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HISTÓRIA DAS ORGIAS

Edições Século XXI, Lda.


Apartado 41022
1506-001 Lisboa Codex
Reservados todos os direitos
de acordo com a legislação em vigor
© Burgo Partridge A History ofOrgies © Edições Século XXI (2003)
Colecção Percursos/História
Tradução de Leonel Cândido Silva Phêbo
Revisão gráfica de Alice Araújo
Capa de Paulo Bacelar
Imagem da capa: La Mort de Babylone, de Rochegrosse
Fotocomposição, paginação e montagem:
Ramo de Ouro, Lda.
ISBN: 972-8293-25-9
Depósito legal n.° 195599/03
Impressão: Papelmunde - SMG, Lda.
Acabamento: Inforsete - V. N. de Famalicão
Burgo Partridge
HISTÓRIA DAS ORGIAS
Tradução de
Leonel Cândido Silva Phébo
PREFÁCIO
A orgia é a válvula de escape de uma pressão como a do vapor de água; é a expulsão
de histeria acumulada pela abstinência e a autocontenção e, assim sendo, tende
igualmente a partilhar dessa natureza de fenómeno histeróide ou catártico.

Toda a forma de autocontenção acarreta as suas tensões peculiares. O Homem


encontra-se na constrangedora contingência de trazer em si mesmo, em simultâneo,
as inclinações do indivíduo civilizado e as do mero animal, as quais há que procurar
conciliar, normalmente em detrimento das últimas. Mas essa pressão,
progressivamente crescente, não pode ele aguentá-la perpetuamente; de modo que se
valerá, para todos os tipos de tensão, de uma válvula de escape - que é a orgia. Muitas
das orgias, no entanto, não são tidas geralmente como tal. As guerras, por exemplo,
num certo sentido, são uma forma de orgia, extremada e desagradável; e,
catalogáveis muito lá para o fim da escala de valores da espécie, deparamos com as
discussões em reuniões sociais ou cocktails, as partidas de mau gosto, pregadas por
caixeiros-viajantes grosseiros, as pequenas escapadelas de maridos ocasionalmente
infiéis - em suma, uma longa lista.

Neste livro só se incluem as orgias de carácter ou origem sexual, e isto por dois
motivos concomitantes, a saber: o superior interesse que representam para toda a
gente e as dificuldades que obstam ao reconhecimento e definição, propriamente
como orgias, de algumas delas de outra natureza.

A orgia serve ao propósito útil de não somente prover ao alívio de tensões causadas
por abstinências (necessárias, estas, ou não), mas também de reanimar por contraste
o apetite para as monótonas temperanças que representam parte inevitável da vida
quotidiana. Daí ter sido utilizada por certascomunidades sociais tão marcadamente
diferentes entre si como por
exemplo, os povos da Grécia Antiga e (essa, de má vontade) a Igreja cristã medieval.

Existe ainda, todavia, mais uma espécie de orgia: a individual. Essa não é, na verdade,
essencialmente organizada, nem tolerada pelo Estado ou pela sociedade, visto que
surge da equação gratuitamente estabelecida pelo indivíduo, face à sociedade ou ao
Estado com o sentimento de reclusão e cerceamento que o aflige. Essa imputação é
muitas vezes justificada, sendo, por outro lado, algumas vezes errónea ou
inexactamente concebida por si.

Estas últimas são as mais interessantes e menos banais: o rebelde é aí uma figura
mais perplexiva do que conformista e, neste particular campo de estudo, foi ele o que
nos mereceu atenção mais acurada. Caso algum desses tipos tenha recebido um
tratamento desproporcionadamente extenso da nossa parte, esperamos que sejam
compreendidos os nossos motivos de autor.

Ambas as espécies de orgia, a do conformista e a do rebelde, podem ser reduzidas a


um só e mesmo princípio - o do escape a uma qualquer tensão intolerável. Uma delas
poderá bem lograr êxito, desde que incida sobre a verdadeira raiz do mal
consumptivo; e, se não a acompanharem mui aflitivos sentimentos de culpa e auto-
repulsa, é provável até que continue a funcionar sem maiores sobressaltos.

A outra espécie - a do rebelde - pode também ser satisfatória, se é que a equação


imputadora da opressão à responsabilidade do meio social se prova legítima; mas,
mesmo assim, o orgiasta expõe-se a permanecer um solitário e, tudo somado, um
indivíduo nada feliz - pois ter-se-á provavelmente excedido na sua peculiar forma de
reacção, que o terá arrastado até a um grau de licença que não lhe será
propriamente inata.

Os dois primeiros capítulos versam sobre os orgiastas da espécie conformista


(Grécia e Roma), mas foi uma ou outra dessas duas diferenciadíssimas modalidades
que os subsequentes ”rebeldes ” tenderam a escolher como norma, motivo pelo qual
importa muito que se tenham presentes à lembrança as naturezas latina e helénica, e
então estará aberto o caminho a uma tentativa de apreciação ética do assunto.

CAPÍTULO PRIMEIRO

OS GREGOS
Aos que pensam que as grandes realizações e o êxito na vida dependem de
subtileza mental e destreza verbal e que a inteligência é incompatível com a
ingenuidade, a esses o estudo da maneira de viver e do pensamento dos Gregos
provocará uma reveladora surpresa.

Como nação, os helenos realizaram maravilhas de arte, de pensamento e de


teorização política tais que não encontraram rivais que os superassem, se é que
jamais foram ao menos igualados, por mais de uma dúzia de séculos. Não
obstante, no que diz respeito à vida prática de cada dia, os Gregos baseavam o
seu comportamento e os seus ideais num hedonismo extraordinariamente
”simplório” e sensualístico. Diferiam da maioria dos povos modernos ao serem
imunes a essa moléstia que a tanta gente aflige hoje em dia, a fixação num alvo
ou objectivo na vida, excluídos todos os demais, e a busca semiobsessiva desse
absorvente objectivo, acompanhada da subestimação de quaisquer outras
alternativas possíveis.

Os Gregos eram idealistas e entusiastas por tudo o que interessava à sua vida,
consideravam a juventude como um bem especialmente precioso e as alegrias
dessa fase como a suprema felicidade. A beleza e o amor eram, acima de tudo,
votados aos prazeres da existência, que eles almejavam, e o ideal proclamado
pelos seus bardos. A saúde merecia-lhes apreço, porquanto sem ela não se
alcançaria facilmente a felicidade, e esta era a única finalidade da vida.
Saborear prazenteiramente a vida em geral era uma prerrogativa digna de se
batalhar por ela, segundo julgava Sólon. Por toda a parte, nos seus escritos e
na vida particular de cada cidadão, os esforços dos Gregos denotavam anseios
idealísticos; e não pelo dinheiro nem tão-somente pela sede de prestígio, nem
ainda por alguma esdrúxula situação na existência humana. A cultura helénica
é, por inteiro, um hino em louvor do prazer, cuja
natureza era uma intensa e requintada sensualidade. Em todos os níveis
intelectuais, o povo discernia a essencial parte que o materialismo voluptuoso
representava nas coisas humanas. Só depois de velho é que Sófocles emitiu a
conhecida observação de que a velhice merece ser louvada, porque nos liberta
da sujeição à sensualidade. A atitude do grego perante o desejo era muito
diversa.

O poeta Simónides pergunta: ”Seria deleitosa a vida dos mortais sem a


existência da felicidade dos sentidos? Não é, porventura, a vida dos bem-
aventurados deuses bem pouco de invejar-se sem isso?”

Os deuses gregos, que talvez reflictam a natureza dos seus fiéis helénicos
mais flagrantemente do que ocorrerá com os de qualquer outra mitologia e
civilização, são, igualmente, sujeitos à contingência dos desejos e dos prazeres
da carne.

No oitavo canto da Odisseia há uma cena particularmente significativa, na qual


Afrodite se abandona a ilícitos gozos de amor nos braços de Ares, o deus-Sol.
O marido, Heféstion, o deus-coxo, conclama todos os outros deuses para que
venham testemunhar o adultério daquelas duas divindades; e, no entanto, ao
contemplar aquele espectáculo, disse a Hermes o divino Apoio, filho de Zeus:
”Ó Hermes, filho de Zeus e seu mensageiro, ó tu que és o dispensador das
benesses, em verdade gostarias, mesmo que te retivessem, muito embora,
enleantes peias, gostarias de te reclinar em tépido tálamo ao lado da áurea
Afrodite?” Ao que interpôs o mensageiro Argeifonte: ”Saberás tu, divino
arqueiro Apoio, que, quanto a mim, quem mo dera, que tal me caísse por sorte...
pois, então, ainda que me atassem peias três vezes mais enleantes, vós todos, ó
deuses, e todas vós, deusas, também haveríeis de ver e estarrecer, ai!, que
outra coisa não faria eu senão deitar-me ali também, ao lado da deusa
Afrodite, a dos cabelos de oiro!” - e como de tal maneira discorresse o astuto
mensageiro, farto gargalhar rebentou dos divertidos deuses imortais. Como se
vê, nem uma palavra de repulsa moral, mas apenas uma gargalhada e
aprazimento contém o comentário das olímpicas personagens sobre esse
episódio, em tomo de semelhante motejo à fidelidade conjugal, devido à própria
deusa do Amor. É que as convenções que regiam o comportamento sexual, tais
como vigoravam então, tinham força de lei apenas civil: o conceito de ”pecado”
daí aduzido só apareceria mais tarde, com a civilização cristã.

Megaclides, o historiador, censura os poetas por salientarem, em demasia, os


trabalhos e as provações de Hércules, o herói nacional grego, quando este
andou sobre a Terra a conviver com a Humanidade. Frisa ele quanto se
comprazia o semideus, e intensamente, nos gozos sensuais, o vasto número de
mulheres que desposou e o incontável de filhos que engendrou. Quanto gostava
ele de comer e de se banhar, que até, em toda a Grécia, era de uso um leito
especialmente macio que se conhecia, qual denominação industrial, pelo nome de
Hércules. Megaclides ataca os poetas, pois, não pelo mero facto de
negligentemente omitirem um importante aspecto da vida de Hércules, porém,
sim, porque com esse descuido lhe estariam a lançar um sacrílego insulto.

Sem embargo, gente muito equilibrada eram os Gregos, para se entregarem a


uma vida de perpétuos festins e destemperas. Sabiam reconhecer na castidade
o valor de aperitivo essencial para a impudicícia e, também, que as delícias
eróticas, por muito sedutoras que fossem, nem por isso haveriam de ser
ininterruptas. Mesmo assim, olhavam a sensualidade como assunto muito sério
e, como tal, versavam-na os seus escritores.

Ateneu de Náuclia, no duodécimo capítulo do seu Delpnosofistas, discorre


sobre a noção de prazer de um modo teórico, daí enveredando por um
desdobrar de exemplos arrebanhados dentre diversos povos, a começar pelos
Persas, mostrando-nos como era que cada povo sabia encher a existência com
folguedos e libertinagens, a cuja exposição fazia seguir um rol de homens
afamados pela vida lasciva que levavam.

Segundo Heraclides, o rei dos Persas possuía um serralho de trezentas


mulheres, as quais ”dormiam o dia todo, a fim de permanecerem despertas à
noite; mas, ao serão, cantam e tangem harpas, continuamente, enquanto as
lâmpadas não se consomem; e então, o rei frui delas os seus prazeres, como
suas concubinas que são”. As ditas mulheres costumavam, aliás, acompanhar o
soberano às expedições cinegéticas1.

Os Lídios, no dizer de Xanto, costumavam castrar não somente rapazinhos, mas


também meninas, para empregá-los na qualidade de eunucos, nos palácios dos
poderosos senhores de então.

Os habitantes de Síbaris introduziram o costume dos banhos quentes e foram,


também, o primeiro povo que fez uso de vasos nocturnos em banquetes.

Na cidade de Tarento, na Baixa Itália, afirma-o Clearco, o povo local, após


haver ”conquistado a força e o poder... progrediu tanto em hábitos de luxo, que
chegou ao ponto de fazer amaciar toda a pele do corpo, assim inaugurando a
prática da depilação, que passou a todos os outros povos. Todos os homens
vestiam um manto transparente, rematado por uma fímbria

Expedições de caça (N. do E.).

purpurina... louçanias que hoje em dia são um requinte e apanágio das modas
femininas. Mais tarde, porém, cegos pela paixão do luxo até ao desmando,
arrasaram a cidade de Carbânia, dos lafígios, fizeram reunir no templo daquela
cidade os meninos, as meninas e as mulheres na plenitude da vida e ali
montaram um espectáculo, expondo nus aqueles desgraçados para a lúbrica
contemplação de quem quisesse, durante o dia; e quem bem o quisesse podia
também saltar sobre as pobres criaturas como o fariam lobos esfaimados
sobre um rebanho e então fartar a sua luxúria nos belos corpos das vítimas ali
encurraladas e à sua mercê”. Pelos vistos, no entanto, os deuses desaprovaram
essa particular forma de sensualidade, pois os devassos vieram a ser
fulminados pelos fogos do céu.
É forçoso, neste ponto, concordar que, antes de se aventurar alguém num
amplo panegírico do viver dos Gregos, se impõe ter em conta o tratado de
Heraclides Pônticos, discípulo de Platão e filósofo por mérito próprio. No seu
ensaio Sobre o Prazer, afirma que a vida requintada é prerrogativa das classes
governantes, relegando-se aos escravos e aos pobres, como o quinhão que lhes
cabia, a árdua lida e o tédio. Todo aquele que sabe apreciar a sensualidade e o
luxo é imbuído de carácter superior ao do que não partilha da sua percepção.
Os Atenienses fizeram-se um povo heróico precisamente em virtude, e não a
despeito, da vida sibarítica que se permitiam. O ponto de vista exposto na
primeira parte do referido tratado é desagradável, sem dúvida, e, se bem que
muito dubitável a extensão em que se projectou e traduziu em comportamento
autêntico na prática, não é lícito esquecer que os escravos e os pobres eram
algumas vezes excluídos, tanto mentalmente quanto efectivamente, da própria
espécie humana. É possível que os Gregos tenham, quem sabe, encarado um
poucochinho de mais o prazer como manifestação religiosa, daí sustentando que
tudo aquilo que tivesse ou pudesse ter tido, comportado ou causado prazer,
seria, sob quaisquer circunstâncias, um bem. Afinal de contas, o hedonismo dos
Gregos não foi certamente o hedonismo de J. S. Mill.

Voltemos à lista de Ateneu de Náuclia. Os habitantes de Colofónia jamais


haviam contemplado, segundo ele, o crepúsculo ou a alvorada, em toda a sua
vida, visto que, ao dealbar do dia ainda estavam eles bêbados e, ao vir o ocaso,
já o estavam outra vez.

Sardanápalo, o último rei assírio, redigiu para si mesmo o seguinte epitáfio:


”Fui rei e, enquanto me foi dado contemplar a luz do Sol, comi, bebi e rendi
culto às alegrias do amor, sabedor de quanto é transitória a vida do homem e
sujeita a tanta variação e infortúnio e que outros colherão a messe dos bens
que deixo depois de mim. Por esse motivo, pois, não deixei passar dia que fosse
sem guardar fidelidade a esse modo de vida.” A sua filosofia era a do autor do
Edesiastes, ainda que algo diversa a conclusão para que se encaminhou.

Aristóbulo descreve-nos um monumento a Sardanápalo que admirou em


Anquiale. A mão direita da estátua descreve-a ele como em acção de estalar os
dedos. A inscrição, que nos transmite, rezava o seguinte: ”Sardanápalo, filho de
Anacindaraxes, construiu em apenas um dia Anquiale e Tarso. Comei, bebei e
folgai, pois o mais que resta não vale tanto.”
O orador Lísias narra-nos a seguinte anedota acerca de Alcibíades e Axíoco:
”[eles] fizeram-se à vela, juntos, em demanda do Helesponto e desposaram, os
dois ao mesmo tempo, em Abido, uma mesma mulher, Medontis de Abido, e com
ela coabitaram. Tempos depois, nasceu-lhes uma filha, cuja paternidade ambos
declararam não poder esclarecer. Mas, ao tomar-se a mesma casadoira, os dois
coabitaram com ela também; pois, sempre que possuía Alcibíades, era alegando
gozar o amor da filha de Axíoco, enquanto que, por seu turno, este último dizia
possuir a filha daquele.”

Clearco refere, acerca de Dionísio, o Moço, tirano da Sicília, o seguinte caso:

”Quando Dionísio alcançou a sua cidade natal, Locris fez atulhar de rosas e
tomilho bravo a casa mais bonita da cidade, após o que mandou vir as moças de
Locris, uma de cada vez, despojando-as, e a si próprio, de todas as vestes e,
nus os dois, rolavam sobre o leito, ali praticando todo o género de obscenidades
imaginável. Pouco depois, ao terem os ultrajados maridos e pais em seu poder a
própria esposa e a prole do tirano, forçaram esses reféns a cometer
indecências à vista de todo o mundo e abandonaram-se a toda a espécie
concebível de devassidão. Após terem satisfeito naquelas vítimas a sua
concupiscência, meteram-lhes agulhas sob as unhas e, por fim, deram-Ihes
morte.”

Estrabão refere também essa mesma história, acrescentando ainda o pormenor


de que, após preparada a câmara, soltavam-lhe para dentro alguns pombos com
as asas aparadas, os quais as raparigas, nuas como estavam, eram forçadas a
perseguir e pegar, algumas inclusive obrigadas a calçar sandálias
desemparelhadas, sendo uma de salto baixo e a outra de salto alto.

Demétrio de Falero, que foi por muitos anos governador de Atenas, era dado
como gozador de secretas orgias com mulheres e nocturnos ”casos” com
rapazes; tinha um considerável zelo pela sua aparência pessoal, havendo
inclusive tingido os cabelos com um absurdo matiz alourado e pintado o rosto, à
faceira.
A tese de que o prazer era o verdadeiro objecto da existência era apoiada por
toda uma escola filosófica, a de Aristipo, o qual, através de toda a sua vida,
demonstrou a fé que depositava na sua própria filosofia, e teve como amante
Lais, uma notável hetera.
A maior parte dos homens arrolados na lista de Ateneu de Náuclia merecem
antes comiseração. Pertencem à categoria dos rebeldes e as suas orgias
representam uma tentativa no sentido de escaparem a algo mais poderoso e
mais inexorável do que os meros travões das convenções. Eles foram nada mais
do que casos individuais, nunca figuras representativas da raça, porquanto os
Gregos, nunca o esqueçamos, atingiram uma forma de atitude perante os
assuntos sexuais jamais igualada, desde então, na sua realística sanidade.
Hedonistas, sim, sê-lo-iam; mas suficientemente sensatos para saberem que o
prazer, de natureza unicamente sensual, cedo esmaece, se não alternar com
períodos de repouso e abstinência.

Poderíamos fornecer muitos outros exemplos, e fá-lo-emos, de extremos de


luxúria e devassidão no mundo helénico. Em primeiro lugar, há que considerar
de forma ligeira o conceito grego de matrimónio e a sua atitude face às
mulheres em geral. Tendo apreciado a ”mulher-mãe”, está-se capacitado para a
comparar com a ”mulher-rameira” e então passar-se-á à atitude grega perante
as hetairas, a religião, os festivais eróticos, os jogos, as orgias do género
”social” e a assombrosa ubiquidade da homossexualidade.

A natureza do matrimónio grego e a posição ocupada pelas mulheres no mundo


helénico são factos excessivamente difíceis de configurar sob forma de
imagens compreensíveis, a esta distância no tempo; e se tentarmos fazê-lo com
base nos modernos padrões iremos deparar em seguida com uma densa massa
de material indiscutivelmente contraditório que nos lançará a mente em plena
confusão.

Logo de início, vemos a variadíssima condição das mulheres em diferentes


partes da Grécia. A impressão geral que se recebe é que as mulheres, lá,
passavam a vida numa semi-reclusão e sujeição; mas, ao passo que algumas
delas viviam trancadas a sete chaves, no ginaekonitis, o gineceu, sob a guarda
de um feroz molosso, já na Lídia era coisa tida como corrente e aceite que as
raparigas solteiras comprassem para si mesmas os seus vestidos e
amealhassem um dote à custa de prostituição.

Sem embargo deste último exemplo, pouca dúvida existe de que, no que tange à
liberdade física, pessoal, as mulheres gregas nos pareceriam, ao nosso moderno
sentir, intoleravelmente limitadas. Entendiam os Gregos que o lugar das
mulheres era no lar e que a sua função, como animal que era, consistia em
desempenhar os misteres de dona-de-casa e mãe. Não tinha que se imiscuir na
vida literária, nem tão-pouco lhe era lícito andar pela rua desacompanhada.
Isto, no entanto, e por incrível que nos pareça, não se deve necessariamente
interpretar como indicativo de se encararem então as mulheres como seres
inferiores, mas apenas criaturas diferentes, comportando função diferente da
dos homens na vida, diferente mas, de modo algum, inferior à deles. Se era
tolerado aos maridos o adultério, mais do que se o consentia às esposas, isso
devia-se a que os Gregos viam legitimidade nos instintos polígamos dos homens
em contraste com os, pelo menos teoricamente, mais monogâmicos que
atribuíam às mulheres. Aventuras sexuais extramatrimoniais eram toleradas a
estas, contanto que não fossem elas de nascimento livre, isto é, não escravas,
nem fossem casadas com outro homem. Devassidão de mulher-mãe ou esposa
era outra coisa. No meio de tudo isto, vislumbrar-se-á, sorrateira, uma
estranha semelhança com os modos de ver a vida da recente época vitoriana; lá
estava uma análoga espécie de repartição separando as cortesãs das mulheres
ditas ”de respeito” - a tal divisão mãe-rameira. A diferença entre as duas
sociedades reside no facto de o ponto de vista vitoriano se projectar no
preceito de que a actividade sexual era coisa que não se podia impor contra a
vontade ou satisfatoriamente gozar com a boa vontade de uma pessoa
pertencente à mesma classe social. Já os Gregos não pensavam assim. O
matrimónio, entre eles, e a despeito da evidente sujeição das mulheres, era
uma instituição social mais civilizada e satisfatória do que o vitoriano. Podia-se
obter o divórcio sob alegação de mútua incompatibilidade, situação essa que se
pode comparar, e com vantagem, com a actual fórmula legal. Acima de tudo,
existia entre marido e mulher genuína afeição, cooperação no desempenho das
diversas incumbências da vida em comum e um estado de mútua admiração
pelas realizações respectivas. Consta, na literatura, farta messe de
testemunhos da afirmação supra. E quem achar que, por viver reclusa no
âmbito restrito do lar, a mulher grega era uma escrava e que os homens
tratavam as suas esposas como tal, que leia, então, a narrativa da despedida
entre Heitor e Andrómaca, na Ilíada de Homero.

Que a infidelidade conjugal ocorresse no homem e, menos frequentemente, na


mulher, isso era coisa sancionada do ponto de vista hedonístico da vida, entre
os Gregos, e menos capaz de fazer periclitar a solidez do matrimónio por essa
razão mesma - ainda que o facto se nos apresente deplorável perante a nossa
moderna moralidade. Os Gregos compreenderam, já então, o que quase ninguém
mais parece ter percebido durante todos os dois mil anos hoje transcorridos:
uma passageira vertigem de concupiscência por A nem por isso é incompatível
com um amor mais permanente por B, tanto que jocosas representações dos
ardis empregados por esposas gregas para enganarem os seus maridos
aparecem nas comédias de então. E pressentiram também os helenos o que
escapou aos nossos vitorianos, a saber, que restrições impostas às mulheres
casadas, convenientes ou não, que fossem, eram o mesmo que impor-lhes um
constrangedor estado de tensão, que melhor seria deixá-las aliviar de tempos
em tempos. Na realidade e no plano emocional, poderão as esposas gregas ter
sofrido ciúmes e revolta, ao saberem das aventuras dos seus cônjuges com as
heteras. Nem teriam sido humanas, se assim não fosse. No plano racional, no
entanto, o princípio era largamente aceite como válido e, ainda que cheirando a
cinismo, prudente.

As damas que proviam aquela alternativa ao conúbio matrimonial não eram


consideradas meras válvulas de segurança, conquanto fossem precisamente isso
mesmo, sem dúvida nenhuma. com aquela simplicidade manifesta dos Gregos em
todas as questões referentes ao sexo, essas raparigas eram tratadas muito
mais como sacerdotisas do culto hedonístico. A diferença entre a condição das
heteras na Grécia Antiga e as prostitutas da civilização moderna patenteia-se,
de modo vívido e surpreendente, em dois exemplos a ver: os habitantes de
Téspias, cidade que a famosa hetera Frine havia presenteado com uma
magnífica estátua do deus Eros, retribuíram-lhe a fineza encomendando a
Praxíteles que esculpisse uma estátua dourada à imagem dela. Pronta a obra,
foi erigida na praça pública, entre as estátuas do rei Arquidamo e a de Filipo, o
que a ninguém escandalizou, em absoluto. Sobre a lápide tumular de Calírroe de
Bizâncio lê-se a seguinte inscrição: ”Fui meretriz na cidade de Bizâncio e servi
a todo o mundo o amor que vendia. Sou Calírroe, a experiente em todas as artes
da volúpia. Dilacerado pelas fúrias do amor, Tomás pôs este epitáfio sobre a
minha tumba, assim revelando a paixão que lhe habitava na alma; o seu coração
desfez-se, tão derretido como a cera.”

As heteras, que eram tidas como superiores às simples prostitutas de bordel, e


cujos preços reflectiam tão elevado conceito, eram admiradas pela posse de
qualidades intelectuais, não menos que as físicas, muito embora possa tomar-se
objecto de irónicas dúvidas o precisar-se até que ponto uma das duas prendas
sobrelevaria a outra, numa avaliação objectiva total.
Tais personagens eram frequentemente convocadas a concorrer com os seus
préstimos em prestígio do culto de Afrodite. Em Corinto, cidade
constantemente mencionada na literatura grega como famosa pela libidinagem
dos seus habitantes (”do desenfreio e licenciosidade da vida nesta metrópole,
do antigo empório tão rico e tão bem aquinhoado pela natureza, seria difícil
lavrar-se um relato a que alguém pudesse acoimar de exagerado”, diz-nos
Licht). Ou, conforme conta o valioso Ateneu: ”Tem prevalecido a usança
segundo a qual a cidade, sempre que oferece preces a Afrodite em imponente
procissão, carreia para esta o maior número possível de heteras, as quais
também dirigem preces à deusa e se apresentam na cerimónia do sacrifício e
respectiva festividade.” A prostituição litúrgica, nos templos, verificava-se em
muitas localidades, destacando-se entre elas Corinto, Chipre e Abido. Nesses
templos era costume trazer ao vencedor dos Jogos Olímpicos, algumas vezes,
um presente constituído de raparigas.

