmente, não está só carregado
simbolicamente pelo seu “valor de uso”, mas pelo seu “valor de troca”,
ou seja, pelo valor econômico do espaço. Não há como não olhar para
esse aspecto do espaço, sobretudo se considerarmos que a atualidade
está fortemente marcada pela lógica de mercado. Com isso, é preciso
estar atento para as diferentes visões que estruturam o espaço, pois
talvez o espírito do lugar possa recair na lógica do mercado. Mesmo
que se possa acreditar que a cidade e sua cultura estão para além das
relações de mercado, ainda assim, não é possível fechar o sentido de

4 NORBERG-SCHULZ, Christian. Genius loci: towards a phenomenology of


architecture. New York: Rizzoli, 1980, p.23.

93
lugar em uma única visão. E isso é um risco. Sempre é possível que a
lógica do capital utilize o senso comum de genius loci para mascarar os
interesses de determinado segmento social. Há uma infinidade de pro-
jetos de “revitalização” que seguem nessa direção. Com o discurso do
resgate da memória, da cultura, de um espírito do lugar, esses projetos
se organizam com foco no capital externo, privilegiando o estranho em
detrimento do habitante local. Dessa maneira, o sentido de projeto não
pode ser esse que busca um valor essencial, designando um caráter, mas
aquele que expõe a diferença, muitas vezes, expressa no e pelo conflito.
O projeto de um espaço, qual seja, deve ser aquele que se organiza pelo
reconhecimento das diferenças como camadas de um palimpsesto.
A crítica ao conceito de genius loci feita aqui só é tomada no sentido
de redução da existência das diferenças do espaço público. É preciso
marcar que o sentido de genius loci como um sentido de lugar não está
sendo questionado, mas acima de tudo, a critica recai sobre o excesso
de simplificação que esse conceito induz quando emparelha com voca-
ção, identidade e caráter. A maneira de operar essa critica, neste ensaio
teórico, será feita pela noção de desconstrução em Derrida.

Um sentido de desconstrução pelo pensamento de Derrida


A tentativa aqui é, através da ideia de desconstrução de Derrida, possi-
bilitar o rompimento da linearidade e desse emparelhamento do con-
ceito de genius loci com noções de vocação, identidade e caráter. A
intenção é estabelecer um “pensamento de projeto” que se construa pela
diferença e não pelo consenso apoiado na imagem da vocação do lugar
ou de uma essência a ser encontrada e valorizada. O genius loci não
deve ser visto como algo que se busca como uma “origem”, mas como
um sentido que se constrói para ser e estar no mundo, em um lugar. E
esse ser e estar no mundo significa lidar com o outro, com a alteridade.
Esse sentido de alteridade é aquele em que se insere a ideia de um
compartilhamento do espaço com o outro, ou seja, o outro em mim é a
própria “essência” do lugar. “O primeiro acolhimento é acolher a ideia
do próprio acolhimento, incluir o outro, pensar a partir do outro, para
que se possa restabelecer uma ética da arquitetura; abrir espaço, dar

94
passagem à chegada do outro”5. É esse sentido de compartilhamento
e não de convencimento do outro que se busca no projeto – é a pers-
pectiva do “estar-aberto-para-o-outro”. É esse sentido de estar juntos
que surge no pensamento de Derrida. “A desconstrução não consiste
simplesmente em dissociar, desarticular ou destruir, mas em afirmar
um certo “estar juntos”6. É justamente esse estar juntos que permite
um movimento de construção com o outro, portanto, compartilhada,
corresponsabilizada. Derrida nos lembra que a invenção e o surgimen-
to só são possíveis questionando as fundações e as suas bases. Não há
espaço para a invenção sem esse movimento. “A invenção supõe uma
indecidibilidade; ela supõe que em um dado momento não haja nada.
Fundamos com base em uma não fundação. Assim a desconstrução é a
condição da construção, da verdadeira invenção, da verdadeira afirma-
ção que mantém alguma coisa junta, que constrói”7.
É possível derivar, a partir do pensamento de Derrida, que o caminho
do sentido de projeto é inverso ao do encontro com a essência do lugar.
Não há essência. E se há retorno, não é para afirmar um sentido único,
mas para dar início a um movimento de construção de novos sentidos.
Por esse ponto de vista, pode-se considerar que “a desconstrução não
é uma metáfora, pois é um trabalho que, em arquitetura, possibilita
a inversão e o deslocamento do sentido da própria construção como
significante, de seus motivos estruturais, seus esquemas, suas intui-
ções, conceitos e retórica”8. O movimento aqui é de abrir, achar as
fendas, encontrar com os restos. Projetar nesse caminho significa não
se entregar aos primeiros sentidos que vão surgindo como fechamento,
mas permitir visualizar pontos de conflito. Esses pontos de conflito
funcionam não para paralisar o processo, mas para aumentar o nível

5 FUÃO, Fernando; BECKER, Rufino. Arquitetura do porvir: por vir uma


arquitetura. in: VASCONCELLOS, Juliano; BALEM, Tiago (orgs.). Bloco (10):
ideias sobre futuro. Novo Hamburgo: Feevale, 2014, p.43.
6 DERRIDA, Jacques. Pensar em não ver: escritos sobre a arte do visível. Floria-
nópolis: Editora da UFSC, 2012, p.51.
7 Op. Cit.; p.51.
8 SOLIS, Dirce; FUÃO, Fernando (orgs.). Derrida e arquitetura. Rio de Janeiro:
Editora UERJ, 2014, p.25.

95
de complexidade e de acolhimento das diferenças já na trajetória do
projeto. A designação que está na base do conceito de projeto e expresso
pela palavra design deve ser relativizada e aberta. Não há um desígnio
a ser incorporado, mas a ser compartilhado desde sempre em um pro-
cesso de costura ou de ranhura. Os nós, mesmo os mais conflitivos,
fazem parte de uma certa indecidibilidade. A indecidibilidade é a con-
dição da desconstrução. Dirce Solis nos ajuda a compreender a noção
de indecidibilidade na perspectiva da desconstrução. Na sua leitura,
o indecidível não é aquilo que se coloca como impasse, como limite
do impossível, como ponto limítrofe de chegada, mas, acima de tudo,
como impulso. “Para a desconstrução, o indecidível, ao contrário, tal
como o impossível, é ponto de partida, é aquilo que permite a saída
para a busca da decisão ou do possível”9.
Esse ponto sublinhado por Solis é vital para o pensamento de projeto.
O reconhecimento do conflito (aqui estou equiparando ao conceito de
indecidível) como potência permite abrir o projeto para o outro, a um
qualquer, qualquer outro. Em geral, o conflito é visto como impasse e
como impossibilidade do diálogo. No entanto, se localizarmos o con-
flito no projeto como ponto de partida possibilitamos que se inicie um
processo de conversação e de abertura para a efetivação da alteridade.
A abertura para o outro permite a existência de outras narrativas que
vão, ao longo do processo, ganhando espessura como construção. E
isso tem um valor ético-político definitivo no estabelecimento de uma
lógica de projeto mais aberto. Falar em postura ético-política permi-
te ir ao encontro de outros discursos, de identificar nos espaços em
branco, nos lapsos, oportunidades de criação conjunta, afirma Haddo-
ck-Lobo. Para ele, “há uma necessidade de se olhar tanto o não-dito
como aquilo que está expressamente dito em um texto, pois aquilo que
está excluído, recalcado, reprimido, violentado em um texto constitui
uma peça tão valiosa à análise filosófica como aquilo que se expressa
positivamente”10. Haddock-Lobo chama a atenção para essa dimen-
são ético-política presente nos discursos, expressos pelos textos, mas

9 OP. Cit.; p.22.


10 SOLIS, Dirce; FUÃO, Fernando (orgs.). Derrida e arquitetura. Rio de Janeiro:
Editora UERJ, 2014, p.28.

96
é possível construir uma analogia com o projeto desde que se consi-
dere também este como narrativa – ou seja, o projeto é uma narrativa
que se constrói sobre determinado espaço. E como tal, não pressu-
põe uma única narrativa, mas como ele lembra, existe nas narrativas
os não-ditos, ou ainda, aquilo que é recalcado ou, evidentemente, o
que foi excluído do ponto de atenção do projeto. Derrida opera com
esses não-ditos, com o que resta de uma narrativa para além do que
se constrói como consenso. Cragnolini considera “Derrida como um
“pensador do resto”. Mas é importante reforçar que o sentido de resto
não é aquele que sobra de um discurso consensual, mas, justamente
pelo contrário, é aquilo que não permite o fechamento. “Resto” é “o
que impede a totalização”, o fecho dialético na síntese. O resto não é
o que “falta” de uma totalidade, uma vez desconstruída e desmontada
em suas capas conceituais, se não aquele que impede que a totalidade
se feche”11. Nota-se que Cragnolini ao dizer: “se não aquele que impe-
de...” ressalta o papel do outro no pensamento de Derrida. O sentido
de resto parece se perder nos processos de projeto. O projeto vai se en-
caminhando a uma síntese muitas vezes acompanhado e justificado por
um certo sentido de genius loci que não coaduna com outras narrativas
possíveis. “Ao perturbar uma estrutura, o pensamento desconstrutivo
não visa puramente a uma inversão, a uma desordem, mas aponta para
as fraturas e incongruências já inerentes ao que se apresenta de forma
harmônica e solidificada”12.
A crítica posta ao longo deste texto ao genius loci é aquela que expressa
um caminho a uma totalização, àquilo que se busca como uma essência.
Nesse sentido da totalização, não há resto no genius loci. Diferente-
mente disso, este ensaio tenta construir outro sentido de projeto que
reconheça o resto, que permita a existência das frestas, e que inclua a
alteridade como valor máximo do projeto. É nessa direção que se pen-
sa o projeto como abertura para o outro, como possibilidades, como
cenários possíveis.

11 CRAGNOLINI, Mônica. Pensar, tremer, desconstruir. In: Dossiê Jacques


Derrida, Revista Cult, no. 195, outubro de 2014, p.35
12 SERRA, Alice. Arte e imagem sob os olhares da desconstrução. In: Dossiê Jac-
ques Derrida, Revista Cult, no. 195, outubro de 2014, p.38.

97
O “projeto por cenários” como desconstrução do “genius loci”
O projeto é um movimento de criação em uma situação presente. O
projeto regulado pelo genius loci, vai ao passado identificar seus va-
lores para resgatá-los como origem; ao contrário, o projeto em uma
perspectiva de cenários vai a um futuro como possibilidade de operar
no presente. Pensar através dos cenários pressupõe um deslocamento
temporal para operar no presente. No entanto, há significativas dife-
renças nessa abordagem por cenários, cabendo aqui uma explicitação
de algumas delas para podermos distinguir qual o sentido aqui aplica-
do. Existem algumas linhas de pensamento por cenários, mas podería-
mos resumí-las em três.
A primeira concepção é aquela que constrói cenários futuros para cor-
reção de rotas nos processos de planejamento inicial. O futuro é visto
como tendência e as imagens produzidas nos cenários retroalimentam
o processo presente, alterando o modelo mental inicial – este tipo de
cenário é muito utilizado pela abordagem do planejamento estratégi-
co, tanto em empresas como no âmbito da administração pública na
definição de planos urbanos e regionais.
A segunda concepção é aquela que, frente a uma dificuldade presente,
reconhece valores e atributos do espaço, e acima de tudo, competên-
cias sociais que precisam ser arranjadas e organizadas através de um
processo de projeto a fim de produzir algo – este tipo de cenário é
muito utilizado em processos de projeto de design com comunidades
e/ou com a construção de sistemas-produto, ou seja, pensar o produto
em toda a sua cadeia de valor – da produção ao consumo.
Nessas concepções, os cenários são projetados, ou seja, funcionam
como “fim”. Portanto, são “projeto de cenários” e operam com o senti-
do de futuro previsível, como meta esperada – há uma lógica de orga-
nização de um pensamento em direção a um futuro. Assim, os cenários
ficam reduzidos a um único cenário ideal ou possível.
Diferentemente dessas concepções que buscam “o” cenário, a proposta
defendida neste ensaio utiliza os cenários como “meio” e não como
um fim desejado. Então, nesta abordagem, os cenários são meios nos
quais o projeto se apoia e faz pensar. É “projeto por cenários”. Esse
movimento marcado pela preposição “por” evidencia a existência de

98
um pensamento que se constrói pela diferença expressa pelos cenários.
Portanto, esta terceira concepção, vai de encontro às duas abordagens
anteriores, no que diz respeito ao efeito que a noção de antecipação
produz no sentido de futuro como causa e efeito. “O futuro é diferente
do porvir. O futuro se assenta em uma base provável, enquanto a ideia
de porvir se baseia numa impossibilidade, aquilo que vem a transfor-
mar o estado do presente de um modo radical”13.
Dessa maneira, opta-se pelo conceito de porvir para operar no projeto
por cenários, pois este permite romper o sentido causal expresso no
sentido de futuro. O porvir é aquilo que nos arrebata e que nos deslo-
ca das certezas e das designações do projeto. Nesse fluxo, produzem
rachaduras, verdadeiras possibilidades de ir ao encontro do outro, de
se deixar ver por outra lente. Isso só é possível se a produção da fis-
sura é feita a partir de um desejo utópico. O utópico funciona menos
como uma idealização futura representada por um projeto e mais como
produção de uma visualização das diferenças localizadas no momento
presente. Sousa espera que a função da utopia seja “resistir aos impe-
rativos do consenso que cada vez mais o laço social nos impõe”14. Po-
demos reconhecer nisso, o caráter político do sentido da utopia locali-
zado na situação presente. Portanto, “as utopias sempre foram ficções
conscientes de sua função de acionar o espírito crítico da consciência
de um determinado tempo”15.
É justamente esse senso crítico que o projeto por cenários busca – a
desconstrução do consenso presente. Talvez a melhor definição para
esse tipo de utopia seja a “heterotopia” de Foucault. Para ele, este tipo
de utopia tem um “lugar preciso e real”. É um “espaço outro”. “Não se
vive em um espaço neutro e branco; não se vive, não se morre, não se
ama no retângulo de uma folha de papel. Vive-se, morre-se, ama-se
em um espaço quadriculado, recortado, matizado, com zonas claras
e sombras, diferenças de níveis, degraus de escada, vãos, relevos, re-

13 SOLIS, Dirce; FUÃO, Fernando (orgs.). Derrida e arquitetura. Rio de Janeiro:


Editora UERJ, 2014, p.36.
14 SOLIS, Dirce; FUÃO, Fernando (orgs.). Derrida e arquitetura. Rio de Janeiro:
Editora UERJ, 2014, p.14.
15 SOUSA, Edson. Uma invenção da utopia. São Paulo: Lumme Editor, 2007, p.21.

99
giões duras e outras quebradiças, penetráveis, porosas”16. Esse “olhar
outro” que Foucault resgata pela heterotopia nos ajuda a reconhecer as
fraturas do sistema consensual e rompe com uma noção simplificada
de utopia que ao idealizar o futuro tenta representá-la. O projeto por
cenários é carregado de outro tipo de utopia, daquele que funciona
como “impulso de desejo”, daquilo que tem potência de romper com as
certezas presentes, daquele que alastra o sentido de presente em dire-
ção à sua própria impossibilidade, que faz furo no presente, que operar
pelo porvir. O pensamento que está na fundação do projeto por cená-
rios é tanto menos utópico no sentido ideal quanto é resolutivo, e se
expressa muito mais pelo paradoxo (pelo conflito). Estamos propondo
aqui, um rompimento com um modelo mental que preza a linearida-
de e busca o consenso. Estamos falando de um processo que constrói
condições da existência de outros olhares pelo dissenso; da inserção
das diferentes narrativas que se expressam sobre o lugar de projeto,
considerando as diversas facetas de composição da vida urbana. Então,
o projeto por cenários produz, conscientemente, no atrito a própria
“essência” da ação projetiva. Mais do que construir cenários utópicos,
estamos pensando em cenários que constroem heterotopias, espaços
outros. Essas fraturas se assemelham à potência de leitura produzida
pelo “Atlas Mnemosyne” de Aby Warburg. Didi-Huberman recupera
o valor hermenêutico das imagens organizadas em pranchas do Atlas
de Warburg. Nesse Atlas, as imagens são expostas em um campo vi-
sual sem uma organização direta e explícita, compondo um grande
painel, nomeado de pranchas. Nota-se que as imagens não tem valor
em si, mas permitem uma leitura relacional – cada uma em relação às
outras. “Há de fato uma estrutura em obra nas imagens dialéticas, mas
ela não produz formas bem-formadas, estáveis ou regulares: produz
formas em formação, transformações, portanto efeitos de perpétuas
deformações. No nível do sentido, ela produz ambiguidade”17. Ele cha-
ma atenção ao fato de que o Atlas é estruturado por “princípios móveis

16 FOUCAULT, Michel. O corpo utópico, as heterotopias. Pósfácio de Daniel


Defert. São Paulo: n-1 edições, 2013, p.20.
17 DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. São Paulo:
Editora 34, 2010, p.173.

100
e provisórios”, o que permite que a leitura seja aberta buscando outras
relações, além daquelas que estão aparentemente expostas e que em
um primeiro momento nada parecia emparelhar.
Uma maneira de construir um pensamento por cenários, é essa que
ocorre através da utilização de imagens fotográficas que representam
a situação em conflito. As imagens são postas em uma situação de
emparelhamento dialético, ou seja, as imagens valem pelo tensiona-
mento que geram no espaço entre elas. É exatamente no entre e não na
imagem que o sentido se constrói. Esse conjunto de imagens formam
um campo semântico no qual o sentido da área de projeto começa a se
delinear, mas sempre em tensionamentos e por rachaduras. As racha-
duras permitem a leitura do entre.
As imagens ou o conjunto delas funcionam como pontos de parada,
como estações que permitem que o sentido ocorra no trajeto entre uma
estação e outra. Os campos semânticos nunca podem ser lidos como
uma cena desejada ou idealizada, menos ainda como representação de
uma previsão futura, mas esses conjuntos constroem um porvir. As
imagens não valem como uno, mas no seu conjunto, formando uma
multiplicidade. O sentido de multiplicidade não é aquele que a um ele-
mento original se acresce mais um, pelo contrário, é na expressão “n-
1”, posto por Deleuze e Guattari, que identificamos a multiplicidade.
Ou seja, não é pelo acréscimo, mas pela anulação do significante que
o sentido se põe. A imagem serve ao sentido menos na unidade e mais
na composição. Para Deleuze e Guattari, “é preciso fazer o múltiplo,
não acrescentando sempre uma dimensão superior, mas, ao contrário,
da maneira simples, com força de sobriedade, no nível das dimensões
que se dispõe, sempre n-1 (é somente assim que o uno faz parte do
múltiplo, estando sempre subtraído dele) ”18.
Essa multiplicidade tem o mesmo efeito de sentido produzido pelo
Atlas de Aby Warburg. Os limites das unidades se perdem em favor de
uma construção de conjunto. “Inventa, entre tudo isso, zonas inters-
ticiais de exploração, intervalos heurísticos. Ignora deliberadamente
os axiomas definitivos. Corresponde a uma teoria do conhecimento

18 DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofre-


nia. São Paulo: Editora 34, 2009, p.15.

