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De monge a bispo, das Sententiae Patrum Aegyptorum ao De correctione rusticorum:

a expansão de um ideal monástico para a sociedade laica da Galécia do século VI1.

Rossana Alves Baptista Pinheiro2

O bispo Martinho de Braga é amplamente estudado e conhecido como o


responsável pela recondução dos reis suevos ao catolicismo. Freqüentemente
exaltado pela historiografia como “Apóstolo dos suevos”3, as razões de sua ida para a
Galécia ainda estão encobertas pelas brumas da incerteza4, pois têm por base
narrativas hagiográficas que enfatizam ora sua relação com o Oriente ora com os reis
francos5. Segundo testemunho de Gregório de Tours, contemporâneo do bracarense,
Martinho teria se dirigido a Braga depois que emissários do rei Charrarico, um
monarca ariano, partiram da Gália carregando consigo as relíquias de Martinho de
Tours que possibilitariam a cura de Miro, filho do rei, que estava dominado pela lepra.
Com a cura milagrosa do herdeiro ao trono da Galécia, a recondução dessa família
régia ao catolicismo pôde ser realizada6. E isto aconteceu pelas mãos de outro
Martinho, monge e, talvez, descendente de panônios tal qual os suevos, os francos e
Martinho de Tours7.
Ao chegar à região por volta de 550, Martinho foi abade do mosteiro de Dume8
e em 556 foi consagrado bispo do local, sede episcopal criada exclusivamente para
ele. Ao bracarense, o rei Charrarico deu ainda a oportunidade de consagrar uma
basílica ao Confessor de Tours para a qual o bispo e abade de Dume escreveu um

1
Trabalho orientado pela Profa. Dra. Néri de Barros Almeida com financiamento da FAPESP.
2
Mestre em História pela UNESP/Franca.
3
OLIVEIRA, M. Lenda e história: estudos hagiográficos. Lisboa: União Gráfica, 1964, p. 57-77.
4
NASCIMENTO, A. Instrução pastoral sobre superstições populares. Lisboa: Cosmos, 1997.
5
ESPÍRITO SANTO, A. A recepção de Cassiano e das Vitae Patrum no século VI. Lisboa: Faculdade de
Letras da Universidade de Lisboa, 1993. Tese de doutoramento.
6
Ibid. e também em AMARAL, C. Vida e opúsculo de S. Martinho Bracarense. Lisboa: Typografia da
Academia Real das Sciencias, 1803.
7
Referência à discussão que envolve a descendência de Martinho de Braga a partir da leitura e
interpretação de seu poema Epitáfio. A origem panônia do bracarense foi primeiramente questionada por
SOARES, L. A linhagem cultural de S. Martinho de Dume. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda,
1997.
8
Segundo tese de Arnaldo Espírito Santo, o mosteiro de Dume provavelmente já existia antes da
chegada de Martinho e possuía uma biblioteca composta por obras de Sêneca e Cassiano, das quais o
bispo se utilizou para a elaboração de seus tratados. ESPÍRITO SANTO, A., op cit., p. 54.

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poema pedindo a ele que fosse padroeiro da Galécia9. Após sua consagração,
Martinho finalizou sua tradução dos ditos dos padres orientais para a instrução dos
monges de Dume10, escreveu tratados voltados à moralização da corte régia11,
participou em 561 do Primeiro Concílio de Braga e em 572 convocou o Segundo
Concílio de Braga como metropolita12, substituto do bispo Lucrécio. Seu empenho na
uniformização litúrgica e canônica das dioceses sob jurisdição de Braga e da
adequação da conduta de seu clero foi acompanhado pela preocupação com a difusão
de um cristianismo ortodoxo por esta região de monarcas arianos e tradicionalmente
considerada a terra do priscilianismo depois da morte de seu heresiarca13. Assim,
fazendo um mapeamento dos temas que aparecem na primeira obra escrita do bispo e
a comparando com seus outros escritos é possível refletir acerca da importância de
sua formação monástica na atividade pastoral que o consagrou como ator privilegiado
da cristianização da Galécia, hoje a região mais católica de Portugal14.
As Sentenças dos Padres do Egito são compostas por 109 apotegmas,
traduzidos do grego por Martinho de Braga15 a fim de servir à instrução de seus
monges em Dume. O bracarense não elaborou nenhuma regra monástica, portanto, a
princípio, este texto funcionaria como fim condutor e caracterizador da conduta dos
monges. Dentre os anciãos encontrados na tradução de Martinho de Braga somente
uma vez aparece um Antônio, que poderia ser identificado com Antão, mas cuja
relação não é explicitamente apresentada16. O abade que protagoniza a maioria das
narrativas é Poemen (em 13 das sentenças), seguido por João, Macarius e Moses (4
narrativas). Nesta obra, há uma diversidade de temas e histórias, mas pode-se buscar