Acerca do templo de Afrodite Pornea, em Corinto, escreveu Estrabão: ”O


templo de Afrodite era tão sumptuoso e rico, que podia manter um milhar de
heteras que eram dedicadas à deusa e visitadas tanto por homens como por
mulheres. Por causa destas raparigas, afluíam até lá multidões de forasteiros,
do que resultou o enriquecimento da cidade.” (O facto de Afrodite, ao mesmo
tempo que era a deusa do amor, poder aparecer como ”Afrodite-prostituta”,
denota a ausência de ilusões do mundo helénico em relação à natureza humana).

Luciano apresenta-nos um relato sobre o templo de Biblos: ”Em Biblos vi


também o grande templo de Afrodite e conheci as orgias que são coisa
corrente ali. Os habitantes da cidade têm a crença de que a morte de Adónis
sob os colmilhos de um javali se deu ali no seu país e, em memória do facto,
batem no peito e carpem, todos os anos, sendo que, por ocasião dessas
comemorações fúnebres, dão-se grandes sinais de pesar através de todo o país.
Ao terminarem com os murros no peito e as lamentações, passam então a
efectuar as exéquias de Adónis e, no dia seguinte, fazem de conta que ele
despertou novamente para a vida, põem-no no seu céu e raspam as próprias
cabeças à maneira dos egípcios em sinal de luto pela morte do boi Ápis. Mas
toda a mulher que recuse deixar que lhe cortem os cabelos padece o seguinte
castigo: num dia marcado, é ela obrigada a prostituir-se publicamente, e a ela
só permitem concorrer os forasteiros, e a renda daí auferida é então entregue
ao templo da Afrodite.”
Essa ideia, da actividade sexual encarada como coisa que pudesse aplicar-se à
guisa de meio punitivo, é estranha a todo o resto da vida grega. O conceito
segundo o qual o instinto sexual é um maravilhoso dom da natureza ou dos
deuses, levando o indivíduo até ao contacto místico com a divindade, benesse
que é forçoso aproveitar-se e pela qual se deve mostrar a devida gratidão
mediante oferendas à deusa, bordeja perigosamente, diga-se mesmo
paradoxalmente, a atitude contrária, pela qual o referido instinto se toma uma
força que exige apaziguamento e sacrifício.

Estado de coisas muito semelhante deparar-se-nos-ia entre os babilónios, em


ligação com o culto de Milita, a equivalente babilónica de Afrodite. Por lei
vigente entre esse povo, toda a mulher devia, uma vez na vida, dirigir-se ao
templo de Milita e aí prostituir-se ao primeiro forasteiro que se lhe
apresentasse. Na versão de Heródoto: ”Muitas mulheres, orgulhosas das suas
grandes riquezas e querendo conservar-se acima da gente vulgar, viajam em
viatura cerrada e coberta, acompanhadas por uma porção de servas, dirigindo-
se ao templo... uma vez ali sentada, uma mulher não poderá retomar a casa
enquanto um dos forasteiros não lhe tiver atirado no regaço uma moeda de
ouro e tenha tido relações com ela na parte externa do templo; ele, porém, ao
atirar-lhe a peça de dinheiro, deverá acompanhar o gesto com a frase
sacramental: ’Eu te reclamo em nome de Milita.’”

As heteras mantiveram amizade com grandes homens de todo o género:


soldados, filósofos, artistas. Quando Alexandre, o Grande, derrotou Dário,
marchou sobre a Babilónia, tomou a cidade de Susa e entrou depois em
Persépolis, a antiga capital; aí foi celebrado um espectáculo em que uma horda
de heteras desempenhou importante mas desastrosa parte. Regidas e incitadas
por Tais, a qual já tinha conseguido uma ligação com o próprio Alexandre, sem
embargo dos rumores correntes sobre contrariantes interesses por parte
desse grande conquistador. Foi ela quem lhe sugeriu que deitasse fogo ao
palácio persa, quem se pôs à frente dos incendiários bêbados, com
acompanhamento de cânticos, tanger de flautas e danças bacanais e, ainda,
atirou pessoalmente o primeiro archote aceso.

O emprego de heteras profissionais nas festas religiosas já foi aqui referido.


As afrodísias, embora não oficialmente reconhecidas, nem por isso eram menos
apreciadas e eram celebradas por todo o território grego. Constituíam, muito
simplesmente, festas em honra de Afrodite, das quais raramente se
ausentavam prostitutas e heteras. Uma dessas festas particularmente
conhecidas pelas heteras eram as afrodísias de Egina, onde Frine se
comportava da maneira descrita por Ateneu: ”Mas era Frine realmente a mais
bela, com os seus velados encantos de onde resultava não ser fácil conseguir-se
vê-la nua, pois ela trazia em volta do corpo uma roupagem muito justa às suas
formas e jamais fazia uso dos banhos públicos. Mas na festa da Eleusínia e da
Poseidónia, à vista de todos os helenos, ela costumava despir o mantéu, soltar a
cabeleira e entrar nas águas do mar, tanto que Apeles fez dela o modelo da sua
Afrodite Anadiómena, a que surge do mar.”

As numerosas prostitutas de Corinto comemoravam as afrodísias à sua maneira


particular, lasciva e turbulenta. A cerimónia, conhecida pelo nome de
”pannychis ” (palavra que depois as heteras adoptaram como a carinhosa e
favorita designação delas mesmas), prolongava-se pela noite dentro. Muito
embora se tratasse, teoricamente, de festividade, não passavam os respectivos
ritos de pouco mais que um simples bacanal lúbrico e uma infrene bebedeira. As
”potrancas de Afrodite”, ”quase nuas sob as suas roupagens de tenuíssimo
tecido... vendiam os seus favores por tuta e meia, para que todos pudessem
permitir-se gozá-los”.

O festival de Afrodite Ansósia, celebrado na Tessália, participava da mesma


natureza, excepto quanto à circunstância de ser totalmente de carácter
homossexual (entre mulheres, aliás). Não abundam pormenores,” mas sabe-se
que aí tinha maior relevo o uso da flagelação erótica.

Outros festivais de carácter inequivocamente erótico e mais ou menos de


âmbito nacional foram as dionisíacas, aparentadas de muito perto com as
”liberalia”, a idolatria romana de Líber, deus dos pomares e das bagas (quod
vide), e com as Lenea, a festa dos lagares e da vindima. Esse festival
destacava-se pela celebração de um grande banquete, largamente subsidiado
pelo Estado, e de um cortejo dançante que percorria a cidade e a que se
comparecia em trajos de fantasias - representando-se ninfas, bacantes,
sátiros, etc. -, tudo acompanhado de desbragadas troças e piadas de toda a
espécie, no fundo e antes de tudo, de sentido erótico. Em Março e Abril
comemoravam-se as festas do Elaphebolion (mês correspondente, no calendário
ático), ou seja, as Dionisíacas da Cidade. Coros cantavam ditirambos em honra
de Dionisos, davam-se bailados desempenhados por mancebos formosos e ao
entardecer toda a gente se postava pelas ruas, deitada em leitos e a beber
desmedidamente. Uma representação fálica, senão mesmo diversas imagens de
phalli, era imprescindível entre os ornamentos da folgança.

Em certas partes da Grécia, especialmente em Citera e no Parnasso, bem como


nas ilhas, realizava-se uma ”dionísia” exclusiva, na qual só tomavam parte
mulheres feitas e raparigas. À noite, ataviadas de fantasias de Baco, incluindo
a pele de bode, cabeleira alvoroçada e as mãos brandindo instrumentos
musicais, elas galgavam o pico de um monte próximo e, estimuladas pela
actividade anormal, excitadas pelo vinho que, em geral, raramente ou nunca
provavam nas suas vidas, fora dali, celebravam lá em cima bailados e sacrifícios
que rapidamente assumiam a categoria de orgias.

Pausânias, verdadeiro ”Baedeker” para as coisas da Grécia Antiga, diz, a


propósito da referência de Homero aos ”locais de bailados do Panopeus”, que
semelhante referência o deixara muito intrigado, até ao dia em que lhe
explicaram o tópico ”as mulheres às quais os atenienses denominam de
thyiadas”, bacantes, sacerdotisas de Dionisos. ”Essas thyiadas são umas
mulheres da Ática que, juntamente com as da Délfica, se dirigem todos os
anos ao monte Parnasso, onde realizam orgias em honra de Dionisos. Essas
mulheres têm por hábito fazer as suas danças em várias localidades à beira da
estrada que vai para Atenas, um de tais pontos sendo o Panopeus.” A certa
altura, falando da gruta coriciana (da ninfa Corícia, mãe de Apolo), declara ele:
”Os píncaros elevam-se acima das nuvens e, neles, as thyiadas entregam-se a
desvarios em honra de Dionisos e Apolo.”

É preciso aqui especificar a natureza dessas celebrações dionisíacas, pois elas


eram distintas, sob um importante aspecto, do género de festa da fertilidade
que todos conhecem. O grego, uma vez empolgado por alguma força que o
compelisse a agir de maneira diversa daquela que normalmente adoptaria,
justificava os seus impulsos, naturalmente com suficiência, dizendo-se
”possesso dos deuses”.

Contrariamente ao que ocorria com os Romanos, nos Gregos esse sentimento


incutia atitudes de admiração, que não de obediência, mas fazia, também, com
que se desse valor a tudo aquilo que conduzisse à consecução de um estado de
”teolépsia” - comunhão íntima com a divindade. Isso explica aquilo que à mente
moderna parece difícil de entender, como seja, o como e o porquê de os Gregos
encararem o amor às libações alcoólicas, às danças e ao coito com um
sentimento de reverente temor religioso.

A finalidade do culto era, pois, propiciar um acto que os Gregos tinham em


conta de religiosamente nobilitante, muito embora, nos nossos dias, um
psicólogo configurasse tal atitude ética sob terminologia bem diversa, e que um
superficial exame objectivo das acções verificadas naqueles festivais nos
deixasse, como resíduo, a impressão de uma orgia de lubricidade.

Sem embargo, aquelas festas eram também aproveitadas como oportunidades e


recursos hábeis ao relaxamento de tensões sexuais, asserto válido, por igual,
para o culto da fertilidade, ainda que este último possa ter sido considerado
uma forma de encantamento, de invocação dos deuses, para se obter deles, por
associação de ideias, feliz êxito nas colheitas agrícolas.

Pelo Outono, celebravam-se os afamados Mistérios de Elêusis, misteriosos


efectivamente. A cerimónia durava nove dias, sendo a sua exacta natureza
coisa difícil de se estabelecer. A ideia que estava na sua base tinha a ver com o
evanescimento e subsequente revitalização do grão. De mistura com isso, iam
vagas noções ou anseios de humana imortalidade.

Os primeiros dias dessa festa eram passados em procissões ao mar e banhos e


demais purificações, de ordem ritual, nem sempre verificados sob normas de
decoro e pudor. Ao sexto dia, saía de Atenas com destino a Elêusis uma
procissão. Os que a acompanhavam - e contavam-se, por certo, por milhares -
iam coroados de mirto e hera, e levavam nas mãos archotes e espigas de milho.
Uma vez atingida Elêusis, que ficava a nove milhas - uns quinze quilómetros de
distância, o restante do prazo adjudicado às celebrações era preenchido com
actividade esotérica, ruidosa e transbordante de jovialidade, sendo, não
obstante, atribuída a Titínios a brutal afirmação de que o incesto também se
incluía entre os demais pontos salientes dos ritos.

A maior parte das cerimónias que comportavam cópula cerimonial e outros


actos orgíacos comportavam, igualmente, um período de abstinência.

Nas thesmophoria de Demétrio, na Ática, por exemplo, uma das únicas


verdadeiramente nacionais e cujo conhecimento chegou até aos nossos dias em
parte através das Thesmophoriazusae de Aristófanes: ”Todas as mulheres que
desejassem participar da festa eram obrigadas a abster-se de relações
sexuais durante os nove dias precedentes. A solércia dos sacerdotes impunha
essa condição como um dever de piedade, um acto de religião, cuja verdadeira
razão, entretanto, era, claro está, fazer com que as mulheres, acicatadas por
longa privação, pudessem partilhar das orgias eróticas com menos contenções.
Para se fortalecerem nessa castidade preparatória que se lhes exigia e que
provavelmente achavam bastante árdua de manter, as damas punham sobre os
seus leitos ervas e folhagens refrescantes, entre estas especialmente o Casto-
Cordeiro, ouAgnus Castus (”que toma improdutiva”, segundo uma logomaquia
grega) e outras plantas do género. De acordo com Pócio, porém, por esse tempo
as mulheres comiam alho a fim de afugentar os homens, apavorados com o
fedorento odor do hálito delas.

Era, no entanto, no culto e homenagens a Afrodite que se efectuavam as mais


sumptuosas, empolgantes e dissolutas celebrações. Pois foi ela, Afrodite, quem
trouxe aos Gregos e aos seus mesmos deuses as alegrias do amor. Na mente
grega entreteciam-se inseparavelmente e interdependentemente o amor e a
beleza. Ali, sim, mais do que em quaisquer outras oportunidades, havia causa
para júbilos e gratidões: para singela, porém entusiástica, expressão das
emoções. E Afrodite é também a deusa da Primavera; a das flores;
especialmente da rosa e do mirto, com que se engrinalda e envolve todo o
corpo, ao atravessar as florestas. Os animais silvestres acompanham-na,
afagam-na. A Primavera, portanto, era a estação em que se realizavam, em
maior número, as festas afrodísias.

Em Chipre, ilha repleta de flores, coberta de frutos e embalsamada pela


fragrância duma imensidão de botões a desabrocharem, todos esses encantos
galardoados pela própria Afrodite, ali, em Pafos, o local onde a deusa nascera,
à beira-mar, era onde tinha início a mais famosa e grandiosa das cerimónias do
seu culto. Banhava-se carinhosamente no mar a imagem sagrada, cobria-se de
flores, tudo isto a cargo de raparigas que, em seguida, se banhavam também,
como preparação para as subsequentes orgias de amor, nos frescos regatos que
corriam sob bosques de mirto sagrado, através de vales escondidos sob
espesso tapete de amendoeiras em botão. Os deuses dos Gregos
representavam a própria expressão do sentir no corpo e alma dos seus fiéis
helenos, como que magnificentes modelos de tudo aquilo que estes eram em
verdade ou quereriam para si mesmos. Diversamente dos Romanos, que se
valiam das suas divindades como de bodes expiatórios, aos quais pudessem
atribuir a manifestação de forças que não desejavam reconhecer como
naturais, sendo o seu culto assente num espírito de união, não de obediência.
(Diz-nos Seleuco, todavia, que não constituía costume ancestral a complacência
nas libações e em outros excessos dos sentidos, excepto por ocasião de alguma
festividade sagrada.) As estátuas de Afrodite representam sempre uma
mulher que encarna nas suas formas todos os padrões concebíveis e
reconhecidos da beleza feminina em cada pormenor. Parece que os Gregos
nutriram sempre particular estima pelo traseiro humano e assim é que, com
aquela deliciosa simplicidade que jamais se encontraria alhures, eles erigiam
estátuas, erguiam templos a Afrodite Calipígia, a diva de lindas nádegas, à qual
rendiam o seu culto idolátrico com aquela graça e aquele indisfarçado
entusiasmo que caracterizavam a raça. E isto, se aceitarmos a opinião de
Ateneus, decorria das seguintes circunstâncias:

”Um lavrador tinha duas lindas filhas que, certa vez, se puseram a disputar,
chegando a desafiarem-se no meio da estrada para decidirem qual das duas
possuía nádegas mais bonitas. Um dia passou por ali um mancebo cujo pai era
um rico ancião e logo as duas litigantes expuseram à vista e veredicto do moço
o seu ’pomo de discórdia’, ao que, tendo suficientemente contemplado as
prendas, ele deu o seu parecer em favor da mais velha das duas irmãs; e o
facto é que se apaixonou por esta, a tal ponto que, ao tomar à sua casa na
cidade, meteu-se na cama, adoentado, contando ao irmão mais novo o episódio.
De modo que esse irmão se dirigiu também ao campo para contemplar as
protuberâncias traseiras das duas irmãs rivais, ficando também, por seu turno,
amoroso, porém da outra irmã, previamente vencida. Eis que o pai dos rapazes
lhes pediu, então, que pelo menos saíssem em busca de matrimónio mais
respeitável, mas, não conseguindo demovê-los, trouxe as duas jovens daquela
herdade para os dois filhos, mediante o consentimento do velho lavrador e
uniu-as em matrimónio aos rapazes. Por isso, as duas raparigas ficaram sendo
conhecidas na cidade como ’as belas nádegas’, canta o satírico Cércidas de
Megalópolis em seus versos jâmbicos. É sua a troça ’havia em Siracusa uma
parelha de irmãs de formosas nádegas’. Pois foram essas mesmo que, chegando
a possuir uma grande fortuna, fundaram o templo de Afrodite sob a invocação
de ’Afrodite das Formosas Nádegas’, segundo o confirma, também, Arquelau.”

Pode ver-se no Museu Nacional de Nápoles uma estátua dessa Afrodite


Calipígia. Erótica, não há dúvida, porém despida de qualquer traço de grosseria
de todo não atribuível ao romantismo e à reverência que tendem a tolher-nos a
apreciação de peças dos museus, essa estátua oferece-nos um momentâneo e
parcial, mas também esclarecedor, olhar sobre a atitude helénica perante o
sexo e a vida.

Os jogos atléticos dos Gregos eram uma forma de expressão da delícia com que
o povo cultivava o corpo humano e suas capacidades. Para a gente da nossa
época, habituada ao uso de roupas, é muito difícil entender os motivos que os
Gregos teriam para justificar a nudez naqueles prélios, ou ainda mensurar o
grau de erotismo presente na sua atitude diante deles. Que um certo
sentimento de vergonha, isto sim, lhes advinha antes do facto de envergar
roupagens e não da circunstância contrária, e que eles admitiam quaisquer
peças de vestuário, quando muito, por exigências climatéricas ou de higiene -
eis uma noção hoje em dia tão difundida que se tomou um lugar-comum.
Entendiam os Gregos que agasalhar as partes íntimas tão-somente, quando o
resto do corpo se deixava ao vento, desembaraçado de panos, dava a impressão
de um certo desprezo ou vergonha dos genitália quando, na realidade, a opinião
que eles nutriam a respeito destes era precisamente oposta a isso, pois os
genitais somente lhes inspiravam gratidão e respeito aos numes imortais, como
o instrumento, deles granjeado, para sublimes prazeres e para o milagre da
procriação.

O erotismo, no entanto, se é que aí constava, era só conscientemente ausente


daqueles entretenimentos, imperceptivelmente mesclando-se-lhe a admiração
de uma espécie de função física, misturada com uma outra de diferente tipo.

Em Mégara, realizavam-se na Primavera os jogos ”Diocleicos”, em honra do


herói nacional Díocles; por essas ocasiões, procedia-se aí a um concurso de
beijos de formosos meninos, pleito que assim nos descreve Teócrito: ”Em volta
do túmulo dele (Díocles), assim que chega a Primavera, as crianças competem
num prélio de beijos e o menino que souber pousar lábios sobre lábios com mais
doçura, de lá regressa à genitora carregado de grinaldas.”

Em Esparta, onde o comportamento e a maneira de ver a vida diferiam


acentuadamente dos do resto da Grécia, a ”Gymnopaedia”, ou dança dos
meninos nus, dava-se anualmente à guisa de preito e comemoração de
guerreiros espartanos tombados em Tirce. As homenagens constavam de
danças e demonstrações de ginástica efectuadas por meninos completamente
desnudos. Essa festividade, longe de ser considerada então sob certa luz de
folgança descuidada, era antes tratada sob tais extremos de veneração que
até se lhe atribuía preferência sobre tudo o mais.

Ao chegar à sua cidade natal, ao regressar dos Jogos Olímpicos, o respectivo


vencedor era submetido a um tratamento de honrarias e festejos em profusão.
Coroado de louros e enfeitado de flores, transpunha os portais dos muros;
entoavam-lhe cânticos, erigiam na agora, no centro da cidade, estátuas à sua
imagem. E daí por diante passava a ser tratado, para sempre, como cidadão
ilustre. O seu triunfo era tão magnífico quanto o de um general romano e a
superior competência dos Gregos em matéria de fausto é assunto que
sobrepaira a quaisquer dúvidas, para os que saibam julgar sem preconceitos.

Danças por motivo de várias festividades religiosas exclusivamente locais


pululavam um pouco por todo lado na Grécia Antiga. Já aquela modalidade de
baile que hoje conhecemos nos nossos tempos, como forma de sociabilidade,
essa era, naturalmente, ainda desconhecida ali. Para a Hélade de antanho, a
dança era um meio de representação por arte mímica de ideias e emoções do
íntimo (e, como vimos, estímulo à consecução de um estado de catarse anímica).
As eróticas - refiro-me àquelas que não se ligavam necessariamente à religião -
eram de uso geral. Entre estas ficaram famosas a célebre ”Sicinnis” e a
”Cordax”. Segundo o moderno modo de julgar, ambas seriam consideradas
claramente e acima de tudo obscenas, já que comportavam movimentos e
posições significativos, bem como a supressão de todas as peças de vestuário.
Os sátiros, nos dramas satíricos, eram apresentados por bailarinos a
desenvolverem um bailado que uma tremelicante melodia de flautas
acompanhava, e bem assim à peça toda.

A dança entre os convidados masculinos e as servas ”porta-taças” do anfitrião


constituíam um procedimento usual nos banquetes. Nesses casos aplaudir-se-ia,
até, a lascívia pura e simples, enquanto a falta de elegância e autodomínio eram
condenados e desprezados pelos comensais.

Cleistenes, senhor de Sicião, tinha uma filha, Agarista, cuja beleza era tão
notável que os pretendentes à sua mão enchiam-lhe a casa durante mais de um
ano, até que um dia ele se valeu de uma oportunidade para meticulosamente pôr
à prova os candidatos. No fim das investigações, Hipocleides parecia ser o mais
recomendável de todos e, assim, no dia em que se encerraram as provas, houve
um banquete em que os cortejadores da jovem exibiram os seus dotes sociais e
mesmo musicais. Hipocleides, que se desregrara um tanto nas libações,
executou uma sugestiva dança ao som das flautas, chegando por fim a exceder-
se tanto em desatinos, que acabou por se plantar sobre a mesa de cabeça para
baixo, e as pernas a agitarem-se no ar. A isso, o quase sogro, que afinal já
perdera a serenidade e a paciência, disse ao moço que este acabara de também
perder a noiva. Respondeu-lhe, incontrito, o alucinado bailarino: ”Ora,
Hipocleides não se importa!...” e, às gargalhadas, abandonou a sala do festim.

Compostura e seriedade eram, aos olhos dos Gregos, as conquistas pessoais


mais importantes. Os porta-taças dos banquetes eram, quase que
invariavelmente, meninos. A maneira de oferecer a taça era considerada uma
grande arte - da qual, segundo Xenofonte, os que mais entendiam eram os
Persas. Conta-nos Luciano, a respeito, uma historieta interessante:

”Eu notara que um formoso escravo jovem, que fora colocado no serviço de
apresentação de taças, se postara atrás de Cleodemo, a sorrir; e fiquei curioso
por saber a razão disso. Pus-me, então, a observá-lo cerradamente, de modo
que, quando o belo Ganimedes se abeirou novamente para recolher a taça vazia
das mãos de Cleodemo, descobri que este último lhe roçava o dedo e, ao fazê-
lo, pareceu-me que junto com a taça lhe depositava na mão tocada um par de
dracmas. Ao sentir o dedo tocado, novamente sorriu o rapaz, mas eu quero crer
que nem percebeu a presença das moedas. Em consequência disto, as duas
dracmas rolaram para o pavimento com o característico ruído, diante do que
tanto o filósofo como o efebo coraram fortemente!”

Cleodemo pretendeu, então, negar que tivesse algo a ver com aquele dinheiro, o
moço imitou-lhe a atitude, mas o dono da casa, à vista do incidente, achou
melhor mandar retirar dali o servo suspeito. A vergonha, para Cleodemo, está
em duas circunstâncias: a sua incapacidade para o autodomínio emotivo, sendo
ele, no entanto, um filósofo, isto é, um sábio; e o ter-se permitido algo, mínimo
que fosse, de entendimento com um escravo.

Conquanto as mulheres provavelmente jamais fossem utilizadas como


servidoras de taças, não há dúvida de que estavam presentes raparigas, fossem
como escravas ou como heteras, as quais, por brincadeira, chegado o ponto em
que a embriaguez imperava, podiam ser induzidas a vazar o vinho dos picheis.
Essa função, todavia, como encargo permanente, permanecia privilégio e
responsabilidade de escravos adolescentes.
Às dançarinas e aos tangedores de flauta cabiam finalidades múltiplas,
porquanto, além de satisfazerem, até certa medida ou modalidade, os apetites
sexuais dos convivas, competia-lhes até mesmo atender às funções de
entretenimento apontadas pelas suas designações especificamente
profissionais.

A gente de Colofónia (à qual já nos referimos), no dizer de Filarco, ”promulgou


uma lei, que ainda hoje vigora, estabelecendo que as flautistas e as harpistas,
bem como outras artistas públicas, ganhem salários a contar da manhãzinha
cedo até ao meio-dia e desta hora até o acender das lâmpadas...” E Teopompo
afirma, acerca dos Tessálios, que ”passam a vida, alguns, perpetuamente em
companhia de dançarinas e tocadoras de flauta, ao passo que outros consomem
o dia inteiro a jogar, a beber e entregando-se, em suma, a análogas formas de
dissipação...”

Os Cárdios, talvez para variar, ”haviam exercitado os seus cavalos a dançar ao


som de gaitas, nas suas festas báquicas, de maneira que, erguendo-se no ar
sobre as pernas traseiras e, como quem diz, gesticulando com as dianteiras, as
alimárias dançavam efectivamente, acostumadas como estavam às melodias das
gaitas”. Este curioso costume acabou por ser a sua desgraça, pois os seus
inimigos procuraram e compraram uma daquelas raparigas flautistas da Cárdia,
que ensinou a um grande número de músicos as melopeias a que os animais se
habituaram a acompanhar dançando, por forma que, ao desenrolar-se a batalha,
a cavalaria cárdia se viu subitamente dispersa pela intervenção da fatal música.

