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História Das Orgias
História Das Orgias
Neste livro só se incluem as orgias de carácter ou origem sexual, e isto por dois
motivos concomitantes, a saber: o superior interesse que representam para toda a
gente e as dificuldades que obstam ao reconhecimento e definição, propriamente
como orgias, de algumas delas de outra natureza.
A orgia serve ao propósito útil de não somente prover ao alívio de tensões causadas
por abstinências (necessárias, estas, ou não), mas também de reanimar por contraste
o apetite para as monótonas temperanças que representam parte inevitável da vida
quotidiana. Daí ter sido utilizada por certascomunidades sociais tão marcadamente
diferentes entre si como por
exemplo, os povos da Grécia Antiga e (essa, de má vontade) a Igreja cristã medieval.
Existe ainda, todavia, mais uma espécie de orgia: a individual. Essa não é, na verdade,
essencialmente organizada, nem tolerada pelo Estado ou pela sociedade, visto que
surge da equação gratuitamente estabelecida pelo indivíduo, face à sociedade ou ao
Estado com o sentimento de reclusão e cerceamento que o aflige. Essa imputação é
muitas vezes justificada, sendo, por outro lado, algumas vezes errónea ou
inexactamente concebida por si.
Estas últimas são as mais interessantes e menos banais: o rebelde é aí uma figura
mais perplexiva do que conformista e, neste particular campo de estudo, foi ele o que
nos mereceu atenção mais acurada. Caso algum desses tipos tenha recebido um
tratamento desproporcionadamente extenso da nossa parte, esperamos que sejam
compreendidos os nossos motivos de autor.
CAPÍTULO PRIMEIRO
OS GREGOS
Aos que pensam que as grandes realizações e o êxito na vida dependem de
subtileza mental e destreza verbal e que a inteligência é incompatível com a
ingenuidade, a esses o estudo da maneira de viver e do pensamento dos Gregos
provocará uma reveladora surpresa.
Os Gregos eram idealistas e entusiastas por tudo o que interessava à sua vida,
consideravam a juventude como um bem especialmente precioso e as alegrias
dessa fase como a suprema felicidade. A beleza e o amor eram, acima de tudo,
votados aos prazeres da existência, que eles almejavam, e o ideal proclamado
pelos seus bardos. A saúde merecia-lhes apreço, porquanto sem ela não se
alcançaria facilmente a felicidade, e esta era a única finalidade da vida.
Saborear prazenteiramente a vida em geral era uma prerrogativa digna de se
batalhar por ela, segundo julgava Sólon. Por toda a parte, nos seus escritos e
na vida particular de cada cidadão, os esforços dos Gregos denotavam anseios
idealísticos; e não pelo dinheiro nem tão-somente pela sede de prestígio, nem
ainda por alguma esdrúxula situação na existência humana. A cultura helénica
é, por inteiro, um hino em louvor do prazer, cuja
natureza era uma intensa e requintada sensualidade. Em todos os níveis
intelectuais, o povo discernia a essencial parte que o materialismo voluptuoso
representava nas coisas humanas. Só depois de velho é que Sófocles emitiu a
conhecida observação de que a velhice merece ser louvada, porque nos liberta
da sujeição à sensualidade. A atitude do grego perante o desejo era muito
diversa.
Os deuses gregos, que talvez reflictam a natureza dos seus fiéis helénicos
mais flagrantemente do que ocorrerá com os de qualquer outra mitologia e
civilização, são, igualmente, sujeitos à contingência dos desejos e dos prazeres
da carne.
purpurina... louçanias que hoje em dia são um requinte e apanágio das modas
femininas. Mais tarde, porém, cegos pela paixão do luxo até ao desmando,
arrasaram a cidade de Carbânia, dos lafígios, fizeram reunir no templo daquela
cidade os meninos, as meninas e as mulheres na plenitude da vida e ali
montaram um espectáculo, expondo nus aqueles desgraçados para a lúbrica
contemplação de quem quisesse, durante o dia; e quem bem o quisesse podia
também saltar sobre as pobres criaturas como o fariam lobos esfaimados
sobre um rebanho e então fartar a sua luxúria nos belos corpos das vítimas ali
encurraladas e à sua mercê”. Pelos vistos, no entanto, os deuses desaprovaram
essa particular forma de sensualidade, pois os devassos vieram a ser
fulminados pelos fogos do céu.
É forçoso, neste ponto, concordar que, antes de se aventurar alguém num
amplo panegírico do viver dos Gregos, se impõe ter em conta o tratado de
Heraclides Pônticos, discípulo de Platão e filósofo por mérito próprio. No seu
ensaio Sobre o Prazer, afirma que a vida requintada é prerrogativa das classes
governantes, relegando-se aos escravos e aos pobres, como o quinhão que lhes
cabia, a árdua lida e o tédio. Todo aquele que sabe apreciar a sensualidade e o
luxo é imbuído de carácter superior ao do que não partilha da sua percepção.
Os Atenienses fizeram-se um povo heróico precisamente em virtude, e não a
despeito, da vida sibarítica que se permitiam. O ponto de vista exposto na
primeira parte do referido tratado é desagradável, sem dúvida, e, se bem que
muito dubitável a extensão em que se projectou e traduziu em comportamento
autêntico na prática, não é lícito esquecer que os escravos e os pobres eram
algumas vezes excluídos, tanto mentalmente quanto efectivamente, da própria
espécie humana. É possível que os Gregos tenham, quem sabe, encarado um
poucochinho de mais o prazer como manifestação religiosa, daí sustentando que
tudo aquilo que tivesse ou pudesse ter tido, comportado ou causado prazer,
seria, sob quaisquer circunstâncias, um bem. Afinal de contas, o hedonismo dos
Gregos não foi certamente o hedonismo de J. S. Mill.
”Quando Dionísio alcançou a sua cidade natal, Locris fez atulhar de rosas e
tomilho bravo a casa mais bonita da cidade, após o que mandou vir as moças de
Locris, uma de cada vez, despojando-as, e a si próprio, de todas as vestes e,
nus os dois, rolavam sobre o leito, ali praticando todo o género de obscenidades
imaginável. Pouco depois, ao terem os ultrajados maridos e pais em seu poder a
própria esposa e a prole do tirano, forçaram esses reféns a cometer
indecências à vista de todo o mundo e abandonaram-se a toda a espécie
concebível de devassidão. Após terem satisfeito naquelas vítimas a sua
concupiscência, meteram-lhes agulhas sob as unhas e, por fim, deram-Ihes
morte.”
Demétrio de Falero, que foi por muitos anos governador de Atenas, era dado
como gozador de secretas orgias com mulheres e nocturnos ”casos” com
rapazes; tinha um considerável zelo pela sua aparência pessoal, havendo
inclusive tingido os cabelos com um absurdo matiz alourado e pintado o rosto, à
faceira.
A tese de que o prazer era o verdadeiro objecto da existência era apoiada por
toda uma escola filosófica, a de Aristipo, o qual, através de toda a sua vida,
demonstrou a fé que depositava na sua própria filosofia, e teve como amante
Lais, uma notável hetera.
A maior parte dos homens arrolados na lista de Ateneu de Náuclia merecem
antes comiseração. Pertencem à categoria dos rebeldes e as suas orgias
representam uma tentativa no sentido de escaparem a algo mais poderoso e
mais inexorável do que os meros travões das convenções. Eles foram nada mais
do que casos individuais, nunca figuras representativas da raça, porquanto os
Gregos, nunca o esqueçamos, atingiram uma forma de atitude perante os
assuntos sexuais jamais igualada, desde então, na sua realística sanidade.
Hedonistas, sim, sê-lo-iam; mas suficientemente sensatos para saberem que o
prazer, de natureza unicamente sensual, cedo esmaece, se não alternar com
períodos de repouso e abstinência.
Sem embargo deste último exemplo, pouca dúvida existe de que, no que tange à
liberdade física, pessoal, as mulheres gregas nos pareceriam, ao nosso moderno
sentir, intoleravelmente limitadas. Entendiam os Gregos que o lugar das
mulheres era no lar e que a sua função, como animal que era, consistia em
desempenhar os misteres de dona-de-casa e mãe. Não tinha que se imiscuir na
vida literária, nem tão-pouco lhe era lícito andar pela rua desacompanhada.
Isto, no entanto, e por incrível que nos pareça, não se deve necessariamente
interpretar como indicativo de se encararem então as mulheres como seres
inferiores, mas apenas criaturas diferentes, comportando função diferente da
dos homens na vida, diferente mas, de modo algum, inferior à deles. Se era
tolerado aos maridos o adultério, mais do que se o consentia às esposas, isso
devia-se a que os Gregos viam legitimidade nos instintos polígamos dos homens
em contraste com os, pelo menos teoricamente, mais monogâmicos que
atribuíam às mulheres. Aventuras sexuais extramatrimoniais eram toleradas a
estas, contanto que não fossem elas de nascimento livre, isto é, não escravas,
nem fossem casadas com outro homem. Devassidão de mulher-mãe ou esposa
era outra coisa. No meio de tudo isto, vislumbrar-se-á, sorrateira, uma
estranha semelhança com os modos de ver a vida da recente época vitoriana; lá
estava uma análoga espécie de repartição separando as cortesãs das mulheres
ditas ”de respeito” - a tal divisão mãe-rameira. A diferença entre as duas
sociedades reside no facto de o ponto de vista vitoriano se projectar no
preceito de que a actividade sexual era coisa que não se podia impor contra a
vontade ou satisfatoriamente gozar com a boa vontade de uma pessoa
pertencente à mesma classe social. Já os Gregos não pensavam assim. O
matrimónio, entre eles, e a despeito da evidente sujeição das mulheres, era
uma instituição social mais civilizada e satisfatória do que o vitoriano. Podia-se
obter o divórcio sob alegação de mútua incompatibilidade, situação essa que se
pode comparar, e com vantagem, com a actual fórmula legal. Acima de tudo,
existia entre marido e mulher genuína afeição, cooperação no desempenho das
diversas incumbências da vida em comum e um estado de mútua admiração
pelas realizações respectivas. Consta, na literatura, farta messe de
testemunhos da afirmação supra. E quem achar que, por viver reclusa no
âmbito restrito do lar, a mulher grega era uma escrava e que os homens
tratavam as suas esposas como tal, que leia, então, a narrativa da despedida
entre Heitor e Andrómaca, na Ilíada de Homero.
”Um lavrador tinha duas lindas filhas que, certa vez, se puseram a disputar,
chegando a desafiarem-se no meio da estrada para decidirem qual das duas
possuía nádegas mais bonitas. Um dia passou por ali um mancebo cujo pai era
um rico ancião e logo as duas litigantes expuseram à vista e veredicto do moço
o seu ’pomo de discórdia’, ao que, tendo suficientemente contemplado as
prendas, ele deu o seu parecer em favor da mais velha das duas irmãs; e o
facto é que se apaixonou por esta, a tal ponto que, ao tomar à sua casa na
cidade, meteu-se na cama, adoentado, contando ao irmão mais novo o episódio.
De modo que esse irmão se dirigiu também ao campo para contemplar as
protuberâncias traseiras das duas irmãs rivais, ficando também, por seu turno,
amoroso, porém da outra irmã, previamente vencida. Eis que o pai dos rapazes
lhes pediu, então, que pelo menos saíssem em busca de matrimónio mais
respeitável, mas, não conseguindo demovê-los, trouxe as duas jovens daquela
herdade para os dois filhos, mediante o consentimento do velho lavrador e
uniu-as em matrimónio aos rapazes. Por isso, as duas raparigas ficaram sendo
conhecidas na cidade como ’as belas nádegas’, canta o satírico Cércidas de
Megalópolis em seus versos jâmbicos. É sua a troça ’havia em Siracusa uma
parelha de irmãs de formosas nádegas’. Pois foram essas mesmo que, chegando
a possuir uma grande fortuna, fundaram o templo de Afrodite sob a invocação
de ’Afrodite das Formosas Nádegas’, segundo o confirma, também, Arquelau.”
Os jogos atléticos dos Gregos eram uma forma de expressão da delícia com que
o povo cultivava o corpo humano e suas capacidades. Para a gente da nossa
época, habituada ao uso de roupas, é muito difícil entender os motivos que os
Gregos teriam para justificar a nudez naqueles prélios, ou ainda mensurar o
grau de erotismo presente na sua atitude diante deles. Que um certo
sentimento de vergonha, isto sim, lhes advinha antes do facto de envergar
roupagens e não da circunstância contrária, e que eles admitiam quaisquer
peças de vestuário, quando muito, por exigências climatéricas ou de higiene -
eis uma noção hoje em dia tão difundida que se tomou um lugar-comum.
Entendiam os Gregos que agasalhar as partes íntimas tão-somente, quando o
resto do corpo se deixava ao vento, desembaraçado de panos, dava a impressão
de um certo desprezo ou vergonha dos genitália quando, na realidade, a opinião
que eles nutriam a respeito destes era precisamente oposta a isso, pois os
genitais somente lhes inspiravam gratidão e respeito aos numes imortais, como
o instrumento, deles granjeado, para sublimes prazeres e para o milagre da
procriação.
Cleistenes, senhor de Sicião, tinha uma filha, Agarista, cuja beleza era tão
notável que os pretendentes à sua mão enchiam-lhe a casa durante mais de um
ano, até que um dia ele se valeu de uma oportunidade para meticulosamente pôr
à prova os candidatos. No fim das investigações, Hipocleides parecia ser o mais
recomendável de todos e, assim, no dia em que se encerraram as provas, houve
um banquete em que os cortejadores da jovem exibiram os seus dotes sociais e
mesmo musicais. Hipocleides, que se desregrara um tanto nas libações,
executou uma sugestiva dança ao som das flautas, chegando por fim a exceder-
se tanto em desatinos, que acabou por se plantar sobre a mesa de cabeça para
baixo, e as pernas a agitarem-se no ar. A isso, o quase sogro, que afinal já
perdera a serenidade e a paciência, disse ao moço que este acabara de também
perder a noiva. Respondeu-lhe, incontrito, o alucinado bailarino: ”Ora,
Hipocleides não se importa!...” e, às gargalhadas, abandonou a sala do festim.
”Eu notara que um formoso escravo jovem, que fora colocado no serviço de
apresentação de taças, se postara atrás de Cleodemo, a sorrir; e fiquei curioso
por saber a razão disso. Pus-me, então, a observá-lo cerradamente, de modo
que, quando o belo Ganimedes se abeirou novamente para recolher a taça vazia
das mãos de Cleodemo, descobri que este último lhe roçava o dedo e, ao fazê-
lo, pareceu-me que junto com a taça lhe depositava na mão tocada um par de
dracmas. Ao sentir o dedo tocado, novamente sorriu o rapaz, mas eu quero crer
que nem percebeu a presença das moedas. Em consequência disto, as duas
dracmas rolaram para o pavimento com o característico ruído, diante do que
tanto o filósofo como o efebo coraram fortemente!”
Cleodemo pretendeu, então, negar que tivesse algo a ver com aquele dinheiro, o
moço imitou-lhe a atitude, mas o dono da casa, à vista do incidente, achou
melhor mandar retirar dali o servo suspeito. A vergonha, para Cleodemo, está
em duas circunstâncias: a sua incapacidade para o autodomínio emotivo, sendo
ele, no entanto, um filósofo, isto é, um sábio; e o ter-se permitido algo, mínimo
que fosse, de entendimento com um escravo.
Cares, o general ateniense, costumava levar consigo, para toda a parte, nas
suas campanhas, tocadoras de flauta, de harpa e prostitutas, sendo seu
costume desviar para a manutenção desses confortos uma parte dos dinheiros
angariados pelo país para a guerra e ainda devolvendo outra parte a Atenas,
destinada ao gozo de particulares e socorro a gente enterrada em dívidas e às
voltas com processos na justiça devido a esses gozos. Tudo isto o tomava
extremamente estimado pelos cidadãos, como era natural, ”porquanto estes
também levavam uma vida semelhante (à de Cares), a saber, que os muito
jovens passavam todo o seu tempo em companhia de umas flautistas
insignificantes e nas casas de prostitutas; os já de mais idade viviam metidos
em vinhaças e jogatinas, e prodigalidades outras do mesmo género; enquanto o
povo, em geral, desperdiçava mais dinheiro nos banquetes públicos e nas
distribuições de carne do que na administração do Estado”. É Teopompo quem
fala.
As mencionadas artistas eram seguidas por um grande porco, que fazia a sua
entrada solene ”sobre uma bandeja de prata toda recoberta de ouro e em
espessura não pequena”. O suíno ”jazia de dorso... o seu ventre, visto do alto,
revelava estar pejado de petiscos. Porquanto, assados dentro dele e com ele, lá
estavam amarradinhos de paturis, de rolinhas, em quantidade ilimitada, puré de
ervilhas servindo de guarnição a ovos, a ostras, a escalopes...”
Resumindo, pode dizer-se que a comida era demasiada, pelo que será lícito
qualificar-se esta festa, sem reservas, como uma orgia nitidamente de tipo
gastronómico; mas é certo que festas de esponsais acordam pensamentos
eróticos na cabeça dos convivas e, se bem que a natureza sexual de uma função
social deva ser apreciada mais objectiva do que subjectivamente, para que se
possa acertadamente dá-la como manifestação orgíaca, a válvula de escape,
ainda que, por via indirecta, é aí inquestionável, tanto que a mim me parece que
lhe cairia bem a qualificação de orgia.
Tal foi, na Grécia, uma alternativa a servir de válvula de segurança. Não era,
entre eles, tolhida; porém, e tal como a maior parte das coisas em que
infundiam o seu toque, ela tomou-se, nas mãos dos Gregos, algo idealizado,
sublimado.
O amor entre um homem de mais idade e outro mais jovem era tido como
desejável devido à influência que essas relações teriam sobre o
comportamento, em geral, do mais novo. Cria-se, talvez acertadamente, que o
desejo de ser-se considerado admirável influiria beneficamente no
comportamento e nas realizações do mancebo. Agora, o ponto exacto em que
tais relações passavam do plano sentimental para o físico permanece tão
problemático quanto o são as razões pelas quais os Gregos resolveram não só
deixar de vedar esse derivativo, como até, pelo contrário, tiveram por bem
glorificá-lo.
CAPITULO SEGUNDO
OS ROMANOS
É impossível imaginar-se uma maior diferença do que aquela que separava as
duas filosofias da vida antagónicas, a dos Romanos e a dos Gregos, se as
apreciarmos à luz dos conhecimentos que possuímos sobre o comum das gentes
integradas, respectivamente, numa e na outra das duas civilizações.
No ramerrão do seu viver diário, o grego, tal como já aqui vimos, mostrava um
indisfarçável gosto de viver, no que entremeava de graça de classe e de
subtilezas de entendido na arte de bem viver, bem como de saber compreendê-
la nos seus iguais: quer isto dizer que sabia comer, sabia envergar as suas belas
vestes e sabia conduzir-se no terreno da sexualidade. Uma das primeiras
impressões que nos assaltam ao lermos algo sobre este aspecto das respectivas
existências dos dois povos é a de que os Gregos sabiam dominar a sua
sexualidade, ao passo que a dos Romanos, ao contrário, dominava-os a eles, que
se lhe abandonavam como a um despótico senhor, o qual por fim veio a destruí-
los tal como eles mesmos o haviam previsto e até pretendido e deliberado.
É claro que os Gregos, como todo o mundo, aliás, tinham também os seus
sentimentos de agressividade e desejos sádicos, ainda que tal vocábulo,
”sadismo”, apareça aqui, na verdade, como coisa singularmente descabida;
porquanto a essência mesma, integral, da atitude grega perante esses instintos
era a de uma completa isenção de taras mórbidas. Os festins orgíacos, do
género dos dionisíacos, serviam-lhes não somente como recurso para
conseguirem aquela ”teolépsia” que já descrevemos, como também - e
igualmente já o disse - como válvula de escape a ambos os instintos, o tanático
e o erótico.
Há quem ache incrível que alguém retire qualquer prazer real, gozo de origem
erótica, da contemplação do sofrimento. Pois existe tal espécie de indivíduos,
ou, pelo menos, havia outrora gente que se deleitava em ver matanças,
acompanhadas ou não de tormentos; é coisa incrível, porém, infelizmente,
menos possível de se rejeitar a pretexto de subjectiva incompreensibilidade.
com ele açoitam, enquanto lhe fazem a pintura facial, Conversam com pessoas amigas,
apreciam um vestido com
e então gritam ”Ide-vos daqui!”, eis que terminou o suplício. E assim a ”domina”
governa a sua casa com mais selvajaria
Ela a tem desgrenhada e os ombros nus, seios à mostra. ”Esse cacho está muito alto!”