9
“A Gália te escolheu por seu Pastor,/ Sê da Galiza ao menos Padroeiro!”. AMARAL, C. S. Martinho
Bracarense. Obras. Braga: Bracara Augusta, 1975, p. 7-8.
10
As Sentenças dos Padres do Egito. In: BARLOW, Cl. The iberian fathers. Washington: The Catholic
University of América Press, 1969.
11
A Regra da Vida Virtuosa. In: SÃO MARTINHO DE DUME. Opúsculos morais. Lisboa: Imprensa
Nacional/Casa da Moeda, 1998.
12
VIVES, J. Concílios visigóticos e hispano- romanos. Madrid/Barcelona: CSIC-Instituto Enrique Flórez,
1963.
13
O primeiro Concílio de Braga dedica dezessete cânones à anatematização do priscilianismo. Ibid.
14
Referência à região entre Douro e Minho, cuja capital, Braga, foi durante todo o período de existência
do reino suevo o local de sua sede política.
15
Na opinião de Arnaldo Espírito Santo: “[Sobre as sentenças] o que aqui temos não é de fato uma
tradução, mas sim uma reutilização de um texto grego para se escrever em latim outro texto, para outro
mundo, passando por outro tipo de sensibilidade literária”. ESPÍRITO SANTO, A., op cit, p. 123.
16
É justamente ao traduzir Allonius por Antônio que Arnaldo Espírito Santo identifica o pouco
conhecimento de Martinho de Braga da realidade monástica oriental, uma vez que desconhece um de
seus personagens importantes. ESPÍRITO SANTO, A., op cit.

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uma unidade em torno da temática do bom monge, da humildade e da ira. As


sentenças selecionadas por Martinho de Braga que definem o bom monge são as de
número 8, 16, 21, 23, 28, 39, 42, 58, 61, 63, 65, 75, 78, 83, 86, 89, 90, 93, 94, 106 e
109. Nestes ditos, os elementos que marcam o progresso e a boa conduta monástica
são a súplica, a constrição interior, o controle sobre a boca tanto na fala quanto na
alimentação, a vigilância sobre os pensamentos, o silêncio, a caridade, o exercício do
julgamento, a auto-crítica e a fuga da ira. Dentre as virtudes monásticas, a que
aparece maior número de vezes é a humildade e também há referência aos pecados a
ela correlatos: soberba e vanglória. A humildade é caracterizada nas sentenças como
a capacidade de devolver o bem ao mal recebido17, de se reprovar18 e expiar os
próprios pecados19, e como o rebaixamento pessoal para atingir a elevação da alma
aos céus20.
Esta virtude é também o tema de um dos tratados de Martinho de Braga
intitulado Exortação à humildade. Nele, ela é apresentada como a possibilidade de
superação dos dois pecados mais sérios e perigosos aos quais os homens estão
expostos, pecados estes que já haviam sido apresentados nas Sentenças: a vanglória
e a soberba21. Em Para repelir a jactância, o bispo diz ser este vício o contentar-se no
louvor humano, a alegria no reconhecimento pelos atos praticados na esfera terrena.
Neste sentido, a jactância, ou vanglória, provoca a crença de que o louvor, que deveria
ser dirigido a Deus, é próprio do homem e com isso, além de se afastar de seu