101
exposta ao perigo do sensível e a uma estética exposta ao perigo da dis-
paridade”19. Os axiomas representados por polaridades, pela prancha,
ou pelo quadro, ou no Atlas, são estruturas temporais e topológicas
– relacionais. Elas nos permitem uma leitura transversal, a fim de des-
cobrir vínculos que inicialmente não seriam possíveis. É, portanto, na
capacidade de rachaduras que essas montagens têm seu valor. Assim, o
projeto por cenários se alimenta desses “entre imagens”. É no intervalo
entre as imagens que o dissenso surge como potência de projeto.

Últimas divagações
“Arquitetura significa visualizar o genius loci, e a tarefa do arquiteto é
a criação de lugares significativos, pelo qual ele ajuda o homem a ha-
bitar”20. Quem sabe possamos reescrever esta citação e dizer que: Ar-
quitetura não significa visualizar o genius loci, mas os diferentes sentidos
do lugar, e a tarefa do arquiteto não é a criação de lugares significativos,
mas de produzir diferentes narrativas sobre o lugar, pelo qual ele ajuda o
homem não a habitar, mas a coabitar com o outro... ou ainda, o genius loci
é o outro que habita em mim.

19 DIDI-HUBERMAN, Georges. Atlas ou a gaia ciência. Lisboa: KKYM, 2013.


20 NORBERG-SCHULZ, Christian. Genius loci: towards a phenomenology of
architecture. New York: Rizzoli, 1980, p.5.

102
Referências Bibliográficas
CRAGNOLINI, Mônica. Pensar, tremer, desconstruir. In: Dossiê Jacques Derrida, Revista Cult,
no. 195, outubro de 2014.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. São Paulo:
Editora 34, 2009.
DERRIDA, Jacques. Pensar em não ver: escritos sobre a arte do visível. Florianópolis: Editora
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DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. São Paulo: Editora 34, 2010.
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REYES, Paulo. Quando a rua vira corpo: ou a dimensão pública na ordem digital. São
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REYES, Paulo. The scenario is not a space-place is a time-place. In: Proceedings of the 5th Inter-
national forum of design as a process - the shapes of the future as the front end of design driven
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Planejamento e Insurgências. Belo Horizonte: Enanpur, 2015. v. 01. p. 01-14.
REYES, Paulo. Projeto por cenários: o território em foco. Porto Alegre: Editora Sulina, 2015.
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Cult, no. 195, outubro de 2014.
SOLIS, Dirce; FUÃO, F. (orgs.). Derrida e arquitetura. Rio de Janeiro: Editora UERJ, 2014.
SOUSA, Edson. Uma invenção da utopia. São Paulo: Lumme Editor, 2007.

103
Figura 1 - Armário e cadeado – Delfos/PUCRS.
104
A maldição do arconte

Ricardo Araújo Barberena


105
Quebrava os dentes. As mãos, [cortava] daqui para cima
Paulo Malhães, coronel reformado do Exército

Tilintar de chaves me incomoda até hoje


Antonio Espinosa

Dois meses depois da minha prisão e já dividindo a cela com outras presas,
servi de cobaia para aula de tortura”
Dulce Pandolfi


I. Meu devir arcôntico
Em março de 2013, assumi a coordenação executiva do Delfos - Espaço
de Documentação e Memória Cultural na Pontifícia Universidade Cató-
lica do Rio Grande do Sul (PUCRS). O nome do espaço faz referência
ao Oráculo de Delfos, situado na cidade de mesmo nome na antiga
Grécia, no qual as sacerdotisas, conhecidas como Pitonisas, profetiza-
vam em uma espécie de transe. O antigo povo do Mediterrâneo tinha
tanta fé em tais profecias que nenhuma decisão era tomada sem antes
consultar o Oráculo de Delfos. No entorno do oráculo estavam peque-
nas capelas que abrigavam thesaurus, donativos e ex-votos, frequen-
temente valiosos, como é o caso dos tesouros de Siracusa, Cirenea,
Sifnos entre outros. Assim sendo, o Delfos/PUCRS recebeu o nome
de Delfos exatamente por abrigar diversos tesouros. Nesse espaço aca-
dêmico é possível encontrar documentos referentes às áreas de Letras,
Artes, Jornalismo, Cinema, História e Arquitetura. Ainda cabe res-
saltar que esse centro de pesquisas abriga raridades, como originais de
livros, correspondências de autores, fotografias, documentos pessoais,
como óculos e vestimentas, livros com anotações particulares, plantas
de arquitetura, jornais antigos, quadros etc. Já no meu primeiro, na
nova função, recebi uma chave.
Tratava-se do cadeado de um armário que somente o coordenador po-
deria abrir. E o que havia no seu interior? Um diário de Caio Fernando
Abreu que deveria ser mantido guardado sem a possibilidade de leitura
pelos visitantes. A minha responsabilidade era salvaguardar a memória

106
e a escritura de uma alteridade. Era preciso, a partir daquele exato mo-
mento, assegurar a não publicização do que havia sido produzido na
privacidade. Ninguém deveria violar um magma de confessionalidade
e intimidade que atravessava as páginas daquele caderno. A partir
daquele momento, também percebi que deveria decidir uma série de
exposições ou sigilos a respeito dos demais acervos (o Delfos conta com
40 acervos). O que poderia ser lido? O que seria disseminado? Quais
os entraves contratuais e éticos? Quando é preciso ouvir as famílias?
Uma constelação de perguntas invadiu o meu cotidiano universitário.
Acima de tudo, constatei algo intimidador e desafiador: transformei-
me num arconte.

Figura 2 - Capa do diário de Caio F. Abreu.

O conceito de arquivo deriva do arkheîon grego, como casa dos arcon-


tes, lugar onde os magistrados superiores detinham o poder político
de representar as leis. Essas autoridades interpretavam os documentos
depositados em suas casas. Nesse contexto histórico, os arcontes eram
os magistrados gregos, espécie de guardiães dos documentos oficiais.
Em seu sentido originário, o princípio arcôntico é começo e mandato,

107
lugar e lei (ethos). A casa dos arcontes marca a primeira passagem do
privado ao público, do segredo ao exposto. Pensado nesses termos, o
arquivo configura uma instância ou lugar de autoridade. Um arquivo
pressupõe, em geral, inscrições, marcas e a decodificação das mesmas.
Ou seja: negociam-se impressões no seu armazenamento e sua preser-
vação. Ele é um lugar de consignação (de reunião de signos). Para que
algo se torne arquivo, não basta o simples depósito em algum lugar (na
casa, por exemplo, do arconte).
O poder arcôntico deve ser também de consignação, de reunião, tal
como Derrida explicitou: consignar é designar uma residência, confiar,
por em reserva, em um lugar e sobre um suporte, reunindo signos;
coordenar em um único corpus, sistema ou sincronia todos os elemen-
tos que se articulam em uma unidade. “Num arquivo não deve haver
dissociação absoluta, heterogeneidade ou segredo que viesse a separar.
Compartimentar de modo absoluto”1.
A questão do arquivamento não é acidental, pois a tradição se cons-
titui pelos arquivamentos promovidos pelo poder e pelo arconte2. Se
algo não se diz imediato, caímos na dimensão do não revelado – do
confidencial – mas significa que exista necessariamente um ambiente
absolutamente privado: “O que quer dizer privado, o que quer dizer
público”3. O arquivo parece comportar uma relação com a hospi-
talidade. Se o arquivo é secreto, é possível exibir um segredo como
secreto? — pergunta Derrida4.
E eu, enquanto arconte, indago-me: Em que medida um arquivo pode
guardar para sempre um segredo? Talvez essa seja a grande maldição
do arconte. Esse habitante do limiar entre a memória e o esqueci-
mento – a visibilidade e o arquivamento – acaba por mergulhar em
tortuosos labirintos dos desfalecimentos da memória. Não há arquivo
sem consignação em algum lugar exterior que assegure a possibilidade

1 DERRIDA, Jacques. Mal de Arquivo: uma impressão freudiana. Rio de janeiro:


Relume Dumará, 2001, p.14.
2 Op. cit.; p.13.
3 Op. cit.; p.106.
4 Op. cit.; p.108.

108
da repetição, da reprodução ou da reimpressão. Mais ainda, o arquivo
implica – sobretudo – a constituição de uma instância ou de um lugar
de autoridade. O arconte transita numa pulsão de morte (silenciosa),
destruidora do arquivo. A cada dia nos deparamos diante uma força
arquiviolítica que se traduz na destruição (arquivamento) de um do-
cumento. Essa patologia do ocultamento e da amnésia pode ser re-
sumida pelo nome de mal de arquivo. Enquanto recalque e censura, a
prática arquival se articula num constante jogo de aparição e seleção.
Afinal, se não há memória sem suporte, também não há arquivo sem
arconte e sem recalques. Ou seja, em última instância, não há arquivo
sem mal de arquivo.

II. Pele das paredes


Ao visitar uma cela do DOPS-SP, em maio de 2013, deparei-me com
um cravo vermelho iluminado. Uma luz central potencializava o pro-
tagonismo daquele singelo e solitário caixote que servia de mesa para
uma insólita e performática pietà vegetal. O que poderia significar en-
tão aquela hipnótica instalação na qual se tornava possível flertar com
a dor da efemeridade de um sopro de querer-se-agarrar à vida? O que
estaria sepultado pelo tecido da escuridão? Quais seriam as narrativas
olvidadas por aquele feixe luminoso de amnésia e cegueira social?

Figura 3 - Sala do DOPS.

109
Motivado (talvez inconscientemente) por essas perguntas, continuei
caminhando até o sombrio final do cárcere. E foi ali juntamente no
macio silêncio da penumbra que se revelou uma série de estórias escri-
tas nas paredes. Como cicatrizes na pele das paredes, expunha-se um
enorme mosaico de micronarrativas sobre o cotidiano de trevas e ani-
quilamento humano. Era preciso transitar por um espaço onde a cla-
ridade não se fazia presente, percorrendo-se por uma territorialidade
que carecia de um farol de reconhecimento e reificação. Entre tantos
gritos petrificados no frio cimento, um deles, em particular, seques-
trou-me num doloroso processo de contemplação e desestruturação:

Figura 4 - Pegaram o meu bebê... para me ameaçar. Rose Nogueira.

A completa paúra daquela mãe parecia uma terrível paralaxe no tocante


à delicadeza e à sutileza do cravo cintilado. Mas para ouvir a dilaceran-
te súplica materna foi necessário contemplar a parede através de um
negrume. E aqui chego ao ponto principal dessa questão: para escutar
o desespero de Rose é imperioso que ativemos nossa sensibilidade con-
temporânea: “(...) contemporâneo é aquele que mantém fixo o olhar no
seu tempo, para nele perceber não as luzes, mas o escuro. Todos os tem-
pos são, para quem deles experimenta contemporaneidade, obscuros”5.

5 AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? E outros ensaios. Chapecó:


ARGOS, 2010, p.63.

110
Pensado nesses termos, o contemporâneo é, justamente, aquele que
sabe ver essa obscuridade, que é capaz de “escrever mergulhando a pena
nas trevas do presente”6. Mas curiosamente, talvez tristemente, o aces-
so aos arquivos militares ainda é um processo lento que deve ser tri-
lhado pelas recentes políticas revisionistas. Cabe ressaltar que o grito
de Rose está petrificado nas paredes, como uma espécie de fóssil do
trauma e da dor. De forma performática, existe, no DOPS, um armá-
rio que simula o fichário dos prisioneiros. Mas ali não encontramos os
verdadeiros arquivos. Existem apenas falsas fichas (para fins cênicos)
que simulam o nome dos prisioneiros. O efetivo acesso aos arquivos
dos porões da ditadura ainda é um fenômeno em construção e dissemi-
nação, agenciado pela Comissão Nacional da Verdade. Se visitarmos
a ESMA, conhecida como a Casa da Morte, em Buenos Aires, perce-
beremos uma radical distância quanto ao tratamento dos arquivos e da
memória traumática. No museu argentino existe uma ampla e irres-
trita exposição dos relatos dos perseguidos pelo terrorismo de Estado.
Vale aqui relatar algo da minha memória.
Quando visitei o DOPS estava acompanhado pela minha afilhada,
uma menininha de cinco anos, que, ao se deparar com o armário que
aparentava ser o fichário, falou, alegremente: “tio, é aqui que a gente
coloca nossas cartas? ”. Realmente ali havia folhas avulsas, com dados
exatos, mas imunes às estórias: um tipo de memória sem carne. Talvez
essa seja a melhor definição: cartas sem narrativização, sem enredos,
sem personagens. Apenas uma casca de lembrança. Somente nomes e
endereços, friamente elencados. Como se fossem cartas só com enve-
lopes, essas folhas estavam desprovidas de texto e efabulação do indi-
víduo. Diferentemente, ao visitar a ESMA, com minha esposa, houve
uma experimentação radicalmente oposta. Ao chegarmos no quarto
das grávidas, lugar onde os bebês eram tomados e as mães tortura-
das, a minha mulher ficou extremamente emocionada ao ouvir a voz
de uma mulher que relatava o sequestro do seu filho pelos militares.
Com os olhos marejados, ouvimos e assistimos, através de um vídeo
testemunhal, gravado e reproduzido nas paredes, a estória em tene-
brosos detalhes. Aquela mãe fazia-se presente em imagem e voz. Se

6 Op. cit.; p63.

111
pensarmos em termos argentinos e brasileiros, veremos a diferença no
tratamento da memória das mães que tiveram os seus filhos roubados.
Graças à pele das paredes ouvimos Rose. Um grito-fóssil sedimentado
no cimento. No entanto, opostamente, temos a narrativa testemunhal,
grávida de detalhes, da mãe argentina por intermédio de um arquivo
projetado na ESMA. A ênfase no resgate da memória violentada pos-
sibilita que as táticas de amnésia sejam reparadas frente ao protagonis-
mo de uma alteridade testemunhal.

Figura 5 - Minha afilhada e sobrinha, Luana, em frente aos fichários do DOPS.

III. Uma Arconte Profanadora


O que acontece quando quarenta operários mortos voltam ao seu lugar
de trabalho? Num primeiro momento, desconforto. Num segundo, a
reflexão sobre uma identidade que não foi levada em conta nos relatos
oficiais sobre a construção da nossa capital nacional. A obra de Ro-
sângela Rennó, ao trazer quarenta retratos em película ortocromática
e dez retratos em fotografia cor em papel resinado, instaura um espaço
no qual o ato de fotografar passa a ser entendido como a possibilida-

112
de de parar o fluir de uma imagem já concebida num dado mundo à
margem dos aparatos institucionais. Com o resgate desses arquivos da
exposição Imemorial, a artista consolida a fotografia como uma pos-
sibilidade de parar o tempo, como o meio de reter uma imagem que
não será mais esquecida pela memória, como um processo capaz de
reproduzir o feixe imagético que nos cerca e nos perturba, como uma
ilusão de ótica resultante de uma porção de manchas sobre o papel.
Esse póstumo retorno de um grupo de operários, que construiu aquela
mesma cidade onde são expostas suas próprias fotos como lápides de
uma morte agenciada, provoca uma ressurreição identitária no tocante
à visibilidade de pertencimentos sociais antes situados à sombra das
edificações do progresso nacional. Segundo a artista, “os mortos não
foram contados. As pessoas morriam muito novas. Uma coisa que me
impressionou era que havia muitas crianças empregadas”7. A exposição
é composta de cinquenta fotografias agrupadas em faixas horizontais:
Sendo as fotos dos mortos em preto sobre
preto, e as das crianças que trabalharam,
mas não morreram, em cores muito escu-
ras. Essas fotografias são feitas em filme
gráfico, cuja superfície, muito brilhante e
pintada de preto por trás, se torna então es-
pelho negro, indicativo do lugar de sombra
social em que esses narcisos experimentam
o desamor coletivo por si.8
Se esses registros fotográficos não fossem reingressados numa esfe-
ra de circulação simbólica e cultural, provavelmente tais represen-
tações não tivessem a oportunidade de desestabilizar uma narrativa
sobre a modernidade nacional. Sob os escombros do esquecimento e
da amnésia social, a apresentação desses retratos acaba por dissipar
uma certa névoa que impedia a exposição das condições subumanas
de trabalho num período de exaltação de uma nação erguida numa
magnífica arquitetura e no sangue – olvidado – dos seus operários.

7 RENNÓ, Rosangela. (1998) Rosângela Rennó. São Paulo: Editora da Univer-


sidade de São Paulo, p.172.
8 Op. cit.; p.172.

113
Documentar essas identidades tingidas em amargas cores faz emergir
uma angustiante e incômoda realidade que não pode ser mais esquecida
e negligenciada por um olhar compromissado com um não-fingir o
passado antes obscurecido pelo óleo dos quadros oficiais. Ao revistar
os arquivos de vida marginal, Rennó acaba por instigar um espectador
que se comporta como atuante no processo de re-elaboração dos va-
lores políticos e sociais, que, num passado não tão remoto e nem tão
entorpecido, eram alijados das discussões acerca da fundação de uma
brasilidade. Nesse sentido, mirar aquelas faces mortuárias é despertar
um fragmento retido do tempo que carrega o poder de interromper
uma metafísica do elogio ao avanço celebratório e pragmático. Velar,
em forma de arte, aqueles corpos, transforma a sala de exposição-pro-
testo-autópsia-epifania-monumento-obituário num lugar onde um
mero olhar voyerístico se torna incapaz de perceber uma complexa tra-
vessia de reminiscências e afetividades.
Como espelhos refratários e mortificados, essas cinquenta vidas em
preto e branco refletem um conflitante acesso à imagem da nossa iden-
tidade nacional, pois, nesse diálogo entre o observador e as feições dos
trabalhadores, revelam-se uma série de sensações reprimidas e escon-
didas no desencontro entre o aquilo fotografado e o aquilo que imagi-
návamos conhecer.
Mas essa pedagogia do refletir o que não foi refletido segue duas nuan-
ces diferentes: numa superfície muito escura, quase impenetrável, des-
pontam, taciturnamente, os olhares dos operários adultos que mor-
reram; e, em contraste, em papel mais claro, aparecem, tristemente
iluminados, os operários-crianças que não morreram. Assim proposta,
essa intermediação propõe um deciframento para um fenômeno con-
creto. Sob a penumbra do morticínio, as fotos dos operários adultos
estão enegrecidas pela obliteração de um futuro imediato, pois, na
forte opacidade fotográfica, permanece o traço da invisibilidade e da
marginalização. Como sentenças de uma pena de morte agenciada, os
registros fotográficos das crianças reproduzem um conjunto de identi-
dades eclipsadas pela negação dos direitos mínimos de ser/estar cida-
dão de uma determinada comunidade compartilhada.
Ao tentarmos decifrar tais imagens, estamos olhando para as fotogra-

114
fias não como processos óticos e químicos, mas, sim, como janelas. E,
nos contornos dessa janela, as fotos abrem espaços para uma realida-
de que é tão simbólica quanto as demais representações pictóricas do
mundo. Revisitando o que havia sido arquivado [ou calado], Rennó
reconstrói muitas janelas para uma esfera de experimentação encar-
cerada ao longo dos últimos anos. Essas janelas, ainda empoeiradas
nos morredouros burocráticos oficiais, agora, em Imemorial, merecem
ser abertas por um observador que contemple/decifre os significados
impressos atrás das suas superfícies, atrás das formas disformes de Bra-
sília, atrás dos relatos legitimados, atrás da nossa identidade nacional.