E, sem demora, o chicote
[de couro de boi Corta as carnes à desgraçada, cujo crime fora uma simples
”Vivia em Roma, onde estudava, um jovem cristão. Muito tempo andara a evitar
o anfiteatro, mas por fim um dia lá foi, levado em visita por alguns amigos.
Afirmou-lhes que eles podiam arrastar o seu corpo até ali, porém não a alma,
porquanto pretendia deixar-se estar permanentemente de olhos fechados e,
assim, se conservaria ausente. Fez como prometeu; mas um grande brado que
se levantara induziu-o a abrir, instintivamente, os olhos curiosos. Foi aí que a
sua alma se viu trespassada mais cruamente do que os corpos feridos que ele
quis contemplar; e sua queda foi mais deplorável do que o tombo mortal, na
arena, que provocara o alarido. Porque, à vista do sangue, ele se embebedou da
embriaguez da crueldade; não mais teve forças para desviar a vista; esta
tomou-se-lhe fixa, fascinada; ei-lo, que estava bêbedo e sequioso de sangue.
Para que hei-de eu insistir? Apenas olhou e logo o seu sangue ferveu; e dali já
saiu ele levando na mente uma insânia que desde então o seduziria a voltar
outras vezes.”
Até esta altura pintámos um quadro bastante soturno, aliás uma representação
exacta; porém, diga-se que nem todos os romanos eram sádicos. Pondo-se de
parte as excepções individuais que confirmam quaisquer regras, havia
abundância de aspectos da vida romana onde a preocupação de domínio daquela
raça dormia tranquila no seu seio, conquanto e bastante estranhamente sejam
alguns desses aspectos que terão sofrido o maior impacto dos apodos atirados
sobre o ”decadente” Estado romano.
Quase todas as divindades romanas relacionadas com a vida sexual, fossem elas
importadas ou locais, viram-se rapidamente descaracterizar pelo carácter dos
seus ”progenitores” humanos.
A idolatria de uma divindade conhecida como Fortuna Virilis, que alguns diziam
estar relacionada com Vénus, e que era adorada por mulheres das classes
pobres nos banhos dos homens - mais a ingénua justificação de que ”ali, ficam a
descoberto aquelas partes do corpo masculino que reclamam o favor das
mulheres” -, tudo isso revela a mesma atitude um tanto ou quanto helénica. f c
-
O deus Líber, pelo menos originalmente, era apenas um nume que presidia, de
maneira relativamente positiva e directa, à fertilidade. Em várias regiões da
Itália honravam-no mediante cultos fálicos. Onde tal se verificava, ia um
enorme falo de madeira conduzido com grande cerimonial sobre uma carreta, a
percorrer a cidade e os campos, até ao momento em que uma das matronas
locais o ornamentava com uma coroa. Pode ser que os Romanos o tenham, ou
não, idealizado originariamente como ligado apenas à fertilidade do solo; o
facto, porém, é que ali existia o respectivo simbolismo, patente e conveniente,
pelo que logo se pôs a esgueirar-se-lhe para dentro um outro elemento. Eis
como Santo Agostinho fala dessas cerimónias:
”Varrão diz, entre outras coisas, que os ritos do deus Líber eram celebrados
nas encruzilhadas dos caminhos da Itália, de forma tão despudorada e
licenciosa que as genitálias masculinas eram aí adoradas em honra do deus... e
isso não era feito com qualquer aparência de sigiloso recato, mas com
depravação escancarada e exultante. Aquela vergonhosa parte do corpo era
pomposamente colocada, durante a festa de Líber, em carretas que se
arrastavam por todas as encruzilhadas, campo fora, chegando, por fim, à
cidade. Na de Lanuvium, era dedicado a Líber um mês inteiro. No decurso
deste, todos os cidadãos se exprimiam com a linguagem mais ignominiosa, até
ao instante em que o gigantesco falo era levado através da praça do mercado
para o lugar onde ficaria novamente guardado em repouso. Havia
imprescindivelmente mister que a mais distinta das matronas da cidade
engrinaldasse com suas próprias mãos honradas aquela infamante efígie. É que
o deus Líber precisava ser atraído a propiciar, garantindo-o, o futuro das
colheitas; também se impunha esconjurar o mau olhado dos campos, mediante o
forçar-se uma dama casada a fazer em público coisas que nem mesmo uma
rameira poderia num palco teatral realizar à vista das espectadoras casadas.”
Kiefer explica que ”o facto de ser a cerimónia desempenhada por uma mulher
séria mostra que não constituía manifestação de deboche mas, sim, um velho
costume impregnado de significação religiosa, o qual visava evitar influências
mágicas destrutivas”. Há um pouco de verdade, mas não muita, no que ele
aventa. Mais comum, até, do que raro, é que a apreciação de resultados
constitua método fidedigno de se julgar uma causa. Se certa gente se
comporta de maneira parcial ou totalmente erótica, evidentemente não seria
lícito supor-se que as suas motivações seriam, na sua origem absoluta, parcial
ou totalmente sexuais. Nos casos em que se introduz um dado processo
intelectual à guisa de motivação de determinado comportamento sexual, é mais
crível que se trate então do caso inverso.
Kiefer prossegue, abalançando-se a encarar o falo como um amuleto contra
o mau olhado, procurando desta forma isolar da erótica aquele emblema.
”Por vezes erigia-se sobre as portas da cidade um falo, como protecção contra
o azar. Havia casos em que o dito falo se sobrepunha à inscrição ’Hie Habitat
Felicitas’ - a felicidade mora aqui. Isso, naturalmente, não queria dizer que a
localidade se atribuía a virtude de garantir a ninguém qualquer forma de
felicidade sexual, mas, tão-somente, que aquele falo, pelos seus poderes
mágicos, repelia o assalto do mal.”
No entanto, a ideia que Kiefer tão ligeiramente descarta nem por isso é
inteiramente ridícula. O falo é capaz de acarretar a homens e mulheres
felicidade de um determinado tipo, pelo menos, e, sendo na verdade miraculosa
a natureza desse dom, ela surgia aos olhos do homem semicivilizado de então
como um facto portentoso, de natureza mágica.
É ainda Kiefer quem menciona o número de amuletos fálicos que estão na posse
dos museus, os quais os negam, ciosamente, à vista embasbacada do grosso do
público. ”O homem dos nossos dias contempla essas coisas quase que com os
olhos de Santo Agostinho e, assim, deixa de fazer justiça ao profundo
significado original do (tal) símbolo.”
Ei-la: um mancebo, de nome Aebúcio, entabulara uma ligação com uma liberta,
uma ex-escrava, chamada Hispala, que fora antes meretriz muito conhecida. O
padrasto e a mãe do rapaz, movidos por motivos financeiros, desejavam
suprimir o rapaz e, assim, deliberaram fazê-lo mediante instigação para que ele
fosse tomar parte nas Bacchanalia. Pelo que a mãe chamou de parte o filho e
lhe confidenciou ter feito uma promessa, um voto aos deuses, quando ele
estivera doente, de que o iniciaria nos ritos báquicos, se ele se curasse. Por
isso, deveria ele agora abster-se de ter relações sexuais durante dez dias,
como preparo para a cerimónia daquela iniciação. Chegado o último dia da
abstinência, após a ceia, depois de o filho se ter banhado e purificado, ela o
conduziria ao templo. Quando Hispala soube das intenções da mãe do moço (ou
antes, adivinhou-as, quando Aebúcio lhe disse que iria passar várias noites
afastado dela) ficou horrorizada e pôs-se a dizer que era melhor para ambos
estarem mortos do que consentir ele em loucura semelhante. Apertada pelas
perguntas dele, contou-lhe que, quando ainda era escrava, acompanhara a sua
senhora a um certo templo que sabia ser a sede de ”toda a espécie de
corrupção. Era coisa geralmente sabida que durante dois anos todos os que ali
se haviam iniciado tinham menos de vinte anos de idade. Sempre que ali era
apresentado um homem, era entregue aos sacerdotes como se entrega uma rês
a magarefes. Levavam-no a um lugar onde ressoam gritos, à mistura com hinos
e tanger de tambores e címbalos... para que não se ouvissem os brados de
socorro da vítima ao ser violada”.
”Declarou ela que o templo citado era, ao princípio, reservado às mulheres, não
se admitindo ali homens. Havia três dias por ano especialmente destinados às
iniciações. Mulheres casadas assumiam, por turnos, funções de sacerdotisas.
Até que um dia uma certa mulher da Campânia alterara todo o ritual, por
ordem dos numes imortais, segundo alegava. Começara por iniciar dois homens,
seus próprios filhos. Depois que os ritos passaram a ser franqueados a todos,
sendo, desde então, assistidos tanto por homens como por mulheres, e que já aí
a sua licenciosidade se exacerbava sob as trevas da noite, não houve acção
vergonhosa ou criminosa de que se eximissem os ’fiéis’. Os homens, então, eram
culpados de actos mais imorais entre eles mesmos, do que as próprias mulheres.
E aqueles que se debatessem para não se verem desonrados, ou que se
mostrassem lerdos na acção de infligir a outros a desonra, eram abatidos na
ara dos sacrifícios, como animais de corte. O artigo mais sagrado da sua seita
consistia em que nada se consideraria crime. Os homens faziam pregações em
tom de loucos, tendo os corpos retorcidos pelo frenesim profético. As
mulheres, ataviadas de bacantes, cabeleiras à solta, saíam a correr para as
margens do Tibre, brandindo tochas flamejantes que iam mergulhar no rio,
cujas águas não as extinguiam, pois os archotes haviam sido previamente
salpicados de enxofre e visco. Diziam que ’os deuses os arrebataram consigo’
quando certos homens eram atados a um guincho e arrastados para fora dali,
levados para cavernas secretas. Esses eram os que se haviam recusado, seja a
prestar os juramentos do preceito, seja a serem cúmplices nos crimes
cometidos, seja a deixarem-se violar. O facto é que a tal sociedade contava
com uma enorme lista de sócios, quase a metade (sic) de toda a população... e
entre esses viam-se homens e mulheres de nobre nascimento.”
E por aí segue o cônsul, acrescentando que a vontade dos deuses fora arvorada
em pretexto para o crime e não há como pôr-se em dúvida a justiça do seu
asserto. A extensa cadeia de processos-crimes que se seguiu à providência do
cônsul mencionado denota que os bons cidadãos sabiam distinguir entre
ortodoxia religiosa nas suas devoções e umas tantas inovações sensacionais
muito claramente inspiradas por motivações inferiores unicamente humanas.
As Bacchanalia acima descritas não passavam de uma versão deturpada das
festas dionisíacas helénicas. Os Romanos eram mais espertos do que os Gregos,
mas essa sua subtileza foi também o seu desastre. Advinda a mudança de
atitudes raciais, o comportamento orgíaco tomou-se, não um catártico, mas
uma droga viciadora e, juntamente com a atitude romana perante a
sexualidade, a natureza da influência dos numes sobre actos tais como as
Bacchanalia assumiu um novo e sinistro significado.
Um pouco mais à frente (no livro XIII, 517), entra em mais detalhes:
Numa outra tumba - a ”Tumba dos Leopardos” - vê-se que a mesma recebe a
sua denominação ”de um par de figuras de leopardos a caçar, que ocupam todo
o frontão do monumento. Sob esses animais encontram-se os leitos festivos,
que aí ocupam, em cada caso separadamente, um casal de jovens, rapaz e
rapariga, disposição essa que tem provocado muito debate”.
[um mancebo?”
Ao que ele formulou este voto: ”Se eu me tomar perjuro permitindo-me algum abraço,
seja esse para sempre o meu
[último acto amoroso.” Mas foi perjuro, afinal: abandonou-se, como mancebo, nos
[imunda poeira,
[virilidade... de tal modo rente que dela não ficou vestígio revelador de que
A sua loucura de então é ainda hoje imitada, pois os seus servidores mutilam-se nos
seus vis corpos e, enquanto o fazem,
[arrepelam os cabelos.
Até o próprio Tibério fez arrancar do respectivo altar uma imagem da deusa e
mandou-a atirar ao Tibre, porque os sacerdotes da divindade estrangeira se
haviam servido das suas cerimónias rituais para ultrajar uma dama nobre de
Roma. Era indubitavelmente flagrante nessa religião o elemento sexual. Isso
no-lo indica o dizer de Ovídio: ”Não me pergunteis que será que se passa no
templo da deusa vestida de linho, essa ísis”, e acrescenta adiante: ”Não fujais
aos templos de ísis, pois ela fez muitas mulheres tomarem-se no que ela
própria se tomou para Júpiter.” Juvenal, que sempre foi muito directo no dizer,
e escritor sem rodeios nem prolixidade, apelida as sacerdotisas de ísis
simplesmente de ”proxenetas”. Kiefer, ao mesmo tempo que aceita a provável
justeza das acusações, ressalva que ”é claro, poderão muitas vezes os
sacerdotes e as sacerdotisas ter ajudado à promoção de tais aventuras (isto é,
sexuais)... tal como os sacerdotes da Poderosa Mãe por vezes exauriam o seu
ardor em frenesins sexuais; porém, nada disso tem a ver com o culto, ou com a
verdadeira natureza dos deuses”. Mas, a menos que aceitemos a existência da
própria ísis como um facto literal e absoluto, onde iremos buscar então a
definição da natureza do seu culto se não no procedimento de seus sacerdotes
e suas sacerdotisas? O argumento de Kiefer parece-nos académico ao ponto de
se fazer incompreensível. A verdade é que a adoração da deusa muita vezes
exigia um prévio período de abstinência sexual, do que se vale Kiefer como
citação em abono da sua tese; mas abstinência com que fim, senão para
consequentemente dar largas ao desejo acumulado?
Aliado ao culto de ísis, andava o da Bona Dea - a boa deusa. Esta era, segundo
alguns, uma deusa exclusivamente das mulheres e o seu culto, portanto, era
efectuado só por mulheres. Para a celebração dos seus ritos, devia o dono da
casa sair e deixar-se estar por fora todo o serão, deixando as mulheres em
paz. A domina da casa assumia, então, as providências para a celebração dos
ofícios, que compreendiam ”alegria e música”. É o que está em Plutarco. Já o
quadro pintado por Juvenal apresenta-se-nos algo diferente, pois este escritor
já anteriormente deplorava a decadência das religiões romanas, calamidade
cuja culpa atribuía à avinhada emancipação das mulheres. Ei-lo:
”Que decência observará Vénus, estando ébria? Quando ela já nem distingue
entre um membro e outro, consome ostras gigantes à meia-noite, verte
fumegantes unguentos na sua taça de Falerno puro e bebe de malgas
perfumadas, enquanto o tecto lhe parece girar vertiginosamente ao redor, as
mesas dançam e cada lâmpada e tocha lhe aparece duplicada! Ponde reparo,
pois, e imaginai o que significa o jeito escarninho com que Túlia fareja o ar
ambiente, ou o que será que Maura sussurra ao ouvido da sua mal-afamada
meia-irmã, ao passar pelo antigo altar da castidade. É ali mesmo que elas
instalam os seus nichos à noite e, diante da imagem da deusa, se comprazem
nos imundos folguedos até que a alvorada as venha surpreender.”
”Os ritos da Boa Deusa! Estridentes flautas excitam o agitar dos flancos das
mulheres, o vinho e o clangor de trombetas enlouquecem-nas, e elas rodopiam e
gritam esganiçadamente, deixando-se possuir por Príapo. Aí então, ah! então!,
os seus corações se consomem em chamas de lubricidade, o seu falar é um mero
gaguejar libidinoso, o vinho despeja-se em torrentes pelas encharcadas coxas
abaixo... E tudo isso não é nada a fingir, é tudo real e verdadeiro: de tal forma
que os cansados rins do velho Príamo e o ancião Nestor, enregelado pela idade,
até se incendiariam de novo, à vista do delirante espectáculo. O prurido dos
desejos já chegou ao auge e as mulheres já não se contêm mais, não podem
mais esperar: o que se vê, por todo o salão, é a Mulher, a Fêmea, a vozear em
gritos desvairados: ”Está na hora! Tragam os homens!” Mas o esperado amante
dorme... Ora! Que acorde, cubra-se com um manto qualquer e corra para elas,
que o esperam. Ai não? Assim sendo, elas atiram-se aos escravos. Mas não há
nem sequer escravos? Agarrem, pois, aí pelas ruas, um varredor qualquer!”
E se nem com isso deparam, em matéria de homens, elas contentam-se até com
um jumento, afirma-o Juvenal. Este, muitas vezes, assume modos de
interpretar da maneira mais sórdida qualquer jogo de circunstâncias; no
entanto, se a deusa fosse inteiramente aquela entidade respeitável que nos
pinta Bachofen, quem ousaria pensar em relacionar entre si semelhantes
atoardas? Que ”não há fumo sem fogo” é um ditado algo impertinente, talvez,
mas, mesmo assim, é quase sempre um preceito digno de confiança. Pode Kiefer
repelir indignado as acusações lançadas a ísis e à Bona Dea. Em comparação
com o culto de Cibele e com as Bacchanalia, os ritos delas eram até salutares,
inócuos e singularmente isentos de neuroses e perversões múltiplas. Mas o
facto é que já todas essas formas de adoração se tinham transformado em
nada mais do que brincadeiras.
À primeira vista, quero confessá-lo, não vejo no caso nada de mal, antes bem.
Nada mais que a entrega a prazeres inocentes e simples, nada de sinistro,
nenhum sinal visível da comum e ubíqua neurose; a não ser que a paixão romana
pelos banhos públicos possa ser interpretada como sintoma de colectivo
complexo de culpa nacional.
Fora de Roma, existia Baiae, uma famosa estância termal, celebrada pelas suas
fontes de água quente e pela imoralidade que ali grassava. Séneca proferiu uma
severa e puritana advertência contra os perigos dessa localidade, dizendo que
”bêbados perambulavam ao longo da praia, banquetes em barcos, os lagos
retumbando com o vozear dos cantores e, mais, actos vários de deboche
realizados com tal desassombro como se as leis houvessem cessado de tolhê-
los”; e perguntava, depois: ”Credes, porventura, que Catão teria vivido numa
destas casas para contar as adúlteras que lhe passavam diante em seus batéis,
para ouvir o vozerio ininterrupto das cantorias todas as noites?” Mas, a
despeito da sua trovejante retórica censória, a única coisa que Séneca
conseguiu foi criar uma visão inequivocamente sedutora de Baiae, mostrá-la, em
suma, como um agradável abrigo onde refugiar-se da barulheira, da sujidade e
do perpétuo tráfego a atroar a metrópole, um recanto onde os vílicos dos
abastados proporcionavam um agradável retiro... para esses abastados.
Nem todos os prazeres da grande cidade corriam por conta dos gladiadores ou
de outras sanguinolentas cruezas da arena. Eram também muito apreciadas
pelo povo as representações teatrais e as danças, entretenimentos esses nos
quais latejava um forte elemento de erotismo. Davam-se em residências
particulares, tanto quanto nas casas de espectáculos públicos. Gozavam de
apreço especial pelo seu talento para danças de natureza lasciva as raparigas
de Cádis, tanto que nos banquetes particulares elas amiúde surgiam como
número de encerramento da alegre festa. Eis o que sobre elas refere Juvenal:
Que estímulo para lânguidos amorosos, que aguilhão a espicaçar, para a vida,
enfastiados ricaços!...
Ela treme, e palpita, e remexe os quadris, e contorce-se toda... Ei-la, que faria
esquecer-se da sua compostura o próprio Hipólito.
’Tão logo aquele cenáculo de patifes arranjou um director de coros e Mália viu
seis deuses e seis deusas, juntos, enquanto César sacrilegamente representava
o falso papel de Apolo e se rebolava por entre mais deboches de nova espécie
daqueles pretensos numes: então, todos os autênticos numes imortais, lá no
Olimpo, voltaram as suas costas à Terra, fugindo o próprio Júpiter de cima do
seu áureo trono.’”