17
Apotegma 57: “Um irmão perguntou ao ancião: ‘O que é humildade?’ Ele respondeu: ‘Se alguém
devolve bom àquele que lhe fez mal, essa é a perfeita humildade’. O irmão disse: ‘E se alguém não for
bem sucedido em fazer isto?’ Ele replicou: ‘Ele deveria fugir e ficar quieto’. BARLOW, Cl., op cit, p. 28
18
Apotegma 60: “Abade Poemen disse com um sinal: ‘Todas as virtudes entraram na minha cela exceto
uma, e aquela da qual o homem depende’. Os irmãos perguntaram a ele: ‘Que virtude é essa, pai?’ O
ancião respondeu: ‘Que um homem deve sempre se reprovar’. Ibid, p. 28.
19
Apotegma 59: “Um irmão pergunto ao ancião: ‘como pode a alma atingir a humildade?’ Ele respondeu:
‘Pelo exame constante dos próprios pecados’. Ibid, p. 28.
20
Apotegma 58: “Um irmão perguntou ao ancião: ‘O que é o progresso para um monge?’ Ele respondeu:
‘Humildade, o que quer dizer que um homem ao se rebaixar em humildade, tanto faz que ganha o céu”.
Ibid, p. 28.
21
Os manuscritos dos três tratados de Martinho de Braga Para repelir a jactância, O mesmo acerca da
soberba e Exortação à humildade foram encontrados juntos, formando uma tríade, o que levou os
tradutores a considerá-los uma unidade, tanto pelo tema quanto pela junção dos tratados. Uma referência
interna do bracarense reforça a unidade se não do todo, ao menos entre os dois primeiros, quando ao
término de Para repelir a jactância diz: “Há muitas coisas que poderiam ser ditas desta peste contagiosa,
mas, uma vez que as suas muitas astúcias já serão claras para o homem avisado a partir destes poucos
indícios, passo agora para outro assunto, para explicar que vício pior é gerado a partir deste”. SÃO
MARTINHO DE DUME, op cit, p.69.

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Criador, o homem fica no desconhecimento de si mesmo22, pois: “quanto mais este


desejo inane de vanglória é satisfeito, mais é procurado, de modo que não há
nenhuma outra das suas obras que o homem mais cobice do que ser louvado, nem há
uma única coisa que lhe seja mais agradável do que receber a admiração de outrem
enquanto homem de renome. E, assim, enquanto cada um quer parecer maior do que
é na realidade, apodera-se hostilmente da glória do louvor que só é verdadeiramente
devida a Deus”23. Distanciar-se dessa busca vã pelo reconhecimento dos homens já
havia sido objeto do apotegma 56: “Um irmão perguntou ao ancião: ‘Você acha que é
bom ter uma boa reputação aos olhos dos homens?’ Ele respondeu: ‘Tal reputação
não confere virtude. Não deseje ter uma boa reputação com seu irmão; ao contrário,
evite isso”24. Tanto o escrito voltado para a instrução monástica quanto esse tratado
moralizante de público indefinido mantêm os mesmos pressupostos. Mas as
convergências não param por aí.
A vanglória dá origem a um pecado ainda maior e dele se distingue por ser o
contentamento no louvor humano, enquanto a soberba é a atribuição do resultado do
louvor a si mesmo e não a Deus25. Em O mesmo acerca da soberba, aparece uma
duplicidade na caracterização de público para quem o tratado é dirigido. Nele, o bispo
inicia sua exposição partindo do exemplo de David considerado em sua dupla função:
a religiosa e a secular26. O exemplo positivo de David, que pede a Deus que o afaste
deste vício, é contraposto ao ato de soberba mais importante da história da
humanidade porque gerador do próprio homem: a afronta do primeiro arcanjo na
tentativa de se assemelhar ao Criador e sua conseqüente expulsão do céu. Aqui,
Martinho de Braga recorda aos homens que Lúcifer, ao buscar a igualdade naquilo
que deveria ser desigual, só ocasionou sua descendência e perda de luminosidade:
“relembremos a queda do primeiro anjo, que, nomeado Lúcifer pelo esplendor da sua
formosura, foi lançado dessa sublime e abençoada região dos anjos para os Infernos
por nenhum outro vício do que este da soberba, porque, como sobressaísse entre
todos os outros poderes luminosos do alto, acreditou que obteve isto, não pela