O receio de que a luxúria viesse a derrubar a força e a segurança militares


parece ter sido o argumento de maior peso em seu desfavor, e com certa dose
de razão. Polícrates, tirano de Samos, foi destronado em consequência da sua
permanente preocupação com os prazeres - ou, consoante Clearco -,
”Polícrates, tirano de Samos, arruinou-se por causa do seu dissipado viver,
posto que até se dava à emulação com os lídios em práticas efeminadas”.
Levado por isto, construiu na cidade o famoso ”bairro” de Samos, destinado a
rivalizar com o parque existente em Sardis e a que denominou de ”Doce
Amplexo”: e, para competir com os floreios (isto é, produtos e coisas afins ao
prazer) da Lídia, entreteceu aquelas grinaldas sâmias largamente gabadas. De
tais inovações resultou que fosse o ”quarteirão sâmita” um jardim alcatifado de
mulheres profissionais do gozo, além de que dali saiu literalmente a
empanturrar toda a Hélade um extenso cardápio de todas as espécies de
comidas que espicaçavam a sensualidade e a incontinência. Aliás, as ditas
floradas sâmitas consistem também nos vários encantos de homens e mulheres.
Mas enquanto a cidade em peso se achava imersa em descuidadas festas
públicas e avinhadas orgias, chegam os Persas, que a atacam e dela se
apoderam. Os Lacedemónios, mais prudentes, viviam atentos às condições
físicas dos seus guerreiros, fazendo o exército desfilar em parada uma vez por
semana, estando os soldados completamente nus, para detectar princípios de
obesidade e outros indícios de relaxamento pessoal nos seus homens. Também
uma vez por semana se procedia, entre eles, à inspecção geral das camas, para
se ter a certeza de que não haveria quaisquer amaciamentos de colchões que
amolecessem a tropa, minando-lhe o moral.

As generalizações de Ateneus, tanto quanto as fontes de informação em que


bebera, uma vez que abrangem nações inteiras, tomam-se menos valiosas do
que os retratos que traça de simples indivíduos. Alguns destes esboços
pessoais já aqui os reproduzimos, tais como os referentes a Dionísio da Sicília
e a Sardanápalo. Mas deste último consta ainda mais um episódio que nos relata
Ctésias. É o caso de Árbaces, um seu súbdito provindo da Média, que desejou
encontrar-se com o soberano; e, através de uma trama de intrigas, conseguiu
ser recebido. ”Ao ser admitido à presença, viu o rei de cara empastada de
alvaiade, coberto de jóias como uma mulher, e a enrolar lã púrpura em
companhia das suas concubinas, entre as quais se achava sentado de joelhos
para cima, sobrancelhas pintadas de negro, vestido de mulher e barbeado bem
escanhoado, a face esfregada com pedra-pomes (ele era ainda mais branco do
que o leite e as pestanas eram também pintadas); e quando dirigiu o olhar para
Árbaces, fê-lo revirando o branco dos olhos.” Consta uma série de diferentes
versões sobre a maneira como morreu esse monarca. Segundo alguns, Árbaces,
presa de imensa fúria e náusea, ao ver que espécie de homem era o rei a quem
devia vassalagem, abateu Sardanápalo ali mesmo. Outros sustentam que o rei
morreu na cama; e ainda há os que narram a sua morte voluntária, fazendo-se
consumir numa enorme pira fúnebre em companhia de suas concubinas, mais a
rainha, e o real tesouro, e todo o seu guarda-roupa. Essa fogueira ardeu
durante quinze dias, provocando muita perplexidade, porém nenhuma
intervenção. Os Gregos eram profundamente conscientes do lastro de aginismo
latente no fundo da natureza humana, de forma que se encontram, com
surpreendente frequência, referências acerca de homens que costumavam
aparecer em público em trajes femininos, embora, a não ser isso,
manifestassem hábitos viris, tendo normalmente preferências heterossexuais.
Esse travestismo tinha uma função nos mencionados festivais, tanto quanto nas
próprias vidas particulares, no dia-a-dia das pessoas. Na festa da ”oscofória”,
que se verificava no mês de pyanepsion (que abrangia partes dos nossos meses
de Novembro e Dezembro), a qual ostentava o nome dos ramos da vinha
carregados de parras (”oskoi”), os ditos ramos vinham conduzidos por dois
belos efebos vestidos de raparigas. Em Amato, na ilha de Chipre, adorava-se
uma divindade macho-fêmea, parte de cujos ritos era oficiada por um jovem
que se punha deitado num leito simulando uma parturiente e a imitar os gritos
de uma mulher em trabalho de parto. Isso era feito em honra de Ariadne, que
desembarcara naquela ilha em companhia de Teseu e lá morrera de parto.

Outra personagem que se dava a semelhante fantasia indumentária fora


Andrócoto, um frígio e, a par dele, também Sagarisa, o mariandiniano. Este
último, ”por força dos seus pendores e hábitos voluptuosos, fazia-se alimentar
directamente dos lábios de uma ama, até aos dias da sua velhice, pois nem
sequer se queria dar ao trabalho de mastigar por si mesmo, e também jamais
se dignou, ao menos, levar as suas mãos abaixo do próprio umbigo. Por análogo
motivo é que Aristóteles refere jocosamente a respeito de Xenócrates de
Calcedónia que este, ao urinar, nunca pegava no membro viril; e alegava, no
dizer que Aristóteles lhe atribuía: ”As minhas mãos são puras, a minha mente é
que não.”

Idêntica prova da noção do grego quanto à bissexualidade do homem


transparece na prática da flagelação, habitual nas festas eróticas, que, ao
contrário das dos Romanos, não eram eivadas de culpa. Não é realmente de
surpreender que o travestismo constituísse tão amiúde uma das
características dessas festas. Os seres humanos podem ter, ou deixar de ter,
consciência da sua bissexualidade. No ordinário da sua vida quotidiana, porém,
é-lhes necessário sufocar tais inclinações.

Teopompo, autor da História do Rei Filipe, refere-se a Estrátão, rei de Sidão,


que ”excedia todos os homens em matéria de prazeres e luxúria... Estrátão
costumava arranjar festas íntimas a que trazia tocadoras de flauta,
cantadeiras e outras raparigas que tangiam a lira; era seu hábito, também,
mandar vir muitas cortesãs do Peloponeso, numerosas cantadeiras da lónia,
para além de tantas outras moças de todas as partes da Grécia, algumas sendo
cantoras e outras apenas dançarinas; e tinha a mania de instituir concursos
entre elas, a que assistia com os amigos, e na companhia de toda essa gente é
que ele passava toda a sua vida, pois era a vida de que ele gostava, sendo como
era por natureza um escravo dos sentidos, mas mais que isso ia a todos os
extremos para suplantar o seu rival Nícocles”. (Ora aí temos um aspecto
interessante e original, esse motivo de nova espécie para a devassidão: o
snobismo.) ”Porque acontece que os dois tinham um imenso ciúme das façanhas
recíprocas, pelo que cada um dos dois vivia a consumir-se no empenho de
cercar-se de mais intensos prazeres e mais conforto do que o seu emulo...”

Teopompo prossegue, chegando a mencionar um outro amante da volúpia e do


fausto, Cótis, rei da Trácia. Este monarca, sempre que chegava a algum sítio
que o seduzisse, durante as suas andanças pelo reino, fazia-o transformar num
local de banquetes ao ar livre, os quais depois visitava, cada um por sua vez.
Cótis organizou um grandioso banquete, sob o fantástico pretexto de que ia
casar-se com Palas Atena... ”e, após ter feito erguer uma câmara nupcial,
meteu-se nela à espera da deusa, numa bebedeira desvairada. Depois,
completamente fora de si sob a influência do vinho, destacou um dos seus
guarda-costas para ir ver se a deusa já havia chegado ao tálamo. Voltando o
infortunado com a informação de que não havia ninguém no local indicado, Cótis
varou-o mortalmente com uma flecha do seu arco, repetindo a experiência - e o
resultado - com outro mensageiro, pela mesma razão; mas um terceiro soldado,
muito sagazmente, declarou que a deusa já lá estava há muito tempo, à espera
do ”noivo”. Este mesmo rei, certa vez, num acesso de ciúme da esposa, trucidou
a pobre mulher com suas próprias mãos, começando a medonha operação pelas
partes pudendas dela”.

Cares, o general ateniense, costumava levar consigo, para toda a parte, nas
suas campanhas, tocadoras de flauta, de harpa e prostitutas, sendo seu
costume desviar para a manutenção desses confortos uma parte dos dinheiros
angariados pelo país para a guerra e ainda devolvendo outra parte a Atenas,
destinada ao gozo de particulares e socorro a gente enterrada em dívidas e às
voltas com processos na justiça devido a esses gozos. Tudo isto o tomava
extremamente estimado pelos cidadãos, como era natural, ”porquanto estes
também levavam uma vida semelhante (à de Cares), a saber, que os muito
jovens passavam todo o seu tempo em companhia de umas flautistas
insignificantes e nas casas de prostitutas; os já de mais idade viviam metidos
em vinhaças e jogatinas, e prodigalidades outras do mesmo género; enquanto o
povo, em geral, desperdiçava mais dinheiro nos banquetes públicos e nas
distribuições de carne do que na administração do Estado”. É Teopompo quem
fala.

Heraclides, do Ponto, na sua obra intitulada Sobre o Prazer, diz de Temístocles


que ”ainda nem bem haviam os atenienses começado a dar-se às vinhaças e ao
convívio com prostitutas, já ele abertamente atrelava a uma carreta quatro
cortesãs, e as dirigia como parelhas atreladas através do Cerâmico, estando
cheio de gente esse logradouro”. Esta narrativa vem ligeiramente adulterada
em Idomeneu que, na sua exposição, deixa margem a dúvidas sobre se as
heteras puxavam realmente o veículo, como o fariam alimárias, ou se apenas
vinham nele transportadas juntamente com a pessoa do próprio Temístocles.
Contudo, um relato semelhante ao primeiro existe sobre Marco António.

Como seria de prever, os Gregos davam precedência ao prazer que tomava a


vida e a liberdade coisas dignas de preservação, em detrimento até da
condução de uma campanha militar, que deveria ter a primazia; e, num
contraste inspirador para os modernos políticos, sacrificavam a potência
militar a fim de manterem um padrão de conforto que servisse para lembrar
aos seus concidadãos, lá na pátria, a benesse por cuja defesa eles estavam a
combater. O grande Alexandre, que não era nenhum guerreiro pachorrento, era
muito dado às voluptuosidades. Durante os seus jantares, gostava de apreciar
os entretenimentos apresentados por toda a espécie de prélios, de bailados e
de música. Chegava até a tomar parte pessoalmente nessas apresentações,
sendo que, em tais ocasiões, erguia ele os seus brindes com vinho puro, sem
qualquer mistura, o que era contrário ao uso da época e forçava os seus
comensais a imitá-lo. Nos banquetes, ele comparecia ataviado numa variada
sequência de vestimentas, fantasiando-se de divindades diversas, deuses e
deusas, umas vezes ornado com comos como os do deus egípcio de cabeça de
carneiro, e outras envolvendo-se nas gazes femininas de Ártemis. Noutras
ocasiões, conforme o seu capricho, ”envergava a pele dum leão e brandia o
grosso lenho, a fazer de Hércules”. ”Ainda noutras, envergava trajos, como os
de Hermes... mas, normalmente, no uso diário, vestia um manto purpurino de
andar a cavalo, uma túnica igualmente púrpura, mas listada de branco, e cobria-
se com o toucado macedónio que levava o friso de realeza. Em Ecbatana, ele
organizou um festim em honra de Dionísio, sendo aí tudo fornecido com
prodigalidade para as celebrações; o sátrapa Satrábates proporcionou
entretenimentos e hospitalidade a todos os soldados.”
No dizer de Chares (o historiador, e não o general), ”ao submeter Dário, ele
(Alexandre) celebrou casamentos, para si mesmo e para os seus amigos
também, erguendo noventa e duas câmaras nupciais todas reunidas num mesmo
local. A construção era bastante grande para comportar cem leitos, cada um
dos quais se achava enfeitado e guarnecido de cobertas nupciais e era feito de
prata no valor de vinte ’minae’, ou talentos; porém, o dele assentava sobre pés
de ouro. Convidou para o banquete todos os seus amigos e fê-los instalarem-se
em leitos fronteiros ao seu e aos dos demais nubentes do casamento em
massa... Toda a armação estava decorada com sumptuosidade e magnificência,
recoberta de panejamentos, e finos linhos, tudo de alto preço, e pisava-se
sobre tapetes púrpura e carmesim entretecidos de fios de ouro. Para que o
colossal pavilhão se aguentasse firmemente ali, havia colunas de dez metros de
altura, cobertas de dourados e prateados e engastes de pedrarias preciosas.
Essas bodas duraram cinco dias e para elas concorreram os serviços prestados
por numerosíssimas pessoas”.

Diz Policleto de Larissa que Alexandre fazia-se sempre acompanhar para os


seus acampamentos militares por flautistas, de ambos os sexos, os quais
ficavam a beber em sua companhia até ao amanhecer.

Um casamento era então, como o é ainda hoje, um infalível pretexto para


banquetes, pelo que muitíssimos terão sido efectuados; um, porém, supera
todos os demais, quanto à magnificência - foram as celebrações em honra do
matrimónio de Carano da Macedónia. Essa festa foi descrita
pormenorizadamente por Ateneus e, de facto, a julgar pela quantidade de
comestíveis e pela longa lista de representações artísticas aí exibidas, os
festejos devem ter-se prolongado através de um considerável espaço de
tempo. É que não foi apenas uma festa, mas uma contínua série de festas, pois
os prélios de comezainas alternavam com os lances de diversões. Eram vinte os
convidados, os quais, no decorrer da noitada, lograram colher das mãos do
generoso anfitrião muitos presentes, a maior parte destes sob a forma de
pratos e taças de ouro de desenho grandiosamente dispendioso; e, depois dos
preliminares comes e bebes de gigantescas proporções, e que consistiram em
galinhas, patos, pombos-torcazes, gansos, lebres, cabritos, ”bolos com
formatos curiosos”, pombos comuns, toutinegras, perdizes e ”outras aves e de
tudo muito”
- na descrição de Hipólocos, ”quando afinal já nos havíamos, satisfeitos e
contentes, despedido de toda a sobriedade, entraram flautistas e cantoras,
mais algumas rodianas tocadoras de sambuca. A mim pareceram-me essas
raparigas inteiramente nuas, mas disseram-me que não, que elas estavam
cobertas de túnicas. (Seriam as famosas gazes coanas. Os fabricantes de
tecidos da ilha de Cós aprenderam a fazer produtos de finura de teia de
aranha, tecidos esses que as pessoas mais circunspectas reprovavam, mas os
afoitos e os escravos da moda sofregamente compravam. Muitos desses panos
eram exportados para Roma).

As mencionadas artistas eram seguidas por um grande porco, que fazia a sua
entrada solene ”sobre uma bandeja de prata toda recoberta de ouro e em
espessura não pequena”. O suíno ”jazia de dorso... o seu ventre, visto do alto,
revelava estar pejado de petiscos. Porquanto, assados dentro dele e com ele, lá
estavam amarradinhos de paturis, de rolinhas, em quantidade ilimitada, puré de
ervilhas servindo de guarnição a ovos, a ostras, a escalopes...”

Mais divertimentos vinham em seguida a esta assustadora explosão de


alimentos, da qual deve ter cabido bastante substancial porção a cada um dos
vinte convivas a quem se destinavam esses serviços. Dançarinos, jograis e
algumas mulheres prestidigitadoras, nuas, logo apareceram, ”os quais
executaram números de equilibrismo por entre folhas de espadas e sopraram
fogo de dentro de suas bocas”.

Novamente se alternaram o comer e o espectáculo, pois às prestidigitadoras


nuas seguiu-se vasta libação. ”Tivemos a nossa atenção presa a uma bebida
tépida e quase pura, sendo os vinhos que estavam à nossa disposição o tasiano,
o mendeano e o lesbiano; e foram passadas a cada conviva enormes taças de
ouro.” Peixe assado e presentes de pratos de cristal foi o que veio depois dessa
selecção de vinhos que, por sua vez, precedeu imediatamente uma apresentação
de dançarinas vestidas de nereidas e ninfas e um esplêndido quadro vivo de
Cupidos e Dianas, Pãs e Hermes, que seguravam tochas ardentes presas em
aros de prata. Aos comensais que, pelos vistos, ainda se aguentavam de pé
(porque ”O maravilhoso nisso tudo era que, apesar de ociosos e cheios de vinho
até aos gorgomilhos, assim que víamos entrar ’em cena’ qualquer um desses
’números’, logo nos púnhamos todos suficientemente clareados da cabeça para
que nos pudéssemos pôr de pé”), só se requeria que aceitassem ainda mais um
serviço, dado que, após serem servidos javalis espetados em dardos de prata e
carregados de presentes, ser-Ihes-ia permitido recolherem-se às suas casas
”em seu perfeito juízo... tomamos os numes imortais por testemunhas!... visto
que ficáramos apreensivos quanto à segurança das riquezas que levávamos
connosco”.

Resumindo, pode dizer-se que a comida era demasiada, pelo que será lícito
qualificar-se esta festa, sem reservas, como uma orgia nitidamente de tipo
gastronómico; mas é certo que festas de esponsais acordam pensamentos
eróticos na cabeça dos convivas e, se bem que a natureza sexual de uma função
social deva ser apreciada mais objectiva do que subjectivamente, para que se
possa acertadamente dá-la como manifestação orgíaca, a válvula de escape,
ainda que, por via indirecta, é aí inquestionável, tanto que a mim me parece que
lhe cairia bem a qualificação de orgia.

Alexandre era, isso é indubitável, muitíssimo dado à bebida, mas na verdade o


alcoolismo exacerbado ao extremo era caso raro na Grécia Antiga, embora
Dionísio da Sicília fosse apontado como o responsável único pelo dano
permanente que causou aos seus órgãos visuais por essa forma de excesso, já
que certa vez deixou-se ficar bêbado durante noventa dias de uma assentada;
também Niseus, depois tirano de Siracusa, se empanturrou de comida e se
encharcou de vinho ”como se tivesse sido encarcerado por crime de morte e
pensasse que só lhe restavam uns poucos meses de vida”. Este soberano, uma
vez embriagado, ficava excessivamente lúbrico e punha-se a violentar tanto
rapazes como mulheres. Parece que os Sicilianos granjearam certa reputação
de serem desmesuradamente dados à comida e à bebida. Platão ficou
desfavoravelmente impressionado ao notá-lo e a propósito fez a seguinte
observação: ”A vida ali em nada e de nenhum modo me agradava; imagine-se
uma existência toda ela passada a encher-se o bandulho duas vezes por dia e
jamais recolher-se ao leito sem companhia, à noite, isso para não falar de todas
as demais práticas que acompanham tal maneira de viver.” Diotimo, de Atenas,
mereceu o epíteto de ”funil”, precisamente porque ”costumava meter na boca
um funil, pelo qual ficava a engorgitar vinho, sem parar, enquanto se lhe
deitasse vinho ali”.

Quanto a orgias de brutalidade sexual, infligidas por um exército vencedor


sobre a população civil derrotada, isso é mais do mundo ex-helénico do que
compatível com o espírito do povo grego. No entanto, os Citas, povo vizinho,
”tendo uma vez saboreado o doce fruto dos prazeres”, adiantaram-se, segundo
narra Clearco, de tal modo ”no mau hábito da insolência, que até decepavam o
nariz a todos os homens cujos territórios haviam invadido, enquanto suas
mulheres tatuavam o corpo a todas as das tribos que viviam nas suas cercanias,
para os lados do Ocidente e do Norte, injectando-lhes com alfinetes os traços
da tatuagem.

Afinal, compare-se o caso de Dionísio e das raparigas de Locris (acima


narrado). Elas eram súbditas, não um qualquer povo vencido, e quanto a Dionísio,
este era apenas um caso individual isolado e um ”não-conformista” com a moral
corrente de então e, para além do mais, um indivíduo que provocava até a
repugnância da moralidade do seu tempo.

Para que, impõe-se-nos a pergunta, precisariam os Gregos então da válvula das


orgias, já que o seu ponto de vista era tão sadio, tão hedonístico? Por que não
deixavam a tensão, fosse ela sexual ou de outra ordem, ir-se consumindo
gradual e mansamente no correr da vida rotineira do dia-a-dia? A resposta a
essas perplexidades é de natureza algo imponderável. É fácil exagerar-se a
noção do hedonismo dos helenos, e muitos o têm feito. E, todavia, aquilo que se
deve ter em mente é o notável equilíbrio da vida helénica, tal que não
permitiam a si próprios deixar que o afã em busca de um bem lhes anulasse o
gozo de um outro. O casamento podia trazer-lhes oportunidades para o deleite
dos sentidos, sim, mas oferecia também outros aspectos, tais como a
procriação e a adequada educação da prole. Na Odisseia, vemos Nestor
exclamar para Atene: ”Sê, no entanto, propícia, ó rainha, e concede-me digno
renome, que me exalte e a meus filhos e à minha reverenciada consorte.”
Perceberam bem os Gregos que a desenfreada autocomplacência sexual
conduzia, afinal, à satisfação sexual de ninguém e, também, que esse auto-
abandono ”ao prazer podia mesmo destruir outras benesses ocorrentes. (Os
próprios festivais catárticos, de desafogo, como o eram as festas dionisíacas,
davam-se a intervalos pouco frequentes, conquanto regularmente espaçados). A
despeito de toda a sua ingenuidade, eram os Gregos um povo eminentemente
prático, suficientemente realista para se dar conta de que a inclinação
prevalecia sempre e, pois, diríamos hoje, para evitarem a explosão da caldeira,
de tempos em tempos, libertavam a válvula de escape. Além do mais, eles
sabiam muito bem que nem sempre se equipara o hedonismo à fugaz satisfação
física de um instante. Não obstante, já entre eles se pressente o indício do
conceito que viria a ser o nosso, hoje velho, preconceito vitoriano, a saber, que
as mulheres ou são rameiras, ou são honestas mães de família: as duas
categorias são irreconciliavelmente antagónicas entre si. O âmago da questão
reside no facto já exposto, aquele facto que se esconde por trás do fenómeno
orgia no que esta tem de fenómeno social, e é que os homens são, em boa parte
do seu ser, humanos. Porém, noutra parte, são meros animais, e os interesses
dessas duas componentes estão em conflito. A esposa toma-se inaceitável como
partilhadora de lubricidades precisamente porque é esposa, sendo também a
pessoa que está encarregada de desempenhar as funções de dona-de-casa e de
mãe.

Um dos resultados da reclusão das mulheres foi a prevalência da


homossexualidade - situação semelhante à que se encontra muito nos países
muçulmanos.

Tal foi, na Grécia, uma alternativa a servir de válvula de segurança. Não era,
entre eles, tolhida; porém, e tal como a maior parte das coisas em que
infundiam o seu toque, ela tomou-se, nas mãos dos Gregos, algo idealizado,
sublimado.

Em consequência dessa sublimação, desenvolveu-se uma espécie de relações


cuja verdadeira natureza é algo muito árduo de julgar.

O amor entre um homem de mais idade e outro mais jovem era tido como
desejável devido à influência que essas relações teriam sobre o
comportamento, em geral, do mais novo. Cria-se, talvez acertadamente, que o
desejo de ser-se considerado admirável influiria beneficamente no
comportamento e nas realizações do mancebo. Agora, o ponto exacto em que
tais relações passavam do plano sentimental para o físico permanece tão
problemático quanto o são as razões pelas quais os Gregos resolveram não só
deixar de vedar esse derivativo, como até, pelo contrário, tiveram por bem
glorificá-lo.

Conforme já o dissemos atrás, tratamos dos Gregos um tanto extensamente


por eles terem constituído uma das duas sociedades civilizadas que
inscreveram essa manifestação, a orgia, como parte integrante do seu modo de
vida nacional, em suma, como um recurso oficialmente reconhecido, de escape
de pressões. Disso não se conclua, já o vimos, que não haveria entre eles,
também, os orgiastas ”rebeldes” contra a sociedade helénica, e isto é uma
circunstância interessante e significativa, conquanto seja ainda muito cedo
para se precisar de que é ela significativa. A segunda de tais civilizações é a
romana, da qual passaremos agora a tratar. Infelizmente, à prestimosidade da
orgia, como válvula de segurança, associa-se o inerente perigo de degeneração.
Um daqueles povos, que apresentam dois respectivos padrões do fenómeno,
dentro de um dos quais os orgiastas rebeldes de subsequentes gerações podem
ser classificados, um deles, o grego ou o romano, foi, a meu ver, infinitamente
mais sadio, brilhou mais e viu-se dotado de mais esclarecimento quanto ao
verdadeiro objectivo da orgia e, ainda, de maneira curiosa quanto à natureza
total da própria sexualidade, do que o foi o outro. Não antecipemos, porém, o
debate da questão - pois os sucessores dos Gregos vão ser agora analisados, de
modo que as comparações ressaltarão por si mesmas, sem dúvida.

CAPITULO SEGUNDO

OS ROMANOS
É impossível imaginar-se uma maior diferença do que aquela que separava as
duas filosofias da vida antagónicas, a dos Romanos e a dos Gregos, se as
apreciarmos à luz dos conhecimentos que possuímos sobre o comum das gentes
integradas, respectivamente, numa e na outra das duas civilizações.

No ramerrão do seu viver diário, o grego, tal como já aqui vimos, mostrava um
indisfarçável gosto de viver, no que entremeava de graça de classe e de
subtilezas de entendido na arte de bem viver, bem como de saber compreendê-
la nos seus iguais: quer isto dizer que sabia comer, sabia envergar as suas belas
vestes e sabia conduzir-se no terreno da sexualidade. Uma das primeiras
impressões que nos assaltam ao lermos algo sobre este aspecto das respectivas
existências dos dois povos é a de que os Gregos sabiam dominar a sua
sexualidade, ao passo que a dos Romanos, ao contrário, dominava-os a eles, que
se lhe abandonavam como a um despótico senhor, o qual por fim veio a destruí-
los tal como eles mesmos o haviam previsto e até pretendido e deliberado.

A vida sexual grega era extraordinariamente isenta de perversões. (Desta


categoria, excluo a homossexualidade, pois esta não procede de um erróneo
conceito de sexualidade.) Um dos mais certos sinais da presença, ou da
ausência, de malignidade na vida sexual característica de uma dada civilização
é encontrar-se isso na sua literatura, critério este pelo qual os Romanos
sofrem condenação, ao mesmo tempo que os Gregos superam a prova tão
garbosamente, senão mais airosamente, do que qualquer nação moderna. Este
juízo, à semelhança de qualquer outro de ordem ética, é essencialmente
subjectivo e não objectivo; mas quer-me parecer que grande parte do
descontentamento proveniente do sexo dever-se-á apenas a uma parcial e
inconsciente renúncia à actividade sexual; pelo que não acho que à sexualidade
se possa, com justiça, atribuir, em qualquer extensão, causa eficiente de
infortúnio, e que, isso sim, será ela causa de alegrias.