Figura 6 - Rosângela Rennó. Imemorial, 1994, fotografia, quarenta retratos em película orto-
cromática e dez retratos em C-print sobre bandejas de ferro e parafusos, letras de metal pintado
sobre parede. 60x40x2cm (cada fotografia). Vista geral da obra instalada na exposição Revendo
Brasília, Galeria Athos Bulcão, Teatro Nacional, Brasília. Fotografia de Silas Siqueira.

115
Mas não há como negar: é um movimento perigoso. Abrir janelas des-
conhecidas é olhar para paisagens desconhecidas. Nessa desafiadora
dança do olhar, a fotógrafa dá início a uma cadeia de símbolos [a mar-
gem] que codificam textos em imagens numa rede de metacódigos,
delineando-se um mundo pautado pela reconstrução de determinados
conceitos relativos à automaticidade da impressão de uma realidade
sobre a superfície do papel fotográfico. Com a exposição dessas fú-
nebres janelas, um dos maiores guetos eruditos, o chamado “museu”,
tem as suas paredes habitadas por identidades não compatíveis com
certas versões sobre a nossa narrativa de bem-estar e regozijo homo-
gêneo. As faces dos operários, num olhar de caça, encenam um teatro
humano permutado pela hesitação da aleatoriedade de uma vivência
experimentada na opressão e na clandestinidade imagética: um fosco
homem num fosco dia qualquer, uma estática criança numa estática
tarde qualquer, num minuto qualquer, num dia qualquer.
Expandir o banco de figurações nacionais torna-se um mecanismo de
reativação de áreas lacunares na negociação de uma brasilidade em
termos imagéticos: se essa funesta história não vir à tona na esfera
de circulação dos bens simbólicos, como podem os operários se ma-
nifestar enquanto atores sociais num cenário nacional corroído pela
maquiagem identitária? E como Rennó pode conceber essa interven-
ção através de fotografias que não passam de um amontoado de folhas
envelhecidas? É verdade: as fotos não se movem, tampouco falam.
Entretanto, essa subordinação a um suporte material arcaico – papel
ou coisa parecida – possibilita a fotografia ser um produto imagético
mutável e plural que concentra o seu valor na informação transmitida
e na sua objetividade residual.
Quando a sala de Imemorial se abre à visitação, concretiza-se mais uma
experiência que evidencia o ato de decifrar uma mensagem simbólica
excluída, todo aquele texto subliminar se transforma em imagens que
magicizam um tempo-espaço particular. No interior da abertura da-
quele novo canal de imagem, os cidadãos-espectadores começam um
longo [e lento] processo de des-arquivar os espelhos químicos e tec-
nológicos do filme fotográfico. E, aqui, não podemos deixar de referir
que os registros fotográficos, essas superfícies sobre as quais circula

116
o olhar, gozam de um status fisioquímico de credibilidade enquanto
incontestáveis fragmentos visuais de denúncia de uma experiência pas-
sada. Assim, trabalhar com a fotografia e com o sujeito excluído é um
caminho duplamente subversivo no tocante à materialização de uma
realidade antes desmaterializada pelas estratégias de regulamentação
da memória nacional.
Não há como negar que a fotografia, ao longo dos séculos, sempre foi
pensada como um testemunho de verdade perante os acontecimentos
sucedidos em determinada situação cotidiana, e, devido a essa legi-
timidade conquistada, muitos registros fotográficos passam a ser uti-
lizados para veiculação de ideias sob os mais variados propósitos, das
prosaicas comemorações de um aniversário aos desbotados arquivos
dos trabalhadores de Brasília. Nesse sentido, esses retratos dos ope-
rários, como lápides visuais, representam uma forma de comprovação
documental. Como um documento que descreve um dado contexto
sócio-histórico, Imemorial se encontra atravessada por uma rede de
ambiguidades resultantes de um jogo entre omissões calculadas e sig-
nificados não-explícitos, que, necessariamente, está aberto para um
novo olhar capaz de avaliar um certo potencial informativo no interior
de uma trama histórica e das suas particularidades – culturais, sociais,
econômicas, políticas, religiosas.
Daí se pode concluir que o tempo e o espaço, inscritos na obra de
Rennó, caracterizam-se como fortes indicadores dos desdobramentos
(culturais, políticos, sociais) que se materializam no microcosmo do
foco de uma lente perdida num presente distante e num passado atual.
Devido a sua condição de vestígio e aparência, a materialidade foto-
gráfica passa a ser avaliada como um documento concreto de represen-
tação. Isto é, em última instância, a pesquisa de Rennó se configura
através de dois binômios: documento/representação, quanto à natureza
do documento criado, e registro/criação, quanto ao ato de extrair ima-
gens. Além disso, poder-se-ia afirmar que Imemorial constituiu um ato
de sublevação contra o fluxo abrumador de fotos/identidades recusa-
das e arquivadas nos labirintos da cotidianidade. E é esta rebeldia que
se traduz de forma plural e multifacetada, fracionada como a memória
do seu observador:

117
Desde seus começos, no final da década de
1980, o trabalho de Rosângela Rennó desli-
za, ao mesmo tempo, pela elegância formal
e pela denúncia social. Através de obras que
evocam um acúmulo de sentidos pessoais,
sociais e culturais. Referências constantes ao
apagamento da identidade, à amnésia social
e às memórias familiares ou domésticas res-
soam em obras abertas e múltiplas interpre-
tações, nas quais o reconhecimento depende
do contexto cultural de cada um9.
Ao vasculhar esse perverso controle de uma invisibilidade não-simbo-
lizável, a fotógrafa acaba recortando e mixando diferentes documen-
tos iconográficos que revelam provas e indícios a serem requisitados
para o reconhecimento da emergência de novos pertencimentos de
identidade. Assim, trata-se de rastrear o ponto de partida, tangível
ou intangível, do objeto representado, [re]construindo-se a marca lu-
minosa deixada pelo referente na chapa fotográfica. Num movimento
de constante edição, esta perspectiva fotográfica busca uma seleção de
fragmentos visuais antes pertencentes à imutabilidade de uma tem-
poralidade [e espacialidade] obliterada pelo mofo dos arquivos ofi-
ciais. Sob esse viés de resgate, consolida-se a definição de um artefato
fotográfico como documento de uma referência sempre presente de
um passado inacessível. E, se admitirmos essa nova edição fotográ-
fica como a [re]iluminação de uma realidade antes obtusa, podere-
mos, então, conceber o assunto representado – o feixe de imagens dos
operários – como a face “aparente e externa” de uma micro-história
de um passado traçado em silhuetas visíveis e/ou obscuras ao globo
ocular humano. Em outras palavras, diríamos que as “escavações” de
Rennó não estão amalgamadas – unicamente – a uma determinada
verdade histórica, mas, sim, ao registro das aparências que habitam
um conjunto de contradições e paradoxos da paisagem humana: afinal,
essa investida fotográfica se caracteriza nas múltiplas interpretações,

9 MIRANDA, Wander. Cenas Urbanas. (2000) In: BIGNOTTO, Newton


[org]. Pensar a República. Belo Horizonte: UFMG, p.182.

118
nas plurais [re]leituras que cada observador produz na sua interação
social e cultural. Mas uma questão não pode passar despercebida:
esse ato de re-editar uma realidade é calcado numa intencionalidade,
numa posição político/estética, numa conduta ideológica... numa série
de escolhas que dirige uma tessitura imagética: o fora e o dentro [o
que será resgatado e o que continuará adormecido]. Aí, neste jogo
de montagens e recortes, reside a atividade de pesquisadora/fotógrafa/
colecionadora no tocante ao seu filtro técnico-cultural que acaba por
indicar um olhar interessado e compromissado com certos valores e
códigos. Nessa tensão entre o objeto olhado e o sujeito que olha, efeti-
va-se uma dimensão de mediação e ressignificação das imagens desar-
quivadas, e, paulatinamente, abre-se espaço para os filtros culturais e
identitários de cada observador presente naquele momento de diálogo
com o referente. Não há como se negar, portanto, a presença de um
lugar no qual o receptor integra os seus pertencimentos identitários e
discursivos ao instante de experimentação das imagens. Trava-se um
movimento de repulsa e/ou aproximação através de uma relação di-
ferencial: o retorno de uma imagem arquivada marcada pelo traço de
duplicidade do lugar do Outro.
Ao estabelecer esta zona de contato, Imemorial passa a constituir um
espaço permeado por identidades ambivalentes que entrecruzam for-
mações de afiliações plurais. Convidado a interagir com um grupo so-
cial relegado às “sobras da cultura”, o observador acaba se envolvendo
por uma incerteza que atesta a sua própria existência no corpo de iden-
tidade vivenciada nunca como um processo finalizado: afinal, os seus
pertencimentos identitários também estão sendo suplementados pelos
valores de uma outridade antes arquivada e distante do seu olhar. E,
assim, nessa desconcertante troca de olhares, presentifica-se um trata-
mento, quase que anestésico, para um torcicolo identitário que dirigia
o nosso campo de visão para só um lado do escopo nacional: aquele
lado míope quando se trata da leitura dos conflitantes fragmentos de
grupos minoritários. Com status de arte [ou de documento], a obra
de Rennó proporciona um afortunado trânsito de troca de imagens
entre os diferentes segmentos da comunidade nacional, isto é, o de-
sarquivamento fotográfico como um espelho da memória pressupõe o

119
reconhecimento de uma alteridade retida temporariamente. O que não
havia sido considerado digno de ser solenizado passa a ocupar lugar de
destaque nessa nova concepção de vasculha fotográfica e identitária.
Capacitada da faculdade de tornar o transitório em essencial, a foto-
grafia, num movimento de eleição e exclusão, pode ajudar a instaurar
uma suposta coletividade em nome da representação dos interesses de
uma realidade parcial – situada num contexto racial, sexual, classista.
Assim sendo, Imemorial se configura como o “calcanhar de Aquiles”
dessas possíveis generalizações presentes na imaginação de uma iden-
tidade coletiva, aliás, desde a sua invenção, a própria natureza foto-
gráfica acabou decretando a perda do controle e do gerenciamento da
reprodução de imagens num domínio público e privado. Perante essa
nova mobilidade das imagens trancafiadas e arquivadas, torna-se inú-
til o esforço de domesticar a fotografia, de calar o que fere e atrai, de
silenciar os gritos de uma morte anunciada; vã tentativa de cegar-se
diante aquilo que deve ser visto (mesmo que não seja sabido). Na ar-
queologia imagética de Rennó, o estatuto fotográfico ganha força na
sua capacidade de gerar escândalo e desordem entre os membros de uma
comunidade simbólica. Desenha-se uma fotografia, mais conturbada,
menos legitimada pela herança da cultura dominante, mais na escuta
dos silêncios das feridas da imagem. Instiga-se um olhar inquieto que
busca o despertar da intratável realidade. E é, neste convite ao entulho
dos arquivos, que pode explodir a imagem no rosto de quem a olha....
Sob uma aparência transitória, um fragmento do cotidiano é retalha-
do por um desejo de ver um extracampo de recalque, do detalhe que
mortifica e fere, do fantasma do daquilo que foi, dos turvos contornos
da face de um operário em rota de melancolia.
Essa colecionadora das sobras da cultura procura selecionar e guardar
aparentes excessos imagéticos – registros penitenciários, arquivos tra-
balhistas, fotogramas anônimos, notícias envelhecidas – para depois se
opor às generalizações da amnésia social e do esquecimento:
Sempre me preocupei com o uso social da
imagem. Interesso-me pela produção verna-
cular, desprovida de roupagem estética, que
já é uma espécie de “margem” da fotografia.

120
Gosto de lidar com esse material, porque me
fala da vida cotidiana, do indivíduo e do ser
humano10.
Ao percorrer essas imagens elípticas de exílios e sombras, trilha-se um
árduo projeto mnemotécnico de desconstrução de identidades [tem-
porariamente] alijadas por uma ordem da memória social preservada
sob as cores da unificação, pois, ao longo do século XIX e XX, nossas
histórias individuais e coletivas foram fotografadas como um dos úni-
cos recursos possíveis para que pudéssemos “criar mitos fundadores
que substituam nossos relatos desfocados, nossas identidades falsas”11.
Constituído por histórias alheias, Imemorial nos convida a transgre-
dir e a rememorar a nossa própria história. Lembranças interditadas
e significados adiados referveram, ao olhar dos que aceitarem olhar,
um turbilhão de imagens e vidas perdidas num desterro imagético dos
direitos à representação de uma condição de marginal. Como as repre-
sentações culturais não se encontram fixamente fechadas num conjun-
to de signos específicos, a Fotografia - enquanto parte desse sistema de
representação - está sujeita a uma constante transformação na forma
de definição e [re]negociação de uma realidade imaginada por uma
dada comunidade simbólica. E é aí, nesse processo de metamorfosear
o lixo/sobra em objeto artístico/indício, que a obra de Rosângela Rennó
oxigena e desperta um sentimento de estabilidade/desconfiança dian-
te do caráter de homogeneidade das identidades nacionais: será que
a modernidade brasileira é tão próspera e unificada quanto as arro-
jadas e revolucionárias curvas das construções da nossa capital? Em
certo sentido, transmutar o marginal [border] em protagonista de uma
exposição de Arte (e, aqui, com “A” maiúsculo) caracteriza-se como
meio de discutir uma noção de identidade que não esteja mais pautada
pelo espectro da imutabilidade e estabilidade, mas sim, pelo processo
transitório de conjugação de sentidos que processam uma identificação
pautada por uma pluralidade de diferenças.

10 RENNÓ, Rosangela. (2003) Rosângela Rennó: Depoimento [Coordenação:


Fernando Pedro da Silva, Marília Andrés Ribeiro; Edição do texto e organização
do livro: Janaina Melo]. Belo Horizonte: C/Arte.
11 Op. cit.

121
Ao desestabilizar o paradigma arquivístico, a fotógrafa recompõe uma
nova forma de circulação simbólica de um campo imagético antes des-
tinado à marginalidade afetiva, psicológica, social e cultural. Ciente
quanto à precariedade da memória social, Rennó investe num flanco
de reorientação dos acervos fotográficos que monopolizavam o trânsi-
to de certas figurações identitárias, conforme os tradicionais meios de
circunscrição de uma proliferação iconográfica. Com a presentificação
de um passado renegado, torna-se visível uma área de atrito que se
movimenta nas inseguranças e falhas de uma homogeneidade insti-
tuída pelos relatos tidos como oficiais. Na textura negra das películas
ortocromáticas, instaura-se uma póstuma reflexão sobre as profusões e
cintilações de uma história de sacrifício e de anti-memória:
O título dado à instalação não poderia ser
mais sugestivo, ao evocar pela negativa um
dos simbolismos mais poderosos de uma co-
munidade. O que é, de fato, um memorial?
Um monumento destinado a cultuar a me-
mória de determinados eventos e persona-
gens e a explicitar o passado de uma nação
ou de uma comunidade.12
Nas lápides fotográficas desse memorial ao imêmore, encena-se um ul-
trajante obituário que constrange e atordoa um observador acostumado
com uma possível versão de conciliação história entre o surgimento de
um dos ícones do progresso nacional e o martírio do “formidável herói
da construção de Brasília”. Mais que presságios de uma morte futu-
ra, essas fotos, como guetos de extermínio, aniquilam qualquer atalho
destinado à homologação de um happy end social. Repercutir o contra-
discurso daqueles que receberam como herança o terreno da sombra
social, torna-se uma força-tarefa capaz de instaurar uma relação híbri-
da de sentidos que viabilize a não-recusa de uma série de diferenças
de raça/gênero/classe no interior de uma pluralidade representacional.
Ao editar esses “retalhos” (Bhabha, 1998, p.207) cotidianos, Rennó
rearticula um novo espaço [i]memorial para que se possa experimentar

12 FABRIS, Annateresa (2004) Identidades Visuais: Uma Leitura do Retrato


Fotográfico. Belo Horizonte: UFMG, p.127.

122
um conjunto de signos desenraizados da condição do estar/ser diáfano
ao olhar passageiro. Assim, na tessitura daquelas películas ortocromá-
ticas, a cada retrato de 60 x 40 x 2 cm, reflete-se, em dissonante revér-
bero, uma brasilidade deslizante que se move “entre formações cultu-
rais e processos sociais sem uma lógica causal centrada”13. As faces dos
operários, naturezas-mortas de um holocausto social, compõem uma
crônica visual que dá testemunhos sobre os vestígios espectrais de uma
nítida fatia de tempo sobrepujado pelo mobiliário arquivista e pela ca-
talogação burocrática do mundo. Assim, esse confinamento imagético
chega ao seu final quando Rennó constitui uma gramática da ética do
ver, pois, ao editar o inexeqüível, proporciona uma legibilidade visual a
um conjunto de fotos que estavam inertes à opacidade histórica. Com
sua energia fáustica e epifânica, os arquivos de Brasília parecem emol-
durar as frágeis materialidades de uma identidade vivenciada à beira
do abismo social.

Figura 7 - Rosângela Rennó. Imemorial, 1994, fotografia, quarenta retratos em película orto-
cromática e dez retratos em C-print sobre bandejas de ferro e parafusos, letras de metal pintado
sobre parede. 60x40x2cm (cada fotografia). Exposição Revendo Brasília, Galeria Athos Bulcão,
Teatro Nacional, Brasília. Fotografia de Silas Siqueira.