22
“Não permite que um homem se conheça a si mesmo, pois quando ele se compraz nos elogios alheios,
a alegria segue-se ao triunfo, e a inchação e a estima excessiva de si próprio acompanham a exultação
do triunfo”. Ibid, p. 62-64.
23
Ibid, p. 63.
24
BARLOW, Cl., op cit, p. 28.
25
“Deleitar-se no louvor humano é, portanto, vanglória, mas creditar a si próprio, em vez de a Deus, o
bem pelo qual se é louvado, isso é soberba”. SÃO MARTINHO DE DUME, op cit, p. 81.
26
“Que David foi eleito no povo de Deus na qualidade de profeta e rei, e com quanta misericórdia e
mansidão foi abençoado, acredito que tu, meu querido amigo, soubeste-o pelo testemunho dos textos
sagrados”. Ibid, p. 71.

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bondade do seu Criador, mas pela sua própria virtude; como se ele, à semelhança de
Deus, não precisasse da ajuda de outra fonte, julgou-se semelhante a Deus, dizendo
Levantarei o meu trono de parte do Setentrião e ficarei semelhante ao Altíssimo. Foi
apenas esse pensamento que o derrubou, pois em breve foi desamparado por Deus,
cuja proteção julgou não necessitar”27.
É por caírem neste mesmo pecado que os antepassados dos homens são
expulsos do Paraíso, pois se Lúcifer buscou assemelhar-se a Deus (Serei como o
Altíssimo28) é ele quem lhes promete a mesma qualidade de deuses (Sereis como
deuses29). Assim, ao buscar essa equiparação entre desiguais e creditar a si todo o
valor que é advindo de Deus, o homem peca gravemente e com isso demonstra seu
desprezo por Deus30, afastando-o de si e distanciando-se da finalidade de sua criação,
o louvor. Esta mensagem é mantida no sermão Da correção dos rústicos que, apesar
do título a ele atribuído postumamente31, não é dirigido aos camponeses. Esta obra
também possui uma duplicidade de público, pois o bispo utiliza duas formas de
tratamento que provocam um desnível hierárquico. Ao se dirigir tanto a filhos quanto a
irmãos, a composição mista dos batizados para quem o apelo à manutenção da fé e
da memória de Deus é feita parece evidente. A estes clérigos e laicos da Galécia, o
bispo de Braga e de Dume envia um ensinamento que retoma o problema da soberba
e da desobediência como elementos motores do esquecimento de Deus32. Neste caso,
cabe ao bispo reavivar esta memória de Deus e relembrar aos homens o pacto feito no
batismo que abre as portas à redenção e à participação na vitória de Cristo sobre a
morte e sobre o pecado. A soberba também é caracterizada aqui como a tentativa de
nivelamento daquilo que é por procedência e origem desigual. Como o homem,

27
Ibid, p. 75
28
Ibid, p. 75.
29
Ibid, p. 75.
30
“O homem não vê a óbvia falácia pela qual a semelhança de Deus lhe é perversamente prometida, não
pela obediência, mas pelo desprezo”. Ibid, p. 75.
31
Por ser uma carta endereçada ao bispo Polêmio da diocese de Astorga, é possível que este escrito não
possuísse título. Isidoro de Sevilha no De viris ilustribus e o Breviário de Soeiro do século XIII o tratam por
Pro castigatione rusticorum. O título De correctione rusticorum hoje atribuído ao texto, tem uso tradicional.
NASCIMENTO, A, op cit, p.147.
32
“No princípio, quando Deus criou o Céu e a Terra, fez para a habitação celeste criaturas espirituais, ou
seja, os anjos, para que na sua presença O louvassem. Um deles, que fora feito arcanjo, o primeiro deles
todos, vendo-se no esplendor de tanta glória, não honrou a Deus, seu Criador, antes se considerou
semelhante a Ele; e, devido a este ato de soberba, foi expulso daquela morada celeste para este ar, que
está debaixo do Céu, juntamente com muitos outros anjos que o seguiram”. SÃO MARTINHO DE DUME,
op cit, p. 95.