A literatura dos Gregos contém numerosas referências ao amor homossexual


mas, como já vimos, esse amor é sempre envolto em idealismo, é objecto de
admiração e misticismo: toda a atitude grega indicava apreço e admiração pelas
possibilidades de deleites puramente sensuais, sem a pecha da heresia de
achar impossível combinar, entre si, prazeres intelectuais e físicos, o que leva,
inevitavelmente, tanto quanto indesejavelmente, ao sacrifício de um dos outros
dois géneros associados.

Analisando a literatura dos Romanos, encontramos-lhe algo de diferente. Não


que seja tão ostensiva quanto seria de esperar, porém ela aí está, sempre
perceptível, não obstante a obsessão da crueldade e, o que é mais importante,
a atitude propensa à crueldade, coisa jamais encontrável na literatura dos
helenos. E todos sabemos quanto a referida presença se reflectia
efectivamente na quotidiana vida prática do Lácio. Quanto a mim, tenho uma
firme convicção quanto à causa real de tal fenómeno e, se estou com a verdade,
a dita causa é extremamente relevante para o exame dos métodos pelos quais
os Romanos procuravam os seus prazeres, bem como da razão porque, segundo
demonstrei, falharam nisso. Em primeiro lugar, quero demonstrar a extensão
realmente estarrecedora em que os seus instintos tanáticos se fizeram sentir
na vida ordinária do seu povo.

É claro que os Gregos, como todo o mundo, aliás, tinham também os seus
sentimentos de agressividade e desejos sádicos, ainda que tal vocábulo,
”sadismo”, apareça aqui, na verdade, como coisa singularmente descabida;
porquanto a essência mesma, integral, da atitude grega perante esses instintos
era a de uma completa isenção de taras mórbidas. Os festins orgíacos, do
género dos dionisíacos, serviam-lhes não somente como recurso para
conseguirem aquela ”teolépsia” que já descrevemos, como também - e
igualmente já o disse - como válvula de escape a ambos os instintos, o tanático
e o erótico.

Essa última (a dita válvula de segurança) é que é a verdadeira função atribuível


à orgia, não passando aquela referência à ”teolépsia” de explicação romântica
com que o homem semiprimitivo procurava racionalizar factos que a sua mente
não conseguia nitidamente apreender.

Muita gente há que se obstina em não reconhecer que é portadora de instintos


sádicos; outros indivíduos, porém, até se deixam fascinar completamente por
eles. Neste fenómeno reside um dos perigos da orgia, se a ela se entregam
pessoas que não tenham o discernimento de perceber a sua natureza diversiva.
E os Romanos enquadravam-se neste último tipo de gente.

Há quem ache incrível que alguém retire qualquer prazer real, gozo de origem
erótica, da contemplação do sofrimento. Pois existe tal espécie de indivíduos,
ou, pelo menos, havia outrora gente que se deleitava em ver matanças,
acompanhadas ou não de tormentos; é coisa incrível, porém, infelizmente,
menos possível de se rejeitar a pretexto de subjectiva incompreensibilidade.

Pela descrição de Rosenbaum (Histórias da Sífilis), grandes levas de


prostitutas costumavam reunir-se em bordéis nas cercanias do Anfiteatro
Máximo, visando interceptar, na saída dos jogos, os homens que de lá vinham
sexualmente excitados, a mais não poder, pelas sangrentas exibições de
gladiadores, mutilações e carnagem, lutas de feras e todas as demais formas
de insânia obsessiva que se desenrolavam na arena. Uma das mais destacadas,
repulsivas e características feições daquelas cerimónias era a organização, o
elevado grau de ritualismo com que elas eram realizadas. Eis, portanto, o que
põe o ferrete de pervertidos na carne dos Romanos: a meticulosa elaboração, o
planeamento, a constante engenhosidade no criar sempre novos instrumentos
de tortura, o odioso cerimonial, em suma. Em todo e qualquer modo novo de
levarem a efeito uma execução, em toda a forma de tortura, era
invariavelmente introduzida uma formalidade que era vergastar-se
previamente a vítima ou condenado. Não bastava matá-la. A morte nada era,
uma simples sonegação de vida; era mister infligir dor, primeiro. ”Firam-no de
maneira que ele sinta que está a morrer!” - disse Calígula; e, embora pareçamos
desleais por citarmos, como provas, dizeres de um epiléptico e louco, a História
aí está para nos mostrar com horrível e empolgante clareza que, no tempo
desse monstro, tal mentalidade não era tão-só o apanágio de um tarado apenas,
ou sequer de um reduzido círculo de iguais a ele. Por onde quer que olhemos,
deparamos com coisas idênticas. A sociedade romana baseava-se na
escravatura e tratava os seus escravos de maneira abominável, fazendo-o não
apenas os amos, os pater famílias, mas também as respectivas matronas; nem
se dirá, tentando uma explicação justificativa, que semelhante crueldade
assentava na necessidade, ou que diferiam das nossas actuais, as convenções
que regulavam, na época, o humanitarismo; ou, ainda, alguma outra desculpa
qualquer, a fugir da simples e interessante verdade. Vemos como Juvenal
verbera o sadismo das mulheres romanas do seu tempo:

Mas sabeis, decerto, o que faz a mulher

em casa o dia inteiro. Se o marido lhe deu as costas

no leito: o deus acuda à serva da casa!

Às servas da senhora são estraçalhadas as vestes, | ”?!;; f

[e surra-se o cocheiro, Por ter comparecido atrasado (e punido porque

[um outro dormia) destroem-se fusos, costas lanhadas e a sangrar

[são ainda flageladas E novamente lanhadas: damas há que têm de reserva

[um açoite especial, seu.

com ele açoitam, enquanto lhe fazem a pintura facial, Conversam com pessoas amigas,
apreciam um vestido com

[fímbrias douradas, Lêem tabulas diárias e vergastam até que se desfaça

[em tiras o açoite

e então gritam ”Ide-vos daqui!”, eis que terminou o suplício. E assim a ”domina”
governa a sua casa com mais selvajaria

[do que um tirano.


Marcou um encontro, quer ter uma aparência Mais bela que a costumeira, pois ”ele”
espera-a Sob as árvores, ou no bordel da deusa ísis, E a pobre Pseca arranja a
cabeleira de sua ama, enquanto

[que a sua própria

Ela a tem desgrenhada e os ombros nus, seios à mostra. ”Esse cacho está muito alto!”
E, sem demora, o chicote

[de couro de boi Corta as carnes à desgraçada, cujo crime fora uma simples

[cabeleira mal arranjada.

O relato de Juvenal não deixa de trair veladas insinuações sexuais.

Buscando-se a causa de uma característica tão evidente numa dada sociedade,


vai-se naturalmente procurá-la no estudo do seu sistema educacional. Aqui,
como noutros lugares, achamos a mesma velha história, os frequentes e severos
acoitamentos, a pregação da virilidade agressiva que, tal como na situação que
lhe faz eco 2000 anos mais tarde, só podia levar a subsequente infortúnio para
quem quer que se achasse envolvido nela. Mas é discutível se deveremos
aceitar, ou não, tais elementos da educação romana e da germânica, como
causas, ou antes como resultado, meramente sintomático, da enfermidade
social originária.

A crueldade dos jogos circenses e o fausto dos particulares aumentavam à


medida que a actividade militar nacional decrescia. Ao longo de muitos anos, os
romanos deram-se à crueldade e à violência mais ou menos acessórias, apenas,
dos fins a que visassem. Cessada a necessidade delas, verificaram que, não
obstante, já não podiam largar o seu hábito. Aquilo que começara como facto
desprovido de sentido sexual, agora, sub-repticiamente, firmava-se no
erotismo. Este é um processo que se pode observar, e tem sido observado,
noutros locais, muito em particular no que diz respeito aos cultos religiosos. O
instinto sexual é muito forte e a fertilidade da mente humana para a criação
de simbolismos sexuais é uma coisa sem limites. Não será muito de surpreender
que o erotismo seja uma manifestação de tal modo infiltrante. Todo o ser
humano é, até certo ponto, polimorficamente pervertido, já que as sementes de
tantas perversões jazem dentro de nós todos, e nenhuma delas responde tão
prontamente à fertilização como o fazem o sadismo e o masoquismo. O sadismo
dos jogos circenses romanos indubitavelmente acordava ecos nos corações de
muitos dos espectadores. Santo Agostinho relata o seguinte:

”Vivia em Roma, onde estudava, um jovem cristão. Muito tempo andara a evitar
o anfiteatro, mas por fim um dia lá foi, levado em visita por alguns amigos.
Afirmou-lhes que eles podiam arrastar o seu corpo até ali, porém não a alma,
porquanto pretendia deixar-se estar permanentemente de olhos fechados e,
assim, se conservaria ausente. Fez como prometeu; mas um grande brado que
se levantara induziu-o a abrir, instintivamente, os olhos curiosos. Foi aí que a
sua alma se viu trespassada mais cruamente do que os corpos feridos que ele
quis contemplar; e sua queda foi mais deplorável do que o tombo mortal, na
arena, que provocara o alarido. Porque, à vista do sangue, ele se embebedou da
embriaguez da crueldade; não mais teve forças para desviar a vista; esta
tomou-se-lhe fixa, fascinada; ei-lo, que estava bêbedo e sequioso de sangue.
Para que hei-de eu insistir? Apenas olhou e logo o seu sangue ferveu; e dali já
saiu ele levando na mente uma insânia que desde então o seduziria a voltar
outras vezes.”

Atrás da ideia de sado-masoquismo situa-se uma equação de violência e cópula.


E isso implica várias outras ideias preliminares. A primeira delas é o conceito
de que no sexo há algo de criminoso e erróneo, e a segunda, que daí procede, é
que o elemento activo, dos dois participantes, comete um ultraje contra a
pessoa do comparsa passivo. No seguimento disso virá o impulso-desejo de
retribuição.

O portador de qualquer uma dessas duas perversões é um espírito tresmalhado,


em algum canto do seu consciente. Dar-se-á um de dois casos, a saber: que ele
tenha decidido, mediante um tortuoso e enganoso processo mental
subconsciente, dever sacrificar a sua sexualidade a bem da salvação da sua
consciência e daqueles entes com quem entre em contacto; ou, então, como se
passa com o sádico, ver-se-á torturado por um muito merecido sentimento de
culpa.

Isso é o que eu acredito que se passava no caso da Roma Imperial. Lá porque os


Romanos se comportavam brutalmente, não há que concluir - e, na verdade, tal
conclusão seria a mais errónea que é possível - que eles eram fundamental e
totalmente gente brutal. Não há quem seja dono de um carácter rectilíneo de
ponta a ponta, não há ninguém inteiramente isento de instintos inferiores, mas
também ninguém é completamente animalizado e, portanto, ninguém, que não
seja simplesmente um animal, é completamente privado de consciência.

A sociedade romana repousava, em equilíbrio, sobre uma outra, a dos escravos.


Erigia-se sobre o penhor que os senhores deviam aos seus escravos e o qual
bem podiam fingir não ter em conta, e procuravam ajustar-se lá no seu íntimo,
o que não deixava de constituir uma permanente ameaça à sua paz de espírito.

Não há, no que aqui se disse, nenhuma imaginativa especulação do género


freudiano. Se examinarmos os prazeres dos Romanos, revelar-se-nos-ão neles
muitas das características do jogador obcecado, que age ostensivamente com a
esperança de ganhar, porém no seu modo de agir vislumbra-se que ele está
igualmente empolgado com a ideia de que poderá perder e, assim, retira o seu
prazer em grande parte desse elemento de perigo que o ameaça. Este traço
ressurge amiúde nas acções dos Romanos. Eles não eram hedonistas, apesar de
apaixonadamente se darem à luxúria,” já que lhes deverá ter parecido
evidente, tal como aos seus vindouros, que o que faziam continha um elemento
de autodestruição e haveria forçosamente de renegar os próprios fins visados.
O hedonista não é alguém que esteja necessariamente a trair a sua filosofia ao
comprar a felicidade do momento ao preço do desgosto de mais tarde, a menos
que nos recessos da sua mente o termo ”comprar” seja utilizado com o sentido
com que nós dizemos de um criminoso regressado da prisão que este ”pagou”
pelo crime que cometeu. Esta confusão é frequente.

Até esta altura pintámos um quadro bastante soturno, aliás uma representação
exacta; porém, diga-se que nem todos os romanos eram sádicos. Pondo-se de
parte as excepções individuais que confirmam quaisquer regras, havia
abundância de aspectos da vida romana onde a preocupação de domínio daquela
raça dormia tranquila no seu seio, conquanto e bastante estranhamente sejam
alguns desses aspectos que terão sofrido o maior impacto dos apodos atirados
sobre o ”decadente” Estado romano.

O sado-masoquismo representa um falso conceito da natureza da sexualidade,


sendo a religião ainda outro, como já o apreciámos no caso dos Gregos. É
possível não ser isto um postulado muito correcto. O sadismo representa um
falso conceito; a religião é uma idealização. Nenhum dos dois estará à altura de
aceitar o sexo pelo seu valor nominal, mas a última, a religião, é infinitamente
preferível ao primeiro. Pois este, o sadismo, representa uma derrota, ao passo
que aquela oferece um compromisso. O sadismo pode causar infinito mal,
enquanto a religião bem pouco.

Quase todas as divindades romanas relacionadas com a vida sexual, fossem elas
importadas ou locais, viram-se rapidamente descaracterizar pelo carácter dos
seus ”progenitores” humanos.

Vénus, teoricamente a deusa do amor, aparece na vida romana sob sete


personificações diferentes, quase inconciliáveis entre si. Era ela a guardiã do
amor lícito, sendo o seu culto celebrado pelas matronae, as mães de família.
Mas essa faceta do seu carácter, na qual é vista essencialmente grande
lubricidade, reduz-se a nada ao descobrir-se que a deusa era, igualmente, a
padroeira das meretrizes. E, terceiro aspecto, quiçá o mais significativo, ela
era até, de alguma forma, a própria mãe da nacionalidade romana. (Sabendo-se
que o símbolo do poder do Estado entre os Romanos eram os fasces
- feixes de varas e um machado, dos lictores -, essa ligação entre nação e
instinto erótico é, para se ser breve, pelo menos interessante). Para nos
confundir ainda mais, Vénus surge-nos uma quarta vez como a Vénus
Verticordia, isto é, aquela que desvia os corações (a das coisas licenciosas). A
idolatria desta forma da divindade vem do ano 114 a. C., em que três virgens
vestais foram condenadas à morte por terem desobedecido às leis sobre
actividades sexuais. É difícil entender-se muita coisa sobre esta complicada
deidade, cujas diferentes ”invocações” se celebravam, todas, em diferentes
festivais. Aquela a quem as rameiras invocavam como sua padroeira sob nome
de Volgivaga, a que perambula pelas ruas, tinha a sua festa a 23 de Abril, no
dizer de Ovídio que, infelizmente, não entra em pormenores. O culto de Vénus
denota a capacidade que tinham os antigos para verter em formas ritualísticas
religiosas numerosos assuntos que aos nossos modernos modos de ver são
perfeitamente inadequados à deificação e ao culto.

A idolatria de uma divindade conhecida como Fortuna Virilis, que alguns diziam
estar relacionada com Vénus, e que era adorada por mulheres das classes
pobres nos banhos dos homens - mais a ingénua justificação de que ”ali, ficam a
descoberto aquelas partes do corpo masculino que reclamam o favor das
mulheres” -, tudo isso revela a mesma atitude um tanto ou quanto helénica. f c
-
O deus Líber, pelo menos originalmente, era apenas um nume que presidia, de
maneira relativamente positiva e directa, à fertilidade. Em várias regiões da
Itália honravam-no mediante cultos fálicos. Onde tal se verificava, ia um
enorme falo de madeira conduzido com grande cerimonial sobre uma carreta, a
percorrer a cidade e os campos, até ao momento em que uma das matronas
locais o ornamentava com uma coroa. Pode ser que os Romanos o tenham, ou
não, idealizado originariamente como ligado apenas à fertilidade do solo; o
facto, porém, é que ali existia o respectivo simbolismo, patente e conveniente,
pelo que logo se pôs a esgueirar-se-lhe para dentro um outro elemento. Eis
como Santo Agostinho fala dessas cerimónias:

”Varrão diz, entre outras coisas, que os ritos do deus Líber eram celebrados
nas encruzilhadas dos caminhos da Itália, de forma tão despudorada e
licenciosa que as genitálias masculinas eram aí adoradas em honra do deus... e
isso não era feito com qualquer aparência de sigiloso recato, mas com
depravação escancarada e exultante. Aquela vergonhosa parte do corpo era
pomposamente colocada, durante a festa de Líber, em carretas que se
arrastavam por todas as encruzilhadas, campo fora, chegando, por fim, à
cidade. Na de Lanuvium, era dedicado a Líber um mês inteiro. No decurso
deste, todos os cidadãos se exprimiam com a linguagem mais ignominiosa, até
ao instante em que o gigantesco falo era levado através da praça do mercado
para o lugar onde ficaria novamente guardado em repouso. Havia
imprescindivelmente mister que a mais distinta das matronas da cidade
engrinaldasse com suas próprias mãos honradas aquela infamante efígie. É que
o deus Líber precisava ser atraído a propiciar, garantindo-o, o futuro das
colheitas; também se impunha esconjurar o mau olhado dos campos, mediante o
forçar-se uma dama casada a fazer em público coisas que nem mesmo uma
rameira poderia num palco teatral realizar à vista das espectadoras casadas.”

Kiefer explica que ”o facto de ser a cerimónia desempenhada por uma mulher
séria mostra que não constituía manifestação de deboche mas, sim, um velho
costume impregnado de significação religiosa, o qual visava evitar influências
mágicas destrutivas”. Há um pouco de verdade, mas não muita, no que ele
aventa. Mais comum, até, do que raro, é que a apreciação de resultados
constitua método fidedigno de se julgar uma causa. Se certa gente se
comporta de maneira parcial ou totalmente erótica, evidentemente não seria
lícito supor-se que as suas motivações seriam, na sua origem absoluta, parcial
ou totalmente sexuais. Nos casos em que se introduz um dado processo
intelectual à guisa de motivação de determinado comportamento sexual, é mais
crível que se trate então do caso inverso.
Kiefer prossegue, abalançando-se a encarar o falo como um amuleto contra
o mau olhado, procurando desta forma isolar da erótica aquele emblema.

”Por vezes erigia-se sobre as portas da cidade um falo, como protecção contra
o azar. Havia casos em que o dito falo se sobrepunha à inscrição ’Hie Habitat
Felicitas’ - a felicidade mora aqui. Isso, naturalmente, não queria dizer que a
localidade se atribuía a virtude de garantir a ninguém qualquer forma de
felicidade sexual, mas, tão-somente, que aquele falo, pelos seus poderes
mágicos, repelia o assalto do mal.”

No entanto, a ideia que Kiefer tão ligeiramente descarta nem por isso é
inteiramente ridícula. O falo é capaz de acarretar a homens e mulheres
felicidade de um determinado tipo, pelo menos, e, sendo na verdade miraculosa
a natureza desse dom, ela surgia aos olhos do homem semicivilizado de então
como um facto portentoso, de natureza mágica.

É ainda Kiefer quem menciona o número de amuletos fálicos que estão na posse
dos museus, os quais os negam, ciosamente, à vista embasbacada do grosso do
público. ”O homem dos nossos dias contempla essas coisas quase que com os
olhos de Santo Agostinho e, assim, deixa de fazer justiça ao profundo
significado original do (tal) símbolo.”

Não se pode evitar acolher-se a impressão de que o homem de hoje, na sua


ingenuidade e simplicidade e, com ele, Santo Agostinho - pondo-se de parte o
moralismo deste último -, estarão com a razão, ao passo que Kiefer, em toda
aquela sua subtileza, é que estará errado. O tal significado que ele dá como
sendo ”original” não passa, em boa verdade, de um desenvolvimento do original,
que deverá ter sido, ainda que nem conscientemente, erótico.

Príapo, o deus dos jardins, é ainda mais francamente fálico. Sendo,


teoricamente, um mero espantalho de aves, como era Líber, o seu elemento de
erotismo acabou, afinal, por dominar inteiramente o seu culto. Por vezes, a sua
imagem resumia-se simplesmente à forma de um imenso falo, ao qual se
acrescentava uma aparência de cabeça e fisionomia humanas. Quase sempre
vinha ornado de um órgão genital de colossais dimensões. De qualquer maneira,
fosse o deus originariamente ligado, ou não, à ideia de sexo, o facto é que a
imaginação popular desde logo o transformou numa divindade totalmente sexual
e, assim, as características da sua sexualidade seriam precisamente as dos
seus adoradores. O falo de Príapo aparece frequentemente sob o conceito de
arma ou instrumento de castigo, segundo no-lo indica a conhecida colecção de
poemas latinos que traz o título de Priapeia. Percorre esses poemas de ponta a
ponta uma veia acentuadamente sádica, notando-se que um elemento idêntico
se encontra nas festas adstritas ao culto priápico.

Petrónio escarneceu dessas festas no seu Satyricon, aí descrevendo o


desfloramento de Pannychis, menina de sete anos, por Gírton, rapazinho pouco
mais velho talvez e, falando dessa cerimónia, deu-a como ”extremamente
empolgante”.

O culto das Bacchanalia, ou bacanais, apareceu primeiramente no Sul da Itália,


tendo-se daí difundido para o Norte da península, com irreprimível vigor.
Cercava essas festas um ambiente desmedidamente saturado de colectiva
histeria, de violência e desmandos sexuais, e não gozavam do beneplácito
oficial. Ao princípio, eram meramente toleradas, conforme o deixa entender as
palavras de Lívio:

”Bem sabeis, ó senadores, que as Bacchanalia, que de há muito se espalharam


por toda a Itália, florescem já agora aqui nesta mesma Roma; e bem o sabeis,
não apenas por ouvir dizer, mas também pelo que vo-los revelam os ruídos e os
brados que ressoam em toda a cidade durante a noite.”

Tomamos conhecimento do facto de terem acabado, as Bacchanalia, por se


tomarem malvistas pela maioria dos cidadãos, através da historieta
reproduzida por Lívio, da qual ressaltam, evidentes, a histeria geral e o auto-
abandono verdadeiramente suicida que constituíam parte essencial daquelas
cerimónias.

Ei-la: um mancebo, de nome Aebúcio, entabulara uma ligação com uma liberta,
uma ex-escrava, chamada Hispala, que fora antes meretriz muito conhecida. O
padrasto e a mãe do rapaz, movidos por motivos financeiros, desejavam
suprimir o rapaz e, assim, deliberaram fazê-lo mediante instigação para que ele
fosse tomar parte nas Bacchanalia. Pelo que a mãe chamou de parte o filho e
lhe confidenciou ter feito uma promessa, um voto aos deuses, quando ele
estivera doente, de que o iniciaria nos ritos báquicos, se ele se curasse. Por
isso, deveria ele agora abster-se de ter relações sexuais durante dez dias,
como preparo para a cerimónia daquela iniciação. Chegado o último dia da
abstinência, após a ceia, depois de o filho se ter banhado e purificado, ela o
conduziria ao templo. Quando Hispala soube das intenções da mãe do moço (ou
antes, adivinhou-as, quando Aebúcio lhe disse que iria passar várias noites
afastado dela) ficou horrorizada e pôs-se a dizer que era melhor para ambos
estarem mortos do que consentir ele em loucura semelhante. Apertada pelas
perguntas dele, contou-lhe que, quando ainda era escrava, acompanhara a sua
senhora a um certo templo que sabia ser a sede de ”toda a espécie de
corrupção. Era coisa geralmente sabida que durante dois anos todos os que ali
se haviam iniciado tinham menos de vinte anos de idade. Sempre que ali era
apresentado um homem, era entregue aos sacerdotes como se entrega uma rês
a magarefes. Levavam-no a um lugar onde ressoam gritos, à mistura com hinos
e tanger de tambores e címbalos... para que não se ouvissem os brados de
socorro da vítima ao ser violada”.

Regressando a casa, Aebúcio revelou à mãe e ao padrasto a sua intenção em


não se meter absolutamente naquela história de Bacchanalia, ao que, tomados
de irado despeito, os dois conspiradores o expulsaram do lar. A conselho de
uma tia, foi procurar o cônsul e contou-lhe toda a história. O magistrado, após
apurar a fidedignidade do queixoso, intimou a tal Hispala a comparecer, para
interrogatório. No começo, aterrorizada, ela tentou negar tudo mas, por fim,
acabou por dar um depoimento completo.

”Declarou ela que o templo citado era, ao princípio, reservado às mulheres, não
se admitindo ali homens. Havia três dias por ano especialmente destinados às
iniciações. Mulheres casadas assumiam, por turnos, funções de sacerdotisas.
Até que um dia uma certa mulher da Campânia alterara todo o ritual, por
ordem dos numes imortais, segundo alegava. Começara por iniciar dois homens,
seus próprios filhos. Depois que os ritos passaram a ser franqueados a todos,
sendo, desde então, assistidos tanto por homens como por mulheres, e que já aí
a sua licenciosidade se exacerbava sob as trevas da noite, não houve acção
vergonhosa ou criminosa de que se eximissem os ’fiéis’. Os homens, então, eram
culpados de actos mais imorais entre eles mesmos, do que as próprias mulheres.
E aqueles que se debatessem para não se verem desonrados, ou que se
mostrassem lerdos na acção de infligir a outros a desonra, eram abatidos na
ara dos sacrifícios, como animais de corte. O artigo mais sagrado da sua seita
consistia em que nada se consideraria crime. Os homens faziam pregações em
tom de loucos, tendo os corpos retorcidos pelo frenesim profético. As
mulheres, ataviadas de bacantes, cabeleiras à solta, saíam a correr para as
margens do Tibre, brandindo tochas flamejantes que iam mergulhar no rio,
cujas águas não as extinguiam, pois os archotes haviam sido previamente
salpicados de enxofre e visco. Diziam que ’os deuses os arrebataram consigo’
quando certos homens eram atados a um guincho e arrastados para fora dali,
levados para cavernas secretas. Esses eram os que se haviam recusado, seja a
prestar os juramentos do preceito, seja a serem cúmplices nos crimes
cometidos, seja a deixarem-se violar. O facto é que a tal sociedade contava
com uma enorme lista de sócios, quase a metade (sic) de toda a população... e
entre esses viam-se homens e mulheres de nobre nascimento.”