13 BHABHA, Homi (1998) O Local da Cultura. Belo Horizonte: UFMG, p.201.

123
Enquanto miniaturas de uma experiência despedaçada, os retratos si-
metricamente alinhados, como uma série de Polaroids coléricas, ofe-
recem um souvenir imagético de brutalidade que podemos levar para
casa [na memória, agora, recente] como prova do jamais visto e do
jamais selecionado. Tranqüilizados pela suposta redenção e reparação
histórica, alguns observadores [nem todos, possivelmente] se iludem
com a possibilidade de uma completa conciliação perante os tristes
e tácitos semblantes marginais. Mas não é esse safári de condolên-
cias que norteia os cortes e edições de Rennó. O que está em jogo é
uma claustrofóbica instalação que procura causar desconforto e aflição
quando os visitantes se colocam vis-à-vis diante um fantasmagórico
domínio imagético de espectros fichados pelos evasivos números 447,
269, 971, 606, 481, 1202, 1351... E esse horror voyeurístico deve en-
corajar uma reflexão sobre aqueles lôbregos olhares na tentativa de se
questionar os acervos imagéticos da nossa identidade nacional.

Figura 8 - Rosângela Rennó. Imemorial, 1994, fotografia, 60x40x2cm. Fonte: Rennó, R. Ro-
sângela Rennó: Depoimento [Coordenação: Fernando Pedro da Silva, Marília Andrés Ribeiro;
Edição do texto e organização do livro: Janaina Melo]. Belo Horizonte: C/Arte, 2003

124
Movida pela pulsão de tornar inescurecível o que por pouca luz ilu-
mina, a fotógrafa utiliza a câmera como uma ferramenta que violenta,
paralisa, fere, acidenta e, no máximo da metáfora, mortifica o nosso
olhar a cada imagem reedificada. Ao participar da vulnerabilidade cre-
puscular dos trabalhadores, Imemorial suscita um pathos fotográfico
que encena uma catástrofe humana dantes exorcizada pelo ostracismo
da pseudo-presença dos arquivos oficiais. Enquanto refúgios talismâ-
nicos do combate à amnésia social, essas fotos são capazes de abrir uma
discussão acerca da representação [ou a não-representação] de certas
minorias interditadas pelo matadouro imagético da unificação nacional.
Como estamos acostumados com um mundo saturado por imagens,
essas fotografias precisam desencadear uma inédita epifania: ou seja,
“fotos chocam na proporção em que mostram algo novo”14.
O que também corrobora para esse choque iniciático é a frontalidade
dos retratos expostos, pois, usualmente, a retórica fotográfica se utiliza
desse artifício de encarar a câmera para demarcar eventos solenes de
ritos sociais e institucionais (formaturas, posse de autoridades, casa-
mentos). Com seu peso celebratório e normativo, a pose frontal acaba
se tingindo em cores de amarga ironia devido ao contraste entre tal
formalidade e a clandestinidade identitária enxovalhada no fundo de
uma gaveta qualquer – pequenos claustros da memória. E é perante
esse doloroso aterrorizamento frontal que se corporifica um mal-es-
tar sensorial. Frente ao perturbável, o observador se fascina, como um
superturista do caos, pelas diferentes expressões daquela paisagem hu-
mana mutilada pela névoa da obtusidade a-histórica. Assim, parece
não haver nenhum embuste cosmético que retoque [ou atenue] essas
marcas de uma identidade talhada pelos duros cortes da exclusão social
e da reclusão simbólica. Colocadas no chão como lápides, as bandejas
de ferro parecem, na sua negra cor, anti-refletir os detritos dos mais
de cinco mil mortos. Ali, na fria placa de metal, o arquivo-morto se
encontra sepultado num meio de circulação cultural e social:
A apropriação do arquivo por Rennó – do
que nele é origem da descontinuidade que é
morte, da intermitência que representa em

14 SONTAG, Susan.(2004) Sobre Fotografia. São Paulo: Companhia das Letras, p.60.

125
termos de ruína e relíquia – realiza-se como
sub-versão ou versão subalterna do metar-
relato fundador da cidade moderna, cuja
imagem dominante de cartão-postal aprece
irremediavelmente deformada, disforme15.
Nesse labirinto mortuário de identidades, o jogo de blefes e sombras do
tecido social parece ter novas regras: o destroço pode ser resíduo; o im-
percebível pode ferir o nosso olhar; o inamovível movimento dos fichá-
rios pode ser porto de viagem de amotinados fragmentos. Naquele olhar
perdido de quem não sabe que vai morrer – mas morto , as imagens dos
operários, como pietàs indigentes, deflagram um reingresso espectral de
um corpo já amaldiçoado pela antiga exumação dos relatos Oficiais.

Epílogo arcôntico
Seja através do cadeado que protege o diário de Caio F. Abreu, seja
através da exposição das vozes das mães torturadas pela ditadura ar-
gentina, seja através do resgate dos arquivos dos operários mortos de
Brasília, o que está em jogo é uma constante tensão entre a lembrança
labiríntica e o pátio opaco da memória. Entre táticas de amnésia e
políticas de visibilidade, tecemos, diariamente, uma guerrilha hipom-
nésica na qual estamos sempre à beira do olvidado e do instituciona-
lizado. Cabe a nós, seres ungidos pelas reminiscências e pelas ausên-
cias, lembrarmos sempre do ensinamento de poeta Manuel de Barros:
“remexo com pedacinhos de arame nas minhas memórias fósseis”16. É
preciso, então, que continuemos vasculhando nossos scripts de existên-
cia e nossas práticas arcônticas. Afinal, em última instância, o desejo
de arquivar se orquestra por uma força de extermínio. Resta uma es-
perança para seguirmos em frente: que a poeira e o bolor dos arquivos
não transforem essas estórias em espectros inatingíveis e eclipsados.
Em tempos de trauma, a resiliência torna-se uma urgência para todos.

15 MIRANDA, Wander. Cenas Urbanas. (2000) In: BIGNOTTO, Newton


[org]. Pensar a República. Belo Horizonte: UFMG, p.181.
16 BARROS, Manuel de. Poemas rupestres. Rio de Janeiro: Record, 2007, p.47.

126
Fonte das ilustrações

Figuras 1, 2, 3, 4, 5. Fotos do autor


Figuras 6, 7, 8. Rennó, R. Rosângela Rennó: Depoimento [Coordenação:
Fernando Pedro da Silva, Marília Andrés Ribeiro; Edição do texto e organi-
zação do livro: Janaina Melo]. Belo Horizonte: C/Arte, 2003

Referências Bibliográficas
AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? E outros ensaios. Chapecó: ARGOS, 2010.
BARROS, Manuel de. Poemas rupestres. Rio de Janeiro: Record, 2007.
BHABHA, Homi K. O Local da Cultura. Belo Horizonte: UFMG. 1998.
DERRIDA, Jacques. Mal de Arquivo: uma impressão freudiana. Rio de janeiro: Relume
Dumará, 2001.
FABRIS, Annateresa. Identidades Visuais: Uma Leitura do Retrato Fotográfico. Belo
Horizonte: UFMG. 2004
MIRANDA, Wander. Cenas Urbanas. In: BIGNOTTO, Newton [org]. Pensar a República.
Belo Horizonte: UFMG. 2000.....
RENNÓ, Rosangela. Rosângela Rennó. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo. 1998.
_______. Rosângela Rennó: Depoimento [Coordenação: Fernando Pedro da Silva, Marília
Andrés Ribeiro; Edição do texto e organização do livro: Janaina Melo]. Belo Horizonte: C/
Arte. 2003.
SONTAG, Susan. Sobre Fotografia. São Paulo: Companhia das Letras. 2004

127
128
Espectros y rastros
de la ciudade escritura,
arquitectura
desconstrucciones

Jonathan Fajardo Cabrera

129
El techo es una telaraña de cañas
Con forma de embudo bocabajo
Cubierto con manojos de pajón
Y un coleto en el mojinete.
Cada año se peina el techo
Con raíces secas
Para botar los pajones viejos
Y se reviste con pajones nuevos.
Estos ranchitos
Son tratados como abuelos
Y se les pone nombre,
Se llaman Kabal ixlab.
-Humberto Ak’Abal

Al hablar de arquitectura, Derrida no se refiere a ella como a una téc-


nica o algo extraño al pensamiento, sino que la asume como posibi-
lidad del pensamiento. Pero no como cualquier posibilidad o rumbo
preestablecido del que se tendría pleno conocimiento, sino acaso como
aquel advenimiento siempre improbable del evento de una imposible
experimentación del espacio, que no se constituye según el modelo de
una retórica espaciante dada, ni se deja reducir al estatuto de represen-
tación o encarnación de tal pensamiento, sino que lo porta y se deja
portar entre la excedencia de solicitantes alteridades, que vienen quizás
a desestabilizar desde ya la presumible homogeneidad y homología de
lo monológico. Pensar la ciudad resulta difícil, pero no hay como no
demorarse en tal dificultad. Lejos de una esencialización generalizada,
de aquello que se pretende comprender y fijar en cuanto tal o de un
presupuesto ser presente de su existencia, eso no deja de dislocar el
lugar y demandar mudanzas de terreno. Tal vez sea por eso, que pocos
se han arriesgado en la experiencia de esta errancia e incompetencia,
en la suspensión y el deslizamiento de las capacidades presupuestas, las
posibilidades convenidas de antemano, el sentido previamente deter-
minado, las consabidas buenas voluntades de poder, las instalaciones
confortables, las conveniencias a través de las cuales cada uno sim-
plemente procura sacar su agosto. Pocos como Derrida lo harían sin

130
coartadas y en disenso frente a escapismos y facilismos, entre aventuras
de escritura y pensamiento, deconstrucciones, en escucha e incondi-
cional acogida al acontecimiento sin acontecimiento, movido a través
de querencias, navegaciones, cálculos con lo imprevisible, viajes a la
lengua, entre la poesía, la música y otras artes, portadas y soportadas
entre alteridades, que infinitamente interrumpen, solicitan y a cada
vez otra vez por primera vez nos convocan. Así, se habrá arriesgado,
con tal lucidez ensoñadora, a hablar ante la arquitectura, sin hacerlo
como arquitecto, ni especialista, ni como un mero odre de saber, que se
inflama prepotente a medida que se aplica en su competencia.
Pero asumir entre las ruinas del comienzo, la precariedad, fragilidad e
inexperiencia constitutiva de esta experiencia o travesía, no se reduce
a una simple y pedante modestia. Lejos de ello, al exponerse a otro
pensamiento de la experiencia, a la experiencia del espaciamiento, a la
turbulenta, oscilante y solicitante venida sin venida de lo otro ineludi-
blemente otro, jamás se acoge tranquilamente o de manera fija, aquello
que las tradiciones, no sólo filosóficas, habrán declarado al respecto.
Pero tampoco se podrá dejar de lado todas esas herencias y promesas,
que demandan ser acogidas como más de una y sin alibi. Así, a través
de oscilantes, contrasignantes y desestabilizadoras idas y venidas, tra-
zos y retrasos por la experiencia, incesante se rejuvenece y reinventa,
“una travesía con el cuerpo de un espacio que no está dado de comien-
zo sino que se abre a medida que se avanza.”1
Si bien, la experiencia suele considerarse como travesía, aquello que
atraviesa, el recorrido hacia un destino. En Derrida, ninguna anticipa-
ción o designio queda clausurado en sí mismo, ileso de desvíos, libre de
perturbaciones iterantes y diferenciales; nada resta ni pasa incólume,
al estar librado a sus conmociones inevitables. De tal manera, acaso
también se pueda hablar de la experiencia de la aporía, como esa ex-
posición difícil e irremediable a lo que resta sin camino prestablecido.
Las experiencias aporéticas resultan tan improbables como necesarias.
Amenazan lo que se presume consolidado abriendo la chance de algo
otro. Miríadas de pasajes se abren entre sus pasos sin paso. La inde-

1 DERRIDA, Jacques. Les arts de l’espace. Ginette Michaud et Joana Masó


Eds. Paris: Éditions de la différence, 2015, p.7.

131
cidibilidad incesante tensa y alienta a la decisión. Demorar entre la
dificultad no significa una simple resignación o vacilación paralizante,
sino que en tal extremo la imposibilidad misma atraviesa y pulsa las po-
sibilidades, dejando temblar la experiencia en infinita no identidad a sí.
Más allá de cualquier presumido dominio, eso excede, desestabiliza,
desplaza en falta, mueve en lo improvisto, despojando de garantías
previas, trastorna el orden de las reglas, desajusta los privilegios y je-
rarquías, la aplicación programable o el desenvolvimiento continuo y
lineal de algo calculable, provocando la reinvención.
Para eso no basta con el juicio de los expertos, sabios y competentes,
aunque su aptitud sea indispensable. Sin embargo, sin cierta incompe-
tencia, impidiendo suturar y saturar la abertura al por venir con axio-
mas consabidos que se yerguen totalizantes, presumiblemente estables,
plenos y seguros de sí, sin esa inexperienciabilidad de la experiencia
del espacio, sin tal abertura como archi-escritura del espaciamiento,
insostenible e insoportable para el control o la instalación de quien se
cree imperturbable y supuesto dueño de su experiencia, sin eso que se
sustrae al dominio, no sólo nada comparecería a la existencia, además
nada tendría lugar, ni sería digno de llamarse acontecimiento, ni even-
to arquitectural:
No nos aparecemos a nosotros mismos sino
a partir de una experiencia del espaciamien-
to ya marcada de arquitectura. Lo que ocur-
re por la arquitectura construye e instruye
ese nos. Éste se encuentra comprometido
por la arquitectura antes de ser el sujeto de
ella: dueño y poseedor. Por otra parte, la
inminencia de lo que nos ocurre ahora no
anuncia sólo un acontecimiento arquitec-
tónico: más bien una escritura del espacio,
un modo de espaciamiento que hace sitio al
acontecimiento.2

2 DERRIDA, Jacques. Point de folie maintenant l´architecture. In: Psyché,


Paris, Galilée, 1987, p.478.

132
En el texto escrito con ocasión de un coloquio en Praga3, en 1991, lla-
mado Generaciones de una ciudad: Memoria, profecía, responsabilidades.
Derrida parte preguntándose en lo liminar, por lo que sería un umbral
para una ciudad, si acaso bastaría con marcar el umbral de una ciu-
dad para decir su identidad; pero también de qué manera transponer
esa figura del umbral del espacio a la historia. Más aún, qué acontece
cuando se dice de algunas ciudades que se encuentran “al umbral”,
jamás como un constructo pleno, sino que se dinamizan y diseminan,
tiemblan entre umbrales, como desplazadas entre actos, es decir, que
se encuentran:
…no solamente en la figura del umbral, sino
al umbral de una figura nueva, de una con-
figuración aún invisible que debe darse ella
misma, es decir, no dejarse imponer por la
ley de otro, esa ley del otro podría tratarse
de la ley de un extranjero, de un nuevo con-
trol político, pero eso puede ser también la
ley de otra lógica que aquella de la ciudad
misma, si ella tiene una y que le sea propia,
otra lógica política, militar, policial, econó-
mica, turística, que vendría a romper el ideal
autonómico de la ciudad para desfigurar el
plan propio.4
La abertura irremediable y sin garantías de antemano dadas a esa ley
que amenaza, pero paradójico-poéticamente también puede ser la
chance de que alguna otra cosa acontezca, imanta la ciudad. Quizás
pueda escucharse como promesa en infinito perjurio, entre la hete-
rogeneidad, la discontinuidad y la no-totalización que se inscriben,
como cierta perturbación an-archioriginaria que precede sobre el
plan propio, el cual no cesaría de estar espectralizado y expuesto a su

3 DERRIDA, Jacques. Générations d’une ville: Mémoire, prophétie, responsabili-


tés. In: Les arts de l’espace. Ginette Michaud et Joana Masó Eds. Paris: Éditions
de la différence, 2015.
4 DERRIDA. Les arts de l’espace. Ginette Michaud et Joana Masó Eds. Paris:
Éditions de la différence, 2015, p.125.

133
exapropiación. Entre los confines, nada garantiza la presumible solidez
de los límites trazados sobre una ciudad. Ningún programa o plan está
librado de desvíos, rupturas, excedencias, contaminaciones, relaciones
imprevisibles e inextricables que la constituyen como impropia.
Jean-Christophe Bailly en el libro intitulado La frase urbana5, señala
que la historia de las ciudades se podría entender como una tensión
permanente entre la producción espontánea de un exceso de sentido
y la canalización de todas las formas y fuerzas sociales que producen
este exceso. De tal manera, aquello que suele llamarse ciudad no cor-
responde a una unidad o unicidad integralmente compuesta, ni a un
cuerpo del que tranquilamente se sentiría y percibiría su límite. Ella
parece heterogénea a un horizonte de antemano dado o delimitado
absolutamente sin fisuras, y por lo menos desde finales del siglo XIX
y comienzos del siglo XX, la desfiguración de las figuras que se pre-
supone sobre ella no cesa de derivar aceleradamente, desbordando los
encuadramientos y revelando su precariedad y carácter provisorio.
Así, los movimientos tensionales, de ilimitación, proliferación, multi-
plicación y desmultiplicación de límites, emborronamiento e intensifi-
cación de los bordes, conlleva a la proliferante y polimórfica dinámica
de los confines, que altera las demarcaciones demasiado seguras de sí
entre naturaleza y cultura, adentro y afuera, público y privado, entre
otros términos que resultan estremecidos en su presumible indivisibi-
lidad y esencialismo. Confines para Derrida se relaciona con lo fluye
y confluye al límite, resta inestable e indefinible, como la ilimitación
intensificada entre las zonas limítrofes. Ese entre-dos, donde marca
y no-marca jamás se oponen se evoca en Épreuves d’écriture, donde
señala a propósito de lo que se inscribe y excribe entre ellos:
Los confines definen e indefinen: evasivos,
fluidos, como mi escritura aquí mismo. La
materia pronto determinada por sus confi-
nes y oposición a la X, así como la indeter-
minación, tanto el otro país, como el no país.
Más allá de la oposición, los “inmateriales”
son entonces un no-concepto, lo indefini-

5 BAILLY, Jean-Christophe. La phrase urbaine. Paris: Seuil, 2013.

134
do de lo sin fronteras, por lo tanto, como la
marca, el trazo, la frase (en el sentido obser-
vado por Le Différend) el desplazamiento,
la escritura de la frontera.6
Esas cuestiones que aventuran y se arriesgan entre los confines no
dejan de resonar inminentes, solicitan, hacer pensar, temblar, vibrar,
coreografiar, escribir, espaciar, y según el pensador se trataría de algu-
nas reflexiones inocentes e incompetentes, es decir, irreductibles a la
presupuesta soberanía y la razón de los más fuertes. Como lo confiesa
al introducir su intervención en Praga: “incompetentes y prelimina-
res, al umbral de ese umbral, en el umbral de esta marcha liminar.”7.
Pasajes incesantes, envíos, reenvíos y desvíos, que en la ocasión de ese
evento se dirigían a la singularidad inconmensurable e inequivalente
de esa ciudad y a lo que marca, remarca y desmarca ese nombre: Praha.
Pero en esa destinerrancia espectral de las palabras, no solamente se
relacionaban con los parajes catastróficos e interruptores que se ins-
criben entre esas memorias inquietas llenas de lagunas y silencios di-
fíciles, sino también a la multiplicidad que resiste y resta intraducible,
es decir, infinitamente a traducir; todo eso que resulta indisociable y
heterogéneo a esa ciudad, cuyas escrituras permiten evocar entre otras
y otros a Kafka, y sus pasajes impregnados por la extrañeza de lo que
en apariencia resulta común y ordinario.
Así, se puede hablar de ciudades y literaturas inextricables entre sus
brechas, que no dejan de estar envueltas al problema babélico, que liga
y desliga historias entre ruinas, a la “concurrencia hiperbólica de varias
lenguas e incluso de varias que no son europeas”8. Lugar intraducible
de la comparecencia de esa multiplicidad de lenguas sin lo que nada
afloraría (tal vez “rosa de las lenguas” para recordar la bella expresión
del poeta Michel Deguy que da título a uno de sus libros, rosa que un

6 DERRIDA, Jacques. Les arts de l’espace. Ginette Michaud et Joana Masó Eds.
Paris: Éditions de la différence, 2015, p.23.
7 DERRIDA, Jacques. Les arts de l’espace. Ginette Michaud et Joana Masó Eds.
Paris: Éditions de la différence, 2015, p.125.
8 DERRIDA, Jacques. Les arts de l’espace. Ginette Michaud et Joana Masó Eds.
Paris: Éditions de la différence, 2015, p.127.