Foi este mesmo banquete que deu escândalo e causou mal-estar na opinião
pública, porquanto naquela ocasião reinava a fome, numa grave calamidade, e a
notícia desse leviano abandono e esbanjamento, por parte de César, foi
recebida pelas multidões com o clamor de que ”os deuses haviam devorado
todo o grão!” e, mais, que César era efectivamente Apolo, porém Apolo
Atormentador, designação sob a qual o deus era adorado num distrito da
cidade. O temperamento ou o carácter de um homem morto há tanto tempo
está sempre sujeito a controvérsias, e estas surgem quando se trata da
personalidade de Tibério. Temos, dum lado, o retrato que dele nos pinta
Maranon, mostrando-o um fraco de vontade e um tímido sexualmente,
divorciado da esposa grávida para se casar, incentivado por Augusto, com a
lúbrica, enigmática e semilouca Júlia, que, a despeito da assombrosa reputação
de imoral que a acompanhava, já lograra atrair a atenção geral pelo vigor e
entusiasmo com que tentara seduzi-lo, a ele, Tibério. Como é que esta
representação de Tibério, ainda enamorado de Vispânia, a sua primeira mulher,
e não abalado por nenhum desejo de possuir a malfalada princesa, emoção que
teria agitado qualquer outro romano - como é que tal representação se ajusta
aos relatos que dão o Imperador, ao tempo da sua residência em Capri, com os
seus doze palácios e a sua Gruta Azul, a entregar-se aos variados e
desregrados prazeres que Suetónio esmiuça? Se Tibério foi o homem
verdadeiramente sensível e arredio que alguns autores nos tentam fazer crer
qual seria a impressão que lhe terá causado a louca preocupação de Júlia com a
cópula, a interminável lista de casos sentimentais dela com homens de todas as
idades, de todas as cores e de todas as classes, em suma, a sua literal
prostituição subsequente? Seria ele um cínico nato, ou ter-se-ia tomado tal por
força de tudo o que com ele se passou? Ou, antes, nunca foi nem sensível, nem
apaixonado por Vispânia, mas tão-somente um libidinoso, cuja única
transformação experimentada foi a de passar da imoralidade recôndita para
aquela escancarada?
Maranon acha que este César não foi um casto por temperamento, antes
apenas pela necessidade decorrente da sua timidez sexual. E baseia esse seu
parecer, em parte, no longo período (sete ou oito anos) que Vispânia passou sem
conceber, e, mais ainda, no facto de, após o rompimento com Júlia, ”este
homem de 32 anos ter renunciado a toda a actividade sexual”. Como chegou a
deduzir essa renúncia, sem ser apoiada pelo depoimento, aliás inexistente, da
bisbilhotice contemporânea - eis o que Maranon não informa. No entanto,
quando abordamos nós tais mexericos como fonte de informações sobre o que
fazia Tibério, em Capri, são eles recusados como contribuição espúria e
parvoíces. Em favor de um maior apoio à sua hipótese, acrescenta Maranon o
facto de Tibério ter sido um homem de alta estatura e também canhoto,
características físicas, ambas, segundo ele, muito sabidamente sintomáticas de
timidez sexual e/ou impotência. É absolutamente verdade que só ao avizinhar-
se o fim da vida do Imperador é que lhe foram feitas acusações específicas. E
as vozes acusadoras foram o muito vilipendiado Suetónio e o seu colega
historiador Dio(n) Cássio. Suetónio, que não pode ser simplesmente tomado
como um qualquer bisbilhoteiro de escândalos, assegura que ”tendo conseguido
a sem-cerimónia que o recolhimento estimula (isto é, a intimidade do retiro de
Capri) e estando, por assim dizer, longe das vistas dos seus cidadãos, ele deu,
afinal, rédea solta a todos os vícios que por muito tempo trouxera mais ou
mfenos escondidos”. Já esta versão não é tão irreconciliável com a de Maraflon
quanto este próprio nos quereria fazer crer. Muitos homens e mulheres que,
em público, aparentam inibição sexual, comportam-se de modo muito diyerso,
uma vez resguardados dos seus costumeiros circunstantes e ambientes, dado
que aquela sua timidez se baseia somente numa convicção de que a actividade
sexual é coisa que se deve reservar a um compartimento estanque dos demais
que constituem a sua vida. Suetónio afirma que Tibério era um grande
beberrão, que passava toda uma noite e dois dias inteiros a pandegar em
companhia de dois homens que, em seguida, nomeou, como prémio, a um,
governador da Síria, e ao outro, prefeito da cidade. Foi-Ihe oferecido um
jantar por Céstio Gálio, ”velho lúbrico e esbanjador”, tendo o ilustre convidado
insistido com o seu anfitrião para que ”não alterasse ou omitisse nenhum dos
seus costumes habituais” e que raparigas nuas servissem à mesa os comensais.
Instituiu um novo cargo público - o de ”Provedor dos Prazeres Imperiais”, que
conferiu a Tito Prisco, titular romano.
Tanto aos criminosos comuns, como a toda a população romana em geral, infligia
as crueldades físicas e mentais que lhe ditava o seu cérebro mais do que
semialienado. Aos criminosos já julgados e sentenciados, atirava-os para pasto
dos leões; e ninguém estava livre do constante perigo de morrer sob tortura,
nem mesmo os cortesãos que o cercavam. Certa vez, num banquete,
subitamente desatou numa desmedida gargalhada e, quando os cônsules que
estavam próximos dele polidamente inquiriram o motivo daquela hilaridade,
respondeu-lhes: ”É que se eu tivesse feito apenas um único sinal de cabeça,
poderia ter-vos degolado a todos, aqui mesmo.” Combinava um misto de
infantilidade e diabólico requinte, nas torturas que aplicava, particularmente
tratando-se de acrescentar agonia mental à dor física. Fazia questão de que se
procedessem às inquisições pelos tratos em sua presença, estando ele a
banquetear-se e, duma vez em que, num jantar, foi apanhado um escravo em
acto de furtar uma peça de prata, ordenou Calígula que se cortassem as mãos
ao ladrão e lhas pendurassem ao pescoço, juntamente com um cartaz em que se
esclarecia a razão daquele castigo e assim fosse o supliciado feito percorrer
todo o salão. Nos banquetes, convidava para junto de si as mulheres que
cobiçasse, tendo sempre o cuidado de convidar também os respectivos maridos,
ao mesmo tempo, e então, ao passarem elas aos pés do seu leito, ”ele as
examinava de alto a baixo, de modo discriminativo e acintoso, como se
estivesse a comprar escravos, chegando até a estender a mão para fazer
erguer o rosto de quem quer que o houvesse baixado pudicamente; em seguida,
sempre que lhe dava na veneta, deixava a sala e mandava que lhe levassem
aquela que lhe agradara mais, voltando pouco depois, com evidentes sinais
exteriores na sua pessoa do que se teria passado e, inclusive, emitindo
comentários ou críticas sobre a comparte, passando em revista os encantos ou
as deficiências, dela, bem como a intensidade das suas reacções. A algumas
delas, mandava declarações de divórcio em nome dos maridos ausentes,
fazendo constar tais documentos dos registos públicos... quase não havia uma
só mulher de alta condição da qual ele não se aproximasse”.
Uma orgia na idade Média, ilustração d’«O Livro das Horas», de Valerius Maximus,
Séc. XV
Cenas de deboche
num convento,
atribuídas a C. Conrad
fantásticos, objectos de que não tinha nem o mais vago desejo de possuir.
”Como que para não deixar de cometer espécie alguma de absurdo, abriu um
bordel no seu próprio palácio, tendo para isso destinado um certo número de
aposentos, os quais mobilou de acordo com a imponência do solar e onde
deveriam permanecer disponíveis várias matronas e diversos jovens livres de
nascença.” Em seguida, enviou angariadores a correrem a cidade em busca de
”candidatos” e, aos que acudiam ao apelo, emprestava dinheiro a juros
exorbitantes.
A principal obsessão de Calígula era ser cruel e duma forma de crueldade tão
remotamente afim de sexualismo que só a título de tentativa é que nos
permitimos incluí-la neste rol. Tinha perfeita consciência da sua insânia, tanto
que, a despeito da sua agressividade e da sua pueril presunção, ou
possivelmente como causa das mesmas, não era insensível à crítica da sua
pessoa. Sendo alto, pálido, com uma calvície incipiente e excessivamente
hirsuto de corpo, não consentia que ninguém o olhasse de plano superior ou que
empregasse a palavra ”bode”, e fazer uma dessas coisas era cometer crime de
morte e sofrer as consequências. Atormentava-o a insónia, perseguiam-no
alucinações, e assim é que se reparou amiúde como temia a aproximação das
trevas da noite. Em suma, teve uma vida infeliz e odiosa por quaisquer padrões
de julgamento, tal a sua anormalidade se nos apresenta suficientemente
desmedida para que possamos deixá-lo impune agora.
Os seus antepassados, dum e doutro lado, eram todos marcados pela tara
negrejante do sadismo, mas, embora isso seja um factor relevante
considerando-se a veia dessa perversão que Nero viria a revelar
subsequentemente, a culpa deve ser atribuída primordialmente à dominadora e
perniciosa figura da mãe, sob cuja influência ele permaneceu entre as idades
de três e onze anos. Não era preciso mais nada para completar o malfeito,
exceptuando-se as duas coisas que, sem demora, lhe foram servidas: ter sido
colocado, desde a sua puberdade, sob a tutela do Séneca, austera figura,
porém indivíduo de fraca vontade e fortes inclinações homossexuais, o qual lhe
serviu de preceptor, desde aí até à adolescência do discípulo, quando este
desposou uma jovem escolhida pela mãe como sendo pessoa com o improvável
dom de lhe despertar entusiasmo, erótico ou de outro género qualquer, e que
pudesse porventura contrabalançar a influência maternal sobre ele.
Pouco importa, porém, a quem caberão culpas, o facto é que Nero foi,
indubitavelmente, um bissexual e desde tenra idade, tanto assim que, a esse
respeito, é interessante citar-se aqui uma observação de Suetónio: ”Tenho
ouvido de diversas procedências dizer que Nero estava convencido de que
ninguém era casto em parte alguma do corpo, homem ou mulher, e que a maior
parte das pessoas apenas dissimulava os seus vícios sob hábil fingimento.”
Já desde os começos do seu reinado, conforme nos diz Tácito, Nero passava as
noites nos mais extraordinários entretenimentos. Vestindo-se de escravo,
metia-se pelos mais sórdidos recantos da cidade, onde percorria as ruas, os
bordéis e as tabernas, a cometer toda a espécie de agressões e roubos. A
princípio, sofreu uma dose de contundente reacção verbal e física à sua
abusadora conduta, até que afinal se espalhou a informação de que o estróina
outro não era senão o próprio César e, daí em diante, amparado pela imunidade
resultante, só agravou e estendeu por mais vastos âmbitos as suas
depredações, passando à violência sexual tanto contra mulheres como contra
homens. Desnecessário é dizer-se que não houve escassez de oportunistas que,
percebendo as possibilidades dessa situação ímpar, se organizaram em bandos
de falsos cortesãos para andarem a cometer desatinos pelas ruas,
acobertando-se sob a imunidade que lhes proporcionava a assustada dúvida dos
cidadãos. Ninguém ousava resistir-lhes, porque se o fizesse era pena de morte
na certa, ou, pelo menos, o suicídio compulsivo, poucos sendo os ousados que
arriscavam oferecer resistência por suspeitarem do engano.
”Era coisa assente e aceite por todos que ele nutria uma incestuosa paixão pela
mãe, dizendo-se que, sempre que viajava em companhia dela, abandonava-se, na
liteira, a esse prazer, conforme o indicavam berrantemente certas manchas
nas suas roupas.” A efectividade de tais relações é um facto confirmado pelos
relatos de Tácito e Cláudio Rufo (cuja obra, citada por Tácito, se perdeu).
Nero estava - a acreditar em Suetónio - cada vez mais caprichoso na busca dos
seus prazeres.
”De tal modo prostituiu ele a sua própria castidade, que tendo já conspurcado
quase que todas as partes do seu corpo acabou por arquitectar uma espécie de
jogo no qual, cobrindo-se com a pele de alguma fera, fazia-se soltar de dentro
de uma jaula e ia atacar as partes pudendas de homens e mulheres amarrados a
estacas e, por fim, tendo saciado sua louca luxúria, era, por sua vez, ’servido’
pelo seu liberto Doriforo; isto, porque estava casado com este pela mesma
forma como se casara, mutatis mutandi, com o castrado Sporus; e ia mesmo ao
extremo de imitar os gritos e lamentações de uma donzela ao ser desflorada.”
Se tal era o caso, como de resto parece confirmá-lo a índole do seu Satyricon,
surpreende que não tenham as recreações de Nero apresentado carácter mais
subtil e mais requintado. Petrónio não fazia grande conceito de Nero: provocou
o despeito de Tigelino, tendo-se revelado melhor mestre do que este em
matéria de devassidões, daí lhe advindo a imposição de suicídio compulsivo. No
seu testamento, narrou os desatinos imperiais, juntando mais um rol de
calamidades de César, a lista das suas mulheres e o relato de augustas
inovações em assuntos lascivos; em seguida, selou o documento, enviou-o a
Nero, cujo anel de sinete quebrou para impedi-lo de ser utilizado em
detrimento de mais alguém.
Já Domiciano nos aparece como uma figura mais interessante, ainda que
desalentadoramente mórbida. Diz Suetónio que, no começo, ele tinha horror a
ver derramar sangue, mas nos primeiros tempos do seu reinado tinha por
hábito trancar-se diariamente num quarto durante uma hora, e o seu
passatempo, durante essa reclusão voluntária, era apenas apanhar moscas e
”apunhalá-las” com um alfinete. Não seria de esperar que um indivíduo com um
gosto tão doentio limitasse durante muito tempo mais, a simples moscas, a
escolha das suas vítimas, e assim é que as crueldades desse Domiciano
provaram, depois, ser de ordem ao mesmo tempo tão subtil quanto desmedida.
Organizou muitos espectáculos públicos, particularmente simulando batalhas
navais e era, além disso, um laboriosíssimo administrador da lei. Proibiu às
prostitutas o uso de liteiras e puniu com morte a imoralidade sexual ocorrente
entre as virgens vestais. Na sua vida íntima, ’foi um sexuado absolutamente
desregrado, tendo o costume de mencionar a cópula usando, com revoltante
canalhice, a expressão ”luta da cama”. Também ele, pelo menos assim o
disseram, gostava de depilar as suas concubinas com suas próprias mãos e,
assim, passava os longos momentos das cálidas horas do estio italiano deitado
num leito, alegremente empenhado nesse serviço. (Era hábito quase geral,
entre as mulheres de então, desfazerem-se dos seus pêlos púbicos,
chamuscando-os ou simplesmente arrancando-os duma vez). Tinha ele também o
costume de sair a nado ”acompanhado das meretrizes mais sórdidas da cidade”
e tomou-se, também, responsável indirecto pela morte da sobrinha, cuja
gravidez, obra sua, aliás, insistira com ela para interromper através de um
aborto forçado.
Desde rapaz, aos 14 anos, foi e permaneceu para sempre o sacerdote dum culto
”em que se combinavam obscenidade e misticismo, sem contudo se fundirem”.
Quando, em consequência da energia e ausência de escrúpulos maternos,
chegou a Roma, tentou introduzir aí o seu culto sírio e excluir todos os demais.
Acreditou-se geralmente, até agora, que a sua divindade era Baal, o deus-Sol
entre os sírios, cujo fundamento acentuadamente fálico se evidenciava numa
estátua em Émesa e constituía aquele elemento, representado numa grande
pedra negra e falo-cónica. Se fossem necessárias mais provas para esta
hipótese, lá estava o templo dessa divindade em Roma, flanqueado por dois
falos colossais.
Ele trajava vestes femininas, de alto custo, cada vez que ia celebrar os ritos
do seu deus, o que fazia em presença de todo o Senado reunido em assembleia-
geral, bem como de todos os dignitários de Roma. Nessas cerimónias, abatia
uma quantidade enorme de animais, mergulhava as respectivas carcaças em
perfume e, sob o vozear de vários instrumentos musicais, cabriolava os seus
bailados em volta do altar, rodeado de raparigas sírias à guisa de coro de
acólitos. Uma ou outra vez, sacrificavam-se também criaturas humanas,
rapazes que só pouco antes haviam atingido a puberdade, cujos órgãos genitais
eram então atirados à pira sacrificial.
Concebeu esse César a abstrusa ideia de fazer o casamento do seu deus com
uma deusa escolhida para noiva. E a honra da escolha recaiu em Juno,
celebrando Heliogábalo, em pessoa, as ritos esponsalícios com a devida pompa.
Foi ficando cada vez mais francamente enamorado do seu deus, e é um facto
que se pode frequentemente observar os padres de um culto masculino a
verem-se a si próprios femininos, tal como ocorria com Heliogábalo, sem dúvida
alguma. Desposou uma virgem vestal, justificando-se assim: Ӄ um acto de
coerência, numa religião, o sacerdote desposar uma sacerdotisa”; mas muito
rapidamente se livrou da esposa, dado que os seus gostos sexuais, como se terá
percebido, se voltaram para outro quadrante. Por algum tempo acariciou a ideia
de se fazer castrar, mas acabou por se contentar com uma simples circuncisão.
À noite dirigia-se a um bordel, punha de lá para fora as meretrizes e,
colocando uma cabeleira, ficava à porta do estabelecimento dirigindo aos
passantes o clássico convite. Tempos depois, montou no seu próprio palácio uns
aposentos nos quais se entregava a fantasias do mesmo género.
CAPITULO TERCEIRO
Pode fazer-se alguma ideia do que seriam esses visitantes, por ilação da
seguinte história:
Certo padre, de nome Goerres, foi mandado para exorcizar uma rapariga de 20
anos que fora perseguida por um incubo. Relatou o sacerdote:
”Ela contou-me, com toda a franqueza, tudo o que o espírito tinha feito com
ela. Quis-me parecer, após ouvir o que tinha para me dizer, que, a despeito das
suas negativas, ela concedera ao seu demónio uma espécie de consentimento
indirecto. Porque o facto é que ela sempre se sentiu avisada das aproximações
do maligno por uma violenta excitação dos órgãos sexuais; ao que, em lugar de
se refugiar na oração, antes corria para a sua câmara, a estirar-se no leito.
Tentei fazer despertar nela o sentimento da confiança em Deus, sem êxito,
porém, dado que ela mais parecia era temer que eu a libertasse da sua
possessão.” É evidente que esse Goerres não era nenhum tolo; até mesmo
alguns dos sabedores físicos da época reconheciam ou pelo menos já
suspeitavam - a verdadeira origem de tais fenómenos, e Chaucer faz notar,
com secura, que desde o aparecimento dos frades errantes (que gozavam da
fama de terem comportamento sexual promíscuo com esposas solitárias de
maridos ausentes) os tais visitantes de pesadelo foram ficando mais raros. Mas
em geral estes eram considerados fenómenos diabólicos. A existência de
feiticeiras apareceu como suposição natural e, em consequência, seguiu-se
inevitavelmente a fúria colectiva das caças às bruxas.
Havia os hereges, cuja perseguição, embora eles não fossem rebeldes morais,
só se pode explicar considerando-se a futilidade dos pontos de doutrina em que
divergiam dos ortodoxos, pela natureza de ”fixação materna” do seu
comportamento (particularmente no caso dos trovadores), que, naturalmente,
pareceria repugnante a uma Igreja autoritária e patrística. (Veja-se G Rattray
Taylor, Sex in History, Thames &Hudson, 1953). O credo que daí nasceu não
encerrava orgias, conquanto a ideia que faziam os trovadores de devoção não
sexual a uma mulher não excluía necessariamente a actividade sexual com as
demais mulheres.
Essa festa tinha por centro a França, mas ainda não eram transpostos os
confins desse país e já se deparavam consideráveis variantes no respectivo
cerimonial.
Como é natural, o clero maior via com desagrado e alarme essa estranha
brincadeira dos seus subordinados. Os protestos, portanto, foram surgindo,
primeiro os locais, que logo se alargaram a todos os quadrantes da nação. Em
1398, o deão de Auxerre queixou-se de se fazerem, no capítulo, concessões de
vinho aos sequiosos folgazões e dois anos mais tarde foi publicada uma ordem
de contenção de diversas manifestações indecorosas, inclusive, entre estas, o
costume de surrarem homens e mulheres, na rua.