Em consequência desse depoimento, as autoridades obtiveram o consentimento


dos horrorizados paires conscriptos para empreender uma plena investigação.
Mais tarde, apresentaram o seu relatório perante os senadores, documento no
qual, segundo Lívio, se dizia: ”Grande número dos adeptos são mulheres, e daí é
que parte todo o desassossego. Mas, misturados, há também homens, que são
cúmplices na ignomínia recíproca e geral, entre eles mesmos, todos uns
fanáticos desvairados pela vigília nocturna, pelo vinho, pela gritaria e
barulheira a noite toda... Se soubésseis com que idade se iniciam os homens,
encher-vos-íeis, não apenas de comiseração por eles, mas também de vergonha.
Acreditareis jamais, cidadãos, que de mancebos que hajam prestado aquele
tipo de juramento se possam fazer bons soldados? Poder-se-ão, porventura,
confiar-lhes armas, ao saírem daquele santuário obsceno? Poderão eles, enfim,
degradados pelos seus próprios pecados e pelos dos seus compartes, combater
em defesa da honra de vossas esposas e prole? Cada um daqueles atentados
movidos e perpetrados pela lubricidade, pela astúcia ou pela violência, que se
verificaram no correr destes anos mais recentes, tiveram sua origem ali,
naquele templo. E o mal terrível cresce dia a dia. E está a afectar toda a
Comunidade Romana.”

E por aí segue o cônsul, acrescentando que a vontade dos deuses fora arvorada
em pretexto para o crime e não há como pôr-se em dúvida a justiça do seu
asserto. A extensa cadeia de processos-crimes que se seguiu à providência do
cônsul mencionado denota que os bons cidadãos sabiam distinguir entre
ortodoxia religiosa nas suas devoções e umas tantas inovações sensacionais
muito claramente inspiradas por motivações inferiores unicamente humanas.
As Bacchanalia acima descritas não passavam de uma versão deturpada das
festas dionisíacas helénicas. Os Romanos eram mais espertos do que os Gregos,
mas essa sua subtileza foi também o seu desastre. Advinda a mudança de
atitudes raciais, o comportamento orgíaco tomou-se, não um catártico, mas
uma droga viciadora e, juntamente com a atitude romana perante a
sexualidade, a natureza da influência dos numes sobre actos tais como as
Bacchanalia assumiu um novo e sinistro significado.

Fosse qual fosse a causa, o facto é que, sem dúvida, as perseguições e


processos-crimes entraram em acção, abrangendo cerca de sete mil pessoas.
Muitas delas foram executadas e outras, ainda em maior número, tentaram
fugir de Roma, procurando esquivar-se à desagradável publicidade, tanto
quanto à acção dos tribunais. Por fim, quando se acreditou que o mal havia sido
devidamente erradicado, foi promulgado um decreto senatorial - em
186 a. C. - que chegou até ao conhecimento dos nossos dias sob a forma de uma
tábua da lei em bronze, segundo a qual se proibia, desde então, em Roma, como
em toda a Itália, e para sempre, as Bacchanalia. Admitir-se-iam, no entanto,
algumas excepções de somenos, sob condição de prévia comunicação ao pretor.

As autoridades não intervinham nos movimentos dos bacanalistas por motivos


morais, mas sim por desconfiança que as fazia recusar tolerância à simples
existência de qualquer força organizada de vulto que com elas rivalizasse e
pudesse constituir uma potencial ameaça ao poder do Estado.

As Bacchanalia tinham surgido, primeiro, como um inocente culto das vinhas,


sendo, claro, sempre permeadas pelo elemento sexual que, inevitavelmente,
como se pode ver em numerosos outros exemplos, acabou por dominá-las: útil e
hábil racionalização, bem como divinização, de emoções simplesmente humanas,
pseudomisticismo que deitava para as costas da divindade a responsabilidade
pelas acções dos adeptos, às quais a libertação de inibições, já de si mesma
facilitada pela invocação da desculpa deística, dera largas. Os deuses
tomavam-se senhores, já não mais simples amigos.

Em parte alguma como na Etrúria as Bacchanalia vicejaram tanto e tão


rapidamente, e talvez de nenhuma outra parte tanto projectaram a sua
influência sobre os cidadãos da velha Roma. Os Etruscos há muito tinham a
reputação de ser um povo de débil moralidade e, logo, também
apaixonadamente inclinados à luxúria. Ateneus de Náuclia comentara a sua
sociedade e os seus banquetes. Escrevendo sobre estes últimos, salienta ele (no
Deipnosophistae, IV, 39) a presença dos leitos requintadamente bordados de
flores sobre os brocados e, também, o serviço de taças de vinho, todas de
prata maciça.

Um pouco mais à frente (no livro XIII, 517), entra em mais detalhes:

”Entre os Etruscos, gente que afinal adquirira hábitos de luxo extravagante,


Timeus regista no seu primeiro livro que as jovens escravas servem aos
convivas estando inteiramente nuas. E Teopompo, no quadragésimo terceiro
livro das suas Histórias, diz ser costume dos Etruscos partilharem entre si as
suas mulheres; estas dispensam grandes cuidados ao seu físico e
frequentemente exercitam-se com os homens, às vezes mesmo umas com as
outras; pois, entre elas, não é vergonhoso mostrarem-se nuas. Além do mais,
elas jantam, não só com os seus maridos, mas também com quaisquer outros
homens que se achem presentes, e erguem as suas taças de vinho em brindes
àquele que elas bem entenderem distinguir. O facto é que elas são
terrivelmente beberronas e, aliás, muito bonitas. Os Etruscos criam todas as
crianças que lhes nascem, sem saber quem é o pai de nenhuma delas em
particular. As criaturas, por sua vez, seguirão o mesmo modo de agir que
tinham os que as nutriram, levando idêntica vida de assíduas vinhaças e de
coabitação com todas as mulheres em geral. Os Etruscos não acham
vergonhoso fazer seja o que for ao ar livre, ou mesmo serem vistos a deixar
que lhes façam, nas suas pessoas, alguma coisa imprópria; pois tal é,
igualmente, costume do país. E tão longe estão de achar indecentes essas
coisas, que chegam mesmo a dizer, na verdade, quando o dono da casa se acha
empenhado em acto amoroso e alguém vem procurá-lo, que o amo está... isto-e-
aquilo-e-etcetera-e-tal, ou seja - declaram abertamente e a bom som qual a
operação em que ele se acha ocupado, chamando o acto pela sua designação
indecente. Nas suas reuniões sociais ou familiares, eis como procedem: antes
de mais nada, tendo cessado as libações e resolvido recolherem-se ao leito,
são-lhes trazidas pelos servos, enquanto as luzes se acham ainda acesas, umas
vezes algumas prostitutas, outras, mancebos formosos de tenra idade, e outras
ainda, as suas próprias esposas; e depois de os amos gozarem da companhia
destes, introduzem, então, os servos a moços lúbricos que, por seu turno, se
servem deles. Assim é que eles se entregam aos seus prazeres amorosos e
empreendem contactos de todo o género, algumas vezes abertamente, à plena
vista uns dos outros, mas, na maioria dos casos, atrás de cortinas levantadas
em volta dos leitos; essas cortinas são de gradil de sarrafos, sobre os quais se
deitam panos. A verdade é que eles coabitam decididamente com mulheres;
porém ainda mais o fazem e com maior deleite com rapazinhos e adolescentes.
Pois no seu país estes últimos são de muito gentil parecer, porque vivem no
fausto e trazem os seus corpos sempre atraentes. De facto, todos os bárbaros
que vivem para os lados do Ocidente eliminam todos os cabelos do corpo por
meio de cataplasmas de alcatrão e emprego de navalhas de barba. Aliás, pelo
menos entre os Etruscos, abrem-se muitos estabelecimentos e surgem muitos
especialistas desse ramo de negócio, os quais correspondem aos barbeiros dos
nossos dias, com seus ’salões’. Ao penetrar num desses estabelecimentos, eles
entregam-se nus, sem reservas, às operações do ofício, não aparentando o
mínimo acanhamento que seja diante de presentes ou transeuntes. Semelhante
uso verifica-se igualmente entre muitos gregos que vivem na Itália; é que o
aprenderam dos sanitas e dos messápios. Os Etruscos levam o luxo da sua
existência ao ponto de fazerem acompanhar do tanger de flautas actividades
tais como o amassar do pão, os exercícios de pugilato e até o vergastar de
açoites, di-lo-nos Alcino.”

As danças báquicas já eram conhecidas na Etrúria - como se não nos bastasse o


comentário supra-referido para o supormos provável -, tal no-lo vindo
confirmar uma das muitas pinturas murais que nos deixaram na Tarquínia, em
Chiusi e noutros sítios. De acordo com o autor de Etrúria Past and Present - M.
A. Johnstone -, na ”Tumba das Inscrições” em Tarquínia há uma representação
pictórica de ”um frenético bailado báquico”... ”Os bailantes estão aí nus,
completamente ou quase, mas sempre calçados de botas de bico comprido e
trazem, uma ou outra vez, uma breve tanga, ou um corpete, um colar, ou chapéu
engrinaldado, ao passo que conduzem, nas mãos, uma ou duas guirlandas com as
quais acentuam o ritmo dos gestos. Servos portadores dos picheis de vinho da
festa báquica metem-se por entre os dançarinos e até empreendem também
um ou dois passos por sua própria conta. A música sai de flautas duplas, e é
fornecida também para acompanhamento dos grupos que se exercitam em
tomeios de luta corporal e de pugilato, que se vêem figurados a um canto da
sala.”

Numa outra tumba - a ”Tumba dos Leopardos” - vê-se que a mesma recebe a
sua denominação ”de um par de figuras de leopardos a caçar, que ocupam todo
o frontão do monumento. Sob esses animais encontram-se os leitos festivos,
que aí ocupam, em cada caso separadamente, um casal de jovens, rapaz e
rapariga, disposição essa que tem provocado muito debate”.

O principal interesse dessa narrativa reside no facto de nos dar a conhecer


aquele meio-termo equidistante entre as duas civilizações, grega e romana.
Aparentados com as Bacchanalia, porém consideravelmente ainda mais
escabrosos, são os ritos, claramente de origem psiconeurótica, relacionados
com o culto de Cibele.

A autoflagelação, alegadamente obedecendo a motivos religiosos, é um


pormenor característico de mais do que um credo religioso. No culto de Cibele
está patente a origem dessa prática na sua modalidade extrema. Por trás
disso, conquanto não por trás de todas as prática masoquisto-religiosas, jaz a
noção de que moralidade é algo só compatível com um papel passivo na
existência, e muito em especial na parte das actividades do sexo. Noção
segundo a qual, ainda, o que é passividade, o que é feminino, representa o bem;
e o que é masculinidade, o que é agressivo, activo, figura o mal; e, portanto, a
masculinidade deve ser sacrificada, se é que buscamos a salvação, para nós e os
demais; e a sexualidade deve continuar a ser contingência mesmo
semiconscientemente aceitável. Essa noção é tanto mais escravizadora e
inextirpável quanto é verdade que se relaciona com o instinto sexual e é guiada
pelo perpétuo poder do mesmo. Era uma nevrose que os sacerdotes de Cibele
levavam à sua conclusão lógica. É possível notar-se, talvez, uma certa
significação na circunstância de aquele culto ter surgido subitamente no
período vizinho do término da guerra púnica contra Aníbal, época em que a
nacionalidade romana se achava combalida pelas demoradas durezas da
campanha e pelos desastres que esta lhe trouxe. Os padres de Cibele eram
eunucos. Acomodavam-se à lendária tradição, imitando Attis, que se castrou a
si mesmo num frenético acesso na ânsia de salvar a jovem deusa a quem amava.
O episódio vem contado em Ovídio:

Attis, formoso mancebo da floresta frígia, enfeitiçou a deusa da coroa em turrículas.


Querendo retê-lo em seu poder, como guardião do seu templo, ela o interpelou: - ”Não
poderias deixar, alguma vez, de ser

[um mancebo?”

Ao que ele formulou este voto: ”Se eu me tomar perjuro permitindo-me algum abraço,
seja esse para sempre o meu
[último acto amoroso.” Mas foi perjuro, afinal: abandonou-se, como mancebo, nos

[braços de uma ninfa.

A deusa vingou-se, abatendo a árvore, matou a náiade, porquanto esta vivia e


morreria juntamente com a árvore. Attis, porém, enlouquecido e crendo que desabava
o tecto, saiu a correr, direito para o elevado pico de Díndimo, bradando ”Oh!
Archotes!” e ainda ”Oh, flagelo!”, a jurar que as fúrias o empurravam para a morte. E
eis que, com uma cortante pedra, ele mutila o próprio corpo. Tombando no solo, os
seus longos cabelos a arrastarem-se pela

[imunda poeira,

e a prantear-se ”Bem o mereço, sangrar e sofrer! Destrua-se-me o membro que me


tomou um perjuro!!! Fora com ele!” - dizendo isso, decepou a sua própria

[virilidade... de tal modo rente que dela não ficou vestígio revelador de que

[ele fora outrora varão.

A sua loucura de então é ainda hoje imitada, pois os seus servidores mutilam-se nos
seus vis corpos e, enquanto o fazem,

[arrepelam os cabelos.

O culto de Cibele, para além de comportar essa autocastração alucinada e a


deposição votiva dos genitais decepados sobre os altares da deusa, incluía
também, como parte importante do ritual, um baptismo de sangue, elemento
purificador que devia proceder, aliás muito adequadamente, de um touro ou de
um carneiro adulto. Davam-se, em louvor desta deusa, banquetes em casas
particulares, porém, a respectiva idolatria consumava-se verdadeiramente
apenas na sede e sob ministração dos seus padres. Conforme diz Apuleio, esses
sacerdotes de Cibele também se entregavam a práticas homossexuais com
jovens camponeses vigorosos. Não obstante, e segundo a opinião de Bloch, não
posso deixar de acreditar que a capital significação do culto se situe nas linhas
que descrevi. Os Gregos, certamente, praticavam a flagelação ligada a cultos
religiosos - mas nisso estava ausente qualquer ideia de culpa. (Note-se no
poema supracitado a presença da expressão ”Bem o mereço, sangrar e
sofrer!”).
ísis era a deusa da fertilidade feminina e das colheitas e agricultura em geral,
no Egipto. Foi introduzida em Roma, tal como o foram muitas outras divindades,
para ali importadas e subsequentemente transformadas. A fertilidade,
conquanto seja um fenómeno obviamente afecto à sexualidade, não somente
deixará de ligar-se à prostituição, como até se lhe opõe. No entanto, a
prostituição no templo desempenhava parte importante no culto da deusa.
Evito repetir o argumento em que tantas vezes insisti.

O culto foi desfavoravelmente acolhido pelas autoridades, só chegando a ser


reconhecido, pela primeira vez e, facto talvez bem significativo, sob o governo
de Calígula.

Até o próprio Tibério fez arrancar do respectivo altar uma imagem da deusa e
mandou-a atirar ao Tibre, porque os sacerdotes da divindade estrangeira se
haviam servido das suas cerimónias rituais para ultrajar uma dama nobre de
Roma. Era indubitavelmente flagrante nessa religião o elemento sexual. Isso
no-lo indica o dizer de Ovídio: ”Não me pergunteis que será que se passa no
templo da deusa vestida de linho, essa ísis”, e acrescenta adiante: ”Não fujais
aos templos de ísis, pois ela fez muitas mulheres tomarem-se no que ela
própria se tomou para Júpiter.” Juvenal, que sempre foi muito directo no dizer,
e escritor sem rodeios nem prolixidade, apelida as sacerdotisas de ísis
simplesmente de ”proxenetas”. Kiefer, ao mesmo tempo que aceita a provável
justeza das acusações, ressalva que ”é claro, poderão muitas vezes os
sacerdotes e as sacerdotisas ter ajudado à promoção de tais aventuras (isto é,
sexuais)... tal como os sacerdotes da Poderosa Mãe por vezes exauriam o seu
ardor em frenesins sexuais; porém, nada disso tem a ver com o culto, ou com a
verdadeira natureza dos deuses”. Mas, a menos que aceitemos a existência da
própria ísis como um facto literal e absoluto, onde iremos buscar então a
definição da natureza do seu culto se não no procedimento de seus sacerdotes
e suas sacerdotisas? O argumento de Kiefer parece-nos académico ao ponto de
se fazer incompreensível. A verdade é que a adoração da deusa muita vezes
exigia um prévio período de abstinência sexual, do que se vale Kiefer como
citação em abono da sua tese; mas abstinência com que fim, senão para
consequentemente dar largas ao desejo acumulado?

Aliado ao culto de ísis, andava o da Bona Dea - a boa deusa. Esta era, segundo
alguns, uma deusa exclusivamente das mulheres e o seu culto, portanto, era
efectuado só por mulheres. Para a celebração dos seus ritos, devia o dono da
casa sair e deixar-se estar por fora todo o serão, deixando as mulheres em
paz. A domina da casa assumia, então, as providências para a celebração dos
ofícios, que compreendiam ”alegria e música”. É o que está em Plutarco. Já o
quadro pintado por Juvenal apresenta-se-nos algo diferente, pois este escritor
já anteriormente deplorava a decadência das religiões romanas, calamidade
cuja culpa atribuía à avinhada emancipação das mulheres. Ei-lo:

”Que decência observará Vénus, estando ébria? Quando ela já nem distingue
entre um membro e outro, consome ostras gigantes à meia-noite, verte
fumegantes unguentos na sua taça de Falerno puro e bebe de malgas
perfumadas, enquanto o tecto lhe parece girar vertiginosamente ao redor, as
mesas dançam e cada lâmpada e tocha lhe aparece duplicada! Ponde reparo,
pois, e imaginai o que significa o jeito escarninho com que Túlia fareja o ar
ambiente, ou o que será que Maura sussurra ao ouvido da sua mal-afamada
meia-irmã, ao passar pelo antigo altar da castidade. É ali mesmo que elas
instalam os seus nichos à noite e, diante da imagem da deusa, se comprazem
nos imundos folguedos até que a alvorada as venha surpreender.”

O autor prossegue, agora descrevendo as cenas que se verificavam, quando as


adoradoras da Bona Dea eram deixadas sós com elas mesmas, em casa.

”Os ritos da Boa Deusa! Estridentes flautas excitam o agitar dos flancos das
mulheres, o vinho e o clangor de trombetas enlouquecem-nas, e elas rodopiam e
gritam esganiçadamente, deixando-se possuir por Príapo. Aí então, ah! então!,
os seus corações se consomem em chamas de lubricidade, o seu falar é um mero
gaguejar libidinoso, o vinho despeja-se em torrentes pelas encharcadas coxas
abaixo... E tudo isso não é nada a fingir, é tudo real e verdadeiro: de tal forma
que os cansados rins do velho Príamo e o ancião Nestor, enregelado pela idade,
até se incendiariam de novo, à vista do delirante espectáculo. O prurido dos
desejos já chegou ao auge e as mulheres já não se contêm mais, não podem
mais esperar: o que se vê, por todo o salão, é a Mulher, a Fêmea, a vozear em
gritos desvairados: ”Está na hora! Tragam os homens!” Mas o esperado amante
dorme... Ora! Que acorde, cubra-se com um manto qualquer e corra para elas,
que o esperam. Ai não? Assim sendo, elas atiram-se aos escravos. Mas não há
nem sequer escravos? Agarrem, pois, aí pelas ruas, um varredor qualquer!”
E se nem com isso deparam, em matéria de homens, elas contentam-se até com
um jumento, afirma-o Juvenal. Este, muitas vezes, assume modos de
interpretar da maneira mais sórdida qualquer jogo de circunstâncias; no
entanto, se a deusa fosse inteiramente aquela entidade respeitável que nos
pinta Bachofen, quem ousaria pensar em relacionar entre si semelhantes
atoardas? Que ”não há fumo sem fogo” é um ditado algo impertinente, talvez,
mas, mesmo assim, é quase sempre um preceito digno de confiança. Pode Kiefer
repelir indignado as acusações lançadas a ísis e à Bona Dea. Em comparação
com o culto de Cibele e com as Bacchanalia, os ritos delas eram até salutares,
inócuos e singularmente isentos de neuroses e perversões múltiplas. Mas o
facto é que já todas essas formas de adoração se tinham transformado em
nada mais do que brincadeiras.

Até aqui temos apreciado cultos nacionais que se ligavam a actividades


enquadráveis sob o título de orgias - se é que não resultavam em orgias. Na
imaginação da maior parte das pessoas desenha-se um quadro diferente à
menção dessa palavra, sempre que é citada a propósito dos Romanos. É uma
encenação de luxuosos banquetes de particulares, porém especialmente dos
banquetes de augustas pessoas imperiais, evocando-se os chamados efeitos
decadentes e a significação desses actos sociais. Certo é que o aumento do
luxo, ou, no entender de alguns, do efeminamento, teve uma influência imediata,
como efeito determinante da cessação das actividades militares. Por outro
lado, penso que seria enganador atribuir-se a existência dessa vida de luxo e
prazeres a qualquer causa mais sinistra e complexa do que o simples facto de
se nadar em dinheiro e se ter pouco que fazer. E se tudo isso seria, no fim de
contas, uma coisa assim tão má, eis o que desperta dúvidas. Há muitíssimos
outros passatempos mais censuráveis do que o da rebuscada cura de requintes
de aparência pessoal, de conforto e de higiene corporal, sendo que entre tais
eu incluiria por certo até a actividade militar, particularmente a actividade
militar do modo como a exerciam os Romanos. O que nos cabe decidir é se havia
algo de particularmente corrupto, lúgubre e decadente no facto de se
permitirem os Romanos aquelas fraquezas, ou se o Império se teria
desmoronado, da mesma forma, se, por exemplo, os Romanos tivessem
desperdiçado demasiadamente o seu tempo a jogar golfe.

À primeira vista, quero confessá-lo, não vejo no caso nada de mal, antes bem.
Nada mais que a entrega a prazeres inocentes e simples, nada de sinistro,
nenhum sinal visível da comum e ubíqua neurose; a não ser que a paixão romana
pelos banhos públicos possa ser interpretada como sintoma de colectivo
complexo de culpa nacional.

Os requintes no pensar e no agir, recentemente adquiridos pelos Romanos,


deviam-se, em grande parte, à influência da subtileza helénica. Os belos
trajares de Cós, referidos no capítulo em que versámos sobre os Gregos, eram
importados para Roma, em enormes quantidades. Copiou-se o entusiasmo grego
pelas estátuas nuas. Aliás, a atitude romana perante a nudez, fosse ao vivo ou
em efígies, era mais grosseira e menos sensível do que a do grego, ou melhor:
era a sua antítese absoluta, conforme o trai o próprio sentido da palavra latina
correspondente a nu - nudus. (O vocábulo apresenta significados alternados de
”rude”, ”bizarro”, ”feio”). Dado que tão intimamente se relacionam a nudez e a
moda, o equilíbrio entre o quanto se há-de mostrar e o quanto há-de ser
escondido, desempenhando importante papel no despertar de excitações
sexuais, é de surpreender não tivessem os Romanos as suas modas (que os
Gregos cultivavam), como as entendemos hoje. A não ser algumas inovações em
matéria de cores, durante a era imperial, as roupagens dos Romanos
conservaram-se estáticas quanto ao desenho. Deve-se acrescentar que não
havia, então, qualquer ortodoxia de estilo a preceituar sobre o planeamento das
vestes, de maneira que só se faziam possíveis variedades dentro de traçados
muito limitados.

A joalharia, porém, era luxuosa e pesada. A consorte do imperador Calígula


possuía jóias no valor de um milhão e duzentas mil libras esterlinas, a um
câmbio actual. A amante de Trimálquio deixava-se ver em público carregada de
três quilogramas de joalharia. Era muito comum ver-se esculpida em jóias a
efígie do imperador reinante, em camafeu. Os indivíduos que se davam a este
género de adulação servil tinham de agir com muito cuidado, pois havia sempre
a possibilidade de lhes serem imputados como actos de lesa-majestade e alta
traição, uma quantidade de acções banais. Assim, por exemplo, apanhar-se um
vaso nocturno com a mão adornada por um anel com um de tais camafeus podia
ser considerado crime punível com a morte. Juvenal menciona um auratae
papillae, ou seja, seios dourados, sem esclarecer se deveríamos entender por
isso que as mulheres efectivamente douravam os seios, ou simplesmente
traziam sobre as mamas grandes quantidades de ornamentações de ouro,
tantas que lhes davam a aparência de douradas.
As cabeleiras eram sempre complicadamente penteadas, sendo que, às vezes,
os louros cabelos das raparigas germânicas eram aproveitados para
suplementar, senão substituir, as negras tranças mediterrânicas das damas
romanas. A imperatriz Messalina foi uma das que usaram tais postiços.

O laborioso e frequente banho que tanto distingue, como aspecto primordial, a


vida romana, era naturalmente acompanhado da necessidade de se construírem,
para esse serviço, balneários apetrechados com magnificência. Marcial fala-nos
de um desses banhos. ”Opiano, se não te banhaste jamais nos banhos etruscos,
então morrerás sem um banho na tua vida.” As paredes desse palácio-balneário
tinham incrustadas, como um trabalho de marchetaria, lápides de mármore
verde de mistura com uma espécie de alabastro; e, ao lado dos fumegantes
gabinetes de vaporização, havia grandes tinas para onde fluía a água descida
dos Apeninos pelo canal construído por Marco Tito.

Já os banhos públicos da cidade constituíam, por si sós, um afamado ponto de


encontros sociais ou de amores ilícitos, pelo que parecem ter ficado ligados,
geralmente - pelo menos na mente dos pseudovirtuosos -, a desregramentos e
imoralidades de todo o tipo. Havia também, conforme diz Marcial, banhos
especialmente destinados às prostitutas, os quais jamais eram visitados por
mulher que se respeitasse, mas eram visitados por homens. Os banhos mistos
foram introduzidos no tempo de Plínio, o Antigo. Somente as mulheres vestiam
roupas de banho; ”incidentes censuráveis ocorriam, naturalmente”.