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criatura, poderia pretender ser como seu Criador, não o louvando, mas sim
provocando sua ira e distanciamento?
Para combater estes dois vícios, é necessário cultivar aquela que é uma
grande virtude monástica: a humildade. Virtude que o bispo amplia para toda a
sociedade em seu tratado também duplamente direcionado. Se no início de Exortação
à humildade ele se refere possivelmente ao monarca quando determina que: “sejas tu
quem fores que te distingues pela dignidade de um qualquer ofício pela vontade de
Deus e te situas acima dos outros homens pelo útil serviço do governo providente”33,
em seu término menciona o que poderia ser uma função episcopal: “Este cântico
poderás sinceramente oferecer a Deus, quando, humilhando-te, só O louvares a Ele, a
quem verdadeiramente, com todos os fiéis, cotidianamente dirás: ‘A ti compete o
louvor’, glorificando-o a Ele só”34. A humildade é apresentada como a possibilidade
que o homem encontra de ascender pelo rebaixamento, resultado oposto àquele
advindo com a soberba e a vanglória onde o homem ao achar que se eleva apenas se
rebaixa35. É quando reconhece sua condição de pecador e de criatura mortal que o
homem tem a chance de se aproximar de Deus e realizar sua conversão, isto é, seu
retorno para o Criador. Neste tratado, ocorre a ampliação desta virtude monástica para
uma sociedade laica, sobretudo na esfera régia: “Atenta, esta é a verdadeira e cristã
humildade. Nela, governarás otimamente tanto a ti como àqueles a quem presides.
Nela conseguirás alcançar a vitória sobre qualquer vício, atribuindo a Deus e não a ti
próprio o fato de teres vencido”36.
Uma segunda unidade temática das Sentenças gira em torno da ira. Nesta
obra, ela aparece entre os apotegmas 10 e 20. As histórias narradas ora enfatizam a
necessidade de fuga da ira37, ora demonstram que aos monges é necessário devolver
o mal recebido com doçura e salvaguardar um coração puro e humilde. Em seu
tratado dedicado ao bispo Vitimiro, o Da Ira, Martinho apresenta ao seu leitor os males
ocasionados por este vício, bem como seus efeitos na fisionomia humana: “Aparência
audaz, não só figura ameaçadora e rosto triste, mas também olhar turvo, ora palidez
ora rubor da face, o sangue agita-se desde o mais profundo das entranhas e, alterada

33
Ibid, p. 81
34
Ibid, p. 91.
35
“Para aqueles que usurparam as coisas do Superno, tudo o que resta, parece-me, são as coisas do
Inferno. Com efeito, não têm por onde subir, porque, mesmo subindo, tudo o que lhes resta é a descida”.
Ibid, p. 63.
36
Ibid, p. 87.
37
Apotegma 11, por exemplo: “Abade Sisoius disse: ‘Uma vez quando eu fui ao mercado com um irmão
para vender cestos, eu vi que a ira se aproximava de mim; então eu larguei meus produtos e fugi”.
BARLOW, Cl, op cit, p. 20.