A Festa dos Loucos era uma cerimónia que limitava a sua celebração aos
membros do clero: no reinado de Isabel I foi finalmente extinta, mas apenas
para ser substituída por uma folgança análoga de índole secular - a eleição de
um ”Abade do Desarrazoado”, ou ”Senhor da Confusão”.
Stubbes, que, sem dar conta disso, conseguiu com êxito, e não só nesta ocasião,
pintar um quadro algo atraente precisamente da cerimónia que pretendia
atacar, faz a seguir ao seu relato um austero e puritano sermão de
advertência. Aqueles que prestarem qualquer auxílio a tais folguedos ”estarão
combatendo sob as bandeiras e os pendões do Diabo, contra Cristo-Jesus e as
suas leis”, e verdade seja dita que, embora a cerimónia se desenrolasse em
terreno consagrado, é perfeitamente óbvio que esta circunstância era
inspirada antes por espírito de hostilidade, consciente ou não, temporária ou
permanente, para com a Igreja, mais do que propriamente pelo intuito de se
realizar lá uma festa do calendário cristão.
Também na França foi decaindo até desaparecer a Festa dos Loucos, sendo
substituída, tal como na Inglaterra, por uma tal Société Joyeuse, à qual
presidia um Prince dês Sots, de parceria com uma Mère Folie ou um Abbé de
Malgouveme. Informa-nos Petit de Julleville: ”La Société Joyeuse c’est Ia
Fête dês Fous secularisée.” Essa sociedade em Dijon era particularmente
famosa, tendo sido Filipe de Borgonha quem autorizou que se efectuasse a
festa pelo clero afecto à capela do seu palácio de Dijon, isso quando
precisamente essas celebrações estavam a ser objecto de severas sanções.
O culto do Deus cornudo, há absoluta razão para supô-lo, era uma repetição
das Priapeias, Liberálias e Dionísias da Grécia e Roma antigas, ainda que
possivelmente se aproxime mais do feitio romano do que do helénico. Essas
comemorações eram acompanhadas de danças, festa cerimonial e muita
fornicação plenamente promíscua. As bruxas que iam chegando aplicavam ao
dirigente daquele sabat o seu beijo obsceno - osculavam-no nas nádegas ou,
pelo menos, na máscara que haveria fixada sobre estas. No rito da iniciação
podia ser-lhes exigido que depusessem esse beijo em qualquer outra parte do
corpo do referido oficiante, à vontade deste. Os participantes de tal missa-
negra pertencentes ao sexo feminino tinham por dever copular com a
divindade-diabo, ou melhor, com o ”ministro” daquele culto, sempre que ele o
exigisse, algo do género da já citada ”jus primae noctis”. Era quase certo ele
estar provido de um falo artificial para essa situação. As confissões das
feiticeiras no tocante à sua cópula com o diabo frequentemente encerravam
uma descrição daquele membro viril diabólico, do qual diziam elas que ”era tão
longo quanto a metade de uma rabeca”, ”era coberto de escamas como peixe”,
”parecia-se com a verga de um jumento”, ”era frio como gelo”, ”quente de
escaldar”. Algumas declaravam que ele o trazia sempre pendente do lado de
fora da braguilha; outras, que aquilo era feito de chifre - ”e que era por isto
que fazia as mulheres gritarem tanto”. Do que não restam dúvidas é de que as
mulheres pareciam, sem excepção, concordar em que lhes era infligida dor e
somente um falo metálico pode sugerir uma explicação para as constantes
referências à sensação de regelante frialdade do pénis do diabo.
A dança atrás mencionada era uma parte importante dos ritos, geralmente
levada a efeito no campo-santo da igreja. Em 1282, o padre de Inverkeithing
era quem puxava a fieira no cemitério da sua própria Igreja.
Espero que, por esta altura, já tenha ficado claro que a moral da época não era,
com efeito, compatível com os postulados da fé cristã. A Igreja cristã é uma
entidade autoritária e a Renascença, por seu lado, não foi um período que se
distinguisse pelo respeito à autoridade. Papas ateus não teriam como resultado
rebanhos piedosos. Assim falou Leão X, a propósito da questão da existência ou
não-existência de uma vida no Além: ”Redit in nihilum, quod antefuit nihil” (ao
Nada voltará, o que antes fora o Nada), e a corte papal de Alexandre VI, o
Bórgia, foi cenário de deboche a um tal grau que é difícil acreditar, não fora as
provas de John Burchard, Pontifício Mestre de Cerimónias e Bispo de Orta e
Civita Castellana, cujo diário goza de uma fidedignidade que é preciso aceitar
como absoluta.
”Amado filho,
Pelos vistos, a carta pouco efeito produziu, pois, quarenta e um anos mais
tarde, eis o que regista o diário de John Burchard e se nos oferece agora à
leitura:
Não havia ainda decorrido uma quinzena, eis que se planeou um novo
divertimento para Sua Santidade. ”Veio à cidade um campónio, trazendo pela
arreata duas éguas carregadas de lenha. Ao atingir a Praça de São Pedro,
alguns lacaios do papa correram ao seu encontro e apossaram-se das rédeas,
atiraram fora as cargas e conduziram as bestas para o pátio que fica do lado
de dentro do palácio, próximo aos portões. Soltaram os quatro garanhões que
pertenciam às coudelarias palacianas, livrando-os completamente dos freios e
dos bridões. Os fogosos machos atiraram-se às éguas e, após árdua peleja a
dentadas e patadas, e grande alvoroço de relinchos, cobriram-nas, não sem lhes
produzir sérios ferimentos e outras rudezas. O papa estava postado à janela
do seu aposento situado no tecto do Palácio e ao seu lado estava Lucrécia.
Ambos, pai e filha, olhavam a cena, quase a estourar de riso, com evidente
gosto.” (Cum magno risu et delectatione praedicta videntibus).
”E tudo isso se passa nos sítios onde estão as cortesãs, para lhes dar prazer e
passatempo: elas lançam por sobre os peitoris das suas janelas garridas
colchas, sobre as quais se debruçam para fora a fim de receberem nas faces
molhas, sob várias formas, de água de rosas e outros gentis olores, as quais
lhes atiram cá debaixo os fidalgos passantes.”
”Durante essas folganças, toda a gente usa sobre o rosto uma falsa face, para
que ninguém saiba quem é o portador nem de onde procede; e se for o caso que
alguém tenha contra o seu próximo um secreto rancor, poderá bem matar o seu
desafecto, e ninguém jamais lhe porá as mãos em cima, pois, por todo o tempo
que perduram essas folias, não se obedece a nenhuma lei estabelecida. Eu vi um
bravo romano a rodar prazenteiro na sua carruagem, e subitamente sair-lhe à
frente alguém que lhe descarregou em cima uma pistola; e, no entanto, ninguém
se incomodou com o facto, nem se importou em deter o matador, ou de acudir
ao gentil-homem ferido. Aliás, havia muita gente igualmente abatida, tanto por
acções de vilania inimiga, quanto pelo tropel dos cavalos ou das carruagens, e
não obstante, prosseguia-se nos entretenimentos, sem curar dos caídos.”
Mesmo sob a modificada forma que teve, a Renascença inglesa possuiu força
bastante para provocar diatribes condenatórias por parte dos escritores
puritanos. Aja então caduca doutrina medieval de que todo o prazer é maligno
por si mesmo despia-se muito mais das inibições de antanho; a cerimónia
nupcial, simultaneamente, vai-se desprendendo também mais da significação
puramente espiritual da união dos nubentes.
”Aquela turba sem modos nem sossego... primeiro há que se plantar à porta da
câmara nupcial e aí pôr-se a cantar ruins e maliciosas baladas, para que assim
tenha o diabo, no máximo possível, o seu botim de triunfo.”
PURITANOS E LIBERTINOS
Na Inglaterra - já o dissemos - houve um período de sobreposição de
tendências antagónicas, isto é, durante o qual prevaleceram, simultaneamente,
por algum tempo ainda, aquelas restrições do sexo, a par com uma galopante
anarquia sexual.
”Quanta gente vejo eu diariamente Toda ela entregue a um costume mulheril, Cabeça
de mulher com face de homem Vê-se, ora, ajuntar por toda a parte”
”Formosa irmã, dura é a minha sina, que deva eu morrer sem me manifestar, ou
senão ousar vir trazer à vossa presença insólita demanda; porém tão agreste
coisa é a morte, e tão aprazível, em troca, é o lisonjear dos meus anseios, que
eu antes desejo até que se me tenha como inviril, do que impedir-me de revelar
o meu enlevo de amor perante vossa bela pessoa.”
E foi bem sucedido: Susana incorporou-se à grei das demais ”irmãs”, em cujo
convívio permaneceu durante toda uma semana. Finda esta, voltou ao lar
paterno, onde explicou a sua ausência alegando ter estado em casa da tia que
tinha em Oakingham. A mãe sabia que tal era mentira, mas nem assim conseguiu
que a jovem desse outra desculpa. A menina Snow decidiu, então, ficar
casmurra, deixando-se estar, amuada, no seu quarto, sozinha, isto quando não
lhe dava na veneta espatifar copos e louça de barro, às vezes mesmo na cabeça
da criadagem. Os pais, aflitos até ao desespero, mandaram recados a Oxford,
suplicando socorro de um tal Mites Ybder, ”reverendíssimo teólogo”. Mal
chegou à casa dos Snow, foi o doutor em cânones imediatamente levado lá
acima, aos aposentos da jovem, pelos atormentados pais desta. Armando um
sorriso benévolo, penetrou ele no quarto, mas, ao vê-lo, logo se pôs a rapariga,
em voz esganiçada, a gritar ”O diabo! O diabo! Estou perdida! Caí em danação!
Estou amaldiçoada!” e, além destas, muitas outras exclamações horríveis e
danadas.
É claro que as coisas não foram bem assim; Portugal e Espanha, exercendo múltiplas pressões
sobre o papado obrigaram a que o Papa tomasse essa decisão, mais para evitar conflitos que
por outra razão. E é também certo que por essa altura não tinham ainda os portugueses
efectuado qualquer circum-navegação. Deixemos que a erudição do autor se limite às orgias.
(N. do E.).
Julgado por um tribunal composto pelos seus pares, em Westminster, por essa
ocasião veio a público uma inaudita história por boca das testemunhas que
foram depor, a saber: os criados do conde, a esposa e a filha do dito.
Lady Audley filha depôs, quando intimada, que: ”Primeiramente, fui persuadida
a deitar-me com Skipwith por artes e ameaças do conde, dizendo-me que eu
nada mais teria a não ser o que me desse Skipwith. Ele viu-me, por diversas
vezes, deitada com Skipwith e, além dele, muitos outros dos criados da casa
nos viram assim. Da primeira vez, ele serviu-se de óleo para me entrar nas
partes porque nessa ocasião eu tinha apenas 12 anos de idade, e habitualmente
deitava-se comigo por arranjo e alcovitice do conde.”
Outro criado, um tal Fitzpatrick, contou que aquele Skipwith era um grande
favorito junto a lord Audley e que ”regra geral, se deitavam os dois juntos, na
cama”. Ele mesmo, Fitzpatrick, estivera inúmeras vezes no leito com o lord e
acreditava que a maior parte da criadagem masculina tinha feito o mesmo.
Acrescentou, também, que o fidalgo Castlehaven ”tinha em casa uma mulher
manteúda, de nome Blandina, que era amante comum de Sua Senhoria e dos
seus lacaios. A ilustre casa não passava de um bordel como outro qualquer e o
conde deliciava-se não somente com o papel de actor, como também com o de
espectador quando tocava a vez, aos outros homens, de agirem. Certa vez foi
essa Blandina atormentada por ele, juntamente com os seus criados, durante
sete horas a fio, até que ela apanhou a ’doença francesa’”.
De início, essas coisas passavam-se entre a gente da corte, mas acabaram por
alastrar entre o resto da população como uma espécie de atitude
desassombrada, salutar, realmente sincera e franca perante a vida. Estava-se
enjoado com aquele interminável auto-refreamento, de constantes
recriminações sobre o estado de pecado em que se acharia a consciência e, tal
como se fizera no tempo da Renascença, tratou de suprimir-se o jugo daqueles
órgãos, desprender-se de todos eles. Em Claydon houve um velho lavrador que
bebeu a taça da comunhão até a última gota, clamando zangado que fazia
questão de aproveitar inteirinho o valor do seu dinheiro, pois ”o facto é que ele
pagara por aquilo”. Em Londres, ao fazer arder manipanços representando
efígies do Papa e dos seus cardeais, entre o estalar de fogos-de-artifício e
uivos de abominação, ouviam-se ganidos de agonia sair de dentro dos bonecos,
que, para esse pormenor realista, tinham sido ”recheados” de gatos vivos.
Abespinhar-se alguém pelo mínimo agravo era uso corrente: fidalgote que se
sentisse acotovelado no meio de uma multidão, o mais certo era atravessar com
a sua lâmina o atrevido ”engraçadinho”, sem perder tempo a pensar duas vezes
antes de o fazer.
Figura típica da época foi sir Charles Sedley, homem de espírito e dramaturgo,
a quem Carlos II fez um cumprimento dizendo-lhe ”que lhe dera a Natureza [ao
dito lord Sedley], patente de vice-rei de Apoio”. O fidalgo era casado com uma
jovem católica romana que, desgraçadamente, desde cedo pareceu ser
indiscutivelmente louca, exibindo uma fantástica vaidade, acabando, por fim,
por exigir persistentemente que a tratassem por ”Majestade”. A filha de
Sedley, Catarina de nome, foi, durante um certo tempo, a favorita de James,
duque de York. Ora, fosse devido às suas desavenças conjugais, ou, o que é mais
provável, por força das suas taras pessoais, Sedley granjeou logo a reputação
de ser o mais descomedido de todos os devassos. Conquanto geralmente
reconhecido como um sujeito divertido e como tal proclamado, existia nele uma
veia de ressentimento, tanto que mandou aplicar, por alguns sicários, uma
tareia em Kynaston, por este o ter parodiado, de forma ridícula, nos modos e
no vestir. Por meados de 1663, andou à luta com uma súcia de outros estróinas
do seu género por causa de uma orgia na Taberna do Galo, na Rua do Arco (Bow
Street). Há uma entrada no Diário de Pepys versando o assunto, assim:
O Dr. Johnson, na sua obra Lives ofthe Poets, oferece-nos a versão abaixo
citada, acerca do referido incidente. ”Sackville... juntamente com sir Charles
Sedley e sir Thomas Ogle, embebedou-se na (Taberna do) Galo, à Rua do Arco,
no bairro de Covent Garden, e passando para o balcão da janela da rua,
expuseram-se, todos os três, à vista do povo, em atitudes muito indecentes.
Por fim, e à medida que mais se assanhavam, Sedley colocou-se à frente,
completamente nu e discursou à turba em termos tão indecorosos que
chegaram a provocar indignação pública; o povo tentou forçar as portas e,
sendo repelido, obrigou, à força de pedradas, os exibicionistas a recolherem-
se, de tal maneira que ficaram rebentadas as vidraças de todas as janelas do
prédio. Os fidalgos foram autuados por causa desta desordem.”
A Sedley tocou uma pesada multa de não menos do que dois mil marcos e - di-lo
Pepys - ”os juizes, todos e um por um, passaram-lhe uma severíssima
reprimenda; dizendo o Excelentíssimo Senhor Desembargador-Ministro do
Supremo que ’por culpa daquele e de uns tantos outros iguais desgraçados
malfeitores é que a cólera e o irado julgamento de Deus pendiam ameaçadores
sobre as nossas cabeças’, isso dizendo enquanto o ia tratando sempre pela
forma abjecta e desprezível de ’sirrah’, em vez de ’sir’”.
Buckhurst, que fora o primeiro homem a trazer manteúda a famosa Nell Gwynn
(paredes-meias com a Taberna da Real Cabeça, em Epson, onde ele, a tal Nell e
Sedley mantinham uma ”casa alegre”, como Pepys veio a descobrir da vez em
que ficou naquela hospedaria), e que também tinha sido detido por mais de uma
vez (da primeira delas, por homicídio), era um sujeito quase tão desbragado de
costumes quanto Sedley, mas desta vez o rei estendeu-lhe a sua protecção, não
somente moral mas também efectiva, já que, segundo parece, se achava
envolvido igualmente na festança da noite citada. O mísero alguazil que
procedera à detenção ”pagou... bem caro, devendo justificar-se em sessões
ulteriores da justiça, facto positivamente vergonhoso ao extremo”.
”De entre outras coisas sobre que discorria, meu primo Roger contou-nos como
sendo um facto verídico que o Arcebispo de Cantuária, que o é agora, tem, sim
senhores, uma caseira como o que se pode chamar de caseira, amancebada; e
por aí fora, seguiu o primo a contar-nos ainda ser público e notório que sir
Charles Sedley arrebatara ao dito prelado uma de suas amantes, pelo que o
referido lhe mandou um recado, dizendo que a tal era sua familiar e muito se
admirava de ver o fidalgo trazer desonra e vergonha a pessoa aparentada com
ele, arcebispo. Ao que teria respondido sir Charles Sedley: ’Que a varíola
consuma Sua Graça! Tende a bondade de dizer a Sua Graça que eu acho é que
ele já é muito velho e daí que tenha medo de que eu o suplante junto às suas
damas e lhe estrague a vida.’”
É difícil saber, ou sequer adivinhar, o quanto haverá de verdade em toda esta
história.
De qualquer forma, tal modo de vida, nas suas formas extremadas, restringia-
se à estouvada roda fidalga dos cortesãos. As peças teatrais da Restauração
são muitas vezes citadas como espelhos da geral libertinagem prevalente na
época. O teatro era então sustentado quase que inteiramente pelas classes
superiores da sociedade. As casas de espectáculos já eram, nesse tempo, e
viriam a sê-lo ainda mais no século seguinte, fornecedoras de fêmeas e
ambiente consagrado para diversões desenfreadas.
Uma razão mais sólida para dar crédito aos boatos foi fornecida exactamente
nove meses mais tarde, com o nascimento das entranhas dessa formosa
Senhora Barregã - Louise Penancoet de Kéroualle - de um rebento que, segundo
era crença geral, seria obra de Carlos, o rei.
OS MEDMENHAMITAS E OS LIBERTINOS
GEORGIANOS
O século XVII foi, marcadamente, a era dos ”clubes”. Em nenhuma outra época,
os homens animados de interesses análogos denotaram tal propensão a
juntarem-se em sociedades formalmente instituídas. Esta nota aplica-se
precisamente tão bem àqueles portadores de má fama, como aos que se
inspiravam em propósitos dignos de respeito. No decorrer desse século
acentuou-se, em ambos os tipos de associação, uma definida tendência para
uma cada vez maior formalização, logo, consequentemente, para se imporem
mais e mais normas e regulamentos. Houve também, no seio da grei mal
conceituada, tendência para se fazerem cada vez mais respeitáveis ou, quanto
mais não fosse, cada vez menos violentas. (Semelhante tendência reflectia-se,
é claro, através de toda a trama da teia social.)
Sir Francis Dashwood tinha sociedade nos proventos da casa de passe gerida
por Mrs. Stanhope, perto de Drury Lane, o que indubitavelmente lhe foi útil
como fonte provedora de ”material” para as suas próprias expansões pessoais
em Medmenham e West Wycombe. A ausência de uma combinação simultânea
da vida sexual e a vida de clube não incomodava os libertinos, sempre
habilitados a encaminhar as suas reuniões para algum bordel, como os de Molly
King, da mãe Douglas, de Mrs. Gould, ou mesmo para casa da célebre Mrs.
Goadby, a qual, após uma viagem a França, introduziu no seu estabelecimento
uma ampla série de inovações e requintes, para enriquecer a vida hetérica
inglesa com maiores seduções. Aí podiam ter a seu serviço manjares, bebidas e,
naturalmente, moças.
Charlotte Hayes enviou um dia aos seus fregueses um convite assim redigido:
lindas ninfas, virgens sem mácula, realizarão a famosa Festa de Vénus, tal como
se faz no Taiti, sob a direcção e chefia da Rainha Oberea (cujo papel será
assumido pela própria Mrs. Hayes em pessoa).”