Fora de Roma, existia Baiae, uma famosa estância termal, celebrada pelas suas
fontes de água quente e pela imoralidade que ali grassava. Séneca proferiu uma
severa e puritana advertência contra os perigos dessa localidade, dizendo que
”bêbados perambulavam ao longo da praia, banquetes em barcos, os lagos
retumbando com o vozear dos cantores e, mais, actos vários de deboche
realizados com tal desassombro como se as leis houvessem cessado de tolhê-
los”; e perguntava, depois: ”Credes, porventura, que Catão teria vivido numa
destas casas para contar as adúlteras que lhe passavam diante em seus batéis,
para ouvir o vozerio ininterrupto das cantorias todas as noites?” Mas, a
despeito da sua trovejante retórica censória, a única coisa que Séneca
conseguiu foi criar uma visão inequivocamente sedutora de Baiae, mostrá-la, em
suma, como um agradável abrigo onde refugiar-se da barulheira, da sujidade e
do perpétuo tráfego a atroar a metrópole, um recanto onde os vílicos dos
abastados proporcionavam um agradável retiro... para esses abastados.
Nem todos os prazeres da grande cidade corriam por conta dos gladiadores ou
de outras sanguinolentas cruezas da arena. Eram também muito apreciadas
pelo povo as representações teatrais e as danças, entretenimentos esses nos
quais latejava um forte elemento de erotismo. Davam-se em residências
particulares, tanto quanto nas casas de espectáculos públicos. Gozavam de
apreço especial pelo seu talento para danças de natureza lasciva as raparigas
de Cádis, tanto que nos banquetes particulares elas amiúde surgiam como
número de encerramento da alegre festa. Eis o que sobre elas refere Juvenal:

Talvez estejais à espera das buliçosas danças

de Gades, ao som dos amavios dos músicos, raparigas

atirando-se ao chão, frementes de emoção sob os aplausos...!

Que estímulo para lânguidos amorosos, que aguilhão a espicaçar, para a vida,
enfastiados ricaços!...

e agora ouçamos Marcial:

Ela treme, e palpita, e remexe os quadris, e contorce-se toda... Ei-la, que faria
esquecer-se da sua compostura o próprio Hipólito.

Segundo qualquer padrão moderno com o qual os comparemos, os banquetes


romanos eram verdadeiramente notáveis, pelas enormes quantidades de
vitualhas e bebida que os convivas engorgitavam naqueles festins. Faltava-lhes
por completo a elegância do grego, sendo até considerado, ali, proeza digna de
nota ser-se capaz de vomitar voluntariamente a comida ingerida, para se poder
recomeçar com a gulodice... Vomunt ut edant, edunt ut vomant... Vomitam, para
comer mais; comem, para vomitar outra vez... Devido ao hábito, vigente nos
círculos mais estouvados, pelo menos, de se beber vinho puro, em vez de
diluído, a intemperança reinava, proporcionalmente mais elevada ainda, aí.
Algum dos comensais - era comum embebedava-se tanto, que chegava a nem
poder simplesmente urinar para dentro dum vaso nocturno, ou mesmo dum
pichei de vinho, sem a ajuda da mão providencial de um seu escravo. Aqueles
deboches nada faltava em matéria de esplendor; careciam totalmente, porém,
de bom gosto. Os Romanos deixavam propositadamente de dar importância à
conveniência de se cultivar o factor graça, se é que não eram mesmo incapazes
de lhe apreender o valor, bem como o da dignidade de compostura, elementos
esses que a maioria dos seres humanos consideram, uns mais, outros menos,
uma parte em todo caso indispensável na fruição dos seus prazeres.

Uma coisa particularmente inquietante na vida do prazer entre os Romanos era


não se cingir a mesma unicamente a uma certa minoria abastada, tal como se
tem verificado outrora e ainda agora em outras sociedades: mas a base
fundamental do prazer auferido pelos ricos assentava mesmo nessa
prerrogativa. Em mais nenhum lugar se exibe mais nitidamente e
repulsivamente a sociedade esclavagista e escravocrata, do que nos festins dos
magnatas, onde se atormenta e humilha a substancial maioria de criaturas que
se submetem a todas as misérias que se lhes queiram infligir com o fito de
divertir uns poucos privilegiados. Se, ao menos, os aristocratas de então
tivessem extraído dos seus excessos algum verdadeiro prazer, até poderíamos
julgar os Romanos de um modo menos severo. Mas assim não era; e assim não é,
também, o nosso juízo sobre eles. Continuam os Romanos a intrigar-nos a mente
e permanecem absolutamente detestáveis. O prazer, entre eles, era a absoluta
antítese do genuíno hedonismo: fundava-se sobre o infortúnio e a opressão dos
próprios cidadãos romanos comuns e dos súbditos do Império por toda a
Europa: e, assim sendo, só poderia malograr-se e foi o que sucedeu, de facto.

No que se refere aos banquetes e orgias de particulares, sabemos mais


daqueles que foram oferecidos por personalidades famosas, é claro, do que
sobre os modestos festins de anónimos da História. E entre os famosos
ressaltam, obviamente, os grandes Césares. Tal método de apreciação dos
hábitos duma época expõe-nos à objecção que nos lembra que sobre a casa
juliana, a que pertencia o primeiro César, pesava o anátema de recorrentes
acessos epilépticos, além de que sofria a mesma de taras mais graves,
decorrentes dos numerosos matrimónios consanguíneos nela consumados; donde
não ter cabimento tomá-la como tipo representativo daquela era. A tal aparte
eu responderia que não entendo que se possa esperar distinguir no habitual
desenrolar das orgias algo mais que um fenómeno isolado, o qual não pode
necessariamente ligar-se a qualquer outra maneira de se fazer história. E
entendo a insânia que perseguia a casa juliana (se é que, num sentido
estritamente clínico, essa era uma linhagem de psicopatas) - essa psicose não
era tão hereditária e exclusiva, a ponto de não encontrar eco nas mentes de
outros indivíduos a ela estranhos, não se podendo atribuir, aliás, tal similitude
inteiramente a uma forma de bajulação cortesã. A nevrose do povo romano ou,
se não do povo, ao menos das suas classes dirigentes, entrelaçava-se
essencialmente, tal qual aconteceu na Alemanha nacional-socialista, com uma
identificação psíquica de cada indivíduo com o Estado. Naquele tempo, o
Imperador era a personificação do Estado, facto de que tinha consciência não
apenas ele próprio, mas também todos os outros. Será, então, a tal ponto
ocioso examinar-se a vida privada, ou a semipública, dessas preeminências?

Suetónio... - ”essa gralha mexeriqueira”, como o apelida o rabugento Kiefer -


disse que Júlio César era geralmente acusado de esbanjar muita energia e
muito dinheiro com os seus gozos e de ter seduzido muitas damas de alta
estirpe. A imputação é descartada pelo mesmo Kiefer, que declara (com menos
verdade) não serem aquelas acusações apoiadas em provas mais minuciosas:
”meros mexericos”. O facto é que Suetónio até fornece uma lista dessas
damas, de modo que o processo de defesa arvorado por Kiefer nem por isso
ganha em poder de convicção pela circunstância de aduzir ele, ainda, depois de
repelir indignado o depoimento de Suetónio: ”Além do que, de que adianta
sabermos que o grande homem estendeu os seus afectos a esta ou àquela
mulher fora dos confins matrimoniais?” Quase todos lhe responderiam ”adianta
muito”, se quisessem fazê-lo com sinceridade, pois, obviamente, a vida
particular de qualquer figura proeminente é tão parte integrante, e até mais
do que isso, talvez, desse vulto público, quanto o são aqueles aspectos da sua
personalidade que ele permitia que o mundo que o cercava vislumbrasse.
Entretanto, deve-se levar em conta, a favor de Kiefer, a circunstância de
poucos serem os dados concretos disponíveis sobre a vida sexual de César e de
que este muito provavelmente viveria demasiado ocupado com os seus afazeres
militares. Foi em César que a epilepsia da sua grei apareceu pela primeira vez
sob forma de acessos periódicos.

Augusto apresentava a característica, insólita na sua família, de ser, pelo


menos o quanto era perceptível aos que o rodeavam, exclusivamente
heterossexual. Tendo criado as primeiras legislações sobre casamento, não era
ele, todavia, nenhum puritano na matéria. Os imperadores romanos jamais
esperariam deparar com resistência, quando se tratava da satisfação dos seus
desejos carnais, contando-se, inclusive, a respeito de Augusto, que certa vez
atraiu a mulher de um ex-cônsul da sala de jantar deste para um quarto de
dormir, trazendo-a de volta de lá, depois, ainda toda despenteada e de orelhas
em fogo. Esta historieta não será muito lisonjeira para Augusto; mas se nos
lembrarmos de que as ideias dos Romanos sobre o casamento diferiam muito
das dos Gregos, e, ainda mais, pese embora uma superficial similaridade, de
quaisquer equivalentes modernos, deveremos temperar, de acordo com isto, o
nosso julgamento.

Augusto ficou igualmente com a reputação de se valer dos préstimos de


alcoviteiros que percorriam toda a cidade ”desnudando e examinando mulheres,
como se o traficante de rameiras, Torânio, as estivesse a pôr à venda”. Teve
uma obsessiva predilecção por donzelas (compare-se isso com o século XVIII
na Inglaterra), tendo chegado a conseguir a cooperação da própria esposa no
recrutamento, regular e sempre mais numeroso, de virgens. Ao que parece,
terá aplacado a sua voracidade sexual mais ou menos na intimidade, não
constando pormenores que particularmente o exponham como participante em
deboches promovidos por si mesmo, real ou alegadamente, exceptuada, apenas,
e com reservas, a ”Ceia dos Doze Deuses”, da qual conta Suetónio: ”Aí, os
convivas apareceram ataviados à imagem dos deuses e deusas, sendo que o
próprio Augusto se arranjara de modo a representar Apolo, do que é acusado,
não apenas nas cartas de António (Marco) que, acintosamente, cita os nomes de
todos os comensais, mas igualmente nestas linhas anónimas que são do
conhecimento de toda a gente:

’Tão logo aquele cenáculo de patifes arranjou um director de coros e Mália viu
seis deuses e seis deusas, juntos, enquanto César sacrilegamente representava
o falso papel de Apolo e se rebolava por entre mais deboches de nova espécie
daqueles pretensos numes: então, todos os autênticos numes imortais, lá no
Olimpo, voltaram as suas costas à Terra, fugindo o próprio Júpiter de cima do
seu áureo trono.’”

Foi este mesmo banquete que deu escândalo e causou mal-estar na opinião
pública, porquanto naquela ocasião reinava a fome, numa grave calamidade, e a
notícia desse leviano abandono e esbanjamento, por parte de César, foi
recebida pelas multidões com o clamor de que ”os deuses haviam devorado
todo o grão!” e, mais, que César era efectivamente Apolo, porém Apolo
Atormentador, designação sob a qual o deus era adorado num distrito da
cidade. O temperamento ou o carácter de um homem morto há tanto tempo
está sempre sujeito a controvérsias, e estas surgem quando se trata da
personalidade de Tibério. Temos, dum lado, o retrato que dele nos pinta
Maranon, mostrando-o um fraco de vontade e um tímido sexualmente,
divorciado da esposa grávida para se casar, incentivado por Augusto, com a
lúbrica, enigmática e semilouca Júlia, que, a despeito da assombrosa reputação
de imoral que a acompanhava, já lograra atrair a atenção geral pelo vigor e
entusiasmo com que tentara seduzi-lo, a ele, Tibério. Como é que esta
representação de Tibério, ainda enamorado de Vispânia, a sua primeira mulher,
e não abalado por nenhum desejo de possuir a malfalada princesa, emoção que
teria agitado qualquer outro romano - como é que tal representação se ajusta
aos relatos que dão o Imperador, ao tempo da sua residência em Capri, com os
seus doze palácios e a sua Gruta Azul, a entregar-se aos variados e
desregrados prazeres que Suetónio esmiuça? Se Tibério foi o homem
verdadeiramente sensível e arredio que alguns autores nos tentam fazer crer
qual seria a impressão que lhe terá causado a louca preocupação de Júlia com a
cópula, a interminável lista de casos sentimentais dela com homens de todas as
idades, de todas as cores e de todas as classes, em suma, a sua literal
prostituição subsequente? Seria ele um cínico nato, ou ter-se-ia tomado tal por
força de tudo o que com ele se passou? Ou, antes, nunca foi nem sensível, nem
apaixonado por Vispânia, mas tão-somente um libidinoso, cuja única
transformação experimentada foi a de passar da imoralidade recôndita para
aquela escancarada?

Maranon acha que este César não foi um casto por temperamento, antes
apenas pela necessidade decorrente da sua timidez sexual. E baseia esse seu
parecer, em parte, no longo período (sete ou oito anos) que Vispânia passou sem
conceber, e, mais ainda, no facto de, após o rompimento com Júlia, ”este
homem de 32 anos ter renunciado a toda a actividade sexual”. Como chegou a
deduzir essa renúncia, sem ser apoiada pelo depoimento, aliás inexistente, da
bisbilhotice contemporânea - eis o que Maranon não informa. No entanto,
quando abordamos nós tais mexericos como fonte de informações sobre o que
fazia Tibério, em Capri, são eles recusados como contribuição espúria e
parvoíces. Em favor de um maior apoio à sua hipótese, acrescenta Maranon o
facto de Tibério ter sido um homem de alta estatura e também canhoto,
características físicas, ambas, segundo ele, muito sabidamente sintomáticas de
timidez sexual e/ou impotência. É absolutamente verdade que só ao avizinhar-
se o fim da vida do Imperador é que lhe foram feitas acusações específicas. E
as vozes acusadoras foram o muito vilipendiado Suetónio e o seu colega
historiador Dio(n) Cássio. Suetónio, que não pode ser simplesmente tomado
como um qualquer bisbilhoteiro de escândalos, assegura que ”tendo conseguido
a sem-cerimónia que o recolhimento estimula (isto é, a intimidade do retiro de
Capri) e estando, por assim dizer, longe das vistas dos seus cidadãos, ele deu,
afinal, rédea solta a todos os vícios que por muito tempo trouxera mais ou
mfenos escondidos”. Já esta versão não é tão irreconciliável com a de Maraflon
quanto este próprio nos quereria fazer crer. Muitos homens e mulheres que,
em público, aparentam inibição sexual, comportam-se de modo muito diyerso,
uma vez resguardados dos seus costumeiros circunstantes e ambientes, dado
que aquela sua timidez se baseia somente numa convicção de que a actividade
sexual é coisa que se deve reservar a um compartimento estanque dos demais
que constituem a sua vida. Suetónio afirma que Tibério era um grande
beberrão, que passava toda uma noite e dois dias inteiros a pandegar em
companhia de dois homens que, em seguida, nomeou, como prémio, a um,
governador da Síria, e ao outro, prefeito da cidade. Foi-Ihe oferecido um
jantar por Céstio Gálio, ”velho lúbrico e esbanjador”, tendo o ilustre convidado
insistido com o seu anfitrião para que ”não alterasse ou omitisse nenhum dos
seus costumes habituais” e que raparigas nuas servissem à mesa os comensais.
Instituiu um novo cargo público - o de ”Provedor dos Prazeres Imperiais”, que
conferiu a Tito Prisco, titular romano.

No seu refúgio de Capri, montou um apartamento dotado de poltronas e leitos,


”adaptando-o especialmente à prática secreta de abomináveis libidinagens” e aí
recebia grupos de raparigas e jovens invertidos que denominava ”Spintriae”
(braceletes, ou roscas), dado que os fazia aviltarem-se sexualmente uns com os
outros, na sua presença, em círculos fechados de três pares, triplici serie
conexi, com o fito de despertar as suas próprias possibilidades. Tinha quartos
de cama em vários lugares, decorados com pinturas e esculturas. Nesses
aposentos abundavam os livros de Elephanti ”para que não faltasse a ninguém
paradigma por onde seguir qualquer libidinoso projecto que lhe fosse vedado”.
Pelos bosques, deparavam-se valas e grotas onde ”pessoas jovens de ambos os
sexos se prostituíam em grutas e simples reentrâncias das rochas, ataviadas
nos trajos de silvanos e ninfas, génios dos bosques”. Na Gruta Azul, nadava
como um velho tubarão, por entre um cardume de rapazinhos nus, ainda daquela
idade em que ”já estavam bastante fortes, mas ainda não haviam sido
despegados das mães”. ”A essas crianças, chamava ele ’os seus peixinhos’, e
ensinava-as a brincar por entre as coxas dele, enquanto se banhava, a
excitarem-no, pouco a pouco, mediante golpes de língua e mordidelas” e
permitindo-se, enfim, outras acções submarinas ainda menos inocentes.

Que podemos concluir de tais relatos contraditórios? Suetónio, cuja


fidedignidade como historiador conviria investigar-se aqui, não era, digam o que
disserem os seus acusadores, nenhum explorador de escândalos, ou um
pornógrafo. A sua prosa é singela, sem artifícios e franca; às vezes, mas não
sempre, detém-se no exame das opiniões rivais em relatos contraditórios; as
suas demais obras fazem crer que terá sido um criterioso erudito. Os seus
depoimentos têm sido confirmados, em muitos casos, por outras autoridades no
assunto. Levando-se isso em conta, será admissível que ele tivesse inventado
uma história totalmente improvável e ridiculamente improvável, acerca de um
homem que morrera há ainda não muito tempo e que fora conhecido pela sua
timidez sexual? Maranon sugere tratar-se, no caso, de uma ”lenda punitiva”,
criada por uma sociedade que o odiava por outros motivos. Rejeita a lenda de
Capri ”com bases psicossexuais”. Quanto a mim, não me convencem quaisquer
dessas críticas. Quando se quer atacar um inimigo político, faz-se-lo em coisas
de política, ou então busca-se uma alternativa verosímil. Não se é tão inepto a
ponto de se sacrificar totalmente a plausibilidade ao sensacionalismo.

A seguir às contradições e complexidades de Tibério - indubitavelmente, e em


estado potencial, já que possivelmente não na realidade, um sádico e depravado
sexual - é um alívio, se se pode usar o termo, voltar a atenção para uma figura
tão visível e indiscutivelmente má, atormentada e psicopata como Calígula.

Ainda criança, cometeu incesto, provavelmente precedido de violência, com uma


de suas irmãs, Drusila, a quem ficou devotado, à sua maneira, por todo o resto
da vida dela. É uma questão em aberto saber se esse incesto terá sido causa ou
resultado do seu desequilíbrio mental; mas do que não restam dúvidas é que ele
foi, durante a maior parte do seu reinado, uma cabeça completamente oca.

Ao falecer Drusila, publicou um decreto declarando crime de pena capital


alguém, fosse quem fosse, rir, banhar-se ou tomar refeições com os pais, o
cônjuge ou os filhos, durante aquele luto oficial.

Não amou as restantes irmãs, antes as prostituía a quem entendia fazê-lo. Na


sua vida sexual, tal como na pública, revelava um forte componente sadístico.
Se uma mulher lhe despertava interesse, afastava-a do marido sem a menor
hesitação; como foi o caso com uma certa Paulina, que ele chamou a si desse
modo e, depois de se servir dela durante um breve período, mandou-a embora,
proibindo-lhe, sob pena de morte, que jamais tivesse outra vez relações
sexuais com quem quer que fosse. Exibiu Cesónia, ”que nem era bonita nem
jovem”, inteiramente nua diante dos amigos, só a desposando quando ela já
estava perto de dar à luz um filho dele.

Tanto aos criminosos comuns, como a toda a população romana em geral, infligia
as crueldades físicas e mentais que lhe ditava o seu cérebro mais do que
semialienado. Aos criminosos já julgados e sentenciados, atirava-os para pasto
dos leões; e ninguém estava livre do constante perigo de morrer sob tortura,
nem mesmo os cortesãos que o cercavam. Certa vez, num banquete,
subitamente desatou numa desmedida gargalhada e, quando os cônsules que
estavam próximos dele polidamente inquiriram o motivo daquela hilaridade,
respondeu-lhes: ”É que se eu tivesse feito apenas um único sinal de cabeça,
poderia ter-vos degolado a todos, aqui mesmo.” Combinava um misto de
infantilidade e diabólico requinte, nas torturas que aplicava, particularmente
tratando-se de acrescentar agonia mental à dor física. Fazia questão de que se
procedessem às inquisições pelos tratos em sua presença, estando ele a
banquetear-se e, duma vez em que, num jantar, foi apanhado um escravo em
acto de furtar uma peça de prata, ordenou Calígula que se cortassem as mãos
ao ladrão e lhas pendurassem ao pescoço, juntamente com um cartaz em que se
esclarecia a razão daquele castigo e assim fosse o supliciado feito percorrer
todo o salão. Nos banquetes, convidava para junto de si as mulheres que
cobiçasse, tendo sempre o cuidado de convidar também os respectivos maridos,
ao mesmo tempo, e então, ao passarem elas aos pés do seu leito, ”ele as
examinava de alto a baixo, de modo discriminativo e acintoso, como se
estivesse a comprar escravos, chegando até a estender a mão para fazer
erguer o rosto de quem quer que o houvesse baixado pudicamente; em seguida,
sempre que lhe dava na veneta, deixava a sala e mandava que lhe levassem
aquela que lhe agradara mais, voltando pouco depois, com evidentes sinais
exteriores na sua pessoa do que se teria passado e, inclusive, emitindo
comentários ou críticas sobre a comparte, passando em revista os encantos ou
as deficiências, dela, bem como a intensidade das suas reacções. A algumas
delas, mandava declarações de divórcio em nome dos maridos ausentes,
fazendo constar tais documentos dos registos públicos... quase não havia uma
só mulher de alta condição da qual ele não se aproximasse”.

”Muitos homens de respeitável posição foram primeiramente desfigurados por


meio de labéus a ferro em brasa e, em seguida, condenados a trabalhos
forçados nas minas do Estado, na abertura de estradas ou, simplesmente, a
serem atirados às feras; se não, o Imperador mandava metê-los, de gatas, em
gaiolas, como animais, quando não fazia serrarem-nos em dois pedaços. E nem
todos esses castigos eram devidos a graves crimes cometidos, mas tão-
somente por se terem feito comentários sobre algum dos espectáculos de
César, ou por não terem jurado invocando a genialidade imperial. Forçava pais a
contemplarem a execução de filhos e uma vez mandou uma liteira para trazer
um desses pais que alegara estar doente; noutra ocasião, convidou um outro pai
a vir jantar com ele, imediatamente após presenciar a morte de seu filho, e
durante o repasto, procurou estimular o amargurado homem à alegria e aos
gracejos, mediante rasgadas demonstrações de afabilidade para com o
desgraçado.”

”No que toca à desmesurada extravagância, ele suplantou os pródigos de todos


os tempos, pelo engenho demonstrado, inventando um novo tipo de banhos e as
mais absurdas variedades de iguarias e folguedos, porquanto se banhava em
óleos perfumados, fosse a frio ou a quente, bebia pérolas de alto preço
dissolvidas em vinagre e fazia servir aos seus convidados pães e carnes
simulados, feitos de ouro.”

”Construiu galeras libúrneas providas de dez bancos de remadores, popas


ornadas de jóias, velame de variado colorido, enormes e espaçosas casas de
banho, colunatas, salões de banquetes, e até mesmo uma grande cópia de
variadas videiras e árvores frutíferas; tudo isso para que, enquanto
embarcado, pudesse reclinar-se à mesa dos seus festins iniciados bem cedo,
enquanto costeava as praias da Campânia ao som de cantos e coros.”

Calígula construiu também inúmeras casas e vilas, sem olhar a despesas,


mostrando acentuada predilecção por terrenos inacessíveis e ridiculamente
situados. Levantavam-se montanhas artificiais sobre planícies. Mas fazia
aplanar as cumeadas de montanhas já existentes, suprimindo-as. Metiam-se
rochedos no mar, em pontos onde jamais houvera nenhum, trabalhos estes
todos conduzidos em ritmo vertiginoso, para se satisfazer quanto antes o
transitório capricho do Imperador.

Para o financiamento dessas obras, levantava o dinheiro necessário dirigindo


leilões nos quais quem comparecia era obrigado a adquirir, a preços

Orgia grega, 480 a.C.

Sodomia, fellatio e sado-masoquismo na Grécia Antiga, 510 a.C.


Sátiros numa orgia, 500 a.C.

«Tempos Antigos», uma orgia romana imaginada por Edouard-Henri Avril

«Ninfas e Sátiro», jjà

a orgia no imaginário da mitologia romana•

Pormenor de uma orgia romana imaginada por um autor anónimo

Uma orgia na idade Média, ilustração d’«O Livro das Horas», de Valerius Maximus,
Séc. XV

Gravura original do livro «A Academia de Senhoras», 1680

Gravura original do livro «Teresa, a Filósofa», atribuído a Diderot, 1748

Cenas de deboche

num convento,

atribuídas a C. Conrad

fantásticos, objectos de que não tinha nem o mais vago desejo de possuir.

Inventou impostos novos e grotescos, sobre alimentos, processos legais, até


sobre prostitutas, ”estabelecendo que aquelas que já tivessem sido prostitutas
incidissem sob esse imposto público, do qual nem o próprio matrimónio actual as
isentaria”.

”Como que para não deixar de cometer espécie alguma de absurdo, abriu um
bordel no seu próprio palácio, tendo para isso destinado um certo número de
aposentos, os quais mobilou de acordo com a imponência do solar e onde
deveriam permanecer disponíveis várias matronas e diversos jovens livres de
nascença.” Em seguida, enviou angariadores a correrem a cidade em busca de
”candidatos” e, aos que acudiam ao apelo, emprestava dinheiro a juros
exorbitantes.

A principal obsessão de Calígula era ser cruel e duma forma de crueldade tão
remotamente afim de sexualismo que só a título de tentativa é que nos
permitimos incluí-la neste rol. Tinha perfeita consciência da sua insânia, tanto
que, a despeito da sua agressividade e da sua pueril presunção, ou
possivelmente como causa das mesmas, não era insensível à crítica da sua
pessoa. Sendo alto, pálido, com uma calvície incipiente e excessivamente
hirsuto de corpo, não consentia que ninguém o olhasse de plano superior ou que
empregasse a palavra ”bode”, e fazer uma dessas coisas era cometer crime de
morte e sofrer as consequências. Atormentava-o a insónia, perseguiam-no
alucinações, e assim é que se reparou amiúde como temia a aproximação das
trevas da noite. Em suma, teve uma vida infeliz e odiosa por quaisquer padrões
de julgamento, tal a sua anormalidade se nos apresenta suficientemente
desmedida para que possamos deixá-lo impune agora.