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a cor, desfigura o rosto mais belo, acendem-se e cintilam os olhos, tremem os lábios,
cerram-se os dentes, o peito arqueja com freqüentes e veementes suspiros, gemido
ansioso, a palavra é percebida com som pouco distinto e a erupção da voz distende o
pescoço enraivecido, as mãos inquietas, muitas vezes movidas pelo apertar dos
dedos, ranger de dentes, passo apressado, e terra batida pelos pés, tremura dos
membros, e todo o corpo agitado por instável flutuação, proferindo grandes
ameaças”38. Se este vício deforma de tal maneira a aparência, o que não provocaria
na alma do homem por ele dominado? Por ser uma “breve loucura”39, a ira provoca a
inversão das situações uma vez que ocasiona o esquecimento de todos os
sentimentos e virtudes. O homem prudente deixa de sê-lo e o mesmo se dá com o
justo: “A ira transforma todas as coisas, as mais excelentes e justas, no seu contrário.
Quem é dominado por ela não se recorda de nenhum dos seus deveres”40. Para
combatê-la, Martinho apresenta três possibilidades. A primeira é não se irar; mas
depois de atingido por ela, deve-se buscar sua fuga e na incapacidade de conseguir
tal feito, resta a moderação41. Conselho também dado aos monges.
Por um caminho mais sutil também se percebe a convergência temática. Tanto
nas Sentenças quanto no sermão do bracarense existe um apelo à interiorização da
moral e dos preceitos cristãos. Nas Sentenças, ela é conseguida a partir do controle
sobre os pensamentos mundanos e sobre as paixões, pela expiação constante dos
próprios pecados e não reincidência neles, ou mesmo pela ênfase de que o
determinante é a escolha feita pelo homem na condução de sua vida terrena42. Sobre
isto, são vários os apotegmas que ensinam aos monges a necessidade de manter o
pensamento afastado das coisas transitórias, como por exemplo, o de número 55:
“Abade Pambo perguntou ao Abade Antônio: ‘O que devo fazer enquanto estou
sentado na cela?’ Ele respondeu: ‘Não seja confiante na recompensa da sua justiça e
não pense nas coisas transitórias, e tenha contenção de língua e apetite”43. Outro
apotegma significativo que trata da importância da escolha humana para a conduta é o

38
SÃO MARTINHO DE DUME, op cit, p. 47.
39
Ibid, p. 45.
40
Ibid, p. 47.
41
“O primeiro modo de lutar contra a ira é o não se irar; o segundo é desistir rapidamente, o terceiro é
curar também a ira do outro. Primeiro, então, é não cair na ira. Se isso acontecer, o segundo remédio é
não perseverar na ira”. Ibid, p. 49.
42
Arnaldo Espírito Santo salienta que Martinho de Braga conhecia as controvérsias do Sul da França
sobre a graça e o livre-arbítrio nas quais Cesário de Arles e Cassiano estiveram envolvidos. ESPÍRITO
SANTO, A., op cit.
43
BARLOW, Cl., op cit, p. 28.

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de número 87: “Um ancião disse: Da pior à melhor ação que o homem tenha, tanto em
pensamentos como em atos, é totalmente dependente dele fazer a escolha”.
Esta mensagem reporta imediatamente àquela disseminada no sermão Da
correção dos rústicos, quando, ao relembrar aos batizados o pacto feito no batismo
entre eles e Deus e ao pedir a não reincidência no pecado depois do arrependimento e
da penitência44, o bispo diz: “Caríssimos filhos, do que vos fizemos muito
simplesmente um resumo, é preciso que vos lembreis, a partir de agora, daquelas
coisas que vos dissemos e que, fazendo o bem, podeis esperar o futuro descanso no
reino de Deus, ou então (oxalá não aconteça) agindo mal podeis esperar o fogo eterno
no Inferno. Com efeito, a vida eterna ou a morte eterna dependem do arbítrio do
homem. O que cada um escolher para si mesmo, isso será”45. Apesar de escolha
humana, a salvação está firmemente atrelada à condução da vida em conformidade
com os preceitos cristãos ensinados e relembrados no batismo. Um deles é a não
preocupação somente com as coisas terrenas e transitórias: “Por isso vos rogamos,
caríssimos irmãos e filhos, que tenhais presente na vossa memória estes preceitos
que Deus se dignou outorgar-vos, através de nós, humildes e pequenos, e penseis no
modo de salvar as vossas almas, a fim de não vos preocupardes tão-só com esta vida
presente e com a transitória utilidade deste mundo, mas para que recordeis aquilo em
que prometestes acreditar no símbolo, ou seja, a ressurreição da carne e a vida
eterna”46.
Os temas da primeira obra de Martinho de Braga foram objetos de seus
tratados e cartas que, ao extrapolarem o ambiente monástico, serviram também à
instrução do monarca, de sua corte e da sociedade laica em geral. Ao que tudo indica,
mesmo depois de sua sagração, esse monge-bispo não se desfez de sua formação
monástica na recondução da sociedade galega ao catolicismo. Se em seu epitáfio ele
se compara ao Confessor da Gália por ter o mesmo nome e roga para si o modelo do