Miss Falkland tinha um bordel conhecido por Templo dos Mistérios, onde, ao
que se dizia, tinham lugar orgias de natureza inenarrável e, infelizmente,
também misteriosa. Tinha ainda essa dama dois outros bordéis, um deles uma
casa de aprendizes, conhecida pelo nome de Templo de Flora, e o outro, Templo
de Aurora.
Tal costume foi censurado por ”Urbanus” no seu The Midnight Spy. Descreve
uma cena dessas, passada num bordel da Rua Great Russell:
Visto, como o vimos, o que se deu durante a era romana, não nos podemos
espantar de que a violência prevalente na primeira parte do século se
atrelasse, desde logo, ao sexualismo - se é que não tinha já a sua origem e base
nele. Numa era de liberdades como o eram a Renascença e a Restauração - e o
século XVIII -, espera verificar-se que a atitude do homem perante as
mulheres seja a de igualdade, senão de ligeira superioridade, e que tal atitude
se reflicta em todos os aspectos da vida. No que se refere aos dois primeiros
períodos, essa expectativa cumpre-se. Mas no terceiro citado, ela é
violentamente negada. O galã desse tão falado ”tempo áureo” bem podia
imaginar-se desprovido de todas as algemas e, de facto, num certo sentido,
era-o; mas, para o seu próprio inconsciente, ele não passava de um autêntico
escravo. A sua atitude para com as mulheres, conquanto profunda e
francamente sexual, assentava em sentimentos de ódio e hostilidade. O elo
existente entre violência e sexualismo, nesse período, era forte, como já o
referi. É nesse século que aparecem pela primeira vez, e sob as suas mais
violentas e extremadas formas, as três manias características: a do
”desfloramento”, a da caça a raparigas ainda impúberes, e a ”flagelomania”.
Desflorar uma rapariga pode bem ser considerado uma agressão, um acto de
hostilidade. Na literatura pornográfica da época, insiste-se sobre os gritos de
dor e o clamor por socorro que lança a vítima, e mais ainda sobre a presença do
sangue, da humilhação, do pavor. A cópula com rapariga em quem não se
despertaram completamente ainda os instintos sexuais, considerando-se o
ponto de vista dela, representa um assustador e cruel assalto. Assim sendo, o
acto sexual, em vez de ser uma fonte de prazer para ambos os participantes,
relacionou-se com a degradação da mulher, um meio concedido ao homem para
exibir a sua superioridade e manifestar-lhe o seu desprezo. (Taine descreve o
”Don Juan” inglês como imbuído de um ”orgulho indomável, o desejo de subjugar
os outros, o gosto de provocar brigas cruéis, a necessidade de exibir
ascendente - tais são as suas características dominantes”.)
Para além de tudo isso, Mrs. Berkeley inventou ainda o ”cavalo da Berkeley” ou
”cavalete” - ”que consistia numa escada ajustável, que se podia estender até
uma considerável distância e sobre a qual a vítima era fortemente atada com
correias, deixando-se livres, por aberturas, a cabeça e os genitais. Nas
Memórias deixadas pela senhora Berkeley vem uma gravura em cobre,
mostrando-nos o cavalete em funcionamento. Bloch acrescenta pormenores a
essa ilustração, colocando Mrs. Berkeley, ajudada por uma sua assistente,
sentada por baixo do tal cavalete, fazendo o serviço exigido por um resistente
frequentador do seu estabelecimento.
No século XVII, o satanismo foi coisa muito séria, muito eivada de verdadeiro
pavor para muitos dos membros da sociedade, para que se arriscassem a tratá-
la como uma brincadeira, mesmo que ao de leve. Ao entrar-se no século XVIII,
já esse terror se atenuava gradualmente, fenómeno que se reflectia bem na
atitude de panfletários desafiando os clubes, com ataques pelo facto de estes
o praticarem.
Não há dúvida de que tais clubes existiam e foram atacados nos alvores do
século (antes de mais nada, por motivos políticos), e também forçados a
dissolverem-se ou, pelo menos, passarem a funcionar subterraneamente, para
maior segurança; mas, quando ressurgiram à luz do dia, vinte anos depois, a
atitude perante eles já foi diferente, parecendo mais chacota do que medo ou
repugnância. A meticulosa inversão e perversão da liturgia da Igreja cristã
forneceu aos membros dos clubes do Fogo do Inferno o laborioso ritual e a
regulamentação minuciosa, mais a organização meticulosa do complicado
brinquedo infantil que fazia parte da tendência do movimento que há pouco
mencionei. Do primeiro clube do fogo infernal, sob a presidência de lord
Wharton, diziam os tais pasquineiros que se atiraram ao assalto contra esse e
outros congéneres seus aliados, que promoviam orgias indecentes e blasfemas
em Somerset House, um palacete situado em Westminster, e num outro da Rua
Conduit O clube era composto por quarenta sócios, quinze dos quais eram
mulheres.
Na Irlanda, um tal Sr. Conolly dava orgias satânicas no seu pavilhão de caça
situado bem no pico do monte Pelier, próximo a Rathfarnham. Os pormenores
dessas pândegas consistem, na sua maior parte, em invenções desmedidas e
improváveis; contava-se, por exemplo, que as cerimónias eram presididas por
um imenso gato preto e que, entre si, eles se tratavam por alcunhas, tais como
Velho Dragão e Excelentíssima Senhora Gomorra. (As damas encontravam-se,
invariavelmente, presentes nas sessões desse clube. Tal presença era até
condição imprescindível para as reuniões.) Bebia-se uma mistura de whisky e
manteiga, servida quente, e procedia-se a pretensas crucificações, em ar de
troça. Por fim, acabaram por se dispersar aí por volta do ano de 1740, por ter
sido o seu gato objecto de exorcismos. É que um clérigo a quem tinham
convidado a assistir a uma de suas festas e que se sentira ofendido por ver
servirem o animal antes da sua pessoa, desatou em preces de modo tão
espectacular que o bichano fugiu, assustado, ganhando a liberdade através do
telhado a uma velocidade tão fantástica que nunca mais ninguém lhe pôs os
olhos em cima. Esse episódio, ao que parece, teria iniciado o colapso do próprio
prédio, pois, dez anos mais tarde, não passava de um montão de ruínas e,
quanto aos sócios da agremiação, também nunca mais se reuniram.
”Eis que é este o lugar onde as mais cativantes ninfas pululam constantemente
para saciar os nossos apetites incessantemente famintos; tão-pouco nos
congregamos senão quando a nossa concupiscência vai alta e as acumulações da
natureza aportam novas forças ao amor” - escreveu o autor de uma carga feroz
contra este clube e, a julgar-se pelo que consta a respeito da personalidade de
cada um dos sócios do dito, parece possível haver verdade no que ele diz.
O mundo em que respiravam slr Francis Dashwood e os seus assecias não pode
ser considerado típico da época sua contemporânea. A verdade é que, pela
própria natureza da sua associação, eles porfiavam em descobrir uma brecha
por onde escapar à realidade mais profunda, mais cerrada (mas, ao mesmo
tempo, menos sintomática de mal interior), do que aquela maneira de evasão
que porventura se proporcionaram quaisquer outros agrupamentos formais de
libertinos. Assim é que viviam eles num rebuscado e cuidadosamente
preservado sonho em vigília e, para que possamos explicar a sua exótica e quase
pueril farsa, devemos analisar o carácter do próprio sir Francis, e não outro.
Nos seus primeiros anos de mocidade, sir Francis fora membro da sociedade
dos Dilettanti, agremiação de moços que se juntavam em clube para comer,
beber, discutir arte, tudo de um modo que a muitos dos seus contemporâneos
parecia pretensioso e absurdo. Deles troçou Smollet, no seu Count Fathom,
sendo nisso imitado por outros autores; apesar disso, conseguiram todos
sobreviver à façanha e prosperar. Os tais dilettanti trouxeram de volta das
suas viagens à Itália recordações dos esplendores de Palias Athena, mas
também trouxeram, misturada, aquela bizarra ideia do século XVIII de
jardinagem paisagística que consistia em empilhar ruínas e grutas numa
confusão propositada no meio de rijas árvores mortas, bosques cerrados e
espessos e cascatas. Lado a lado, postavam-se um templo minervino e uma
arcada gótica. Semelhante mania do pitoresco e de todas as agradáveis
idiotices que o acompanhavam ressoavam na memória e mente de homens como
sir Francis Dashwood sob a égide da palavra ”gótico”. Uma onda de curiosa
melancolia romântica, de medievalismo ideal, empolgara as mentes dos
componentes da Sociedade dos Dilettanti; e o termo ”gótico”, desde então,
passou de insulto a elogio.
O aspecto dos jardins de lord Despencer não foi de molde a inspirar a Wilkes
melhor conceito da moral do cavalheiro do que a dita ermida lhe fazia supor da
sua piedade religiosa. Ele reparou particularmente num notável templo
”dedicado ao Tetragammaton de Tristam Shandy”. Observa Wilkes que,
embora não fosse provavelmente fervorosa a devoção de Sua Senhoria a esse
objecto de culto, era de se lhe reconhecer, pelo menos, coerência, pelo que o
cronista passa a referir-se a um quadro que pendia da parede da taberna das
Armas Reais, no Pátio do Palácio, com que sir Francis presenteara o Clube dos
Dilettanti. Nessa pintura, mostra-se ele retratado com o hábito de frade
franciscano e ajoelhado diante da Vénus de Medicis, ”fixando de olhos
esbugalhados, como em transe, aquilo que o recato da natureza parece ter mais
anseio de ocultar e tendo numa das mãos um copázio sobre o qual se gravaram
em maiúsculas as palavras MATRI SANCTORUM (à mãe dos santos). O
luminoso halo da Eterna Glória, que até então só ornava as cabeças ao Nosso
Salvador e Seus apóstolos, é igualmente posto, a brilhar, sobre o assim
santificado sítio, a ponto de parecer dispersar a névoa tristonha do Matagal de
Maidenhead (Maidenhead Thicket)”.
Sir Francis herdara do pai aquela propriedade e, por volta da altura em que se
tomou sócio dos dilettanti, já a havia modificado e redecorado, no que o
ajudaram o arquitecto Nicholas Revett e o pintor Joseph Borgnis. Nesse tempo
já ele havia granjeado fama de grande estouvado e debochado. Atribuía-se-lhe
o mérito de já ter ingressado num dos primeiros clubes do fogo infernal que
surgiram, supondo-se mesmo que fosse aquele do qual fizera parte lord
Sandwich. Em obediência às convenções, consentira em empreender as Grandes
Viagens para se aprimorar, tendo todo o cuidado, porém, em fazê-lo da maneira
menos convencional possível. Atravessou como gato sobre brasas toda a
Europa, deixando sempre após a sua passagem um rastilho de cochichos, de
escândalos e de notoriedade. Deu-lhe para gostar de proferir blasfémias e
palavrões; ridicularizava o mentor que, com a ingénua esperança de fazer dele
um devoto católico, lhe fazia de cicerone num giro por todos os templos de
Roma. Ainda aí, na Cidade Eterna, levou a efeito um escárnio de que poderiam
ter resultado consequências desastrosas para si próprio. Foi numa Sexta-Feira
Santa; na Capela Sistina, os penitentes seviciavam-se brandamente,
acompanhando a mortificação simbólica com brados de simulado sofrimento.
Sir Francis meteu-se na fila de devotos, recebeu um chicote em miniatura,
entrou na capela e escondeu-se atrás de uma pilastra, até o momento em que os
penitentes se despiram do tronco até à cintura. Nesse momento, ele sacou de
sob o casaco, onde o trazia escondido, um grande chicote de picadeiro com o
qual passa a vergastar às cegas, para a direita e para a esquerda, até que a
igreja retiniu do alarido de agonia e dos brados de terror: ”// diavolo! ”
Mesmo quando ainda sócio dos dilettanti, já revelava sir Francis indícios da
conformação do seu carácter, os quais o levariam passo a passo na direcção de
Medmenham. Corriam boatos dumas tantas práticas, que lá ocorriam, muito ao
sabor das artes de magia negra e estreitamente ligadas às demais actividades
originárias dos primórdios desse clube, e claro está que sir Francis ali podia
com facilidade permitir-se envergar trajes de fantasia, no que era maníaco. O
presidente das sessões metia-se em vestes cerimoniais simulando a forma de
magnífica toga romana, de carmesim. O arquimestre usava um fato semelhante,
mas acrescido de ”um rico barrete húngaro” e uma longa espada. Dashwood
travou conhecimento com uma alma irmã na pessoa de John Montague, lord
Sandwich, seu consócio, e aquele futuro ”Jemmy Twitcher” dos panfletários. A
sua esgrouviada figura, a cara desenxabida e concupiscente, trazendo
estampado um perene sorriso pretensamente insinuante porém não sincero, era
visto de pernas abertas, desgraciosamente, por toda a Londres, como se, no
dizer dos espirituosos do seu tempo, quisesse ele descer rua abaixo pelos dois
lados ao mesmo tempo. Diziam dele que ”nenhum outro jamais levara a tão altos
níveis a arte da sedução”. Era um homem ”maligno que nem um macaco e lúbrico
que nem um bode”. Era ”mesquinho para com as suas amantes e traiçoeiro para
com os amigos”. Era, em suma, ”universalmente detestado”. O seu falar era
”entremeado de expressões grosseiras e duplos-sentidos obscenos”. E, mesmo
assim, sir Francis gostava dele. Para além do amor à bebida, ao mulherio e ao
palavreado sujo, que ambos nutriam em comum, o novo amigo de sir Francis
tinha também, como ele, passado um certo tempo em Constantinopla e
partilhava da paixão de Dashwood pelos turcos.
O Clube do Divã foi oriundo dessa paixão, colocando-se os dois, sir Francis e
lord Sandwich, no primeiro contingente de sócios. Pouco se conhece da vida
desse clube, a não ser que aí se procedia aos complicados brinquedos infantis e
estendal de fantasioso guarda-roupa que parecem ter constituído as
características básicas de todo o clube a que pertencesse sir Francis. Tanto
ele como lord Sandwich fizeram-se retratar por pintores, engalanados nos seus
paramentos à turca e em atitude de erguerem um brinde a uma Vénus
minúscula e prostrada, tal como se vê em mais de um retrato. A mão não
ocupada em segurar a taça está disposta num gesto meio disfarçado, discreto,
mas inequivocamente obsceno. O uniforme do clube consistia num enxoval de
mantos verdes e carmesins e um turbante verde-azulado, mas não existe prova
de que outro qualquer sócio do clube, além de sir Francis e de lord Sandwich,
usasse alguma vez tal indumentária. Dos retratos acima descritos é que nasceu
a confusão com o hábito dos frades de Medmenham, que induziu alguns autores
a classificar estes últimos como sendo ”mantos turcos”. O ”Divã” em breve se
diluiu e, por fim, morreu, devido à falta de entusiasmo dos sócios, mas mesmo
assim marcou uma etapa decisiva na marcha para Medmenham. Anteriormente
à derrocada do Clube do Divã, em 1746, ingressara nos dilettanti mais um dos
futuros frades de Medmenham. E esse foi nada menos do que George Bubb
Dodington, mais tarde barão de Melcombe. Este atraente palhaço, cuja vasta
presunção chegava a exibir-se sob a forma de autoparódia, assunto favorito
dos caricaturistas, com a sua enorme pança, a sua papada balofa e oscilante e o
seu ridículo nariz de batatinha, era o mais velho de todos os frades de
Medmenham, pois já transpusera os 60 anos de idade ao visitar pela primeira
vez a abadia. Nos seus tempos de moço, erguera uma enorme mansão para sua
morada em Eastbury, à custa dos proventos de uma herança. Traçado num
grandioso e geométrico projecto arquitectónico, o esplêndido edifício
encerrava uma colecção de móveis exóticos, porém vistosos. Nem um único
quadro ornava as paredes. Aí, à noitinha, sentava-se Bubb, a ler em voz alta
para as senhoras, com a sua voz untuosa e como que a escorrer sumos de fruta,
algumas das passagens mais indecentes das obras de Shakespeare. Mais tarde,
bastante mais vivido, mais bombástico, mais debochado, esse pretenso Lobo
Mau construiu outra residência em Hammersmith, nas margens do rio Tamisa,
casa a que deu o nome de ”La Trappe”. Aí costumava receber como seus
convidados, aos quais metia também em hábitos de monges, muitos dos vultos
famosos do momento. O salão principal exibia, altaneiro, uma lareira de
mármore da qual pendiam, como ornatos, imitações de estalactites e, nos
jardins, havia um templo dedicado a Vénus.
Sir Francis prosseguia no seu colorido modo de vida. Dizia-se que ”ele
suplantava em licenciosidade, e por larga margem, tudo o que se pudesse ter
visto desde os dias de Carlos II”. Horace Walpole fez notar que raramente o
viu em estado de temperança. O nosso herói tinha fama de já ter dormido com
todas as meretrizes mais conhecidas da cidade. Gostava também de se imiscuir
nas intrigas políticas e foi nessa esfera de actividades da sua vida que ele veio
a travar relações com Paul Whitehead, quiçá o principal agente e promotor da
fundação de Medmenham.
Mais novo do que sir Francis, parecia no entanto o poeta ter muito mais idade
do que ele, a tal ponto infatigável fora o enérgico afã que pusera no perseguir a
satisfação dos seus desejos inauditos. Esta maldosa, pretensiosa e libertina
figura, ao emergir da prisão onde passara grande parte da sua mocidade, por
ter patrocinado as despesas feitas por um empresário teatral que, no fim, ele,
o nosso poeta, se revelara incapacitado de saldar, decidiu-se, então, pela
profissão de beleguim mercenário de políticos. Desposou uma mentecapta, pelo
dote dela, e essa fortuna que ela lhe trouxe deu-lhe possibilidades de se
entregar mais ou menos amplamente aos seus gozos. Sir Francis tolerava-o, não
sem deixar de ridicularizá-lo abertamente, tanto que, aquando da sua morte, o
lord parodiou-o numas exéquias picarescas realizadas em West Wycombe.
Whitehead organizara uma complexa e ultrajante paródia da grande parada
anual dos pedreiros-livres. Uma cambada de malandros, mendigos,
engraxadores e aleijados, recrutada a soldo para essa palhaçada, cabriolava
rua abaixo pelo Strand até para além de Somerset House, conduzindo pregados
em varapaus dísticos e insígnias indecorosos, sendo acompanhados por uma
escolta de desordeiros empenhados em produzir o máximo de alarido com o
bater de utensílios de cozinha e o bramir de trombetas.
”No cimo da grande escadaria lia-se a famosa inscrição Fay Ce Que Vouldra,
tomada à Abadia de Theleme, de Rabelais. Ao fim da passagem, lia-se Aude
Hospes, Contemnere Opes. Numa das extremidades do refeitório, encontrava-
se Harpócrates, o deus egípcio do Silêncio; e na outra, oposta, a deusa
Angerona, significando que idêntico dever de sigilo se impunha a ambos os
sexos.
O jardim, a horta e o pomar, os bosques vizinhos, tudo falava dos amores e das
fraquezas dos monges mais jovens, que, ao que parece, pecariam naturalmente.
Assim é que se veria, algures:
”En cet endroit mille baisers furent donnés et mille autres rendus”.
”Hic locus est ubi se via fundit in ambas Hac iter Elysium nobis: at laeva malorum,
Exercei poenas et ad ímpia Tartars mittit...”
”Ite, agite ò juvenes panter sudate medullis Omnibus inter vos; non murmure vestra
columbae Branchae non hederae, non vivant oscula conchae”.
”PENI TENTO
non PENITENTI”
Walpole e o Town and Country Magazine são mais elucidativos quanto à parte
interna da casa. A sala de estar vivia atulhada de cartas de jogar, tabuleiros
de xadrez ou de gamão, e outros entretenimentos, sendo ornamentada com
retratos dos reis da Inglaterra. Sobre a face de Henrique VIII haviam colado
um pedaço de papel, como mostra do desfavor em que o tinham. Havia ainda
vários outros retratos a pincel, representando monges e freiras, sendo que, em
volta do aposento, pendiam os hábitos respectivos, de cabides a que
correspondia, em cada um, o pseudónimo do dono do burel. Tais vestes, diz um
tanto desdenhosamente Walpole, mais pareciam guardas de aguadeiro do que
roupagem de frade, pois consistiam num chapéu branco, jaqueta branca e
calças também brancas. Ao prior cabia um chapéu vermelho como o dos
cardeais, mais um solidéu rematado de couro de coelho. A biblioteca continha
uma vasta e seleccionada messe de obras pornográficas, encadernadas e
ostentando nas capas famigerados títulos, tais como Sherlock on Death e The
Book ofCommon Prayer... ”Nunca, jamais, de modo algum, poderia comparar-se
com esta a célebre colecção dos devassos e dissolutos papas Alexandre e
Júlio.”