135
pensamiento de soplo entrecortado, como aquel de la deconstrucción,
no se cansa de polinizar). Lo que conduce a la ininterrumpida inter-
rupción que infinitiza cada proceso, e impulsa a Derrida a plantear una
cuestión tan osada y contradictoria, como aguda y justa, acaso vibran-
do en contratiempo, aquí y ahora, que afirmaría: “¿la responsabilidad,
las tareas y los actos de memoria que nos asigna una ciudad se inscri-
ben, en el presente, en el futuro o en el pasado, en unas piedras mudas
más que en el rumor de las lenguas que la obcecan?”9
Así, tal vez como una apóstrofe muda, el silencio de las piedras, pero
también las resonancias de nuevos materiales, el exceso de secreto sin
secreto entre muros y grietas, las opacidades y alteridades de la ciudad,
de sus luces y sombras, entre rastros y espectros no dejan de interpelar,
asignar y difractar a la vez, con sus aporías, paradojas, intermitencias
y contradicciones, aún antes que las tentativas por designar, controlar,
eludir o imponerse a eso que viene en incesante sin venida, a diacroni-
zar los idiomas que la imantan y espectralizan, entre la rumoración de
lo que acontece en más y menos de una lengua.
(Acaso ni la arquitectura ni el pensamiento puedan continuar ex-
cluyendo a las piedras entre la simple pobreza de mundo, y del otro
lado del mundo o entre los muchos mundo que aquel pueda contener,
haga falta escuchar al poeta nicaragüeño Joaquín Pasos en su Canto de
guerra de las cosas: “Cuando lleguéis a viejos, respetaréis la piedra, / si es
que llegáis a viejos, / si es que entonces quedó alguna piedra”10.
Pero entonces, ¿por qué esperar a la vejez para respetar las piedras,
por qué no experimentar en su inagotable agotamiento, escribir es-
cuchando su olvido y memoria, mientras la escucha resuena, se espacia
y rejuvenece según el timbre de ese tremendo silencio?)
Volviendo a la intervención en Praga, Derrida se vuelve sobre un tema
que asedia diferentes textos de Kafka como por ejemplo en Armas de la
ciudad o en La muralla de China y se refiere al tiempo, a las otredades
de la ciudad en construcción.
Así, piensa en la necesidad de que un proyecto urbanístico no se redu-

9 DERRIDA, Jacques. Les arts de l’espace. Ginette Michaud et Joana Masó Eds.
Paris: Éditions de la différence, 2015, p.126.
10 PASOS, Joaquín. Poesía completa. Sevilla: Sibilina S.L.U., 2010.

136
zca a sí mismo, ni a las pretensiones de un desarrollismo expansionista
y monopólico que apenas busca preservarse bajo cualquier medio y
costo, sino que compromete unas generaciones, de tal manera que:
“contar con el tiempo y las generaciones de los ciudadanos por venir
es tal vez el imperativo categórico de todo gran proyecto urbanístico
respetuoso y responsable.”11
Todo eso que afecta y atraviesa el nombre, los espíritus, los cuerpos, los
callejones sin salida, las autopistas, las relaciones inesperadas, de eso
que a falta de otro nombre suele llamarse ciudad, entre las memorias
de lo que mantiene la abertura al imprevisible por venir aquí y ahora,
solicitando no reducir toda construcción a la presumida plenitud de
lo que se quisiera totalizar, programar, inscribir en el presente, como
unas estructuras urbanas o arquitecturales saturantes y prepotentes.
Así, Derrida parece deslizarse atópicamente entre la perturbación de
origen y lo no completo del todo, que no sería lo mismo que el ina-
cabamiento, inclinándose en la no saturación e inestabilidad esencial
del espacio urbano.Tal axioma de incompletud, obedece a otra lógica
que aquella de la ciudad misma, de una ciudad que se presume una y
con sus demarcaciones y horizontes supuestamente fijos y asegurados,
donde se presume primaría el ideal viril y autonómico de la homoge-
neidad y la hegemonía de lo mismo, la autosuficiente soberbia de las
“bellas artes”, la inmunidad de la información archivada y controlada,
la solar vigilancia sin fisuras, lo puramente determinado, localizado
y bien instalado. Esta no saturación, que antes de elevar estructuras
paralizadas en la plenitud de su clausura, solicita re-de-construcción,
deja estremecer el suelo de los cimientos y fundaciones, se inscribe y
estructura a la vez la exuberante y exorbitante vida de la ciudad, como
cierta regla que pervierte y excede las normas corrientes, manteniendo
la abertura para cualquier proyecto de restauración o de renovación
urbana.
Esta no saturación no consistiría en abando-
nar unos espacios vírgenes o salvajes, sino en
construir según unas estructuras tales como

11 DERRIDA, Jacques. Les arts de l’espace. Ginette Michaud et Joana Masó


Eds. Paris: Éditions de la différence, 2015, p.127.

137
nuevas posibilidades, a la vez funcionales y
estéticas, que pueden al infinito enriquecer
conservando, fundar protegiendo, guardar
el patrimonio a la vista sin reducir la ciudad
a un museo o a una escultura monumental,
lo que la ciudad comprende siempre en ella
pero no será jamás.12
Axioma de incompletud que se relaciona con la renuncia tensa, para-
dójica y aporética a la torre absoluta, a la ciudad total y a la totalización
jerárquica, homo-hegemónica, que eso implica. Así, la ruina no dejaría
de estructurar y dinamizar las fundaciones.
El dislocamiento, la perturbación de la posibilidad de construir, todo
eso se relaciona con la inextricable deconstructibilidad de cualquier
construcción espacial y de cada ciudad, que a más y menos de una,
entre las variaciones de sus corporalidades, los devenires, rastros y es-
pectros que la atraviesan, quizá no cesa de estar por “de-re-construir”,
resta indefinidamente abierta a la ruina, entre vida y muerte, aventu-
rada a la sobrevida, entre cuyas intensidades no hay cosa que se pueda
garantizar inmune, ni susceptible de posesiones o pertenencias.
Así como en Memorias de ciego13, Derrida lo recuerda en el comienzo
la ruina. Nada en la construcción arquitectónica sale ileso del prin-
cipio de ruina que la atraviesa y desborda, disloca y pone en abismo
la autoridad de un punto de vista, el ocularocentrismo y la asfixiante
jerarquía impuesta de una perspectiva hegemónica, aventurando entre
lo imprevisible e improbable de múltiples relaciones de alteridad y di-
ferenciales puntos de vista que nos envuelven y desenvuelven indefini-
damente. De tal modo, que las jerarquías y las categorías privilegiadas,
entre la usual y clásica oposición de lo inteligible y lo sensible, y a la
que gran parte de la tradición filosófica y arquitectónica permanece
atada, no sabrían abstenerse de las remociones y terremotos que fisu-
ran y solicitan incesantes.

12 DERRIDA, Jacques. Les arts de l’espace. Ginette Michaud et Joana Masó


Eds. Paris: Éditions de la différence, 2015, p.128.
13 DERRIDA. Mémoires d’Aveugle. L’Autoportrait et autres Ruines. Paris:  Éditions
de la Réunion des Musées Nationaux, 1991____Point de folie maintenant.

138
Un pensador como Édouard Glissant, cuyas reflexiones y poéticas en-
tre el temblor y la relación imprevisible de lo diverso, abren al caos-
mundo y la totalización no totalizante del todo-mundo, quizás se en-
cuentre próximo en ciertos aspectos, incluso a merced de las brechas y
quiasmas innegables, con las travesías derridianas de escritura y pensa-
miento; por eso sería interesante escucharlo cuando afirmaba que: “la
ciudad es el lugar mismo de la vacilación absoluta.”14 O en otros mo-
mentos donde señala que en materia de arquitectura las ciudades del
temblor, antiguas o recientes, como Los Ángeles, Estambul, Nápoles,
México, San Francisco, Osaka o Kioto, son las más audaces y las más
abiertas. Pero hace falta decir que esto no sólo acontece con aquellas.
Esa vertiginosa difracción urbana, falla, inestabilidad y vibración entre
los umbrales que no paran de multiplicarse y desmultiplicarse, acaso
dejaría pensar en eso que algunos llamarían “era pos-urbana”15. Eso
adopta una forma sin forma definida, lo infigurable de su figura casi
traduce entre diversidades de escrituras, literaturas, políticas y poéticas
del pasaje, de la brecha, de la relación sin relación, entre lugares en sí
dislocados, desplazados en todos los sentidos, de las plantaciones a
las metrópolis o a eso que en verdad nadie sabría ya predecir o prever,
provocando a la responsabilidad infinita.
Entre ese pensamiento del temblor, la ciudad y la identidad se pien-
san no como la ostentación y posesión presupuesta, esencialista y pre-
viamente calculada, sino como indisociables de la inextricable y sor-
prendente relación al otro, la exposición a esas alteridades ineludibles
quizás permite resistir creativamente a los enraizamientos de los pen-
samientos de sistema y a los encantamientos paralizantes de los siste-
mas de pensamiento impuestos, o lleva a desviarlos entre otros cabos,

14 GLISSANT, Édouard. La cohée du lamentin. Paris: Gallimard, 2006, p.103.


15 En “Generaciones de una ciudad”, Derrida hace alusión al artículo de Melvin
M. Webber “The Post-City Age”, para referirse a la hipótesis según la cual ni la
metrópolis, ni la polis, ni la ciudad corresponderían al modelo de los bastiones,
las unidades fuertes, últimas, topológicas del hábitat, de la acción, de la comu-
nicación, de la estrategia, del comercio, es decir, de la socialidad y de la política.
Nada de eso sabría mensurar cuanto acontece entre la res pública. Lo que jamás
significa que se deba olvidar la ciudad, ni los pluriversos en que se disemina.
Hace falta considerarla en la memoria de lo que imposiblemente abre al por
venir aquí y ahora .

139
orillas y rumbos. Entre las convulsiones de las tierras, los espíritus y las
naturalezas del mundo en devenir. Como sugiere Glissant16:
Ese pasaje, ese suspenso del juicio, y tal vez
del Ser, (…) en la frecuentación, a la no po-
sesión, propuesta por los pensamientos ame-
rindios, como a la función telúrica de la línea
de los ancestros, jamás cerrado ni excluyente,
cantado por los pueblos de la África de los
Griots. Las catástrofes golpean el mundo, la
esperanza viene también de todas partes.
A propósito del pensamiento del temblor Glissant afirmaba que se
trata del pensamiento sísmico del mundo que tiembla entre nosotros y
alrededor, impidiendo la uniformación y la resignación. Eso acaso se
pueda relacionar con aquello que al dictado del temblor, es decir, de
otro, al exceso de ese secreto sin secreto, dejaba pensar, escribir, acon-
tecer, portar, Derrida, sin redenciones, ni resurrecciones, a la partida
del mundo, a más y menos de una lengua, herencia, genealogía, sacu-
dida, en 2004, con ocasión de un encuentro en Italia, a propósito de la
cuestión del temblor, propuesta por su amigo Glissant.
Así, en esa intervención cuyo texto se intitularía ¿Cómo no temblar?
sin dejar de asociar la música y la escritura, la poesía y la pintura, la
filosofía y la arquitectura, se refiere al necesario temblor de la mano del
artista, que aunque cuente con la experiencia y la técnica de cierta arte,
no cesa de temblar al dictado de todo otro totalmente otro, a la partida
del mundo, que se sustrae del saber, poder, ver, ser, y aventura en la
indecidibilidad decisiva.
De tal manera que el artista deviene en esa inexperiencia y alteración
interminable de restar sin remedio vuelto a tales alteridades, al secreto
ab-soluto que expone antes de poder ser guardado, eso que deja tem-
blar, llorar, sonreír, enloquecer, deslizar, velar en sueño insomne, a la
intemperie del solar, tomado por otro para otro:
Ahí donde la mano tiembla, es decir, donde
él no sabe en el fondo lo que va a suceder o
que aquello que va a suceder le es dictado

16 GLISSANT, Édouard. La cohée du lamentin. Paris: Gallimard, 2006, p.126.

140
por el otro. El momento propiamente ar-
tístico de la obra de arte es el momento en
que la mano tiembla porque el artista ya no
tiene el dominio, porque lo que le sucede
y le sorprende como verticalmente le viene
del otro. El artista no es responsable. Puede
ser responsable de su saber, de su técnica,
no es responsable de aquello que es lo más
irreductible de su arte y que viene del otro
y que hace temblar su mano. Y entonces,
hay ahí, en ese temblor, una alianza de res-
ponsabilidad y de irresponsabilidad: porque
el artista sabe que va a tener que asumir la
responsabilidad, es decir, firmar aquello
mismo de lo que no es responsable, que le
viene del otro.17
Entonces se dirá aquí, cómo no temblar al pensar, al callar, al hablar, al
pasar y dejarse atravesar espectralmente por la ciudad, sus rastros, es-
pectros y alteridades, por todas aquellas otras que ella en ella. Y cómo
no responder a eso sin saber ni poder eludir la respuesta, sino inven-
tando el lugar, en la paradójico-aporética im-posibilidad de asumir esa
responsabilidad, infinitamente cruzándose con la irresponsabilidad.
Así, como lo testimonia la escena de Abraham en Abraham, el otro,
cuando se habla de cierta “responsabilidad sin límite, es decir, hiperé-
tica, hiperpolítica, hiperfilosófica.”18
El terremoto como figura no es una figura ente otras, ese terremoto
figural de lo que acontece, habla de los seísmos que hasta nuestros días
no cesan de sacudir la fundación de la ciudad, pero también la misma
fundación del orden internacional, del derecho internacional, según lo
constata Derrida, todo el mundo sufre un terremoto en la actualidad.
Pero resulta que es precisamente entre ese punto de locura, donde hace

17 DERRIDA, Jacques.¿Cómo no temblar? Trad. Esther Cohen. Revista Acta


Poética, Núm. 30-2 OTOÑO, México: 2009, p.25.
18 DERRIDA, Jacques. Abraham, l’autre. In: Le dernier des juifs. Paris: Galilée,
2014, p.89.

141
falta, más allá de todo deber, deuda, elección, saber, posibilidad de
responder, identidad o ciudadanía, declarar la desmedida responsabi-
lidad con lo que viene. “No existe más responsabilidad que ahí donde
se halla el fin del mundo, ahí donde ya no hay suelo, ni tierra, ni fun-
damento. Para ser responsable es necesario que ya no exista mundo.”19.
Derrida afirma que un secreto siempre hace temblar. Nada de la ine-
quivalente alteridad de otro se encuentra simplemente a mi disposi-
ción, apropiación y homología.
Eso excede cualquier yo que se presume dado, el ver, el saber, el poder,
el ser, el tener, pero además, solicita abrir otros rumbos en el pensa-
miento del cuerpo y la lengua, sin disociar los registros del discurso y
dejar acercarse eso que deja temblar, llorar o sonreír: “El temblor es
realmente una experiencia del secreto, pero otro secreto, otro enigma
u otro misterio viene a sellar la experiencia invivible agregando un sello
o un ocultamiento de más al tremor.”20
Así, donde no hay suelo ni fundamento que sostengan o apoyen, acaso
en ese donde sin donde ni cuando fijos, en que los cimientos y genea-
logías se exponen a la fragilidad de lo que resulta a más de una voz,
cierta suerte de revolución poética de lo político se aventura, a la vez
que otros modos de abordar lo político, otra política quizás otramente
que la política, se arriesga y pone en juego. Eso acontece, irrumpe,
entreteje, interviene, sin corresponder a algún fenómeno explicable
según los esquemas de la racionalidad, la competencia o el dominio
usualmente impuesto. Así, arriba a la lengua, la arquitectura, la filo-
sofía, la literatura, el psicoanálisis, la política, pero sin jamás hacer-
lo completamente, lo que no tiene lugar, eso que no ha visto la luz,
aquello cuya fuerza de irrupción y ruptura no dejaría de sembrar el
disturbio desenraizante y universalisante con el lugar, con lo local, lo
familiar, lo comunitario, lo nacional, etc.
Reinventando tales herencias en la llegada de las travesías laberínticas
de escritura, al rastro inaparente que entre huellas de huellas despla-
za infinitamente imprevisible. Entre “Umbrales y temblores” Ginette
19 DERRIDA, Jacques.¿Cómo no temblar? Trad. Esther Cohen. Revista Acta
Poética, Núm. 30-2 OTOÑO, México: 2009, p.30.
20 Op. cit.; p.30.