Cláudio, seu sucessor, conquanto indiscutivelmente um extremado apreciador


de mulheres, vinhos e comezainas, não parece ter combinado os seus prazeres
eróticos com os gastronómicos. Era uma figura estranha e enigmática, tímido e
estudioso na juventude, obcecado com um perpétuo receio de ser deposto ou
assassinado, quando já tinha sido coroado imperador. Dele se diz que partilhara
o gosto de Calígula pelos interrogatórios sob tratos inquisitoriais levados a
efeito na sua presença. A sua atitude para com a plebe parece ter alternado
entre exibições de energia e gestos espectaculares visando ganhar uma
popularidade fácil. Deu muitos banquetes memoráveis pelas proporções, sendo
que, num deles, realizado sobre as margens do canal, para comemorar a
drenagem do lago Fucino, quase se afogou em companhia dos seus seiscentos
convidados. Em certa época acarinhou a ideia de publicar um édito especial,
permitindo que se expelissem, em sua presença, gases intestinais e arrotos,
porque lhe disseram - e, pelo visto, acreditou - que um dos seus comensais por
pouco não morrera em virtude de ter querido reter uma dessas expansões
internas. Bebia, nos seus banquetes, com frequência, enormes quantidades de
vinho sem mistura, até perder os sentidos, caindo de costas como um fardo, e a
roncar fortemente num sono de bêbado. Metiam-Ihe, então, goela abaixo, uma
pena de ave, ”que o fizesse devolver a carga excessiva que tinha no estômago”.
É de crer que terá sido olhado pelos seus súbditos como uma figura assaz
irrisória. Proporcionou ao povo numerosíssimos espectáculos públicos e veio a
morrer, ao que se diz, de um veneno que lhe ministraram num prato de
cogumelos, iguaria por que era desordenadamente guloso. Durante um certo
tempo esteve casado com a fantástica Messalina, cuja ninfomania há que se
considerar como psicopatológica. Ela perseguia, com alvoroço maquinal, todo o
homem que lhe aparecia à frente, e àqueles que não cedessem aos seus
encantos, servia ela todo o maligno engenho do seu despeito que lhe estivesse
ao alcance. No fim de contas, após ter manifestado verbalmente o seu apoio à
ideia de poliandria, coerentemente desposou um segundo marido, Sílio,
achando-se ainda casada com Cláudio, e reuniu em seu redor uma espécie de
pequena corte de gente estróina e estouvada.

”Entretanto, bêbada de desmesurados e desbragados prazeres, Messalina


encontrava-se na casa de Sílio, o seu novo marido, e cercara-se de uma
tropiIha de favoritos e mulheres, gente tão devassa quanto ela mesma, num
festim de fantasias. Aí celebraram a festa de Baco, acompanhada de todos os
gestos infames e todas as cerimónias impuras que se desenrolavam nas
bacanálias.” O festim durou vários dias seguidos, até que Cláudio, tendo
conhecimento da coisa, regressou de Óstia para pôr-lhe cobro.

Nero tem sido considerado por alguns como o arquétipo da malvadez e


representante de todos os males que se apontam como causadores do colapso
do Império romano. É certo que ele exibiu uma ampla e variada messe de
características indesejáveis; mesmo assim, quero crer que seria erróneo dá-lo
como tão essencialmente insano quanto Calígula, ou tão nitidamente odioso.
Teve a desgraça, que seus súbditos tiveram de compartilhar, de ter sido criado
no meio de circunstâncias tais, e de trazer em si uma hereditariedade tal, que
não poderiam, aquelas e esta, deixar de arruinar a vida e felicidade de quem
quer que fosse. Infelizmente para ele, bem como para Roma inteira, ocupava
uma posição onde lhe era possível realizar todo e qualquer desejo que lhe
acudisse, por mais fantástico que fosse, e, totalmente incapaz de perceber que
nem todos os impulsos que assaltam uma pessoa a conduzem à sua
autoconservação, atirou-se às cegas num caudal que o arrastaria para o
desastre.

Os seus antepassados, dum e doutro lado, eram todos marcados pela tara
negrejante do sadismo, mas, embora isso seja um factor relevante
considerando-se a veia dessa perversão que Nero viria a revelar
subsequentemente, a culpa deve ser atribuída primordialmente à dominadora e
perniciosa figura da mãe, sob cuja influência ele permaneceu entre as idades
de três e onze anos. Não era preciso mais nada para completar o malfeito,
exceptuando-se as duas coisas que, sem demora, lhe foram servidas: ter sido
colocado, desde a sua puberdade, sob a tutela do Séneca, austera figura,
porém indivíduo de fraca vontade e fortes inclinações homossexuais, o qual lhe
serviu de preceptor, desde aí até à adolescência do discípulo, quando este
desposou uma jovem escolhida pela mãe como sendo pessoa com o improvável
dom de lhe despertar entusiasmo, erótico ou de outro género qualquer, e que
pudesse porventura contrabalançar a influência maternal sobre ele.

Pouco importa, porém, a quem caberão culpas, o facto é que Nero foi,
indubitavelmente, um bissexual e desde tenra idade, tanto assim que, a esse
respeito, é interessante citar-se aqui uma observação de Suetónio: ”Tenho
ouvido de diversas procedências dizer que Nero estava convencido de que
ninguém era casto em parte alguma do corpo, homem ou mulher, e que a maior
parte das pessoas apenas dissimulava os seus vícios sob hábil fingimento.”

Já desde os começos do seu reinado, conforme nos diz Tácito, Nero passava as
noites nos mais extraordinários entretenimentos. Vestindo-se de escravo,
metia-se pelos mais sórdidos recantos da cidade, onde percorria as ruas, os
bordéis e as tabernas, a cometer toda a espécie de agressões e roubos. A
princípio, sofreu uma dose de contundente reacção verbal e física à sua
abusadora conduta, até que afinal se espalhou a informação de que o estróina
outro não era senão o próprio César e, daí em diante, amparado pela imunidade
resultante, só agravou e estendeu por mais vastos âmbitos as suas
depredações, passando à violência sexual tanto contra mulheres como contra
homens. Desnecessário é dizer-se que não houve escassez de oportunistas que,
percebendo as possibilidades dessa situação ímpar, se organizaram em bandos
de falsos cortesãos para andarem a cometer desatinos pelas ruas,
acobertando-se sob a imunidade que lhes proporcionava a assustada dúvida dos
cidadãos. Ninguém ousava resistir-lhes, porque se o fizesse era pena de morte
na certa, ou, pelo menos, o suicídio compulsivo, poucos sendo os ousados que
arriscavam oferecer resistência por suspeitarem do engano.

As tendências homossexuais de Nero foram-lhe inequivocamente implantadas,


e com que firmeza, ainda na sua infância; no entanto, ele não deixou de ser
vítima também da sua gula por mulheres. Efectivamente, segundo Tácito, a
deterioração do carácter em Nero inicia-se na altura em que o empolgou um
irrefreável desejo de possuir Sabina Popeia, dama corrupta então em moda.
Bela, calculista e fundamentalmente desagradável era essa mulher; ele
afastou-a do marido, homem que viria a ser mais tarde o Imperador Otho, o
qual se permitira a suprema tolice de, num desmando suicida de palavroso
entusiasmo, tecer ditirambos de louvores à esposa e respectivos encantos, em
presença do omnipotente e egocêntrico César. A própria Popeia, hábil
dominadora das suas emoções e sabendo muito bem o que queria, só consentiu
em ceder-lhe sob uma condição: ser feita Imperatriz de Roma. Seguiu-se um
feroz e incrivelmente áspero antagonismo entre as duas megeras - Agripina e
Popeia. Era uma simples coincidência a semelhança moral entre sogra e nora,
mas real; tanto que, ao observar Suetónio que Nero havia tomado por esposa
uma prostituta, não há margem para grande dúvida de que esse autor acertara.
Popeia foi a vencedora, a despeito dos arreganhos da oposição que lhe moviam
não somente Agripina, mas inclusive o povo romano, ressentido do malogro de
Octávia. Mas o gosto da vitória não lhe durou muito. Três anos depois morreu
ela, após Nero, ao que se disse, lhe ter aplicado um pontapé, num acesso de
cólera pueril e quando ela se achava grávida.

Não existem dúvidas quanto ao facto de Nero possuir fortes pendores


estéticos. Esse é mesmo um dos aspectos patéticos da sua estranha vida, pois,
já que os seus impulsos escapavam a qualquer necessidade de sublimação, a
despeito dos seus frequentes e irrisórios esforços para se impor como actor,
dançarino e cantor, bem como executante de instrumentos musicais, ele sentiu-
se obrigado a transformar essas tentativas em outras formas, mais ao alcance,
se bem que menos gratas à sua ambição, e artisticamente mais relevantes.

Os espectáculos por ele apresentados na arena eram extraordinários e cheios


de imaginação. Deixou de se entregar às suas curiosas fantasias à noite e à
socapa e começou a banquetear-se em público sobre a arena do Anfiteatro
Máximo, fazendo funcionar como serviçais do festim todas as rameiras da
cidade. Prolongava essas folias do meio-dia à meia-noite, restaurando-se, a
intervalos, com banhos quentes, se era no Inverno, ou gelados com neve das
serras, durante o Verão. Sempre que navegava rio abaixo, descendo o Tibre até
Óstia, ou costeava o golfo de Baiae, havia tendas armadas para os deboches,
situadas a espaços regulares pelo litoral e a cujas entradas se postavam
matronas que, à maneira de alcovitagem e hospitalidade, lhe imploravam que
desembarcasse ali. Então, ele fazia-se convidado para jantar, juntamente com
os amigos que levava. Só numa dessas tendas
de pouso gastaram-se quatro milhões de sestércios apenas em rosas. Ele
estuprou uma virgem vestal e fez castrar um dos seus favoritos, chamado
Sporus, ”no afã de transformá-lo em mulher”. com esse infeliz assim mutilado,
submeteu-se a uma espécie de cerimónia nupcial, após a qual ”fê-lo trazer como
se fora uma recém-desposada à sua casa e aí o tratou como se o coitado fosse
a sua mulher”... ”com esse Sporus andou ele para todo o lado, junto a si numa
liteira, comparecendo às solenes assembleias e feiras da Grécia e, depois, pela
própria Roma, durante as festas das Sigilárias, envolto o castrado em
pomposos trajos de imperatriz e a beijá-lo de vez em quando, ao longo de todo
o trajecto.”

”Era coisa assente e aceite por todos que ele nutria uma incestuosa paixão pela
mãe, dizendo-se que, sempre que viajava em companhia dela, abandonava-se, na
liteira, a esse prazer, conforme o indicavam berrantemente certas manchas
nas suas roupas.” A efectividade de tais relações é um facto confirmado pelos
relatos de Tácito e Cláudio Rufo (cuja obra, citada por Tácito, se perdeu).
Nero estava - a acreditar em Suetónio - cada vez mais caprichoso na busca dos
seus prazeres.

”De tal modo prostituiu ele a sua própria castidade, que tendo já conspurcado
quase que todas as partes do seu corpo acabou por arquitectar uma espécie de
jogo no qual, cobrindo-se com a pele de alguma fera, fazia-se soltar de dentro
de uma jaula e ia atacar as partes pudendas de homens e mulheres amarrados a
estacas e, por fim, tendo saciado sua louca luxúria, era, por sua vez, ’servido’
pelo seu liberto Doriforo; isto, porque estava casado com este pela mesma
forma como se casara, mutatis mutandi, com o castrado Sporus; e ia mesmo ao
extremo de imitar os gritos e lamentações de uma donzela ao ser desflorada.”

Não haverá outro exemplo tão significativo e interessante do comportamento


sexual dos Romanos. Desejo chamar a atenção para o facto de aqui se
encontrar confirmada a sugestão de no sadismo dos Romanos se ter
incorporado um elemento masoquista e autodestrutivo.

Os homens já tinham percorrido um longo caminho desde os remotos dias da


homérica Hélade.

O já referido aspecto do carácter de Nero desponta, também, sob uma outra


forma, como seja o seu frenético e bem sucedido esforço constante para se
descartar do dinheiro tão logo lhe chegava às mãos. Louvava Caio, seu tio, pela
presteza com que soubera liquidar a fortuna de Tibério que lhe fora deixada
por herança, a ele Caio. Quanto às suas próprias despesas, essas eram incríveis.
Como paradoxal contraste, ou talvez como forma de equilíbrio para os seus
impulsos sádicos, ele esbanjava dinheiro em lotaria: jogava às multidões
bolinhas de metal em que se liam números, as quais davam a quem as apanhasse
o direito a receber quantias em dinheiro, escravos, gado, barcos, casas e
terrenos. Prodigalizava incontáveis doações em moeda a quem quer que
conseguisse atrair sobre si a caprichosa aprovação dele. Muito pouco depois do
grande incêndio de Roma (do qual não há provas que tenha sido Nero a
maquinar, ou sequer tenha aplaudido), construiu ele a sua imensa Casa Áurea,
notável principalmente, senão exclusivamente, pelas enormes dimensões que
projectava para todas as direcções do quadrante. Um lago tão grande como um
mar; jardins contendo animais selvagens, a par de outros, domésticos; uma
estátua de Nero, medindo quarenta metros de altura; salões de refeições
cobertos de ”tectos de marfim ornados de frisos gregos, cujos painéis se
abriam para deixar cair sobre os comensais uma chuva de flores, e com
tubulações que borrifavam perfumes no ambiente. O triclínio principal era de
formato circular, e girava constantemente, dia e noite, como a abóbada dos
céus... Por todo o resto da casa, tudo era folheado a ouro e adornado com
pedras preciosas e madrepérola”. O vestíbulo onde se achava a estátua do
imperador era tão desmesuradamente vasto que ”comportava uma tríplice
colunata de mais de um quilómetro e meio de extensão”.

A violência e a megalomania representaram um papel progressivamente mais


destacado, na sua vida, até que à idade de 31 anos se viu constrangido a
suicidar-se, acto esse que, após muito adiar, acabou por executar com a ajuda
do seu secretário, para escapar de ser açoitado até morrer, que foi a
penalidade que lhe impusera o Senado por decreto.

Pensa-se que o organizador dos prazeres de Nero era Petrónio, o autor do


Satyricon, personagem que Tácito nos pinta como sendo: ”Um homem que
passava os dias a dormir e as noites nos afazeres comuns e nos habituais
recreios da existência. Ao contrário dos outros que, quase todos, trilham a via
da própria ruína, nunca foi um devasso ou um perdulário, antes sim um
requintado artista da extravagância.”

Se tal era o caso, como de resto parece confirmá-lo a índole do seu Satyricon,
surpreende que não tenham as recreações de Nero apresentado carácter mais
subtil e mais requintado. Petrónio não fazia grande conceito de Nero: provocou
o despeito de Tigelino, tendo-se revelado melhor mestre do que este em
matéria de devassidões, daí lhe advindo a imposição de suicídio compulsivo. No
seu testamento, narrou os desatinos imperiais, juntando mais um rol de
calamidades de César, a lista das suas mulheres e o relato de augustas
inovações em assuntos lascivos; em seguida, selou o documento, enviou-o a
Nero, cujo anel de sinete quebrou para impedi-lo de ser utilizado em
detrimento de mais alguém.

Vitélio, homem muito dado à comida e à bebida, e que se adestrara em vomitar


à vontade, com o fim de se proporcionar maior capacidade para continuadas
ingestões, era igualmente animado daquela volúpia da crueldade, de saborear a
contemplação dos horrores da arena, de assistir às inquisições pelos tratos e
polés, coisas essas com que já não nos surpreendemos, e ainda agora acabámos
de travar conhecimento com os Romanos. Ele passara junto de Tibério, em
Capri, a sua meninice e o desabrochar da sua juventude, ali ”ficando marcado
para todo o sempre pela alcunha da ’Spintrial’ (Rosquinha?)”.

Grande gastrónomo, inventou uma iguaria a que deu o nome de ”Escudo de


Minerva”. Consistia este prato numa caldeirada de fígados de percas e,
misturados com o peixe, miolos de faisões e pavões, línguas de flamingos e
miúdos de lampreias. Quanto aos seus hábitos sexuais, disso pouco se sabe
hoje. Foi assassinado em circunstâncias da mais pavorosa crueldade.

Já Domiciano nos aparece como uma figura mais interessante, ainda que
desalentadoramente mórbida. Diz Suetónio que, no começo, ele tinha horror a
ver derramar sangue, mas nos primeiros tempos do seu reinado tinha por
hábito trancar-se diariamente num quarto durante uma hora, e o seu
passatempo, durante essa reclusão voluntária, era apenas apanhar moscas e
”apunhalá-las” com um alfinete. Não seria de esperar que um indivíduo com um
gosto tão doentio limitasse durante muito tempo mais, a simples moscas, a
escolha das suas vítimas, e assim é que as crueldades desse Domiciano
provaram, depois, ser de ordem ao mesmo tempo tão subtil quanto desmedida.
Organizou muitos espectáculos públicos, particularmente simulando batalhas
navais e era, além disso, um laboriosíssimo administrador da lei. Proibiu às
prostitutas o uso de liteiras e puniu com morte a imoralidade sexual ocorrente
entre as virgens vestais. Na sua vida íntima, ’foi um sexuado absolutamente
desregrado, tendo o costume de mencionar a cópula usando, com revoltante
canalhice, a expressão ”luta da cama”. Também ele, pelo menos assim o
disseram, gostava de depilar as suas concubinas com suas próprias mãos e,
assim, passava os longos momentos das cálidas horas do estio italiano deitado
num leito, alegremente empenhado nesse serviço. (Era hábito quase geral,
entre as mulheres de então, desfazerem-se dos seus pêlos púbicos,
chamuscando-os ou simplesmente arrancando-os duma vez). Tinha ele também o
costume de sair a nado ”acompanhado das meretrizes mais sórdidas da cidade”
e tomou-se, também, responsável indirecto pela morte da sobrinha, cuja
gravidez, obra sua, aliás, insistira com ela para interromper através de um
aborto forçado.

Um episódio notável da vida deste Imperador, e que não consta de nenhum


outro cronista da época, porém indubitavelmente merece bastante ser trazido
à baila aqui, é o seguinte, contado por Dio(n) Cássio:

”Domiciano dispunha de um aposento inteiramente recoberto de tapeçaria


negra - tecto, paredes e piso - e mobilado de bancos pretos e sem almofadas.
Aí fazia ele acomodar os convidados durante a noite, sem a ajuda de serviçais.
Ao lado de cada um achava-se uma lápide tumular, tendo inscrito o nome do
hóspede, legível, a inscrição, à luz mortiça de pequeninas lâmpadas, das que se
penduram, votivamente, sobre os túmulos. Subitamente, vinham uns formosos
moços, nus e pintados de negro como fantasmas: punham-se a rodear os
hóspedes, num bailado espectral e, por fim, paravam ao pé dos convidados. Eis
que então apareciam comidas e bebidas - mas um repasto de mortos - tudo
preto e servido em baixela igualmente negra. Os convivas tremiam aterrados; é
que já esperavam cair-lhes em cima, a qualquer momento, um golpe mortal; no
tenebroso aposento reinava um silêncio mortal, apenas Domiciano falava, e
somente para discorrer sobre assassinos e mortes súbitas e violentas. Até que
por fim, farto, ele dava permissão aos seus apavorados hóspedes para se
retirarem. Mas, ainda antes disso, mandava embora os servos destes, que
estavam à espera dos seus senhores lá fora no pátio, para que os amos fossem
carregados ou levados de carro para suas casas por indivíduos que lhes eram
inteiramente desconhecidos - o que ainda mais lhes acrescia o terror.
Finalmente, quando todos tinham alcançado as suas residências e já estavam
um tanto refeitos do susto, era-lhes anunciada a presença dum mensageiro
imperial. Aí é que cada um pensava definitivamente que lhe soara a última hora.
Mas ao invés, recebia de presente a tal pedra tumular que lhe coubera no
lúgubre festim (e que, por sinal, era de prata), mais alguns outros mimos,
inclusive as negras gamelas, pratos preciosos de alto valor e, por cima de tudo
isso, até o efebo que lhe inspirara ódio mas, agora, lhe aparecia limpo de piche
e belamente ataviado para festa. Tais eram as compensações que lhes estendia
a magnanimidade imperial pelas mortais agonias que tinham padecido ao longo
de toda a noite anterior. E tais eram os festins que Domiciano promovia para
celebrar as suas vitórias (no seu dizer) - ou antes (no dizer do povo) em honra
dos que haviam perdido a vida na Dácia e em Roma.”

Em conclusão e para completar a lista dos imperadores, tomemos Heliogábalo,


em cuja extraordinária personalidade o elemento erótico na religião atinge o
seu ponto mais desatinado.

Desde rapaz, aos 14 anos, foi e permaneceu para sempre o sacerdote dum culto
”em que se combinavam obscenidade e misticismo, sem contudo se fundirem”.
Quando, em consequência da energia e ausência de escrúpulos maternos,
chegou a Roma, tentou introduzir aí o seu culto sírio e excluir todos os demais.
Acreditou-se geralmente, até agora, que a sua divindade era Baal, o deus-Sol
entre os sírios, cujo fundamento acentuadamente fálico se evidenciava numa
estátua em Émesa e constituía aquele elemento, representado numa grande
pedra negra e falo-cónica. Se fossem necessárias mais provas para esta
hipótese, lá estava o templo dessa divindade em Roma, flanqueado por dois
falos colossais.

Falando de Heliogábalo, disse Herodiano, ainda que a informação certamente


não seja secundada pelo testemunho das efígies nas moedas, que fora um
mancebo notavelmente formoso. ”Quando sacrificava e executava em tomo do
altar a sua estrangeira dança ao som das flautas e pífaros e outros
instrumentos, atraía os olhares de todos os homens... especialmente dos
soldados, que sabiam ser o jovem sacerdote oriundo da realeza.”

Ele trajava vestes femininas, de alto custo, cada vez que ia celebrar os ritos
do seu deus, o que fazia em presença de todo o Senado reunido em assembleia-
geral, bem como de todos os dignitários de Roma. Nessas cerimónias, abatia
uma quantidade enorme de animais, mergulhava as respectivas carcaças em
perfume e, sob o vozear de vários instrumentos musicais, cabriolava os seus
bailados em volta do altar, rodeado de raparigas sírias à guisa de coro de
acólitos. Uma ou outra vez, sacrificavam-se também criaturas humanas,
rapazes que só pouco antes haviam atingido a puberdade, cujos órgãos genitais
eram então atirados à pira sacrificial.
Concebeu esse César a abstrusa ideia de fazer o casamento do seu deus com
uma deusa escolhida para noiva. E a honra da escolha recaiu em Juno,
celebrando Heliogábalo, em pessoa, as ritos esponsalícios com a devida pompa.

Pelo Verão, a divindade mudava de residência, passando de um templo para


outro. A mudança efectuava-se numa carreta marchetada de joalharia, que a
própria divindade guiava. Heliogábalo ficava em frente da viatura, a correr de
costas durante todo o tempo, segurando os bridões da parelha, e tendo um par
de soldados a segurá-lo.

Foi ficando cada vez mais francamente enamorado do seu deus, e é um facto
que se pode frequentemente observar os padres de um culto masculino a
verem-se a si próprios femininos, tal como ocorria com Heliogábalo, sem dúvida
alguma. Desposou uma virgem vestal, justificando-se assim: Ӄ um acto de
coerência, numa religião, o sacerdote desposar uma sacerdotisa”; mas muito
rapidamente se livrou da esposa, dado que os seus gostos sexuais, como se terá
percebido, se voltaram para outro quadrante. Por algum tempo acariciou a ideia
de se fazer castrar, mas acabou por se contentar com uma simples circuncisão.
À noite dirigia-se a um bordel, punha de lá para fora as meretrizes e,
colocando uma cabeleira, ficava à porta do estabelecimento dirigindo aos
passantes o clássico convite. Tempos depois, montou no seu próprio palácio uns
aposentos nos quais se entregava a fantasias do mesmo género.

Quis persuadir os físicos da corte a fazerem de si, mediante cirurgia, nada


menos que uma mulher, prometendo-lhes vastas somas em dinheiro se o
operassem com êxito. Não é, pois, de espantar que tenha havido no seu
carácter um elemento masoquista. Conforme refere Dio(n) Cássio, ele gostava
de se fantasiar de mulher, muito em especial de mulher desbragada no vício,
fazendo todo o possível para ser ”apanhado” em flagrante delito por um tal de
”seu marido”, para que este lhe aplicasse uma tremenda tareia.

Ele considerava todas essas anomalias do seu comportamento, sem dúvida,


apenas um modo de prestar culto ao seu deus fálico, o que, em certo sentido,
de facto o era. Duma forma ou doutra, a sua fé no seu deus situava-se num
plano diferente daquela do grego perante Dionísio. Ele punha esta fé em
prática mais conscientemente do que o faria qualquer grego, como forma de
expressar os seus desejos sexuais - não se esquecendo, acima de tudo, aquele
elemento de masoquismo - ou seja: a assunção do papel passivo, feminino em
razão de complexos de culpa concernentes ao masculino.

Este procedimento despertou, finalmente, a cólera e, também, o desprezo


tanto do exército como do povo. Foi, pois, assassinado juntamente com todos os
da sua casa, sendo o seu cadáver atirado às águas do Tibre.

Embora tenham sido o povo mais espectacular, foram os Romanos também,


pode assim dizer-se, o mais desprezível entre os que tenham porventura
tentado realizar a orgia-experiência. A razão para avançar semelhante juízo,
já a esbocei atrás. Exceptuando-se de entre eles alguns poucos hedonistas
verdadeiros, tais como Petrónio, nenhum possuía a mínima autêntica
compreensão da verdadeira natureza do prazer. Carentes de graça e elegância,
imbuídos de desdém para com aquelas acções que apenas fingiam admirar, não
é de estranhar que transpire o seu comportamento com o odor suspeito do
desejo de morte de que cogita a psicopatologia. Latente ou não, na sua psique,
esse mórbido desejo veio mais tarde a traduzir-se em facto consumado com o
advento da era cristã...

CAPITULO TERCEIRO

IDADE MÉDIA E RENASCENÇA


Embora o seu comportamento traísse um certo grau de sentimento de culpa
relativamente ao elemento sádico contido na sua cultura, os Romanos davam a
esse elemento pouco valor, comparativamente, nos seus desbragamentos
sexuais. No entanto, o seu sadismo era imbuído de um complexo de culpa sexual
e, na sua cultura, podemos distinguir, tremeluzindo, os primeiros indícios de um
conceito novo - o conceito de pecado.
Entre as ruínas do Império em desmoronamento começara a expandir-se um
punhado de homens portadores de uma nova maneira de encarar a vida, da
continuação progressiva daqueles primeiros lampejos de sentimento de culpa,
poucos ainda; e esses homens e os seus sucessores dispuseram-se a impor aos
displicentes, e ainda então primitivos, povos da Europa os seus severíssimos e
coibidores códigos de comportamento, com resultados que ninguém poderia
dizer desejáveis. Os europeus, nos primórdios dessa época, fruíam de uma
extraordinária liberdade sexual, de tal sorte que daquela operação de
refreamento resultou um titânico desastre.