No gabinete sobranceiro à capela, e que era uma sala de visitas, havia ”dois ou
três compridos sofás de libações, forrados de seda adamascada e estruturados
segundo o modelo de análogos móveis dos antigos Romanos, do tempo em que,
entre eles, atingia o máximo o culto do requinte e do efeminamento”. O dito
cómodo recebera decoração especial à Grande Gala, de tal forma que
inspirasse e provocasse impulsos de imoralidade e lubricidade.
”Não haveria vício imaginável para cuja prática não se houvesse ali devidamente
provido de antemão. As adegas transbordavam dos vinhos mais finos, as
dispensas estavam abarrotadas de delicadas iguarias de todas as procedências
e climas.” Os pequenos gabinetes reservados, embora sob quaisquer outros
aspectos bastante desprovidos de graça, estavam, contudo, ”equipados de tudo
o necessário para quaisquer fins de lascívia, para o que também contavam com
vários e adequados instrumentos”.
Ei-la pronta, a abadia, que agora só estava à espera de que chegasse a monacal
congregação...
Nos alvores do presente século, o livro de actas mantido por Paul Whitehead,
que nele fazia constar os divertissements da alegre sociedade, foi queimado
por um eduardiano excessivamente zeloso, que tomou sobre os próprios ombros
a responsabilidade de decidir, segundo o seu arbítrio, que o livro era por
demais obsceno para ter o direito de ser conservado. Para que saibamos o que
foi, precisamente, que sucedeu, teremos de colher daqui e dali retalhos de
informações procedentes de inúmeras e diferentes fontes. Que algo de
incomum ocorreu, só houve um homem que tentasse negá-lo: o Dr. Benjamim
Bates, que foi na sua mocidade um dos ”frades” e, na velhice, protestou
indignado que não, nada de escandaloso se verificara. Ele, aliás, nunca fora um
dos mais fiéis confrades e, possivelmente para seu próprio benefício, preferiu
apagar da memória minúcias desagradáveis e inconvenientes. Mas o peso de
provas factuais está contra ele.
A epistolografia dos ”irmãos” é desalentadoramente discreta, já que, ao
comunicarem uns com os outros, cingem-se rigorosamente a uma linguagem
cerimoniosa. No entanto, os cochichos chegavam até cá fora.
Soupe de Santé
Soupe au Bourgeois
Cullets à Ia Mame
Beefà Ia Tremblade
Fricassé de Salamandras
Arrufadas de Frango
Ensopado de Leão
Pain Perdu
Ostras à Danublana
Blanc Manger
Sir Francis tinha mandado abrir uma estrada transitável (talvez movido, ou
não, por intenções filantrópicas), e a cal necessária aos trabalhos foi retirada
das caleiras da colina de West Wycombe, o que lhe proporcionou, e aos seus
confrades, o brinde dum conjunto de grutas naturais, aptas para
aproveitamento imediato. Essas escavações apresentavam uma fachada gótica,
arcadas pontiagudas e agudas colunas talhadas no calcário e, em suas húmidas
e labirínticas profundidades, tiveram lugar as últimas orgias da confraria de
Medmenham.
Mas já então sir Francis tinha em andamento um novo projecto, a saber, o
daquela pseudo-igreja a que se refere Wilkes no trecho (já citado) onde nos
descreve os jardins de West Wycombe. Esse fantástico exemplar de
construção, provavelmente projectado como ponto central donde se
descortinaria toda a propriedade, e encimado pela sua gigantesca cúpula de
ouro, plantava-se qual bizarro farol dominando da sua elevação a aldeia; causou
espanto, sim, porém nenhuma gratidão acendeu nos corações dos paroquianos.
Mais salão de baile do que templo, como observou um visitante, não comportava
assentos para os aldeões, deficiência essa que se compensava pela presença de
bilhas de refrescar vinhos, postadas nas passagens ao centro da nave, para
proveito de lord Despencer e seus familiares.
Mas os dias de Medmenham chegavam ao fim. Sir Francis, por força da natural
contingência física, ficou mais temperado. Deixava-se ficar sentado lá no alto
da sua igreja, na bola dourada, a bebericar ponche de leite, a intrigar
estúpidas conspirações e contemplando infindavelmente o magnífico panorama,
até ao dia 11 de Dezembro de 1781, em que morreu.
Certo dia, viajando ele com destino à Feira de Anstruther, alcançou a margem
do Dreel Burn, corrente sobre a qual não existia ponte. À beira da água, por
acaso, achava-se, de pé, uma rapariga mendiga. Muito amavelmente, a jovem
pegou na pessoa do viajante real e levou-o às costas até à outra margem do rio.
Ao pagar-lhe o rei o favor dando-lhe um soberano de ouro, ela por sua vez deu-
lhe as graças na seguinte bênção:
”Tomara que a tua bolsa nunca se esvazie E que a tua verga seja sempre florescente!”
A moderna Ordem de igual nome, da qual aqui nos ocupamos, foi fundada em
1732, data que consta em dois dos seus sinetes. As assembleias eram
convocadas duas vezes ao ano, no Dia de Nossa senhora das Candeias e no de
Santo André, sendo que, cada ano, admitiam-se mais dois, três ou até quatro
noviços. A sessão começava com um jantar ligeiro, após o qual se passava ao
”templo”.
O ”soberano” presidia. Trazia uma faixa de cetim verde, sobre a qual se lia as
palavras: ”Bênção do Soberano Mendigo”. Todos os demais membros do
conclave exibiam a faixa e uma medalha. Nesta última via-se, dum lado, a
tríade Adónis, Vénus e Cupido, e do outro, apenas Adónis e Vénus. Algumas
medalhas mais recentes trazem inscrita a bênção dos monges da ilha de May:
”Sede fecundos e multiplicai-vos.”
ANSTRUTHER
BEGGAR’S
love ’s
cave.
BENISON
1732
A ordem apenas foi dissolvida no dia de Santo André do ano de 1836, menos de
um ano depois de subir ao trono a rainha Vitória. Facto digno de nota, acerca
dessa sociedade, é que os seus componentes eram não apenas elementos de
ambos os principais partidos políticos, como também quase todos eram
representantes da fidalguia local, com os seus solares num curto raio de
distância em redor do castelo de Dreel.
Da Colecção Kavanagh consta também, não tendo sido até aqui mencionado, um
falo oco, metálico, de dezassete centímetros de comprimento e pintado ao
natural. Precisamente para que serviria isso, ninguém sabe. Houve quem
insinuasse que o objecto tinha sido fabricado no decurso dos últimos anos de
existência do clube, para que os sócios pudessem com ele disfarçar os seus
próprios órgãos, por motivo de algum acanhamento, mas isso parece improvável.
CAPÍTULO SEXTO
O SÉCULO XVIII NA EUROPA CONTINENTAL
Está muito bem que Taine tenha formulado um esmagador e desapiedado
estudo crítico da libertinagem inglesa, que acabamos de apreciar no capítulo
precedente. Evidentemente que as acusações por ele lançadas são, em grande
parte, justificadas. Mas pairam dúvidas sobre se o panorama exibido terá sido
exclusivamente privilégio dos moços galantes da Inglaterra.
Filho de um actor e de uma actriz, teve o que hoje se consideraria uma infância
infeliz. De pequeno, já o destinavam à Igreja, mas a sua inadequação para o
sacerdócio desde logo se revelou. (Mais tarde fez-se pedreiro-livre e, ao longo
de todo o contexto das suas referidas memórias e até mesmo como elemento
integrante das suas actividades de sedutor galante, volta e meia surgem
manifestações da algaravia cabalística em que, pelos vistos, Casanova
acreditava firmemente.) Acabou por não assumir profissão nenhuma conhecida,
pois, se agora era gerente de uma lotaria do governo, doutra vez aparecia
(1774 a 1782) como espião de polícia, em Veneza. Durante toda a vida mostrou
uma ininterrupta paixão pelo jogo.
”Inundei-as de gozo durante várias horas, passando umas cinco ou seis vezes
dos braços de uma para os da outra até me sentir esgotado. Nos intervalos,
vendo como eram dóceis e ansiavam por mais, fi-las executar as mais
complicadas posições segundo Aretino, o que as divertiu além de qualquer
possibilidade de relato. Beijávamo-nos, mutuamente, fosse qual fosse a parte
das nossas anatomias que nos indicasse a fantasia.” (Seguem-se, aqui, minúcias
do texto original, impossíveis de transcrição.) ”...Ela deliciou-se com a cena,
acompanhando todo o processo até ao fim, com a acurada atenção e interesse
de que seria capaz um médico.”
Neste ponto, o que parece é que Casanova projectara, numa transferência para
Hedwig, a sua própria atitude mental. Porque ele mesmo é que é o portador
desse interesse pseudoclínico, e algo mórbido, nos pormenores do curso de uma
cópula.
Análoga situação, ou de muito próxima similitude, ocorre num outro caso seu,
com Annette e Veronique.
”Veronique resignou-se a aceitar a parte passiva que a sua irmã mais nova lhe
impôs e, voltando-se de lado, pousou a cabeça sobre a mão, deixando ver um
seio que teria afogueado o mais frio dos homens e me convidou a iniciar o meu
assalto a Annette. Não seria essa uma difícil tarefa que ela me impusesse,
porque eu já estava em chamas e sentia-me seguro de agradar-lhe enquanto ela
tivesse os olhos postos em mim. Dado que Annette era míope, não tinha meios
de distinguir, no calor da acção, para que lado eu estaria a olhar e eu, sem que
ela o percebesse, consegui deixar livre a minha mão direita, com a qual logrei
proporcionar à outra um gozo tão real, ainda que não igualmente intenso,
quanto o seu. Sempre que se desarranjava a coberta, Veronique tinha o cuidado
de repô-la, acto esse que me granjeava, a modo de acidente, um novo e sedutor
espectáculo. Ela notou que eu gostava de entrever os seus encantos e isso
acendia-lhe o olhar. Por fim, transbordando de desejo insatisfeito, ela
patenteou-me francamente todos os tesouros de que a Natureza a havia
dotado, precisamente no instante em que eu chegava ao termo do quarto
abraço com Annette. Bem podia ela pensar que eu estava apenas a ensaiar para
o que viria na noite seguinte, e a sua imaginação deve ter fantasiado sob as
cores mais vivas as delícias que a esperavam.”
”A cena excitou a mulher de Bassi, a qual passou a pedir ao marido que lhe
desse desde logo uma prova do seu amor por ela, súplica a que ele prontamente
atendeu, enquanto o pudico Arlequim se deixava estar junto à lareira, com a
cabeça entre as mãos.
Quando encontra uma barreira intransponível aos seus amores, fica petulante e
violento. Charpillon, que, confessa-o ele, se divertiu a arreliá-lo até mais não
poder, por causa disso é atirada ao chão, surrada, semiestrangulada, arranhada
e pisada até no nariz - só por se mostrar indiferente e insensível às atenções e
galanteios de Casanova. Vê-se que ele demonstra possuir também a sua
pontinha de voyeurismo, perversão sexual quase sempre gémea do
exibicionismo no mesmo indivíduo. O nosso Casanova, pois, muito ao contrário
de ser o sadio e extrovertido padrão de sexualidade masculina, já assume
numerosas características de neurótico pervertido. O célebre caso da ”cadeira
de Gouda” (que, aliás, cheira muito mais fortemente a fantasia do que a
veracidade, comparado a qualquer outro incidente dos que compõem todo o
crivelmente fantasmagórico calhamaço que aqui vimos investigando), então,
consubstancia semelhante impressão.
A dita cadeira era, segundo Casanova, apenas uma peça feíssima, parecida,
quanto ao resto, com uma qualquer outra cadeira. Mas, sentando-se nela uma
mulher (ou mesmo um homem), ”saltavam dela duas molas que lhe agarravam os
braços e os retinham fortemente, enquanto duas outras separavam as pernas
da vítima e uma quinta mola levantava o assento da cadeira”.
Segundo o narrador, Gouda (Angelo, não Sara) toma assento nesse móvel e, mal
o faz, ”saltam as molas do seu dispositivo e forçam-no a assumir a posição de
uma mulher em trabalho de parto”. Casanova, após devanear em silêncio e em
tomo dos recursos que possivelmente lhe ofereceria semelhante engenho -
como, por exemplo, a humilhação e sujeição da difícil Charpillon -, acaba por
rejeitar a ideia de comprar a peça, pois era coisa muito deprimente para o seu
amor-próprio... mas, de qualquer modo, o facto incontestável é que a ideia
chegou a empolgar-lhe a imaginação.
Se juntarmos ainda o incidente em que Casanova tem cópula com uma mulher
corcunda (vencendo dificuldades que ele pormenoriza com a sua costumeira
obsessão médico-anatómica), o retrato final será, bastante nitidamente, de um
homem que não parecerá nem agradável nem normal.
O moço De Sade desposou uma jovem por quem não se sentia realmente
atraído, pois nutria muito maior interesse pela irmã dela. Pouco depois de se
ter casado, teve ele o seu primeiro atrito com os representantes da Lei, que o
meteram nas masmorras de Vincennes por um caso qualquer de devassidão cuja
exacta natureza, ainda que tenha sido de molde a produzir um considerável
escândalo na época, não se pode descobrir agora qual tenha sido.
Três anos mais tarde, não muito depois da Páscoa, explodiu o escândalo que
ficou designado como ”o caso Keller”, achando-se agora o Marquês de Sade, e
pela primeira vez, em situação realmente difícil.
Eis o que aconteceu: uma mulher de 36 anos, de nome Rose Keller, atravessou-
se no caminho do marquês a pedir-lhe uma esmola, quando ele cruzava a Praça
de Santa Vitória, no dia de Páscoa daquele ano de 1767. Sade retorquiu ao
pedido da mendiga, perguntando-lhe se ela não quereria ganhar um dinheirinho
”como governanta”, referiu ela posteriormente. O marquês, porém, defendeu-
se depois alegando que na altura falara claramente ”numa festinha libertina”
(”partie de libertinage”). Qualquer que tenha sido a versão verdadeira, o facto
é que a mulher aceitou a proposta.
A circunstância de aqueles maus tratos terem sido infligidos a Keller num dia
de Páscoa é que agravaram a seriedade do atentado, aos olhos dos magistrados,
como também a significação de todo o acontecimento aos olhos do próprio De
Sade.
Em seguida a esses tratos, ele passou ao coito anal com as três raparigas,
enquanto era submetido ao mesmo processo por aquele referido criado.
Ofereceu, posteriormente, às mulheres, alguns doces, que só uma delas
aceitou, e sentiu-se mal momentos depois, mas, mesmo assim, não tão mal
quanto a anteriormente referida Marguerite Coste. Concordar-se-á em que a
conduta dele, no decurso deste incidente, não se enquadra na categoria que
geralmente se designa como ”sádica”, termo este, aliás, criado com base no
nome do próprio marquês, um século após, por Kraft-Ebbing.
”A novidade que vem de Marselha é que o Sr. Conde de Sade, que tanta celeuma
provocou em 1767, com os desatinados horrores que infligiu a uma rapariga...
acaba de dar naquela cidade um espectáculo, a princípio até agradável, porém
de aterradoras consequências. É que ele deu um baile para o qual convidou um
grande número de pessoas. Ao ser servido o pudim, cada porção levava
escondido um bombom de chocolate, tão delicioso que diversos dos convivas o
comeram. Havia uma ampla provisão desses chocolates, de modo que ninguém
foi privado da sua parte, mas o pior é que cada um dos bombons envolvia uma
certa dose de ’mosca espanhola’ (cantáridas). As virtudes dessa droga são
geralmente bem conhecidas, de modo que, como veio a suceder, todos os que
consumiram os diabólicos doces, subitamente abrasados em furiosos desejos da
carne, entregaram-se a todos os excessos a que possa impelir uma pessoa a
fantasia mais lúbrica. E o baile degenerou, então, numa reedição daqueles
licenciosos festins, já memoráveis entre os antigos Romanos. Nem as mais
virtuosas damas ali presentes escaparam, não sabendo o que mais fazer para
satisfazer o frenesim que se apossara delas. E assim foi que o Sr. De Sade
fruiu os encantos da própria cunhada, com a qual fugiu para escapar às sanções
que merece. Vários convivas vieram a falecer em consequência dos excessos a
que se abandonaram em sua fúria priapesca, sendo que alguns outros ainda se
acham atacados de grave mal-estar”.
Num artigo publicado na Révue de Paris, em 1837, vem relatado ainda outro
incidente que se diz ter ocorrido durante a mesma expedição turística do
marquês. Ei-lo:
”A essa altura, já o marquês e o seu lacaio tinham fugido, mas foram ambos,
sem embargo, anatematizados pelo clamor público, enquanto os magistrados se
aliavam aos médicos no sentido de pormenorizar as circunstâncias agravantes
do criminoso e impudico cometimento. Duas das raparigas morreram em
resultado da sua superexcitação erótica, ou quiçá dos ferimentos que as
desgraçadas causaram a si próprias, ou umas às outras, na espantosa confusão.”
O aspecto da vida do marquês de Sade que mais repulsa tem suscitado é ter
advogado o cultivo deliberado de novos prazeres sexuais. Geoffrey Gorer (Life
and Ideas ofíhe Marquis de Sade) bate-se contra o valor de tal razão como
fundamento para se condenar aquela personalidade, dado que, diz ele: Ӄ
apenas na esfera sexual que semelhante coisa se toma passível de repreensão,
já que, em todas as demais actividades humanas, o cultivo de mais vastos
âmbitos de gosto é até coisa tida como extremamente louvável. O estudo e o
desenvolvimento das artes outro sentido não tem do que capacitar-nos para
sentir o belo nas formas, nos sons e nas cores, elementos primariamente
privados de sentido, quando não repulsivos. Um pároco de aldeia inglês, que
desfaleceria de horror se lhe fosse insinuado que, juntamente com a esposa,
tentasse ampliar de alguma maneira os seus deleites sexuais, não hesitaria,
entretanto, em lambuzar a cara do filho com a cauda sangrenta de uma raposa
recém-abatida, incitando-o, ao mesmo tempo, a achar divertida semelhante
operação; ou ainda em ingerir iguarias nauseantes, da ordem de caças e queijos
putrefactos. E não só consegue deglutir tais alimentos, nauseabundos por sua
própria natureza, como até os considerará mais apetitosos do que as comidas
usuais, chegando a recusar a caça e o queijo frescos como coisas insonsas e
desenxabidas. Os prazeres mais intensos provêm de repugnâncias superadas.”
- é-se levado a supor com alguma caridade -, talvez eles assim procedessem
porque afinal não queriam mesmo fazer nada.
Alguns houve, entre eles, que assentaram num meio-termo sob a forma de
mariage à trois, arranjo que se deve considerar como algo diferente do hábito
de ter amante amancebada. (Neste último caso, os dois lares eram
completamente separados, enquanto no anteriormente mencionado as duas
mulheres viviam sob o mesmo tecto.) Mesmo com este afrouxamento das
normas sociais, o romantismo não podia esperar sobreviver por muito tempo
como protótipo. Já vimos, noutro ponto, para dentro de que sulcos um
movimento restritivo encaminhará, no fim de contas, o instinto sexual. E
voltaremos a vê-lo novamente. Pois nem mesmo os ”livres pensadores” estão
imunes a essa transformação. As façanhas da gente de Medmenham, com as
suas satânicas fantasias góticas, não passavam de um mero indício de coisas
piores que haviam de vir. Sir Francis Dashwood e a sua malta podiam permitir-
se o gozo de uma vida sexual mais ou menos normal, contanto que esta se
revestisse de adequadas roupagens. Isso, porém, não se aplicava aos indivíduos
de ambos os sexos que haveriam de lhes suceder numa era em que nasceria
gente do estofo de uma Princesa Belgioso, que conservou na sua vila de Locate,
durante várias semanas, o cadáver embalsamado do amante, e tê-lo-ia retido
por muito mais tempo, provavelmente, se a Polícia austríaca não tivesse
descoberto a macabra relíquia, no decurso de uma vistoria. Essa mesma dama
costumava dormir numa alcova aparelhada ao jeito de catafalco, sob a guarda
de um melancólico criado negro, que, fazendo uma conveniente cara
melodramática, conduzia à sua presença os visitantes. Ou ainda como
Swinburne, a repisar a sua lúgubre poética necrófilo-sado-masoquista:
CAPITULO SÉTIMO
OS VITORIANOS
Um autor (Cyril Pearl: The Girl with the Swansdown Seat) professou que as
nossas ideias acerca do período chamado ”vitoriano” são inteiramente erradas.