142
Michaud, en su texto de ensayos dedicados a Derrida El arte del con-
tratiempo (2014), se refiere a ese gesto en doble banda, de un pensa-
miento responsable y de una tomada en cuenta de las aporías como la
asignatura misma del gesto político de Derrida.
Gesto coreográfico, proteico, irredentista, hiperbólico, que trama en
doblez, en transbordamiento polimórfico y resistencia inventiva, jamás
elude las aporías de la decisión y se demora entre ellas sin cristalizarse
en viril parálisis, esto tal vez casi se traduzca en la exigencia justa de la
responsabilidad infinita, tensada contra las jerarquías, las dominacio-
nes, las explotaciones, las diferencias impuestas y manipuladas, pero
también en resistencia ante la refundación total, el nuevo suelo, el res-
tablecimiento de la ciudad como si alguna vez su constitución hubiese
sido plena y cierta idea de revolución, aún dependiente de la metafísica
del fundamento, la historia teleológica del origen y de la destinación.21
Al pensar en la amplitud y la estrechez abismal de las borduras, en la
multiplicación y desmultiplicación de umbrales, al umbral de eso otro
que acaso sea la ciudad, aquello que desborda y pasa por las zonas li-
mítrofes, se entra en una serie de cuestiones políticas, que nada dejan
ileso en lo que se refiere a la “polis”, las ciudades refugio, la hospitali-
dad, la democracia por venir22, entre otros asuntos urgentes, que aca-
so solicitan sin descanso, como en el soberano bien se sugiere, a otra
política, aquella de la división de lo indivisible y la fuerza sin poder de
una soberanía expuesta a su ruina. Aquello que no se podría tal vez
dejar de soñar ver confundido con aquella disidente y totalmente otra
potencia de las letras, que entre otras y otros, acaso nos recuerda a la
llegada de la escritura.23
Pero también se podría escuchar a Ginette Michaud, cuando al inves-
tigar entre los archivos depositados en el IMEC, se encuentra con un

21 MICHAUD, Ginette. L’art du contratemps. Québec: Nota Bene, 2014.


22 En “Generaciones de una ciudad” Derrida concluye sin concluir, llamando
la atención sobre “la gran cuestión de la ciudad y del “fórum cívico” en general:
de la democracia por venir. Ninguna democracia está aún dada y presente: toda
reflexión sobre el por venir o el fin (en el doble sentido de ese término) de la polis
debería tomar nota de ese hecho y reglarse sobre él.” (DERRIDA, 2015, p. 139)
23 CIXOUS, Hélène. Entre L’écriture. Paris: Des femmes, 1986.

143
texto de Derrida, intitulado Contrasignatura, leído con ocasión de un
evento celebrado en la sala de Cerisy en el año 2000 y dedicado a Jean
Genet, donde se habla de aquella “Revolución poética de lo político”,
que según Derrida, incesante haría falta que porte aquello que merece
el nombre de revolución: “Para hacer la revolución, hace falta mudar
el lenguaje, el léxico y la gramática. Ninguna revolución verdadera sin
esa mudanza.” (DERRIDA citado por MICHAUD)24.
Eso quizás se pueda relacionar con la exigencia infinita de inventar el
lugar, invención que acontece a la venida sin arribo que altera inter-
minable e imanta el habitar sin posesión, desde ya espectralizado por
“tout autre est tout autre”, tomado por otro para otro, al que se deja la
palabra y por el que se espacia el tiempo, en el contratiempo de la hos-
pitalidad tormentosa. Sin garantías de nada, cede el paso, a cuanto no
está más o mismo nunca ha estado allí, ni estará. En esa encrucijada de
alteridades se afina y extiende en estrechez silente y ondulación elástica
otra concepción de ciudad, timbrada quizás por la improbabilidad tur-
bulenta del poema, que como lo evoca la poética celaniana, que tanto
obcecó a Derrida a través de Schibboleth, Béliers o La bestia y El sobera-
no, entre otros, jamás cesa sí, quizás sí de estar volcado imposiblemen-
te a la alteridad. Ese trazo meridional y diferencial del poema perturba
todo ordenamiento de la idea soberana de mundo y entre la fuerza de
su fragilidad expuesta solicita transformaciones, en el automatismo de
la resignación acostumbrada, para asumirlo aún en su autotelia como
ineludible dirigirse a otro. Travesías del espacio cuya ilocalidad y tim-
bre inaudito haría falta escuchar y seguir, tan lejos como sea posible, e
insistir aún con el aliento entrecortado en lo irrespirable e imposible,
“hasta ese punto, sin duda insituable, tal vez insostenible, insoportable,
donde la autotelia, la autorreferencia no serían más solamente o sim-
plemente soberanía ni retorno, reflexividad sobre sí, sino siempre ya un
envío de sí a lo anterior de sí mismo.”25
(La indisociabilidad, indesligable de la disimetría y asimetría, entre
las instituciones, la arquitectura y las deconstrucciones que acontecen
y solicitan sin descanso, a insistir una vez más, acaso permita pensar,

24 MICHAUD, Ginette. L’art du contratemps. Québec: Nota Bene, 2014, p.15.


25 Op cit.; p.16.

144
cuestionar sin concesiones, eso que atenta con saturar y suturar la aber-
tura al imprevisible por venir. Así, se trata de avanzar en el irredentis-
mo y el desajuste que no renuncia a la decisión en la inminencia de la
amenaza, portar y ser portado no sólo entre utopías programadas sino
en lo imposible de utopías en falta, arriesgando travesías de escritura,
pensamiento y arquitectura, ante lo que afecta, tensa y amenaza; pero
al mismo tiempo brinda la ocasión de reinvención, la oportunidad de
inscribirse otramente en el espacio sea regional o internacional, ambas
categorías transbordadas polimórficamente, deslizándose entre impro-
bables instituciones singulares plurales, por inventar, que se aventuran
al por venir del evento, en el peligroso quizás de la différance y abren
el lugar a otra experiencia del espacio, del tiempo, del cuerpo, de la
lengua, del pensamiento, en el espaciamiento de otros tiempos en con-
tratiempo, en in-finito por venir aquí y ahora.
Así, me gustaría saludar y pensar entre este paréntesis suspensivo e
interruptor, esa experiencia imprevisible e inédita del espacio en la que
se lanzaría lo que se llamaría “Le collège international de philosophie”. No
sólo porque entre cuyos alentadores más asiduos desde sus comienzos
estuvo Derrida, sino porque resulta una urgencia su sobrevivencia, y
resistir ante las arrogancias, presiones ejercidas, difamaciones, intimi-
daciones, recortes, trabas burocráticas, dogmáticas institucionales, in-
quisiciones estatales, guerras sin declaraciones o con ellas, que atentan
con cerrar puertas. Y en el deseo infinito de la búsqueda de espacios de
libertad para el pensamiento y la escritura de lo que sin venida viene
a interrumpir ininterrumpidamente los dogmas de la pertenencia dis-
ciplinar, comunitaria, religiosa, nacional, estatal, institucional, lo que
solicita deconstru-reír sin parar ante lo que se presume asegurado entre
cadenas y bien instalado en sus fundamentos y atávicas perversiones.)

145
Collage city. Collage. Fernando Fuão. 2014

146
Referencias bibliográficas
AK’ABAL, Humberto. Las palabras crecen. Sevilla: Sibilina S.L.U., 2009.
BAILLY, Jean-Christophe. La phrase urbaine. Paris: Seuil, 2013.
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tte Michaud et Joana Masó Eds. Paris: Éditions de la différence, 2015.
______ Les arts de l’espace. Ginette Michaud et Joana Masó Eds. Paris: Éditions de la
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______. Mémoires d’Aveugle. L’Autoportrait et autres Ruines. Paris:  Éditions de la Réunion
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GLISSANT, Édouard. La cohée du lamentin. Paris: Gallimard, 2006.
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NANCY, Jean-Luc. La ciudad a lo lejos. Trad. Andrea Sosa. Buenos Aires: Manantial, 2013.
PASOS, Joaquín. Poesía completa. Sevilla: Sibilina S.L.U., 2010.

147
148
Desenho e desconstrução na
representação da arquitetura
da cidade

Beatriz Regina Dorfman

149
O desenho revela a imagem da cidade através do olhar, da sua percep-
ção e da sua linguagem expressiva. O estudo da paisagem da cidade,
pelo desenho, constitui uma chave de acesso ao pensamento da descons-
trução e de suas possibilidades de aplicação nos processos de pesquisa e
de projeto. O desenho é uma ferramenta para ver, é uma forma de pes-
quisa, de busca por respostas, mesmo quando a pergunta ainda não está
claramente formulada, assim constitui uma metodologia de pesquisa
e de projeto. A representação envolve dimensões filosóficas, estéticas,
românticas, criativas, da comunicação e cultura.
O estudo da desconstrução e do desenho permite estabelecer as relações
entre arquitetura e representação; nele, detalhes, acabamentos, pers-
pectiva, alinham-se na precariedade do esboço. O desenho da cidade
desnuda a essência da representação gráfica. A escolha das técnicas
introduz conotações diferentes que conduzem a outras linguagens
visuais. O grafite é versátil para compreender, estudar, analisar conhecer
formas, tamanhos, proporções, profundidade, paisagem e geometria.
Desenho é truque, ilusão, mas também convenção e permite um amplo
espectro de possibilidades de leitura, já que ensina a ver e possibilita
análises, recortes, reflexões, processos de criação, pela desconstrução da
imagem. A história do desenho é a história da cultura e a história do
homem; o desenho deu origem à linguagem escrita. O pensamento de
Jacques Derrida, na desconstrução, aporta uma referência sólida para
a compreensão dos processos de representação e das linguagens gráfi-
cas. A desconstrução entrou em discussão – na filosofia, na literatura, na
estética, nas ciências humanas, na psicanálise, na reflexão política e na
teologia – a partir da década de 1970.
Esse amplo alcance deveu-se à condição histórica do pensamento,
marcada pelo pós-estruturalismo, por uma reinterpretação pós-exis-
tencialista da obra de Heidegger e por uma nova sensibilidade em re-
lação ao niilismo. A desconstrução reflete sobre a sua própria estrutura,
é o pensamento do pensamento discute a representação e a linguagem.
A desconstrução foi uma das ideias mais importantes de Derrida, uma
crítica de pressupostos dos conceitos filosóficos.
A noção de desconstrução apareceu pela primeira vez na introdução à
tradução de 1962 de A Origem da Geometria de Edmund Husserl. A

150
carga semântica do termo não se confunde com destruição, mas sim
com desmontagem, decomposição dos elementos da escrita. A des-
construção serviu – nomeadamente – para descobrir partes do texto
que estão dissimuladas e que interditam certas condutas; surgiu como
uma metodologia de análise para textos.
Derrida aproximou a filosofia da vida, da arquitetura e da arte, em
textos sobre Babel, carta postal, envios, diferensa. Derrida escreveu um
livro sobre o livro e afirmou, na primeira frase, que “isto não é um livro”
– como Magritte? Em Envios, discorreu sobre a palavra representa-
ção em todos os seus possíveis desdobramentos, significados e resíduos
intraduzíveis, a partir de significados duplos ou múltiplos do corpo,
como o corpo da filosofia e o corpo da corporação. Discutiu com Céza-
ne em “A verdade na pintura”. Abordou questões como a hospitalidade,
o acolhimento do ensinamento, o adeus, o perdão.
A palavra desconstrução tem algo de sedutor, instigante, provoca a
curiosidade, mas também é responsável por mal-entendidos, precon-
ceitos e polêmicas. Ao mesmo tempo, dá origem a possibilidades poé-
ticas, metáforas, ambiguidades e a possibilidades de criar, transcenden-
do o senso comum.
Derrida também definiu indecidibilidade, que evidenciaria a fluidez das
fronteiras entre os diferentes elementos do texto, a impossibilidade de
determinar aquilo que é forma ou fundo, onde está dentro e o fora, a
linha de demarcação entre o bem e o mal, etc. É um conceito visual
e gráfico: um desenho. Já a diferensa parte da análise semântica do
infinito latino differre que contém dois sentidos: o primeiro remete
para o futuro (tempo); o segundo, para a distinção de algo criado pelo
confronto, pelo choque.
Para Derrida, a filosofia ocidental está marcada por um fonocentrismo
que privilegia a palavra falada em desfavor da palavra escrita e isto faz
com que a linguagem do desenho seja mais adequada para a pesquisa e
análise da paisagem da arquitetura e da imagem da cidade.
Seu pensamento abordou questões da arquitetura, mas a arquite-
tura desconstrutivista não passou de um modismo, uma tentativa de
enquadrar, definir, delimitar um movimento. A desconstrução não
cabe em rótulos, não pode ser demarcada, marcada, restrita, porque

151
se refere ao desmonte das estruturas do pensamento. Derrida revisou
e reformulou os pensamentos de Platão e Descartes, a partir de
Heidegger e de Nietzsche, e a desconstrução está inserida no contexto
da cultura contemporânea, que dá espaço para este processo. A des-
construção desvela o interior do pensamento, que é infinito (para den-
tro) – o espaço do corpo, o espírito, a vida, a poesia, o pensamento, a
representação. O pensamento filosófico/poético/arquitetônico dá mar-
gem à criação de inúmeras metáforas, como caminho, estrutura, apoio,
coluna, abrigo, desenho, desígnio, forma, cor, estilo, aconchego, ponte,
espaço, lugar, hospitalidade, encontro, praça, cidade, edifício, projeto,
convivência, cruzamento, construção, desconstrução, arquitetura, co-
zinha, morada, montagem, entrada, saída, dentro, fora, frente, fundos,
andar, balanço, cobertura, jardim, fachada, elevação, parede, tijolo, ja-
nela, porta, soleira, fresta, sótão, porão, escada, terreno, chão, topografia,
estabilidade, equilíbrio... A citação de elementos de arquitetura remete
a imagens metafóricas que se multiplicam em associações literárias e
construtivas. A lista é longa e conduz o pensamento às suas origens, ao
ser, ao princípio, aos limites e às diferenças, aos problemas da tradução
e das relações entre as palavras e as coisas.
Desconstrução em filosofia é um projeto que procura expor os parado-
xos e valores que estão contidos no discurso da metafísica ocidental
e opõe-se ao estruturalismo. A desconstrução pode ser aplicada – me-
taforicamente – à arquitetura e ao desenho, como ferramenta de in-
vestigação. Para Derrida, a arquitetura é uma forma de escrever e um
modo de vida; deve produzir lugares onde o desejo possa se reconhecer
e viver. A arquitetura não é técnica separada do pensamento, que seria
representado no espaço. É a própria materialização do pensamento, é
uma possibilidade do pensamento, não sua representação.
O convite feito por Bernard Tschumi a Derrida para participar do pro-
jeto do Parc de la Villete, na década de 1980, representa a arquitetura
solicitando auxílio à filosofia para trabalhar no projeto. Esse – reali-
zado no parque pelo filósofo, em parceria com o arquiteto americano
Peter Eisenman – chamou-se Choral Works e é um jardim, com ele-
mentos metafóricos que fazem alusão a diferentes tempos, por meio
de elementos da história do local. A materialidade e a estrutura da

152
arquitetura funcionam como suporte ou como visualização para o pen-
samento filosófico. A construção materializa, dá corpo às relações entre
o pensamento e o espaço, entre o edifício conceitual e a vida que o
habita. A filosofia, então, mora no edifício do pensamento, ao mesmo
tempo em que constrói o seu espaço. As ideias podem ser empilhadas,
arranjadas como se fossem verdadeiros tijolos, abrem caminhos e dei-
xam marcas, rastros, como palavras, desenhos.
A filosofia da desconstrução tem sido aplicada – metaforicamente –
como processo de investigação em arquitetura. Aspectos visuais da
arquitetura da desconstrução, frequentemente, são confundidos com es-
tratégias meramente formais, mas, em realidade, fundamentam-se em
questões filosóficas muito complexas.
Jacques Derrida abordou as questões da representação, das relações
entre significante e significado e suas implicações na textualidade e na
tradução e trouxe consigo análises das ideias de outros filósofos que
se debruçaram sobre a representação. Em uma primeira fase, entre as
décadas de 60 e 90, trabalhou na formulação das estratégias da descons-
trução como acontecimento, como pensamento, aplicado inicialmente à
literatura; posteriormente, à arquitetura. O pensamento desenvolvido
nesse período é utilizado para a compreensão e análise do desenho e da
representação gráfica nos processos de projeto e de estudo da imagem
da cidade. A partir dos 90, as preocupações de Derrida se voltaram
para questões mais ligadas aos problemas dos excluídos, das minorias,
do direito, da hospitalidade, do perdão, enfim da democracia. Passou
– assim – a ter uma atuação mais efetiva na sociedade, assumindo e
defendendo posições políticas com a convicção e com a habilidade de
seu discurso filosófico. Uma vez que o pensamento da desconstrução
já estava consolidado, o filósofo passou a integrar as três dimensões da
filosofia, a ética, a estética e a política.
Em um dos principais textos do primeiro período do pensamento de
seu pensamento, A gramatologia Derrida abordou diversos aspectos da
linguagem, a partir de vários autores, como o “Discurso sobre a ori-
gem das línguas”, de Rousseau. Para ele, a necessidade de articulação
de uma linguagem, além do gesto e dos sons naturais tem origem na
dispersão espacial.