44
“Não duvides da misericórdia de Deus. Faz no teu coração um pacto com Deus do Céu, e nunca mais
voltes ao culto do Demônio, nem adores senão o Deus do Céu [...] Deus espera, com efeito, o
arrependimento do pecador. Esse arrependimento só é verdadeiro quando o homem deixa de fazer o mal
que fez e pede indulgência relativamente aos pecados passados e procura não os repetir no futuro”. SÃO
MARTINHO DE DUME, op cit, p. 109. A correspondência a essa idéia pode ser encontrada no apotegma
35: “Abade Moses disse: ‘Se a ação de um homem não corresponde às suas ações, o trabalho é em vão.
Quando um homem ora para que seus pecados sejam perdoados, deve ter o cuidado de não pecar
novamente. Quando alguém abandona o desejo de pecar e caminha no temor a Deus, Deus rapidamente
o receberá com alegria”. BARLOW, Cl., op cit, p. 24.
45
Ibid, p. 105.
46
Ibid, p. 109.

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turonense47, também neste aspecto não deixou de segui-lo, já que, segundo Sulpício
Severo, este grande personagem continuou vivendo segundo os princípios monásticos
mesmo depois de eleito para o episcopado48. Pode-se pensar, então, que nos séculos
V e VI a conversão é acompanhada por sua monasticização, ou seja, que estes
monges de formação são os principais veículos da cristianização destes territórios tão
distantes do berço do cristianismo como é o caso da Gália merovíngia e da Galécia
suévica? E se assim for, como pensar a relação entre episcopado e monacato neste
período? Se de fato o monasticismo surgiu com Antônio e Pacômio como uma
alternativa ao episcopado na qual a vivência do cristianismo era seguida pela fuga do
mundo e pelo não envolvimento com a política imperial49, o que fez com que estes
monges-bispos dos séculos V e VI se infiltrassem nas esferas de poder, convertendo
monarcas e realizando a moralização da sociedade a partir de preceitos retirados no
ambiente monástico? E qual é o monasticismo de Martinho de Braga? O Oriental ou o
Ocidental? Estas questões estão, ainda, sem respostas.

Referências bibliográficas:
Fontes:
AMARAL, C. Vida e opúsculos de S. Martinho Bracarense. Lisboa: Typografia da
Academia Real das Sciencias, 1803.
_________. S. Martinho Bracarense. Obras. Braga: Bracara Augusta, 1975.
BARLOW, Cl. Iberian Fathers. Washington: The Catholic University of America Press,
1969.
NASCIMENTO, A. Instrução pastoral sobre superstições populares. Lisboa: Cosmos,
1997.
SÃO MARTINHO DE DUME. Opúsculos morais. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da
Moeda, 1998.

47
“Das Panônias oriundo, no largo mar levado/ Ao seio da Galiza por desígnios de Deus,/ Martinho, ó
Confessor, digam nestes átrios teus:/ ‘Bispo, o culto instaurou, mais o sagrado ritual’/ E a ti, Patrono, eu,
servo, seguindo, eu que chamado/ Martinho fui no nome, não no mérito, igual, Eis-me agora de Cristo em
paz aqui repousado”. AMARAL, C., op cit, nota 9, p. 9.
48
“E agora, que categoria, que eficácia demonstrou ao tomar o cargo do episcopado? Pois continuava a
ser, sem dúvida alguma, o mesmo de antes. A mesma humildade de coração, a mesma pobreza no vestir,
e assim, cheio de prestígio e poder cumpria sua função episcopal sem por isto abandonar seu modo de
vida e suas virtudes monásticas”. SEVERO, S. Obras completas. Madrid: Tecnos, 1987, p. 151.
49
É justamente contra a idéia tradicionalmente aceita da fuga do mundo que Andrea Sterk demonstra
como desde seu início os anacoretas e monges do Egito, Síria e Ásia estiveram envolvidos com a
comunidade e com a política. STERK, A. Renouncing the world yet leading the church: the monk-bishop in
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