Aquela não foi, na verdade, uma era de repressão, de modo nenhum. Tenham-se
em vista todas aquelas prostitutas, umas pobres e outras ricas, que então
pululavam; considerem-se todos aqueles casos de divórcio escandaloso, leia-se
toda aquela literatura pornográfica, a força da sugestividade cultivada nos
vestuários femininos (as crinolinas, os decotes ousados, o apelo e apego a
espartilhos cada vez mais apertados) e outras seduções de tal género. Foi, isso
sim, uma época em que ”a prostituição estava muito difundida e flagrante,
muito à vista, e muitas ruas de Londres mais pareciam bazares de carne
lúbrica, de feição oriental... dias havia em que as cortesãs da moda passeavam
de carruagem ao lado de duquesas, em Rotten Row”.
Os vitorianos eram severos; mas, por trás do irrealismo dos seus ideais e
esforços, existia um sentido basilar de realidade. Eles eram austeros e
idealistas nos seus objectivos, mas sabiam reservar-se algumas janelas para
arejamento. Não eram românticos... o costume vitoriano de manter amantes, de
fruir numa casa, o lar, os prazeres da vida de família e, noutra, os
arrebatamentos do sexo, eis o que prova irrecusavelmente a proposição. As
suas mentes estavam surpreendentemente eivadas de malícia erótica (facto
que, como se viu no caso dos medievais, longe de ser incompatível com um
período restricionista, é até o seu inevitável resultado). Eram, isso sim,
propositadamente cegos a umas tantas coisas, algumas vezes, ao mesmo tempo
que (sempre propositadamente) ilógicos.
Essa malícia erótica dos seus espíritos tanto mais se aplicava à expansiva série
de assuntos, quanto mais tópicos portadores de delicadas associações de ideias
se tomavam tabu - tanto os assuntos sexuais, como os seus substitutivos. E que
os vitorianos eram dotados de um cérebro extraordinariamente inventivo que
os ajudava a efectuar essas substituições, demonstra-se perfeitamente com
apelo ao interessantíssimo e bastante conhecido exemplo do curioso incidente
das pernas do mobiliário. , ;• i .
Como se sabe, os cavalheiros do período vitoriano ficavam loucos de desejo à
simples vista de um tomozelo feminino, casualmente, ou talvez
propositadamente exposto. (Já que tudo o mais dos encantos femininos vivia
encoberto, os pobres coitados tinham que se contentar com esse pouco para se
deleitarem.) Todavia, umas tantas damas vitorianas, atribuindo gratuitamente
aos elementos masculinos do círculo das suas relações sociais os seus próprios
e pouco castos recalcamentos sexuais, entenderam que seria de bom aviso e
benéfico à reputação delas mesmas, para a preservação da virtude das suas
filhas e até para o bem-estar moral dos ditos cavalheiros, que fossem
envolvidas as pernas dos pianos, sofás e poltronas em capas parecidas com os
cobre-pernas dos respectivos proprietários desses móveis. Assim
resguardadas, não restaria perigo de que um visitante calçudo viesse a sofrer
um súbito acesso de lubricidade à vista daquele pormenor da estrutura,
inevitavelmente acompanhada por uma elementar associação de ideias, com a
imaginação de uma feminina perna nua.
(Sob a fronde da árvore resinosa do bosque, quem gosta de estar comigo), nos
quais o verbo lie (estar, deitar-se) é empregue num sentido totalmente não-
sexual, toma-se necessário um esforço verdadeiramente contorcionista de
imaginação para o forçar; pois, mesmo assim, foi prudentemente corrigido o
texto do mestre clássico, na edição de Plumtree, por esta forma:
Nem todos os vitorianos, ou, pelo menos, a Imprensa, se iludiam com esta
farsazinha esquizofrénica.
As gazetas contemporâneas estampam, como seria de esperar, uma grande
quantidade de cartas exigindo a sistemática depuração das ruas públicas. Como
também estampam respostas de outros leitores que saem em defesa do direito
que assiste à rameira de procurar movimentar o seu comércio apesar de os
autores destas últimas epístolas quixotescas não serem, geralmente, sinceros
nos motivos que os inspiram, e tecerem rebuscados bordados piegas na sua
argumentação, a qual baseiam nos princípios da tolerância e caridade cristãs e
da suposta condição ”indefesa” e ”patética” das criaturas em questão. (Punha-
se de lado, na época, e de modo absoluto, o facto de algumas destas, pelo
menos algumas, possuírem rendas mais avultadas do que os seus defensores.)
Verdade seja dita que as estatísticas levantadas por The Lancei conferem,
mais ou menos, com as de Michael Ryan, médico, se é que assim pode ser
chamado, e que floresceu no decénio de 1830, mas também o mais certo é que
umas se terão baseado nas outras. A estimativa de Mayhew, orçando pelas
7000, parece ter muito mais possibilidade de acertar (mas até este estatístico
se deixou levar mais tarde para declarações numéricas bastante desatinadas,
que fazem crer que a mística cifra de 80 000 possuiria uma qualquer
irresistível sedução). O livro de Ryan patenteia, de princípio ao fim, uma
completa incapacidade para distinguir factos reais de fictícios.
Não existem dúvidas sobre quem era a maioria das próprias damas. Eram
representantes das classes mais baixas, operárias de fábrica e outras
mulheres vivendo de salários insuficientes, que não se podiam permitir o luxo
de delicados escrúpulos morais, como os que arvoravam as suas irmãs de sexo
mais favorecidas da fortuna e que sabiam muito bem que o macho da espécie
não hesitaria em convocá-las para o aliviar.
Esses vilões, afirmou Mr. Gaskell, um reformista ferrenho, alugavam casas ali
pelas imediações ”às quais compareciam as suas vítimas, nada de má vontade,
aliás, a tomar parte nas vergonhosas orgias dos seus galanteadores”. Nessas
reuniões, continua Mr. Gaskell, ”representavam-se cenas que fariam corar de
vergonha os romanos nas suas lascivas saturnais, ou as sacerdotisas hindus dos
pagodes nos seus ritos lúbricos, e empanariam a própria vida de harém do mais
voluptuoso otomano”.
A imaginação de Mr. Gaskell, pelos vistos, tomou o freio nos dentes; até onde o
arrastou, é difícil avaliar-se com alguma certeza. Se os dados que apresenta
são mais ou menos correctos, fica então explicada qual a fonte de suprimento
de carne de amor à Metrópole. Visto que, àquela época, a idade do
consentimento se situava nos doze anos, qualquer pequena que o quisesse
poderia, uma vez saboreada a doçura do dinheirinho fácil, ingressar desde logo,
o mais cedo possível, na sua longa e rendosa carreira.
Porém, mesmo as de estadão, aquelas que viviam em bordéis, também essas não
eram imunes ao desdém público. O atravancamento que elas faziam em
Haymarket, na Regent Street e na Arcada Burlington, era de molde a provocar
o clamor público, mas por igual o mereciam as condições verificadas em algumas
outras ruas do West End, caso a vida nocturna londrina se fosse expandindo de
mansinho e inexoravelmente.
A Norton Street, ao que parece, não era mais do que um lupanar, de ponta a
ponta. O mulherio forasteiro, entocado nos vários ”estabelecimentos” ali
sedeados, fazia daquela rua um caminho proibido às pessoas recatadas, devido
à sua maneira de se sentarem nuas no peitoril das suas janelas e de correrem à
rua em trajes menores, no afã de agarrar e rebocar para os seus antros os
recalcitrantes marmanjos, acção que equivalia a um verdadeiro rapto e
violação, no dizer dos cruzados das campanhas de moralização.
É possível que tenha havido algum exagero em semelhantes relatos, que sempre
o tiveram e sempre o hão-de ter. Não obstante isso, a verdade é que as coisas
que se viam ali eram bem pitorescas e divertidas, se se soubesse para onde
olhar.
No decénio de 1850 florescia, algo arredado de Leicester Square, um elegante
e luxuosamente mobilado saloon (casa de bebidas), arranjado à moda
americana. Quem conseguisse penetrar nesse estabelecimento (pois não eram
admitidos todos que o quisessem) poderia servir-se de uma enorme variedade
de uma novidade, então considerada fantasticamente ousada - o cocktail. O
halo de raridade e, ao mesmo tempo, vulgaridade, deselegância, que prestigiava
essa bebida, tomava o seu consumo um acto que, por si só, assinalava o seu
consumidor com um distintivo de ”homem macho” de primeira categoria, muito
embora o ”herói” nada mais fizesse além disso. É que o acontecimento era digno
de nota, como coisa proibida.
Até algumas cabeças coroadas, uma vez por outra, favoreciam a casa com a sua
comparência. Em 1857, teve ela a honra de receber a visita de dois reis do Sião
(por uma razão qualquer que nos escapa, havia então dois soberanos no Sião),
acompanhados pelo embaixador do seu país. Embora tenham experimentado
unicamente as bebidas da casa, parece que se aguentaram muito bem, talvez
devido ao hábito que teriam de engolir tudo quanto era espécie de bebidas
espirituosas e da sua perfeita ausência de reserva.
O xá da Pérsia, o mesmo que tivera uma recepção um tanto fria no Palácio de
Buckingham, devido às suas desbragadas maneiras à mesa e à forma demasiado
inequívoca como manifestara o seu agrado pelos encantos físicos de uma das
damas de honor da rainha, também esteve no estabelecimento, numa visita,
todavia, de outro género, mais furtiva e menos simpática - a acreditar no que
diz Mr. Beeton.
”...onde o vício
”Ó peituda mulher, que foste bela em teu tempo, E cuja alegre carreira a polícia não parará.”
”Que cara é aquela, tenebrosa como a noite, Aquele cabide de alfaias, com uns olhos maus,
cruéis, Que faíscam relâmpagos de ódio selvagem, ousadia? ’É o xá!’, brada uma voz
angustiada na penumbra.”
7 Trocadilho com a Ilíada de Homero e o adjectivo inglês silly, tolo. (N. do T.)
”Sim, era o xá; potentado manhoso, andava ele a estudar-nos os mistérios que
três gordas actrizes, com ânimo e vigor, se revezavam na faina de lhe expor.”
”...enquanto não chega a bandeja da ceia, rendem o seu culto a Vénus, calmamente.”
”...incita
Das telas pende a sugestão perene: do belo feminil, sem vexame de vestes.”
Interrompe-se o curso dos seus pensamentos, ou é, de alguma forma,
temporariamente desviado, pela chegada das vitualhas de um gargantuesco
repasto.
Mas, pelos vistos, as alegrias da noitada ainda não estão esgotadas, porque
ainda há a boa troca de mexericos e piadas com Kate. Desgraçadamente, não
pode ser aqui transcrita a matéria versada, porquanto:
Muitos dos figurões escapados das ’regrinhas’... E, confessos pedantes, mas fingidos,
Eram, secretamente, loucos por folias...”
Passado o negócio para outras mãos, por morte de Kate, chegaram os negros
dias da interferência policial. Um inspector da polícia, relatando certa batida a
que procedeu ali, declarou que as marafonas presentes superavam em número
os cavalheiros, na proporção de 95 para 90, sinal evidente do verdadeiro
motivo da comparência ao local da maior parte dos ”calçudos” lá encontrados.
E, no entanto, ao prestar o seu depoimento, mais tarde, perante o tribunal, o
mesmo funcionário declarou ter dito a William Barton, o novo dono do
estabelecimento: ”Você tem aqui mais de setenta prostitutas.” Retrucou-lhe
aquele, com admirável prova de insolente sangue-frio: ”E que fossem até cento
e cinquenta, que mal há nisso, uma vez que elas se comportem ordeiramente?”
No decurso do julgamento, o cavalheiro queixoso afirmou que o sossego das
suas noites era perturbado pela constante chegada de mulheres de má vida em
carros de aluguer - algumas desacompanhadas, outras escoltadas por senhoras,
mas todas, sem distinção, fazendo igualmente uma escandalosa algazarra e
ferindo os seus sentimentos de decência.
Barton saiu-se do processo com uma multa de 3 libras, soma que, mesmo
naqueles ditosos tempos em que dinheiro era dinheiro, não lhe pode ter feito
muita mossa.
Mas nem todas as casas desse género eram geridas com o mesmo senso de
decoro. A época foi, segundo a polícia e, até certo ponto, a opinião dos
cronistas, um reinado de singular intemperança e turbulência.
Os vitorianos, ainda mais do que qualquer outro povo de qualquer outro período
da História, tiveram de aprender a alcançar indirectamente, mediante
substitutivos, a satisfação dos seus instintos sexuais. O processo apresentava
desvantagens. E tais prazeres eram destilados, para o gosto dos espectadores,
pela máscara convencional de santidade e escandalizada surpresa, que eram
obrigados a afivelar ao rosto.
Entretanto, valia bem a pena pôr a vista em cima do dito prazer - se não era
tão embriagante de imoralidade, pelo menos, em todo o caso, sempre era
possível suprir-lhe as deficiências de excitação com o devido ”faz-de-conta”.
No decorrer do resto da sua vida, o barão, que trazia do passado uma longa e
amarga experiência, prosseguiu com o seu negócio, prosperamente e em paz. A
clientela era gente que, tirando o facto de ser efectivamente frequentadora
dos seus espectáculos, no mais era tida como de respeito; e, quanto a ele,
tratava sempre, pelo menos no que tocava à sua empresa ”estética”, de
esquivar-se a oportunidades de qualquer incidente sério com os representantes
da lei. Parece ter exercido sobre os seus ilustres habituées uma espécie de
fascínio magnético, porquanto Suas Senhorias o chamavam sempre pelo seu
pretenso título nobiliárquico e em tudo o mais lhe conferiam todo o respeito e
consideração.
Havia muito quem colhesse maior deleite do simples facto de estarem cientes
de que estavam a provar fruto proibido, e se arrepiassam de emoção muito
mais viva ao transporem a passagem subterrânea que conduzia ao reino de
delícias de Kate. Esses eram os ”anárquicos”, os homens dotados de
personalidade forte, aqueles em quem as convenções da época não causariam
outro efeito senão o desejo de reagir contra elas.
”Chegando à altura da vida que vai dos 60 aos 70 anos de idade, alquebrado por
diversas enfermidades e quase ininteligível devido à paralisia da língua...
mantivera o hábito de viajar acompanhado dum bando de prostitutas que
constituíam a sua principal companhia e que o rodeou até ao momento da sua
morte; geralmente, recrutava-as entre as camadas mais sórdidas daquela
classe, trocando-as por outras conforme lhe dava na veneta e fantasia. Foi
visto a rodar de carro pela cidade, sendo apeado e carregado pelos braços de
dois lacaios que o tiravam do carro para o bordel escolhido... pois nunca lhe
pareceu necessário atirar o mais ténue véu de recato sobre os hábitos que
cultivava.”
Intensamente narcisista, mandou que lhe fizessem um molde de gesso dos seios
- curiosa peça essa que foi encontrada entre outros artigos do género e sem
valor num miserável sótão parisiense, onde ela morreu de cancro e pobreza, em
1886.
Alguns - poucos - dos admiradores que lhes eram mais próximos chegaram até
a contrair matrimónio com algumas; porém, tais casamentos nunca ”deram
certo”. Só a violenta e decidida intervenção dos seus parentes é que evitou que
Henry Vane Milbank efectuasse tais núpcias; entretanto, William Frederick
Windham fê-lo. O seu casamento com Agnes Willoughby fez com que a
Comissão Pró-Alienados se mobilizasse no sentido de tentar impedi-lo de
concretizar essa união. O facto é que, desde os seus tempos de estudante em
Eton, já era apelidado de William, o Louco, embora não se possa dizer que isso
chegue a constituir prova em processo. Chegou a invocar-se argumentos do
género: ele seria dado a envergar uniformes de polícias e bagageiros de
estação ferroviária, a imitar vozes de gatos, galinhas e outros bichos, a lançar
gritos histéricos, e a comer nada menos do que dezassete ovos duma vez ao
pequeno-almoço. O esforço no sentido de dá-lo legalmente por alienado
resultou em nada, ao passo que conseguiu uma estrondosa ovação pública; mas o
consórcio com Agnes Willoughby finou-se em menos de dois meses. Isso talvez
nem fosse de surpreender. É que ele estabelecera para ela a magra mesada de
800 libras por ano, quando ela podia ganhar consideravelmente mais do que isso
por outros meios. A verdadeira moral da história está em que o firme ponto de
vista da meretriz do século XIX é que ela é meretriz e mais nada é; assim,
deve manter-se em parte um ser misterioso e inacessível.
Fora muito apreciado no Continente, durante alguns anos, primeiro como dança
de sociedade - ”dança um tanto estouvada”, diz a Dance Encyclopaedia -, depois
como número teatral.
Nesta sua segunda forma subiu à cena inglesa em 1867 e, a despeito, senão
talvez por causa, da modificação de algumas das suas mais deslavadas
indecências - opinião que o The Times pretendia inculcar -, foi um sucesso
instantâneo.
Kracauer opina que ela fora utilizada pelos revolucionários e pelos espíritos
anárquicos e negativistas para exteriorizarem a sua raiva e desprezo contra o
novo regime político e contra toda a sociedade.
As pessoas nunca aprendem com os seus próprios erros e menos ainda com os
dos seus semelhantes. Os que se lembravam, com desagrado, de terem
testemunhado a repressão vitoriana ou, com ainda maior desagrado, de a terem
experimentado, tudo faziam por apagar essa lembrança, sem perceber que não
apenas as convenções, mas também a sua ausência, parecem erguer jaulas.
CAPÍTULO OITAVO
O SÉCULO XX
Não haverá muito quem hesite em admitir que a época actual é, sob o ponto de
vista sexual, uma era de liberdade. Mesmo não levando em conta o fosso que
separa a moralidade teórica e moralidade corrente, separação sempre presente
- dando a impressão, a primeira, ao ser examinada, de arvorar um código de
ética mais severo do que o que na realidade subsiste -, o facto apontado é
indiscutível.
Mas os apodos lançados aos que resistem ao actual movimento libertário não
conseguirão esconder o facto de que a experimentação social ainda não
alcançou, até agora, um completo êxito - muito embora não se tenha chegado
aos extremos limites da licenciosidade, como os que prevaleciam durante a
Renascença, por exemplo.
Mas, ai!, não há dúvida de que muitos dos cidadãos deste nosso século sofrem
de um mal-estar comum, claramente perceptível à observação. O que nos cabe
considerar é até que ponto o dito mal-estar se relaciona directamente com a
nova moralidade, ou é por ela causado.
Os homens e as mulheres deste século não padecem nem das restrições com
que porventura lhes poderiam tolher os movimentos efectivos nem de
empecilhos externos. Não os afligem muitas de entre as mais graves
consequências acarretadas aos pertencentes a uma sociedade reaccionária por
determinados mecanismos mentais do subconsciente. Mas sofrem.
Desse modo, atiram-se para trás, para os tempos em que, pelo menos, tudo,
absolutamente tudo, era incompreensível. É a meia-luz do conhecimento parcial
que provoca a intolerável inquietação no Homem.
Esse vão esforço para fazer voltar atrás os ponteiros do relógio nota-se,
mormente, em ninharias. Por exemplo, o carinhoso manter de uma colecção de
pequenas superstições, à revelia dos cientistas, as quais, em vez de causarem
aquele primitivo temor do troglodita, antes ocasionam, em quem as alimenta e
cultiva, precisamente o sentimento oposto, um sentimento até de segurança.
Mas quem quer que leve mais além essas ideias poderá ser visto como burlão ou
impostor, e não como um simples equivocado.