153
Figura 1 - Rua da Praia. Desenho de Beatriz Dorfman

154
Figura -2 Usina do gasometro. Desenho de Beatriz Dorfman

155
Através do texto de Rousseau, Derrida analisou mitos e lendas das
origens das línguas, dos povos, das relações sociais e das culturas. “A
fala distingue o homem entre os animais. (...) Deve-se, pois, crer que
as necessidades ditaram os primeiros gestos e que as primeiras paixões
arrancaram as primeiras vozes.”1 E é a imaginação que torna possível a
representação. Na lenda da origem do desenho, na despedida do casal
apaixonado, a jovem traça com uma vareta sobre o muro, o contorno da
sombra de seu amado, inaugurando uma escritura do amor.
Embora a língua do gesto e a da voz sejam igualmente naturais; con-
tudo, a primeira é a mais fácil e a que menos depende das convenções:
pois mais objetos atingem os nossos olhos do que nossos ouvidos, e as
figuras têm maior variedade do que os sons; são também mais expres-
sivas e dizem mais em menos tempo.
O amor, fala-se, foi o inventor do desenho; também foi o inventor da
fala, mas com menos felicidade. Pouco satisfeito com ela, ele a des-
preza: tem mil maneiras mais vivas de exprimir-se quanto dizia a seu
amante aquela que, com tanto prazer, lhe traçava a sombra. Que sons
teria ela empregado para traduzir esse movimento de vareta?2
Nenhum olhar pode ser neutro, e o desenho – assim como a fotogra-
fia – é interpretação da realidade que dá margem a dúvidas, críticas e
reinterpretações, são representações que remetem ao pensamento fi-
losófico. O desenho não pode ser interpretado de forma burocrática,
engessada, é uma metodologia em aberto, como o processo criativo.
Tal processo – por seu lado – é inerente a toda atividade criativa, da
arte à ciência. O desenho é o espaço da proliferação, da promiscuidade,
do fragmento, da colagem, da ambiguidade, da dicotomia, do acaso, do
aleatório, do acúmulo, da justaposição, do paradoxo.
O desenho é um meio de atingir e de representar percepções dos múl-
tiplos sentidos que ainda não estejam totalmente conscientes. Por meio
do desenho, como um oráculo3, é possível olhar para fora e vislumbrar o

1 ROUSSEAU, apud DERRIDA, Jacques. Gramatologia. Tradução: Miriam


Chnaiderman e Renato Janine Ribeiro. São Paulo: Perspectiva, 1999, p. 223.
2 ROUSSEAU, apud DERRIDA, op. cit., p. 285.
3 WATSON, Charles. Processos criativos: workshop de pensamento criativo e

156
que há por dentro. É um meio direto para tocar percepções não verbais,
é uma ferramenta para formular o pensamento, representar, traduzir.
O ato de desenhar, de registrar um pensamento modifica a relação que
temos com ele, abre possibilidades de análise, interpretação e crítica,
reflexão e discussão. No desenho por computador, as possibilidades de
erro são limitadas e calculadas, e não há espaço para caminhos tangen-
tes, para o pensamento divergente. Robert Mugerauer4 escreveu um
artigo sobre o pensamento de Derrida no qual propôs um questiona-
mento sobre a relação do edifício com a realidade, numa interpretação
da arquitetura como discurso capaz de modificar códigos e convenções.
Ele afirmou que o pensamento de Derrida se contrapõe ao de todos
os teóricos e críticos que, ao longo do século XX, interpretaram os
exemplares arquitetônicos como representações do real. Derrida seguiu
a linha do pensamento de Nietzsche ao propor uma desvalorização
niilista e subjetivista da concepção da verdade.
Na apresentação realizada por Mugerauer, para Derrida, toda a civili-
zação ocidental “finge” acreditar na existência de verdades metafísicas
transcendentais, que são subjacentes a todo o pensamento filosófico.
A cultura ocidental torna-se opressiva, porque sua construção está as-
sentada sobre falsas premissas, com o objetivo de proporcionar uma
sensação de conforto – que é ilusória. As verdades metafísicas sobre as
quais se funda toda a filosofia ocidental são questionáveis, não passam
de ilusões. “Fingimos” que acreditamos numa metafísica transcenden-
tal, como estratégia para obtermos uma paz de espírito que é pura-
mente aparente. Esta crença em verdades absolutas fundamenta todo
o conhecimento e cria uma sensação de conforto e de segurança; neste
sentido, que a fé traz consigo a paz espiritual.
Ou seja, a desconstrução desmistificou as verdades absolutas, que funda-
mentaram o logocentrismo. Para a desconstrução, não existe nenhum
pensamento que não possa ser contestado, tudo está em discussão, as

conceitualização, processo criativo módulo 3 visualização, Porto Alegre, 30 de


outubro a 1 de novembro de 2014.
4 MUGERAUER, Robert. Derrida e depois. In: NESBITT, Kate (org.). Uma
nova agenda para a arquitetura: antologia teórica: 1965-1995. Tradução Vera Pe-
reira. São Paulo: Cosac & Naify, 2006, p. 199-217.

157
verdades dependem do ponto de vista, da opinião. A desconstrução pro-
põe estratégias de pensamento que desmontam categorias e conceitos.
O pensamento de Derrida dissecou os fundamentos da cultura, le-
vantou o tapete para revelar a sujeira escondida, para mostrar os furos,
abriu conceitos, questionou e desestruturou verdades: revelou que não
há nada por baixo. O solo firme, responsável pela sustentação das fun-
dações, da estrutura, dos pilares do conhecimento da civilização oci-
dental é uma ilusão, ou é a ilusão.
Não há profundidade, tudo está na superfície, e a superfície está repleta
de dobras, pregas, vãos e bordas. A superfície lisa, uniforme e ideal é
uma abstração, é um conceito ideal. Os trabalhos de Bernard Tschu-
mi, Peter Eisenman e Daniel Libeskind – entre outros – exemplificam
essas ideias, ou melhor, materializam estes conceitos. A desconstrução
provou que a existência de verdades filosóficas era pura ilusão, era fruto
de um grande desejo de acreditar em verdades sólidas. As verdades
científicas vieram substituir a fé em Deus e assim, o par ciência e tec-
nologia transformou-se na religião do século XX. O desmonte desta
ilusão é a desconstrução e é ele que fundamenta a crítica de Derrida à
cultura contemporânea – e à arquitetura por extensão. A desconstrução
não é uma crítica à arquitetura moderna, como o foram as manifesta-
ções pós-modernas, mas sim uma crítica à arquitetura, como sistema
de pensamento. A desconstrução é uma crítica ao pensamento, à cultura
e à própria civilização ocidental. Desmontou a ilusão de objetividade,
as certezas. A desconstrução é uma crítica às certezas. Esta é a resposta
de Derrida à questão sobre a relação entre os edifícios e a realidade.
Ao final da era moderna, apenas a arte – em nosso caso a arquitetura
– pode dar uma resposta à vida. A arte é a única área da cultura que es-
capa ao conceito metafísico de verdade, escapa à tirania da ilusão. Isto
porque a arte cria outro plano de ilusão, porém é uma ilusão consciente
de sua qualidade ilusória. Uma ilusão honesta.
A arte não pensa que é verdade, não quer ser absoluta, não tem a pre-
tensão de ser definitiva. Não quer provar nada: apenas é. No domínio
da arte, as verdades não são estruturais, nem definitivas. A arte não
evolui, a arte muda. A arte é fruto de seu contexto, e não existe fora
dele. E a transitoriedade de conceitos reflete as modificações cons-

158
tantes dos contextos histórico, cultural, social etc. A desconstrução das
linguagens visuais seria uma proposta capaz de desfazer a relação fal-
sa entre verdade e realidade porque materializaria múltiplos signifi-
cados. A desconstrução desatou o nó central da relação entre forma e
significado, o nó da significação. A representação materializa o desejo,
a vontade, o pensamento. Os gestos materializados nas obras de arte
desconstroem ilusões românticas ou ingênuas devidas a interpretações
inadequadas da representação em arquitetura. Ao escaparem das con-
venções, seus processos poderiam ou libertar-se e se tornar irrealidades,
ou definiriam novas convenções tornando-se assim novas realidades.
Mugerauer apresenta um esquema do pensamento de Derrida, ao de-
finir o que considera como seus conceitos norteadores. O conceito de
“presença” constituído pelos pares de oposições presença / ausência,
verdade / ficção, identidade / diferença, morte / vida, que constituem
dimensões lógicas e metafísicas. Em sua crítica ao pensamento logo-
cêntrico, Derrida perverteu esta lógica dualista ao considerar que toda
a cultura ocidental se fundamenta em premissas fictícias.
Os fundamentos da cultura ocidental seriam falsos, e o primeiro deles
é o da presença, ou permanência. A oposição entre os pares concei-
tuais presença / ausência, identidade / diferença, verdade / ficção, vida
/ morte é dada como inquestionável. Toda a cultura ocidental desen-
volve-se sobre a lógica metafísica das oposições entre tais conceitos.
Para a crítica da razão metafísica, desenvolvida por Derrida, esta asser-
ção constitui uma estratégia que conduz à aceitação de uma inteligi-
bilidade do mundo. A metafísica constituiu uma estratégia para obs-
curecer as limitações e as dificuldades do homem (e de toda a cultura
ocidental) em compreender e explicar o mundo.
Derrida desmascarou a estrutura do pensamento logocêntrico, desnu-
dou a cultura ocidental, mostrou que não há nada sobre o pedestal, que
a moldura está vazia. Mas este vazio é cheio de significado. O vazio
é a verdade. O nada é tudo. Para ele, as verdades transcendentais que
– supostamente – sustentariam a construção de todo o pensamento
ocidental não são absolutas, são afirmativas frágeis e refutáveis. Muge-
rauer invocou a criação artística, dentro deste contexto. A filosofia é a
arte de pensar, filosofar é exercer o livre pensar, questionar, o diálogo,

159
é descobrir sentido, criar sentido e dar sentido. Ao longo da história,
o pensamento materializou-se nas ações, nas realizações, na criação e
confecção de artefatos e de ideias. A criação artística é fruto da neces-
sidade e da liberdade do pensamento, somadas ao conhecimento.
As ficções “substância” e “Deus” (colocadas entre aspas por Mugerauer)
são frutos do desejo e da necessidade de dar sustentação a um projeto
que prescinde de centro. Para ele, esta é a ruptura no pensamento oci-
dental, apontada pela abordagem de Derrida, que manifesta um des-
locamento destrutivo. “O projeto ocidental não tem nenhum centro
viável por mais que ele indubitavelmente seja necessário.”5
A realidade, o significado e o conhecimento sobre estas verdades não
dão conta de explicar, de fundamentar, de dar coerência e unidade a to-
dos os campos do conhecimento, à ciência, à tecnologia, à filosofia e às
artes. A metafísica oculta esta falta, ignora a ausência do fundamento
central e trabalha sobre esta ilusão, sem nunca enfrentar o problema de
maneira direta. Esta explicação, dada por Mugerauer, é uma chave para
a compreensão dos textos de Derrida, que muitos de seus estudiosos e
comentadores não atingiram. Ele não nega o sentido, ele apenas não
acredita que o sentido esteja contido em uma fórmula, e que esse sen-
tido seja absoluto. O sentido é muito maior, não está contido em uma
asserção, não está ao nosso alcance. O sentido está além.
O que está oculto é a diferensa. A differánce. A diferensa é o que se
infiltra entre as diferenças. A diferensa é o que a filosofia tradicional
ocultou durante os últimos 2000 anos, ao longo da história do pen-
samento ocidental. A ilusão, o sonho, a fantasia, são o que alimenta
o pensamento, a imaginação, a criação. O sonho e a fantasia são in-
dispensáveis para a vida, para a arte e para o próprio pensamento. É a
fantasia que permite a superação dos limites, mas ela mesma tem seus
limites. Limites que exibem as diferenças e a diferensa.
E a diferensa não é mais uma ilusão, ela é aquilo que sobra, entre a obje-
tividade e a ilusão, entre a suposta verdade e o possível, é o resto, o que
não se enquadra nas definições. Para Derrida, a diferença entre os pares
de oposições – como, por exemplo, presença e ausência – é tensa e pos-
sibilita que haja prioridade de um dos elementos do par sobre o outro;

5 MUGERAUER, op. cit., p. 202.

160
no exemplo dado, prioridade da presença sobre a ausência. O mesmo
vale para as demais oposições, como ser / seres, identidade / diferença.
Esta diferensa não constitui um fundamento, não tem origem nem fim,
é um elemento de diferenciação constante.
Mugerauer explicou que Derrida empregou o termo diferensa num
duplo sentido: como diferir e como deferir. Afirmou que o ato de di-
ferir tem o sentido de estar separado em termos de espaço e acrescenta
que nada pode ser “presente ou idêntico a si mesmo”, uma vez que uma
identidade original também não existe. Nem mesmo o tempo presen-
te ou a própria consciência tem esta condição de identidade consigo
mesmo. O significado de deferir indica uma separação temporal. Mu-
gerauer salienta que nada tem a condição de estar – sempre – com-
pletamente presente e que mesmo o presente está sempre atrasado.
Se consideramos que as dimensões da realidade tornam-se objetivas
no espaço e no tempo, para Derrida, em nenhum momento uma coisa
pode se dar como ela mesma, na plenitude de sua identidade.
Entre a ideia e a coisa, sempre fica uma brecha, entre a fruta e o caroço,
entre a coisa e ela mesma, sempre reside um elemento de ausência no
cerne da presença. E no fundo e a rigor, a diferença é de fundamento e
esta diferença é fundamental.
O ambiente construído pela da arquitetura comparece como um cam-
po de expressão e de experimentação para este pensamento. A arquite-
tura entra em cena, então, para espacializar o pensamento de Derrida.
Mesmo que sua filosofia não seja compreendida, o jogo espacial e visual
do objeto arquitetônico propõe uma estética carregada dos significados
da desconstrução. Por meio da arquitetura, a filosofia vai sendo vivida e
metabolizada conceitualmente, pela cultura e pelo público, ao longo do
tempo. A compreensão do fenômeno e dos significados, que estão no
fundamento filosófico do projeto se dá lentamente pelo uso, da vida
que ocorre dentro e fora, no edifício, na cidade e em suas relações es-
paciais. A arquitetura incorpora o sentido, a filosofia e o pensamento
com o projeto e a durabilidade, característica do objeto arquitetônico.
Tradicionalmente, a arquitetura construída, ou os edifícios, demoram
a absorver e a expressar as mudanças filosóficas e o pensamento do seu
tempo. Pelas suas especificidades, que envolvem concepção, projeto e

161
execução, além do desenvolvimento técnico compatível com as novas
soluções, o processo de criação em arquitetura é muito mais lento do
que nas outras modalidades de expressão artística, tais como pintura,
escultura, dança, música.
O sentido se faz presente ao longo de todo este processo, mas o resultado
pode demorar anos para se materializar e para se fazer presente no am-
biente construído e para ser lido e vivido: vivenciado espacialmente.
As rupturas formais pós-modernas e desconstrutivistas inverteram esta
tradição: a arquitetura foi uma das primeiras manifestações artísticas
a representar estas linguagens expressivas. Talvez, de maneira violenta
e até mesmo inadequada, a arquitetura assumiu o papel de vanguarda
artística e as obras de arquitetura rapidamente tornaram-se exemplos
eloquentes e populares do pós-moderno e da desconstrução.
Por outro lado, a permanência do exemplar arquitetônico ao longo do
tempo permite que seu significado se prolongue por gerações, déca-
das, ou até mesmo por séculos, ao longo dos quais os seus efeitos se
multiplicam e se desdobram. Neste intervalo de tempo, as diferensas
têm oportunidade de se multiplicarem, com a sobreposição e com a
fragmentação do olhar e dos olhares, por meio de múltiplos pontos de
vista. No contexto da cultura ocidental, a metafísica privilegia os pri-
meiros termos dos pares conceituais como, por exemplo, a presença, o
ser e a vida; para tanto, propõe a anulação de seus opostos: a ausência,
os seres e a morte. Esta supressão é confortável e produz uma sensação
de bem -estar que permeia todas as atividades humanas e as mais dis-
tintas áreas do pensamento e da cultura.
Para Derrida, a desconstrução significou uma maneira de romper com
o ciclo de ilusões e de falsidade. O filósofo francês acreditava na ne-
cessidade de estabelecer um confronto e de enfrentar o indecidível e o
ininteligível. Acreditava na necessidade de contrapor-se à falsa satis-
fação produzida pela ilusão, em nome da honestidade e da coerência e
buscar a liberdade. A desconstrução seria então uma técnica a serviço da
liberdade, uma forma de combater e de destruir as estratégias fictícias
e enganosas. Para conquistar a liberdade, é preciso desconstruir as falsas
relações estabelecidas entre a cultura e o ambiente construído. O mun-
do em que vivemos representa a mentira e a falsidade que comanda

162
estas relações, a história, a sociedade e a metafísica da presença.
Mugerauer considerou uma tática estratégica o fato de Derrida não ter
se questionado sobre a existência, ou não, de uma realidade construída.
A questão, para o filósofo, é que nada existe simplesmente como pre-
sença completa; a arquitetura não está objetivamente no mundo, para
ser apenas percebida e compreendida.
As cidades e os edifícios não são dados objetivos aos quais os textos
fazem referências. Para Derrida, considerar a casa como uma realidade
objetiva é uma impostura metafísica, porque parte de uma superiori-
dade, ou de uma anterioridade da casa com relação ao pensamento.
Pelo princípio da diferensa, a presença vem sempre acompanhada da
ausência, e a própria casa é também signo de algo. A casa é, ao mesmo
tempo, objeto e signo ou referente de algo que não está presente. O
sentido deste objeto está relacionado com toda uma rede de significa-
dos: não pode ser isolado em uma verdade absoluta.
Na visão de Derrida, o mundo é um texto. E todas as coisas do mundo,
incluindo o espaço habitado, os objetos naturais e os artificiais, fazem
parte da imensa e complexa rede de significados que formam este texto.
Todas as coisas do mundo estão relacionadas entre si e formam um
tecido intrincado de traços que não possuem existência autônoma, fora
desta rede de relações.
Todas as coisas são também signos, porque se referem a outras coisas
que não estão presentes, a presença de um objeto sempre faz referência
a outros elementos que estão ausentes. Este é o jogo entre presença e
ausência. É por isso que a ausência vem sempre junto com a presença,
ou a presença traz a ausência junto consigo. Não há como separá-las.
As coisas não têm existência singular fora desta intrincada rede de
relações. É impossível isolar uma coisa de seu contexto.
Mugerauer explicou usando o exemplo das pirâmides, cujo significa-
do não está na sua fotografia, nem pode ser apreendido apenas por
uma visita ao local. A visita, momento de presença, deve ser comple-
mentada por outros registros escritos e documentos que nos permitem
compreender parcialmente o significado daqueles monumentos. O co-
nhecimento da história, dos fatos políticos e culturais e das práticas
religiosas ainda não é suficiente para dar conta de toda a complexa

163
significação da pirâmide. Mas a falta destas informações tornaria este
objeto vazio de significado, pela ausência de um passado. O conheci-
mento histórico cria laços entre o objeto e o seu passado, enlaça a vida
com a história pr meio da linguagem. A estrutura significativa incor-
pora as diversas modalidades de discurso e entrelaça os seus múltiplos
sentidos. A linguagem das coisas, e também dos edifícios, é dada pelo
seu caráter, que necessita da interpretação de seu sentido enquanto
signo. Esta interpretação é feita pela linguagem e as suas relações com
a rede de signos constitui sua própria linguagem. Mugerauer afirmou
também que é por meio da linguagem que se dá o acesso a uma ver-
dade fundamental; por exemplo, a filosofia e a ciência criam condições
para o desenvolvimento da engenharia e da arquitetura. Mas o autor
lembra ainda que, para Derrida, esta ideia de que a linguagem pode
representar uma realidade objetiva, que fundamenta toda a tradição da
cultura ocidental. É uma ilusão, que acarreta uma série de problemas
no desenvolvimento da metafísica, como foi relatado anteriormente.
A diferensa evidencia que o signo e o significado sempre diferem. O
signo presente significa algo que está ausente, uma presença que falta,
no momento, o que implica numa protelação, ou que defere. Para Mu-
gerauer, esta é a questão central do pensamento de Derrida, a ideia de
que o signo jamais coincide com o significado. O significante nunca é
igual ao significado, o conceito nunca é igual à coisa, conceitos e coisas
não são nunca idênticos a si mesmos. Assim sendo, diferença e protela-
ção multiplicam-se e se sobrepõem, continuamente, fazendo com que
toda a rede de significantes se movimentem também.
A linguagem é constituída por esta cadeia de significantes, remetendo
a significados que são dados pela posição relativa que ocupam dentro
da história das diferenças de suas significações. As cadeias de signi-
ficantes, por sua vez, formam sistemas de significações mutáveis, por
vezes obscuras, com a característica de instabilidade.
Este caráter obscuro das relações binárias dominadas pela diferensa
torna inadequada uma tentativa de compreensão da natureza sem a
cultura, ou da teoria sem a prática. Vivemos este sistema de diferenças
infinitas. A afirmativa categórica de Derrida – de que não há nada
fora do texto – significa que é impossível sair da linguagem para es-

164
tabelecer um centro para este sistema. Para ele, a aceitação deste des-
centramento é uma questão de honestidade. É diferente de verdade,
porque honestidade não pressupõe o absoluto, mas sim a existência e
a aceitação de limites. É uma questão de humanidade, de humildade,
de valores e de princípios, não procura o certo, a perfeição, o centro:
procura o humano. O pensamento de Derrida funda-se no humano e
na aceitação dos limites.
Quando afirmou que o significado não é absoluto, a ideia de Derrida
ia muito além de um relativismo ou contextualismo cultural, tornou-se
radical. Fundamentava o seu conceito em duas questões.
Primeiro, que a cultura é arbitrária e autoritária, seus postulados não
têm fundamento; segundo, que não há como escapar desta cultura. A
cultura ocidental fundamenta-se na imposição de conceitos que privi-
legiam um termo do par em detrimento do seu oposto, posição que se
alterna ao longo do tempo, no processo histórico.
Para ele, a cultura é apenas um jogo de diferenças e de relações, que se
desenvolve a partir da aceitação da ocorrência de situações descentra-
das. Isto conduz a uma radicalização, na qual os significados desapare-
cem e dão lugar a um jogo arbitrário entre significantes e significados.
Assim, a partir do jogo livre de significações, compreende-se de que
maneira Derrida chegou a afirmar que tudo que existe é interpretação.
Mas esta interpretação não está solta e sim interconectada e relacio-
nada a uma evolução histórica da linguagem e das interpretações. Par-
tindo do princípio de que não há realidade objetiva, princípio este que
deve ser aceito com honestidade, é possível ficar aberto a novas refe-
rências – mergulhar intencionalmente, conscientemente e com toda
a liberdade no jogo das diferensas. Já que não se tem a pretensão de
chegar a uma verdade ou a uma interpretação verdadeira, as interpre-
tações realizadas estão sempre em processo, sempre abertas a novas re-
significações, novas considerações e novas conclusões. As conclusões
serão sempre provisórias. Derrida não acredita numa teoria; por isso,
não propõe uma teoria, mas sim uma estratégia, um mecanismo de
pensamento que seja libertador. Uma estratégia capaz de nos libertar
das interpretações impostas pela metafísica tradicional. Que seja ca-
paz de nos libertar da obsessão pela verdade e pela origem das coisas.

165
Propõe a autonomia do pensamento com possibilidades irrestritas de
relações e conexões, sentidos, poesia, configurações, sem as amarras das
verdades e dos significados absolutos. O compromisso é com os valores
humanos, é a honestidade e a liberdade de pensamento mesmo.
O único compromisso do pensamento deve ser esta honestidade con-
sigo mesmo. Não necessita buscar a verdade, nem ser coerente, nem
seguir teorias, significados ou conceitos rígidos e imóveis.
Neste sentido, é possível afirmar que Derrida não é retórico, Muge-
rauer demonstra que o seu pensamento é profundamente poético.
A desconstrução é produtiva, é poética no sentido de que constrói um
pensamento claro, aberto e liberto de ilusões e de preconceitos, cria
estratégias para o pensamento. A desconstrução é poética no sentido
de que abre infinitas possibilidades e meios para a criação artística.
Esta estratégia consiste em procurar as exceções, os casos especiais,
as variações a fim de expor as diferenças ao invés de tentar dissimulá
-las. Consiste em buscar variações nas interpretações habituais, mudar
contextos, desfazer os caminhos usuais. Trabalha com casos marginais,
aspectos ambíguos ou não resolvidos, que evidenciam as diferensas.
A desconstrução coloca em evidência as falhas na construção metafísica
do mundo. Na contramão da estética tradicional, a desconstrução não
busca a unidade e a harmonia; ao contrário: realça as ambiguidades, as
incoerências, as duplicidades, as falhas, a fragmentação. A desconstrução
evidencia as contradições que existem dentro dos próprios textos.
O texto contém em si mesmo elementos que se tornam dominantes
pela sua oposição, como pares binários; simultaneamente, expõe ra-
chaduras, fendas, espaços através das quais se podem encontrar traços
de outros elementos escondidos, realidades subjacentes, co-habitantes.
A desconstrução explora estas falhas e estas fissuras. A estratégia da des-
construção é o emprego de deslocamentos, que expõem as diferensas
de forma violenta: questionam o sistema de oposição dos pares biná-
rios, ao inverterem a sua relação. Mugerauer exemplificou com o par
significante / significado que, na cultura ocidental, tradicionalmente
privilegiou o significado.
O significado tem sido compreendido como uma realidade absoluta, à
qual o significante é subordinado, mas Derrida inverteu esta lógica, ao

166
evidenciar as diferensas: o significado não é absoluto e o significante
também tem um significado por si mesmo. O significado é ausente e é
postergado, e assim, pode deixar de ser compreendido como prioritário
em relação ao significante. O significante está presente, mas é preteri-
do –hierarquicamente – em relação ao significado. Esta inversão põe a
diferensa em destaque.
O emprego da estratégia do deslocamento acentua a instabilidade do
sistema e assim acarreta uma sucessão de novos deslocamentos.
A exposição das fissuras em um texto dá surgimento a outros textos, e
assim o deslocamento se dissemina de forma generalizada pelo siste-
ma. O deslocamento expõe e torna visíveis as fissuras do texto.
Isso, para Derrida, consiste numa violência contra a tradição é o que
constitui a impossibilidade de explicar todas as coisas por meio dos
signos, já que a interpretação dos sistemas de signos, em si mesma
configura um outro sistema. Ao abolir a dominação de um termo com
relação ao outro, a desconstrução propôs desalojar a própria cultura do-
minante. A proposta é provocar, fazer pensar, desafiar, nada está dado
como pronto, como verdade ou como beleza. O fundamento da com-
preensão tradicional foi removido – aparentemente – e assim todo
o sistema de operações e significados foi subvertido. A desconstrução
aboliu aquelas identidades de sentido, falsas, mas reconfortantes, que
suprimiram a diferensa, na metafísica tradicional.
Assim, a estratégia do deslocamento aplicada sobre a metafísica da
presença aboliu os sistemas de poder estabelecidos através das relações
hierárquicas tradicionais. Este foi o sentido da estratégia adotada.
A intenção de Derrida não foi destruir, e o neologismo desconstru-
ção foi o termo encontrado para referir este processo. A desconstrução
não destrói nem o centro e nem as hierarquias, nem mesmo a tradição
metafísica porque, para o filósofo, a ficção é necessária e é mesmo
inevitável, para tornar possível a existência de algum tipo de cultura.
Ele não pretendeu o fim da ficção, mas apenas reformular sua posição
hierárquica, pelo próprio fato de admitir a ilusão que há ao seu redor.
A preocupação de Derrida referia-se a situar os pares de opostos e
mesmo a sua hierarquia, dentro do contexto do sistema linguístico, de
tal forma que ele continuasse a funcionar, mas sem permitir o estabele-

167
cimento da ilusão e nem de processos de valor como o etnocentrismo,
o sexismo ou o totalitarismo. Sua posição pode ser interpretada como
cética ou cínica, mas – para ele – é simplesmente honesta.
E é assim que Derrida nos conduz à questão do ambiente construído e
de suas relações com a cultura. Estas relações também se fundamentam
em ilusões que dão origem a falsos confortos. A única maneira de nos
libertarmos destas ilusões e falsidades está na desconstrução das relações
dicotômicas hierarquizadas de forma arbitrária. Edifícios e culturas são
objetos artificiais; edifício / natureza constitui um par dicotômico fun-
damental, decorrente do par cultura / natureza. O ambiente construído
constitui uma das representações mais importantes da cultura. E seu
propósito é servir a esta cultura.
Desconstruir a oposição entre espaço construído e natureza acarre-
ta uma inversão destes termos, uma tentativa de provar que a cultura
pode não ser construída, que seja capaz de apagar a diferensa entre um
e outro termo. Apagar a diferença entre o mundo construído e a natu-
reza, estudando a cultura como objeto das ciências humanas.
A cultura pode ser concebida como um ambiente construído. A des-
construção em arquitetura se daria por meio do deslocamento da ficção
de que o edifício constitui uma manifestação da presença da cultura no
ambiente. A obra construída tem o poder de revelar fissuras da cultura,
que ficam expostas na arquitetura. De acordo com Mugerauer, para
Derrida, a desconstrução em arquitetura pode ser um mecanismo para
evidenciar as fissuras entre a cultura e a natureza, ao analisar o espaço
construído como uma materialização desta cultura.
“A desconstrução por meio da arquitetura envolveria a análise da ficção
de que a presença da cultura se comprova no edifício, mostrando como
a construção subverte ou desvela fissuras nos objetivos de presença e
identidade desejados pela cultura.”6
A desconstrução em arquitetura viria a ser, deste modo, uma interpre-
tação do ambiente construído sob um ponto de vista distante das hie-
rarquias arbitrárias relativas aos pares dicotômicos da metafísica tradi-
cional. Esta estratégia teria como objetivo a desconstrução das relações
entre o espaço construído e a cultura, por meio de uma compreensão

6 MUGERAUER. op. cit., p. 207.

168
mais abrangente das relações entre cultura e natureza.
Para Mugerauer, o pensamento de Derrida iluminou a compreensão
da arquitetura moderna e também da pós-moderna. E parece que se
pode ir além, para afirmar que a desconstrução tem um grande valor
como ferramenta conceitual para a compreensão de toda a cultura e
da arte contemporânea. O processo de criação em arquitetura bebe nas
mesmas fontes que as demais manifestações de arte contemporânea,
mas a obra final não pode deixar de atender às demandas objetivas
representadas pelas condicionantes de programa (utilitas), construção
(firmitas), estruturas formais (venustas) e lugar.
O pensamento desconstrutivista atinge o pensamento arquitetônico, em
todas as suas etapas, da análise à conceituação e ao processo de criação.
A arquitetura incorpora a contribuição da arte e da desconstrução do
pensamento, na modificação da percepção espacial e para a conceitua-
ção da relação do corpo com o espaço.
Originada na teoria literária e na filosofia, a desconstrução tem a pecu-
liaridade de introduzir o elemento crítico, na leitura. Derrida partiu
da leitura de Heidegger e assumiu a postura crítica de Nietzsche, para
propor estratégias de leitura, que desconstroem o texto.
A desconstrução é uma postura filosófica investigativa e crítica: não é um
estilo, nem um movimento. O rótulo, ou a classificação dentro do que
tem sido considerado como uma corrente ou linha de trabalho só vem
prejudicar o desenvolvimento da teoria da arquitetura e a incorporação
do elemento crítico. Como ele explica e demonstra no filme “D’Ailleu-
rs Derrida”, de Safaa Fathy, o sublime é o que está reprimido para cima,
é o que desce para cima. É o sótão, o espaço onde o filósofo guarda
os seus livros, seus interlocutores, toda a história da filosofia. Derrida
filosofa, cogita, pensa, ele faz filosofia, o seu texto é pensamento vivo.
Já que a hospitalidade nunca é incondicional, ocorre uma ambivalência
entre a lei da hospitalidade –ampla e geral, universal – e as regras da
casa, que dizem respeito aos costumes e são específicas e limitadoras.
Esta ambivalência conduz a questões éticas, morais e políticas.
A dimensão filosófica do desenho que discute a própria linguagem ao
estabelecer confrontos que expõem as dicotomias entre representação
e desconstrução da forma, história e contemporaneidade, entre figura e

169
fundo, dentro e fora, linha e mancha. Fragmentos gráficos são enrique-
cidos pela espontaneidade do traço, do risco; a perspectiva dos volumes
é enfatizada ou contrariada pela representação das sombras e da luz,
esboços reduzem os elementos gráficos ao traço mínimo, essencial. A
presença de símbolos, signos, letras ou citações gráficas insere camadas
de história, cultura, erudição, através de linhas, esquemas, releituras.
Limites e aspectos ou elementos inacabados agregam significados.
A riqueza e a vida dos espaços públicos manifestam-se na sua con-
figuração formal e também no desenho dos seus diversos elementos,
como tipologias das construções, calçadas, equipamentos urbanos, mo-
biliário, materiais, vegetação e suas próprias dimensões e relações, luz
e clima. O desenho de observação é uma ferramenta de análise, crítica
e desconstrução da paisagem da cidade, dos espaços e dos elementos
que a compõem. O desenho tem a liberdade do gesto, a linha é a re-
presentação das percepções da paisagem da cidade, na linguagem do
corpo, numa expressão natural, livre da rigidez dos códigos estabeleci-
dos. Uma linguagem capaz de acolher e integrar fragmentos, tolerar e
respeitar diferenças, misturar realidade e fantasia, com liberdade, como
a desconstrução. O desenho tem a hospitalidade como fundamento, in-
clui o estrangeiro, o vadio, o fantasma e dá vida ao estranho, ao novo,
ao incompreendido.

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Referências bibliográficas.
DERRIDA, Jacques. Gramatologia. Tradução: Miriam Chnaiderman e Renato Janine Ribeiro.
São Paulo: Perspectiva, 1999, p. 223.
MUGERAUER, Robert. Derrida e depois. In: NESBITT, Kate (org.). Uma nova agenda para a
arquitetura: antologia teórica: 1965-1995. Tradução Vera Pereira. São Paulo: Cosac & Naify,
2006, p. 199-217.
WATSON, Charles. Processos criativos: workshop de pensamento criativo e conceitualização,
processo criativo módulo 3 visualização, Porto Alegre, 30 de outubro a 1 de novembro de 2014.

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SOBRE OS AUTORES

BEATRIZ REGINA DORFMAN. Arquiteta e Urbanista e Artista


plástica, doutora em Teoria, História e Crítica da Arquitetura (PRO-
PAR UFRGS), especialista em Expressão Gráfica (FAU PUCRS).
Professora e pesquisadora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo
da PUCRS. Publicou os livros: Beaubourg e Bilbao: o poder da ima-
gem na sociedade do espetáculo; (2004) e: A arquitetura e a diferença
(2014), abordando as relações entre arquitetura, arte e filosofia.
bdorfman.art@gmail.com

CELMA PAESE (org.), arquiteta e urbanista graduada pela UNIRI-


TTER (1985). Doutoranda em arquitetura do PROPAR-UFRGS,
mestra em Arquitetura pelo PROPAR-UFRGS (2006). Foi profes-
sora convidada da Faculdade de Arquitetura da TU Wien, em Vie-
na, Áustria (2014) e da Faculdade de Arquitetura da Universidade de
Roma 3, em Roma, Itália (2013). É professora da Faculdade de Arqui-
tetura e Urbanismo da Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC.
Autora do livro Caminhando – o caminhar como prática socioestética
e estudos sobre arquitetura móvel (EDUNISC – 2015).
celmapaese@gmail.com

JONATHAN FAJARDO CABRERA. Doutorando em Teoria da li-


teratura na PUCRS e bolsista CNPq. Mestre em filosofia na PUCRS.
Graduação em Filosofia y letras da Universidad de Nariño - Colôm-
bia. Pesquisa o relacionado ao pensamento da alteridade e da diferen-
ça; estudos animais; as relações entre filosofia, artes e literatura. Foi
professsor no curso de Formação humanística: Metáforas Cotidianas
da Universidad de Nariño - Colômbia.
adveric13@hotmail.com

MARCELO KIEFER (org.) pós-doutor (2015) e doutor (2013)


na área de preservação e arquitetura social pelo PROPAR|UFRGS.
É mestre na área de preservação (PROPAR/2005). Graduou-se em
Arquitetura pela UFRGS (2001), onde lecionou em disciplinas de

173
projeto. Foi professor da ULBRA|RS. Integra o grupo de pesquisa
Arquitetura, Derrida e Interconexões. Trabalhou na Kiefer Arquite-
tos (1998/2006). Foi sócio fundador da C.E.M. (2003/2010), elabo-
rando e executando exposições. Atualmente, é sócio na J&K Arqui-
tetura (projetos e obras) e atua como arquiteto do Parque Científico e
Tecnológico da UFRGS.
marcelo@kiefer.com.br

PAULO AFONSO RHEINGANTZ,  é arquiteto, doutor em


engenharia de produção, pós-doutor na California Polytechnic State
University, San Luis Obispo. Pesquisador 1D CNPq, líder do grupo
de pesquisa ProLUGAR, Professor Associado aposentado da UFRJ
com atuação no Programa de Pós-graduação em Arquitetura e Pro-
fessor Visitante do Programa de Pós-graduação em Arquitetura e
Urbanismo da UFPel.
parheingantz@gmail.com

PAULO REYES. Arquiteto e Urbanista, Especialista em Design


Estratégico, Mestre em Planejamento Urbano, e Doutor em Ciên-
cias da Comunicação. Professor Adjunto da Faculdade de Arquite-
tura da UFRGS, Departamento de Urbanismo; e Coordenador do
PROPUR/UFRGS - Programa de Pós-Graduação em Planejamen-
to Urbano e Regional.
Paulo.reyes@ufrgs.br

RICARDO ARAÚJO BARBERENA. Possui Graduação em Letras,


Doutorado em Literatura Brasileira e Pós-Doutorado em Teoria Li-
terária, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Coordena o Grupo de Pesquisa do CNPq  Limiares Comparatistas e
Diásporas Disciplinares: Estudo de Paisagens Identitárias na Contempo-
raneidade e o Projeto de Pesquisa Mapeamento da Personagem no Ro-
mance Sul-Rio-Grandense contemporâneo: 1990-2016. Professor Per-
manente do Programa de Pós-Graduação em Letras da PUCRS.
ricardo.barberena@pucrs.br

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Você também pode gostar