Sir Francis Dashwood não acreditava, realmente, nas suas trapalhadas
satanísticas, mero condimento com que ele temperava os seus regalos
basicamente sexuais. Ele vivia em pleno meio-caminho do século XVIII. Mas, no
entanto, um outro homem, nascido mais de cem anos depois da morte de
Dashwood, levou a sinceridade e o fervor da sua crença em doutrina análoga à
daquele muito mais longe do que qualquer coisa de tal género que tivesse
atraído a atenção geral desde a Idade Média.
A sua atitude mística perante a vida definiu-se logo nos seus anos de
juventude, se é que não era mesmo congénita; e combinou essa característica
com a consciência, ou antes, uma convicta crença no seu próprio
hermafroditismo e exibição de tendências masoquistas. Parece que se imaginou
a si mesmo a entregar-se de corpo e alma às forças da natureza, bem como às
da luxúria e da crueldade, para que todas elas o guiassem aonde quisessem,
Nesses primeiros tempos da sua vida, Crowley não conseguia desfazer a sua
dúvida sobre se a ”presença”, de que ele ficara consciente através desses
antigos meios de culto, era o ”bem” ou o ”mal”. Quiçá se inclinasse para esta
última suposição; ou talvez até que para nenhuma, pois o deus em quem ele
realmente acreditava era Pa. Para poder comungar com a presença deste,
utilizava, além de narcóticos, também um sistema a que chamava ”magia
sexual”, ou seja, para dizê-lo clara e francamente, a cópula. Não há dúvida de
que o homem era um supersexualista, mas, também, indubitavelmente, sincero
na sua fé, de modo que as suas motivações terão de ser aqui tratadas tanto
como razões práticas como de carácter religioso. A sua incessante busca da
”verdadeira” mulher pode ser interpretada como indício de insaciável desejo de
aventuras sexuais ainda mais profundamente satisfatórias, mas Crowley
reservava-se o direito de interpretar a sua intensa actividade sexual como
sendo o meio hábil para a realização do melhor entendimento possível da
”presença”, de cuja magnificência ele deveria colher o conhecimento da
natureza da sua própria ”verdadeira vontade”. Considerava as mulheres
essencialmente como um meio, destinado à consecução de um fim,
exteriorizando, por mais de uma ocasião, como sua a opinião de que elas deviam
ser ”fornecidas pela porta dos fundos da nossa vida, como faz o leiteiro com a
sua mercadoria”. Não se pode negar que ele tinha uma alta opinião de si mesmo.
Pois não era ele o eleito, o recipiente do conhecimento que a ”presença”
decidira outorgar-nos por sua via, a nós outros, todo o género humano?
O seu zelo catequista veio, mais tarde, permitir-lhe constituir uma confraria,
conhecida como ”Os Irmãos e Irmãs de A.\ A.-.”.
Mais ou menos por essa altura, organizou sete ”ritos”, que foram executados
em público em Caxton Hall. A função parece ter impressionado mais como coisa
incompreensível do que como indecência, de modo que, na maior parte, as
críticas especializadas manifestaram-se desfavoráveis. Enquanto director da
referida confraria, Crowley foi-se interessando cada vez mais pela tal ”magia
do sexo” como recurso para as suas comunhões com o invisível. Por essa altura,
deu em usar um penteado num estilo que imitava um falo, para isso raspando
quase completamente a cabeça, deixando apenas uma mecha ao meio da testa, a
cair-lhe sobre as sobrancelhas. O seu encontro com o chefe de uma outra
sociedade que defendia conceitos semelhantes aos seus - a ”Ordo Templis
Orientis” - serviu-lhe para corroborar a sua linha de experimentações místicas.
As suas actividades, nessa época, foram narradas pelo World Magazine, cujo
repórter afirmava ter assistido a uma cerimónia na Fulham Road, onde, numa
sala ”mobilada de divãs e literalmente toda atapetada de coxins” se teriam
desenrolado os mistérios da ”Besta Apocalíptica” e dos seus sequazes. ”Música
de toada chinesa, livros de aspecto sinistro, encadernados em couro negro e
sinais cabalísticos pintados no chão, tudo isso contribuía para dar a impressão
geral de ambiente de corrupção e fantasmagoria, ao mesmo tempo. Como que
ondeando dum lado ao outro do altar, via-se uma convulsa e atormentada
serpente. Entraram os ’fiéis’. Muitos eram ’mulheres de porte aristocrático’.
Todas as damas vinham mascaradas, mas a porção de rosto que traziam
descoberta tinha uma aparência de ’cera branca, de velas’. Os oficiantes
cantaram, os círios tremeluziram e apagaram-se, propositadamente extintos;
seguiram-se inauditas orgias.”
Absolutamente nada abalado por essa revelação das suas artes, Crowley
retirou-se, ao começar a Guerra de 1914, para os Estados Unidos.
Conservando ainda o seu ”quê” de Swinburniano, na atitude que mantinha em
relação às mulheres, foi vivendo a sua vida no meio de uma fieira de amantes
exóticas e disformes. Sobre estas escreveu comentários sucintos mas ferinos,
pungentes. ”Pretende ser ’cem por cento americana’ (!) mas é apenas, creio eu,
mestiça de negro e japonês.” E também: ”Negralhona gorda, mas ardente.”
Nos Estados Unidos é que veio, afinal, a encontrar a sua Mulher-Rubra’, Leah
Faesi, americana que nascera na Suíça e possuía uma aparência impressionante,
mais do que propriamente atraente e por quem parece que Crowley desde logo
se apaixonou, tanto quanto ela por ele.
Durante a sua estada na América, escreveu o seu Hino a Pa, uma das suas mais
felizes obras poéticas, para além de uma positiva exposição da sua fé.
A cidade de Nova Iorque não era ainda, naqueles tempos do alvorecer do século
XX, uma paragem conveniente para cultos panteístas. Assim, Crowley consultou
o seu esotérico hexagrama, sobre qual seria o melhor local onde poderia ir
fundar a sua comunidade, que cada vez desejava mais e com maior urgência, e
eis que ”os poderes” lhe estendem a resposta, a saber: ”Cefalu não poderia ter
rival.”
Então mudou-se para a Sicília. A ”abadia” não era, absolutamente, o que ele
esperava. O seu grandioso plano original - pilares curvos e tectos de vidro
abobadado - teve de ser abandonado; o gerente do banco italiano a quem
solicitou um empréstimo demonstrou não estar muito crente na justeza da
transacção. Afinal, o tabernáculo com que teve de contentar-se A Besta saiu
coisa muito mais modesta: com efeito, foi uma ”vila” banal, o que não lhe
desmereceu a solene designação de ”Abadia de Telema”. A sala central do
prédio servia de Sanctum Sanctorum. Aí, sobre o soalho, pintaram o círculo
mágico e o pentagrama. Ao centro do círculo, levantava-se um altar de seis
faces. Tanto as paredes desse aposento como as dos demais da casa eram
decoradas com pinturas obscenas. No altar guardavam-se os chamados ”Bolos
de Luz”, em cuja receita entravam, entre outros ingredientes, aveia, mel, vinho
tinto e azeite (”posteriormente humedecido e amolecido com
Por essa época, a absorção diária de heroína, que Crowley usava, já atingira as
raias do absolutamente prodigioso. Todavia, a sua saúde geral e o seu cérebro,
em particular, continuavam incólumes, tanto que conseguiu elaborar, num prazo
extraordinariamente breve (fazendo em média cinco mil palavras por dia), o
seu Diário do Viciado em Entorpecentes. Redigiu essa obra ditando-a àquela
que apelidara de ”minha Mulher Rubra do meretrício”, e terminou o trabalho
num mês, apesar de combalido por uma misteriosa febre que contraiu na última
semana desse mês.
Isto era apenas o começo, pois na semana seguinte Crowley era assunto de
primeira página. Eis o título:
Vem, depois, uma descrição do Sanctum Sanctorum, onde, expõe o jornal, ”se
efectuam indizíveis orgias, impossíveis de descrever... basta dizer que são
horrendas em tal medida que ultrapassam as receosas suposições da gente de
bem”.
Ninguém poderia negar que a Grande Besta era dotada de uma personalidade
magnética, devido à qual não era problema angariarem-se novos pupilos
convenientemente insensatos. Foi a visita, com um desastrado epílogo, de um de
tais noviços que forneceu à imprensa de Beaverbrook um novo bocado de
suculento material para os seus dentes.
O rito diário da abadia tinha início pela madrugada, com um cântico ao deus-Sol
dos Egípcios, Ra: ”Salve, ó Tu que és Ra, em teu despontar!” Ao anoitecer, os
conventuais deviam assistir ao ”Pentagrama”.
Regressando, viu que a Suma Besta tinha transferido para um pobre gato os
seus projectos e desejos de ritos cruéis. O triste animal, que Betty ainda
tentou poupar à horrenda sorte, levando-o, às escondidas, para os montes, mas
que estupidamente retomou, como se estivesse ansioso por morrer, foi, afinal,
sacrificado, poucas horas depois, no Sanctum Sanctorum; e, por sinal, de
maneira muito desajeitada.
Poucos dias mais tarde, Loveday caiu de cama, doente: febre tifóide.
Betty May entendeu que a moléstia fora causada pelo sangue do gato, mais o
uso de entorpecentes. A verdade é que é mais provável que tal se devesse a ele
ter bebido água (contra a expressa advertência da Besta) num mosteiro
situado nas montanhas, que o doente visitara, dias antes, em companhia de
Crowley. Este, então, fez notar, friamente, que acreditava que Loveday
morreria no dia 16 de Fevereiro, e a verdade é que, conforme se viu, assim foi.
Mas, para Betty May, chegava de confusões. Tratou de fugir, de vez, de tal
abadia, indo acolher-se, primeiramente, no consulado britânico de Palermo e,
depois, embarcando para Inglaterra, onde despejou, inteirinha, a história das
suas amargas aventuras, nos vorazes ouvidos de um repórter do Sunday
Express.
É fácil imaginar quanto proveito o jornal tirou de tão suculento material.
Citaram-se as palavras de Betty, nas quais afirmava que as descrições dos tais
ritos abaciais, tal como haviam sido anteriormente apresentadas, nos primeiros
artigos do jornal sobre o assunto, eram tremendamente reduzidas, quanto à
realidade dos factos por ela testemunhados.
Loveday (cujo nome não apareceu) fora seduzido e atraído por falsas
promessas e engodos a ”um sorvedouro infernal, qual remoinho, de sujeira e
obscenidades”.
Ele, porém, não quis nada com processos. O ciclo da abadia aproximava-se do
momento do encerramento. Cada vez mais transpiravam cochichos, oriundos de
Cefalu, de natureza alucinante. Dois visitantes de tempos mais recuados
regressaram da abadia contando umas histórias em que a Mulher-Rubra era
dada como tendo copulado ritualmente, em plena cerimónia, com um bode,
sacrificando-se o animal no momento em que este atingia o orgasmo, para que o
seu sangue fluísse em caudais sobre o dorso, branco e nu, da ”sacerdotisa”.
Esta informação fora facultada ao Sunday Express por Mary Butts, aquela que
trouxera os elementos para os artigos anteriores; mas a redacção, percebe-se,
considerou demasiado salgada a iguaria para o paladar dos seus leitores.
É que, falando do templo de Telema, em Cefalu, dissera ela: ”Achavam que ele
praticava ali a Magia Negra, e dizia-se, até, que certo dia desaparecera de lá
uma criancinha, em circunstâncias misteriosas. Falavam também da presença de
um bode. Tudo isso eram indícios a apontar para a Magia Negra comentava o
povo -, e o certo é que os aldeões, em redor, tinham medo dele.”
Agora, por que razão Crowley resolveu mover esse processo, com base num
trecho literário comparativamente inócuo - eis o que é impossível adivinhar. A
defesa de Miss Hamnett, dos seus editores e impressores, resultou no que era
fácil de prever: os acusados ganharam a causa.
Durou várias horas o depoimento de Betty May, sendo visível que não se
deixava minimamente perturbar por quaisquer esforços visando desmenti-la. (À
pergunta de ”Quantas vezes já se casou?”, ela respondeu, sem hesitar: ”Acho
que umas quatro.”)
”Oh! Medonha!”
”Principalmente.”
”Há quarenta anos que sirvo a administração da Justiça, ora numa, ora noutra
função. Assim sendo, pensava já ter conhecido todas as modalidades
concebíveis de maldade humana. Acreditava que já me fora dado a ver
esporadicamente patenteado diante de mim tudo o que havia no mundo, de
perverso e malvado. No presente pleito, porém, apercebi-me de que, realmente,
quanto mais se vive, mais se aprende. Jamais ouviram, antes, os meus ouvidos,
discorrer sobre coisas tão medonhas, horrorosas, blasfemas e abomináveis,
como essas que acaba de expor-nos esse homem que se intitula a si mesmo o
maior poeta vivo. Compartilham os senhores, em suma, a minha opinião, ou
preferem ainda prosseguir com os debates?”
Não parece haver, realmente, grande perigo de que se repita um incidente tão
extravagante. Crowley viveu setenta e dois anos, tendo-se dedicado com
evidente sinceridade, através de todo esse tempo, às suas manigâncias
ocultistas. O culto da feitiçaria subsiste ainda, na Europa dita ”civilizada” - é
verdade -, mas de maneira muito sorrateira e rodeado de menos pompas e
exóticos recursos do que os ritos dos telemistas. Não são muitos os homens
dotados da inclinação ou da paciência necessárias para se levar a semelhantes
culminâncias idênticas brincadeiras, sendo que, afinal de contas, no caso de
Crowley, não se tratava de brincadeiras.
Se compararmos o caso acima estudado com a vida de uma figura a bem dizer
contemporânea, mas inequivocamente similar, colhemos uma impressão
diferente, e apercebemo-nos até que ponto Crowley se mostrou ímpar.
A dança em tomo do fogo, aí, vai-se acelerando, acelerando, cada vez mais
desenfreada, mais furiosa; ouvem-se suspiros e estertores; a fogueira
extingue-se e, nas trevas que descem sobre os ’penitentes’, ouve-se a voz de
Rasputin exclamar: ’Ponde à prova a vossa carne!’
É o sinal para que todos se atirem ao chão e se estabeleça uma confusão geral
em que se dá começo a uma desavergonhada orgia.
Esse ”encurralar” das damas da corte russa, mais a influência política que
desejava exercer, naturalmente que lhe angariariam inimizades. E ele próprio
forneceu a estas vasta munição em potencial, que os seus inimigos não
hesitaram em transformar numa ameaça real.
Se bem que normalmente imundo e sebento nas vestes e hábitos, Rasputin não
fazia objecções a tomar um banho, se todas as demais pessoas presentes na
sala de banhos fossem mulheres. Von Zanka descreveu (sem citar a fonte onde
se baseou) um dos tais saraus religiosos dado pelo monge Rasputin na mansão
de uma dama de Marselha, conhecida pela alcunha de ”Madame Discretion”.
”Gregor Efimovitch já está aí. Está muito quente lá dentro, um bons 40 graus
centígrados. Quando o Padre Grischka10 encontra os seus fiéis reunidos,
começa a pregar. Discorre com grande animação, pois, como já dissemos, faz
muito calor e o Padre Grischka tem muito que exteriorizar aquilo de que o seu
amoroso coração parece transbordar. O Padre Grischka gesticula e esbraceja.
Em cores infernais, ei-lo que pinta os engodos do pecado e a peçonha da carne.
A audiência, com o olhar incendiado, está suspensa dos seus lábios e, como já
dissemos, faz muito calor. Latejam os pulsos dos fiéis e o calor quase os faz
desmaiar; mas o pregador fica ainda mais exaltado pela
Diminutivo russo de Gregório. (N. do T.)
Por fim, o príncipe conseguiu escapar das garras demoníacas do inimigo e pediu
aos amigos o revólver. Quando este lhe voltou às mãos, procurava a sua vítima
escapar-lhe, arrastando-se de gatas pela escada acima. Deram-lhe ainda mais
quatro tiros e, finalmente, o alvejado tombou parecendo finalmente inerte, no
soalho. Mas não: ei-lo que se mexe de novo. Possesso de um frenesim de raiva,
ao mesmo tempo que de terror, o príncipe pôs-se a golpear-lhe o crânio com um
pesado porrete. Tamanha era a fenomenal vitalidade daquele homem que
fascinara a corte imperial russa.
Cada um interpreta tais perigos a seu modo. Alguns, à maneira dos clérigos que,
afanosamente, resistiam a todas as tentativas no sentido de consentirem a
Festa dos Loucos; outros, porém, e estes em número progressivamente maior,
revelando-se portadores de autocrítica e perspicácia maiores. As resultantes
dos processos mentais, se bem que análogas, estão muito longe de serem
idênticas em ambos os casos; e devemos agradecer à Providência o facto de
estarem a declinar as restrições do género medieval, ao passo que, em inversa
proporção, vão em maré cheia os movimentos restritivos oriundos de impulsos
mais naturais.
E ainda há algo mais por que se deve dar graças. Encontramo-nos, no presente
momento, num período de equilíbrio e, por uma vez na sua História, o género
humano parece encarar a possibilidade de puxar a corda de comunicações do
seu comboio e sair a espairecer um pouco sobre a plataforma duma estação
qualquer. É muito prematuro ainda, no entanto, predizer-se quais os possíveis
resultados de uma tal experiência, se é que alguma vez ela se •verificará.
Mas, mesmo assim, já se tem feito muitos progressos. Os seres humanos estão
a desenvolver a sua autocrítica, bem como a compreensão de que lhes é
necessário um sistema estabelecido para ela e de um outro, pari-passu, para o
seu autodomínio, tão meticulosamente organizado e mantido, quanto os seus
serviços de estradas e ferrovias.
Da culpa sexual já nos desprendemos quase todos, mas de tal facto não nos
adveio, nem por isso, uma explosão de devassidão universal, como aquela que se
observou na era da Renascença. O que vemos é, pelo contrário, uma espécie de
prazenteira autocontenção, voluntariamente adoptada, nas nossas decisões de
comportamento quotidiano. Em semelhantes circunstâncias, seria de esperar
que nos deparássemos com exemplos dos periódicos extravasamentos de
impulso sexual que apreciamos na Grécia de outrora.
Não pode dizer-se o mesmo de uma outra acção corrente do século XX, na qual,
no entanto, o escape emocional, embora violento, é menos conscientemente
sexual.
Uma parte da finalidade desse acto, fosse ele consciente ou inconsciente, era
fazer com que a noiva, se ainda virgem, não criasse qualquer ressentimento
pessoal contra o marido, por este lhe infligir dor ao desflorá-la. De algum
modo, pois, a impessoalidade do deus facilitava-lhe a transição, mais gradual,
menos abrupta, da sua prévia castidade à próxima condição de casamento
consumado.
No começo do século XX, ou pouco mais dele transcorrido, os jovens dum e
doutro sexo idolatravam artistas de cinema. Hoje em dia, anda aí uma forma
nova de tal idolatria, surgida recentemente, qual seja uma enfiada de
variedades modernas de formas musicais - congas, sambas, rock-and-roll, etc.,
que, especialmente o último, compreendem um certo ritmo e movimentos
capazes de, individualmente, porém mais ainda em combinação de indivíduos,
produzirem uma impressão sugestiva em extremo. As ”divindades” deste novo
culto parece que são exclusivamente os machos, dos quais emanará para os
elementos do sexo contrário o extravasamento emocional. As sobras de
energias dos machos parece que se descarregam por diversas maneiras,
algumas destas através de actos passíveis de sanção judicial.
BIBLIOGRAFIA SELECCIONADA
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Merryland Anstruther. Edição particular, 1892. The Town and Country Magazine.
ÍNDICE
PREFÁCIO
Capítulo Primeiro
OS GREGOS
Capítulo Segundo
OS ROMANOS
Capítulo Terceiro
IDADE MÉDIA E RENASCENÇA
Capítulo Quarto
PURITANOS E LIBERTINOS
Capítulo Quinto
OS MEDMENHAMITAS E OS LIBERTINOS
GEORGIANOS
Capítulo Sexto
O SÉCULO XVIII NA EUROPA CONTINENTAL
Capítulo Sétimo
OS VITORIANOS
Capítulo Oitavo
O SÉCULO XX
BIBLIOGRAFIA SELECCIONADA.