No começo, a sociedade, e dela não se excluindo os próprios padres, muito


simplesmente encolheu os ombros às proibições, que não eram, de facto,
inflexíveis. Daí, desenvolvendo-se consideravelmente a acção da Igreja e
começando a firmar-se a sua patrística mentalidade-culpa que se esforçava por
impor a uma sociedade tolerante e matrística, a energia sexual do povo foi
transformada em toda a espécie de modalidade indesejável de comportamento
psiconeurótico, como, por exemplo, ataques histéricos, alucinações eróticas,
íncubos e súcubos, caça a feiticeiras e bruxedos (nessa mesma sequência),
flagelomania, impotência psíquica, etc. É claro que continuava a haver quem não
fizesse nenhum caso das contenções patrísticas, mas, pondo-se de parte o
perigo que corriam de incidirem sob sanções legais punitivas, os homens que
assim procediam tendiam talvez a entrar em desmandos contra a Igreja,
deixando-se levar a formas de comportamento em que, sob outras
circunstâncias, não se empenhariam.

No início dessa era, como já o dissemos, imperava um sexualismo mais ou menos


descomplexado. Os anais e actas jurídicos estão pejados de casos de
condenações por crimes sexuais, tais como: fornicação, adultério, incesto e
homossexualidade. Queixava-se Bonifácio no século VIII de que: ”Os ingleses
desdenham decididamente o matrimónio, decididamente se negam a ter esposa
legítima e continuam a viver na libidinagem e no adultério, à maneira de
alimárias, rinchando e zurrando o seu cio como os cavalos e os asnos.” Certo é
que havia então uma tendência geral para se tratar o casamento com
leviandade - considerando-se o estado matrimonial como coisa essencialmente
temporária e vendo-se num marido ou numa mulher casada alguém que faz uma
compra sujeita a devolução se não satisfizer. A virgindade era vista como coisa
de medíocre valia e a bastardia, essa, de modo nenhum era olhada como
vergonha, antes tida como uma honra, podendo inferir-se dela que talvez algum
esforçado cavaleiro terá dormido com a mãe do bastardo. As beberagens
afrodisíacas tinham sempre grande procura, ainda que a crença na sua eficácia
se baseasse - como ocorria no caso da raiz de certa tuberosa que, grosso
modo, se assemelha a testículos - no princípio de algum poder mágico ou
simpatia. O vestuário da época reflectia a moral reinante, pois era
fantasticamente indecoroso. Os homens vestiam um gibão curto, o qual não lhes
cobria nem as nádegas ou as partes sexuais - estas últimas traziam-nas eles
metidas numa espécie de saco apertado a que se dava o nome de braguette
(braguilhas) e que, mais do que para disfarçar-lhes o volume, antes os punha em
evidência. As mulheres usavam vestidos muito apertados nos quadris e
acomodavam os seios tão alto sobre o corpete que ”uma vela podia ficar erecta
sobre eles”. Recato, no sentido usual do termo, era-lhes inteiramente
desconhecido. No ano de 610, a rainha do Ulster e suas damas de companhia
saíram todas a receber Chuchulainn nuas da cintura para cima e, ainda mais,
levantaram as saias ”de modo a exporem as suas partes íntimas”, para darem a
entender quão profundamente desejavam homenageá-lo. A doutrina
eclesiástica sobre assuntos de sexo não era aceite pela classe médica, a qual
sustentava que a continência era uma atitude desadequada e nada salutar e,
assim, recomendava aos seus doentes maior assiduidade nas relações sexuais.
Nos seus primeiros tempos, a Igreja ainda via com bons olhos a prostituição,
dando-lhe o seu valor S. Tomás de Aquino disse da prostituição ser esta um
coadjuvante necessário da moralidade - ”há que prover-se de cloaca um palácio,
para que todo este não cheire fetidamente”. É certo que a população de
prostitutas era, então, numerosíssima, e mais do que um dignitário da Igreja
seguiu o exemplo do bispo de Winchester, pois, vendo na prostituição um bom
emprego de capital, passaram ao lado do aspecto moral da questão; daí se
origina o eufemismo de ”galinhas de Winchester”2 com que se designam as
prostitutas.

A imagem que fazemos do cavaleiro andante medieval, modelo de castidade,


respeitador e protector de donzelas aflitas e, sob todos os aspectos, um
perfeito fidalgo, é pura criação peregrina da imaginação dos romancistas da
História, cristãos e vitorianos. Dizem-nos Traill e Mann: ”A julgar pelos poemas
e romances daquela época, a primeira ideia que assaltava todo e qualquer
cavaleiro que deparasse com uma dama desprotegida era violentá-la”; e Gawain,
o falado modelo de fidalguia do cavaleiro, assim o fez à pobre Gran de Lis, sem
ligar aos gritos e esperneios com que ela reagia, dado que a moça recusara o
seu convite para dormir com ele. A despeito das austeras interdições da
Igreja, a sociedade celta permaneceu essencialmente tolerante para com os
factos de ordem moral e no seu carácter em geral, sendo que, tal como já
ocorria no seu período pré-cristão, grande parte da devassidão era de
iniciativa das próprias mulheres. É de espantar a insignificância do número de
clérigos que se mostrava capaz e animoso de tragar o cálice da sua própria
mezinha moralística, de modo que, à semelhança das suas ovelhas, que se
esforçavam por bem encaminhar, eles mesmos permaneciam como que imunes
ao sentido de culpa.

Archembald, bispo de Sens no século X, ”tomando-se de amores pela Abadia de


São Pedro, tocou de lá para fora os monges e em seu lugar estabeleceu um
harém de concubinas no refeitório, enquanto no claustro acomodava os seus
molossos e falcões”.

Foi uma infindável cadeia de lamúrias o que resultou das tentativas


empreendidas pela Igreja no afã de fazer observar pelos seus ministros a lei
do celibato. Normalmente, os paroquianos de um padre apoiavam-no nas suas
exigências de possuir uma esposa, porquanto, doutra maneira, sabiam-no muito
bem, ele trataria de procurar esse conforto junto às suas próprias esposas.
Henrique In, bispo de Liège, sabia-se, tinha sessenta e cinco filhos ilegítimos,
tanto que, na Alemanha, a palavra ”Pfaffenkind” ficou geralmente conhecida
como designação para os ”bastardos”. Ojuzprimae noctis, o direito

No original ”geese”, gansos, vocábulo epiceno em português. (N. do T.).

à primeira noite, ou de pernada (que, sem sombra de dúvida, prevaleceu, diga-


se o que se disser em contrário, pois bem o demonstrou Ducange), foi imposto
pelos frades de São Teodardo aos habitantes de Saint-Auriol. De nada valeu a
pressão da Igreja a fim de conter a energia sexual: esta continuou campeando
imperturbável e irrespondivelmente e, o que é pior, em ritmo algo
estarrecedor. Mas os tempos eram outros. As reformas hildebrandinas faziam
incidir também sobre o clero secular, tanto quanto já se fazia com o regular, a
exigência de celibato, e é mais ou menos por essa ocasião que se vê a alteração
para pior na sanidade sexual das gentes. A abstinência de actividade sexual
conduz a uma quase exclusiva preocupação mental com o assunto, daí a causa de
o povo mostrar sintomas psiconeuróticos e alucinações sexuais, numa escala
verdadeiramente espantosa. Um surto pavoroso de íncubos e súcubos invadiu as
alcovas da Europa. Tratava-se de visitantes nocturnos, relacionados, na mente
de toda a cristandade, com bruxaria e demonismo, duendes que se permitiam
liberdades com a pessoa que lhes caía como vítima, diabruras essas sempre de
natureza sexual. E eram particularmente frequentes, corriqueiras, nos
conventos de freiras, parecendo também que alastravam rapidamente.

Pode fazer-se alguma ideia do que seriam esses visitantes, por ilação da
seguinte história:

Certo padre, de nome Goerres, foi mandado para exorcizar uma rapariga de 20
anos que fora perseguida por um incubo. Relatou o sacerdote:

”Ela contou-me, com toda a franqueza, tudo o que o espírito tinha feito com
ela. Quis-me parecer, após ouvir o que tinha para me dizer, que, a despeito das
suas negativas, ela concedera ao seu demónio uma espécie de consentimento
indirecto. Porque o facto é que ela sempre se sentiu avisada das aproximações
do maligno por uma violenta excitação dos órgãos sexuais; ao que, em lugar de
se refugiar na oração, antes corria para a sua câmara, a estirar-se no leito.
Tentei fazer despertar nela o sentimento da confiança em Deus, sem êxito,
porém, dado que ela mais parecia era temer que eu a libertasse da sua
possessão.” É evidente que esse Goerres não era nenhum tolo; até mesmo
alguns dos sabedores físicos da época reconheciam ou pelo menos já
suspeitavam - a verdadeira origem de tais fenómenos, e Chaucer faz notar,
com secura, que desde o aparecimento dos frades errantes (que gozavam da
fama de terem comportamento sexual promíscuo com esposas solitárias de
maridos ausentes) os tais visitantes de pesadelo foram ficando mais raros. Mas
em geral estes eram considerados fenómenos diabólicos. A existência de
feiticeiras apareceu como suposição natural e, em consequência, seguiu-se
inevitavelmente a fúria colectiva das caças às bruxas.

De vez em quando, as tais visitações dos íncubos deixavam o seu testemunho


em alguma gravidez fantasmagórica.

Para aqueles dotados de personalidade mais forte, entre os supostamente


sujeitos ao celibato ex officio, sempre havia numerosos recursos por onde
arranjar a sua satisfação sexual. A queixa que mais comummente corria contra
os padres era a de que eles às vezes se valiam do seu poder de suspender
absolvições com o fim de induzir as mulheres a dormirem com eles. Uma outra
forma de abuso que um padre podia fazer do seu ministério era forçar um
indivíduo culpado de fornicação a declarar o nome do seu comparte, ficando
deste modo o padre sabedor de onde iria encontrar seguro pasto para os seus
próprios desejos. Na sua imoralidade, o clero sempre teve diante de si como
espelho e modelo o exemplo que lhe ofereciam as camadas superiores da sua
própria hierarquia, na qual o Vigário de Cristo parecia, ele mesmo,
pessoalmente susceptível no assunto, sabido como é que a lista de papas
contém farta messe de casos. João XII fez de São João de Latrão um bordel.
Por ocasião do seu julgamento, as acusações compreendiam sacrilégio, simonia,
perjúrio, assassínio, adultério e incesto. Bento IX, elevado ao papado com idade
de 10 anos, ”cresceu sob licenciosidade irrestrita, chocando até mesmo a
embotada sensibilidade de uma era bárbara e grosseira com os escândalos da
vida que levou”. Baltasar Cossa, depois chamado João XXIII, foi processado e
deposto, tendo confessado em corte os crimes de ”notório incesto, adultério,
corrupção, homicídio e ateísmo”. ”Quando, na qualidade de camareiro-mor de
Bonifácio IX, ele escandalizava Roma mantendo como sua concubina a mulher
do irmão, o remédio adoptado para a correcção desse dislate foi nomeá-lo
cardeal e mandá-lo como núncio para Bolonha, onde duzentas donzelas,
matronas e viúvas, inclusive umas tantas freiras, sucumbiram à sua brutal
luxúria.” Mas estamos a ir muito depressa.

Petrarca atacou a papalina Avinhão de maneira monótona e extensa. No seu


dizer, ”era ela transbordante de toda a espécie de confusão, o horror das
trevas cobria-a inteira e alastrante e lá se encontrava tudo o que de medonho
jamais tem existido ou de que apenas possa imaginar mente conturbada”. Era
mais Babilónia do que a própria Babilónia: ”As suas gentes e os seus sítios têm
desta a mesma obscena, nojenta e horrenda aparência.”

Voltemos agora ao período em que a Igreja iniciou a sua bem sucedida


implantação do sentido de culpa nos cérebros do seu rebanho. Uma das
consequências deste facto foi um enorme surto de excessos tanáticos,
sexualismo disfarçado, voltado para o lado de dentro, por assim dizer, e
manifestando-se sob a forma de orgias de autoflagelação, infindável afã de
compensar a culpa. Tais excessos, pelo número e pela visível fascinação sobre
os seus participantes, começaram a alarmar a própria Igreja, a qual percebeu,
mesmo através daquela própria neurose, algo sobre os motivos subjacentes a
semelhante comportamento. Começando por deleites suaves, tais como o porte
de camisas tecidas de crinas, alguns devotos chegaram progressivamente até
extremos de penitência como o de Cristina de Saint-Troud, que ”se amarrou a
uma roda, fez com que lhe aplicassem tratos de polé e a pendurassem numa
forca ao lado de um cadáver. Não contente com tudo isso, ainda fez enterrar
parte do seu corpo numa sepultura”. Quase não têm fim tais repugnantes
manifestações de sexualismo reprimido e transformado que se produziu na
segunda metade da Idade Média, e essas podem ser directamente atribuídas à
”moralidade” sexual da Igreja. A objecção que esta antepõe ao prazer erótico
fundamenta-se simplesmente no facto de este ser uma coisa agradável,
conforme se vê nos éditos da Igreja a respeito das posições em coito. (O
coitus a posteriori era proibido - mas não pela alegada justificação de lembrar
o comportamento dos animais, e sim porque proporcionaria demasiado gozo). De
análoga atitude mental é que surgiu a chemise-cagoule - espécie de camisola de
dormir, grossa e pesada, comportando um orifício na frente, à altura
conveniente, através do qual, quando fosse necessáro que o marido
engravidasse a mulher, poderiam efectuar a cópula, desta fruindo, porém, o
mínimo possível de contacto carnal e de gozo.

O culto flagelomaníaco foi exageradamente disseminado e a sua origem sexual


é suficientemente reconhecível para que se possa classificá-lo sem reservas
como orgíaco: ”O contágio espalhou-se muito celeremente, difundindo-se tão
longe quanto as províncias renanas e estendendo-se através da Alemanha e da
Boémia. Noite e dia, uma longa procissão, em que figuravam todas as classes e
todas as idades e encabeçadas por padres carregando cruzes e bandeiras,
perambulava pelas ruas em fila dupla, recitando orações e tirando sangue do
corpo, cada um dos penitentes, com açoites de couro. Nalgumas cidades
italianas, os magistrados baniram os flagelantes com ameaças, de modo que a
seita andou desaparecida por algum tempo.”

Calamidades do tipo dos terramotos e da célebre Peste Negra logo forneceram


um novo pretexto para as automortificações e eis que ressurgem os
flagelantes. Em 1349, Clemente VI emitiu uma bula pontifícia condenando a
”heresia” que se mantinha na autoflagelação, mas sem apreciável efeito. Mais
tarde, um dos cabecilhas dos flagelantes, na Itália, chegou a ser queimado na
fogueira.

As psicóticas ridicularias incutidas no povo eram exibidas, na maior parte, por


aqueles membros da sociedade dotados de personalidade mais fraca. Os fortes
mantiveram sempre um firme padrão de rebeldia que, afinal, veio a prevalecer,
conforme veremos. Antes, porém, desejo dizer alguma coisa sobre esse
punhado de persistentes, minoritários, anarquistas, e narrar a sua tempestuosa
e decidida passagem através da treva medieval até à claridade da Renascença.

Havia os hereges, cuja perseguição, embora eles não fossem rebeldes morais,
só se pode explicar considerando-se a futilidade dos pontos de doutrina em que
divergiam dos ortodoxos, pela natureza de ”fixação materna” do seu
comportamento (particularmente no caso dos trovadores), que, naturalmente,
pareceria repugnante a uma Igreja autoritária e patrística. (Veja-se G Rattray
Taylor, Sex in History, Thames &Hudson, 1953). O credo que daí nasceu não
encerrava orgias, conquanto a ideia que faziam os trovadores de devoção não
sexual a uma mulher não excluía necessariamente a actividade sexual com as
demais mulheres.

A Igreja cristã, é muito interessante observar, conservou nas suas principais


festas duas que outrora haviam sido festivais pagãos - o Natal e a Páscoa -,
ambos originariamente referentes à fertilidade. Desse modo ela proveu os seus
fiéis, conscientemente ou não, de uma espécie de válvula de escape. Os Jogos
de Maio e a Festa dos Loucos, embora olhados sem simpatia pela Igreja, não
foram por ela suprimidos, porque não tinha meios de impor-lhes o que tinha em
mente a seu respeito.

Estas duas cerimónias, apesar da sua origem indubitavelmente pagã e de


incorporarem muitas características das religiões de onde provinham como
sejam o mútuo atirar de excrementos à face, o travestismo, a generalizada
licenciosidade sexual -, não merecem a qualificação de religiões no verdadeiro
sentido da palavra, devendo antes ser consideradas como uma forma exagerada
de alegria pública, com carácter catártico e orgíaco, todavia não levado
demasiado a sério pelos participantes.

Modalidades mais graves de culto do falo e da fertilidade teimavam em


persistir, sorrateiras, a despeito de todos os esforços empregues para lhes pôr
cobro, e provavelmente ainda persistem, nos nossos dias, nas zonas rurais e
primitivas da Europa, ainda que no mundo actual o culto da fertilidade tenha
sido substituído pelo das pílulas ”vitamínicas” e ”virilizantes”.

Os Jogos de Maio, muito embora se realizassem nesse período, não tinham


ainda saído para fora dos recintos fechados, e desse assunto trataremos mais
adiante. A Festa dos Loucos celebrava-se juntamente com a Festa da
Circuncisão, a qual corresponde à de Jano, mas, a não ser essa coincidência de
datas, não se equiparava de nenhuma outra forma às actividades da Igreja
cristã.
Era um assunto principalmente da alçada do clero menor, não há dúvida, porém
tudo o que este fazia à guisa de celebração consistia em jogralices e paródias
da própria religião de que eles seriam os sacerdotes.

Essa festa tinha por centro a França, mas ainda não eram transpostos os
confins desse país e já se deparavam consideráveis variantes no respectivo
cerimonial.

Em Beauvais, introduziam na igreja um asno e o celebrante da missa, em vez de


proferir o seu ”Ite, missa est”, zurrava três vezes. Em Saint-Omer, dois
malucos paramentados, um de ”bispo” e outro de ”diácono”, tomavam parte nos
ofícios divinos. Estes, aliás, eram realizados de fio a pavio com trejeitos
burlescos e todas as suas fórmulas e cânticos emitidos no tom mais
dilacerantemente agudo das vozes e até aos urros.

Como é natural, o clero maior via com desagrado e alarme essa estranha
brincadeira dos seus subordinados. Os protestos, portanto, foram surgindo,
primeiro os locais, que logo se alargaram a todos os quadrantes da nação. Em
1398, o deão de Auxerre queixou-se de se fazerem, no capítulo, concessões de
vinho aos sequiosos folgazões e dois anos mais tarde foi publicada uma ordem
de contenção de diversas manifestações indecorosas, inclusive, entre estas, o
costume de surrarem homens e mulheres, na rua.

No mesmo ano, Jean-Charlier de Gerson atacou a Festa dos Loucos, clamando


que ”a indecência dessa festa envergonharia até uma cozinha ou uma taberna”.

Em 1445, a Faculdade de Teologia da Universidade de Paris dirigiu aos bispos


um violento libelo contra esta festa, argumentando sobre as inequívocas
origens que a ligavam ao paganismo. Assim arrazoavam os doutores:
”Vê-se padres e outros clérigos menores usando máscaras e viseiras
monstruosas nas horas do divino ofício. Dançam no coro, vestidos de mulheres,
de pandeireiros ou de menestréis. Entoam canções lascivas. Comem chouriços
nos próprios degraus do altar, enquanto o celebrante está a dizer missa. E ali
mesmo jogam aos dados. Espalham incenso usando porém uma fétida fumaça
produzida por solas de calçado velho. Põem-se aos saltos e correrias por dentro
da igreja, sem ao menos corar do seu desavergonhamento. Por fim, percorrem a
cidade e os seus teatros em almanjarras e carroças lamentáveis; e provocam
gargalhadas dos seus comparsas, bem como dos circunstantes, com graçolas e
trejeitos infames, gestos indecentes e versos ignóbeis e impuros.” O
travestismo era uma universal figura obrigatória nesse deboche, o que não é de
surpreender, se nos lembrarmos de que a circuncisão é uma forma vestigial da
castração.

Em algumas cidades, os padres atiravam à multidão chouriços negros ou, melhor


dizendo pelo termo original em francês, boudin. Esta palavra tem, ainda, o
sentido de excremento, circunstância que dá que pensar, examinando-se o caso
à luz da citação supra. (Os festivais romanos em celebração da fertilidade
encerravam, às vezes, esse pormenor do lançamento de imundícies.)

É particularmente interessante notar que a aludida Faculdade fez seguir um


libelo acusatório de ”uma refutação do argumento de que tais ludi não são mais
do que o relaxar de arco retesado, de certo modo sancionados por antigas
tradições - pois, ao contrário disso, eles são decorrentes do pecado original e
nada mais do que ardis dos demónios”.

Uma contrapetição foi encaminhada à Faculdade, defendendo a manutenção da


Festa dos Loucos: ”Assim o fazemos consoante um velho costume, a fim de que
a folia, que é uma segunda natureza no Homem e parece ser-lhe inata, possa, ao
menos uma vez por ano, encontrar livre desafogo. As pipas de vinho
rebentariam, se deixássemos de, um vez por outra, lhes retirar o batoque para
a entrada do ar. Ora, eis-nos agora como se fôssemos mal cingidos cascos e
tonéis de que deixaríamos escapar o vinho da prudência se, contidos por
permanente devoção e temor de Deus, o deixássemos fermentar.”

O porte de máscaras parece ter sido o traço mais comum da cerimónia, e


aquele que mais agastava as autoridades, de pura raiva. Cavalgar um jumento,
duma ou doutra forma, também parece ter sido outro pormenor usual. Eis como
descreve João Huss uma Festa dos Loucos no seu país, a Boémia:

”Um clérigo, ridiculamente vestido, era sagrado ’bispo’, cavalgava um burrico,


voltando-se de face para o lado do rabo do animal, e assim o levavam à missa na
igreja. Serviam-lhe caldo e cerveja e a esse repasto seguia-se uma ruidosa
festança. Em lugar de velas e candeias, empunhava-se tochas, os padres
viravam as suas vestes talares pelo avesso (um simples ”revirar” do seu
comportamento quotidiano) e punham-se a dançar. O costume da inclusão do
jumento tinha origem, teoricamente, na história da fuga para o Egipto.

Todos os esforços para que a festa se extinguisse revelaram-se


portentosamente inúteis e assim é que ela perdurou até ao século XVII. O mais
que se pôde fazer foi procurar amenizar-lhe um pouco os excessos, e assim em
1444 vamos encontrar o Cabido da Sé de Sens a definir lamuriosamente nas
suas ordenações que não mais de três alcatruzes de água sejam derramados
sobre o Precentor Stultorum, a Vésperas, e que quem desejar copular, que o
faça, por favor, do lado de fora da igreja.

A Festa dos Loucos era uma cerimónia que limitava a sua celebração aos
membros do clero: no reinado de Isabel I foi finalmente extinta, mas apenas
para ser substituída por uma folgança análoga de índole secular - a eleição de
um ”Abade do Desarrazoado”, ou ”Senhor da Confusão”.

Stubbes assim o descreve:

”Primeiramente, todos os cabeças-quentes da paróquia, reunindo-se em


assembleia, escolhem um de entre os seus para Grande Capitão (malícia
suprema), o qual eles revestem do nobilitante título de ’Senhor da Confusão’ e a
quem coroam com grande solenidade e o tomam por seu rei.’3

”Esse Senhor da Confusão escolhe então os seus companheiros... vinte,


quarenta, três, quatro ou cinco vintenas de gozadores ’Guttes semelhantes a
ele próprio’. Reveste-os com a sua libré... que será verde, amarela, ou de
qualquer outra coloração exuberante. E como se não fosse já bastante folgança
(ou deboche), cá me parece, enfeitam-se todos de faixas, de fitas e de
bordados, ornam-se por todo o corpo de anéis de ouro, pedras preciosas e
outras joalharias e alfaias: e, isso feito, atam-se a ambas as pernas vinte ou
quarenta campainhas, trazem nas mãos ricos lenços, às vezes penduram ao
pescoço ou aos ombros uma cruz que, na maior parte dos casos, tomaram de
empréstimo às suas bonitas Joaninhas e amorosas Mariquinhas, ao se
aconchegarem a elas, lubricamente, em sítios escuros. Assim, com todas as
coisas postas na requerida ordem, vêm, então, os seus cavalinhos de pau, os
seus dragões e outras antiguidades, juntamente com os seus devassos gaiteiros
e trovejantes tambores para darem início às endiabradas danças entre todos;
em seguida toca essa ímpia súcia para a igreja e para o adro da mesma, os
gaiteiros a tocar, os tambores a atroar, os calcanhares em tropel nas danças,
as campainhas a tinir, os lenços a esvoaçar-lhes em redor das cabeças de
maneira louca, os cavalinhos de pau e os monstros de arremedo fingindo
escaramuças, por entre o amontoado de gente; e desta maneira vão para a
igreja (ainda que, àquela hora, lá esteja o ministro a orar ou a prégar).”

Uma vez dentro da igreja, comportam-se como diabos soltos e em forma


humana, fazendo tal alarido que ninguém é capaz de ouvir a própria voz e até
nem o próprio pensamento. Enquanto isso, a congregação de fiéis, ”... tola gente
que é, entrega-se a olhar, permite-se encarar aquela cena, consente em rir, até
sobe a bancos e estrados para melhor apreciar os divertidos entrudos, que
assim comemoram.”

”Chegado o momento de se retirarem da nave da igreja, o Senhor da Confusão


e os seus sequazes, após cabriolarem um pouco mais em volta do

Citado, no original, sob a forma arcaica do cronista mencionado. (N. do T.).

edifício uma ou duas vezes ainda, aquietam-se para montar acampamento em


pleno cemitério da igreja, onde já previamente haviam erigido os seus
caramanchões, os seus sítios de veraneio, os seus bosques e os seus salões de
banquetes” e aí ”folgam, banqueteiam-se e bailam durante todo aquele dia e
(porventura) toda a noite também”. Os componentes da corte do Senhor da
Confusão usam braçadeiras que servem para distingui-los, as quais eles
fornecem a quem quer que se prontifique ”a mante-los (financeiramente) na sua
pândega de paganismo, diabolismo, meretrício, ebriedade, febre de orgulho e
tudo o mais!” E quem quer que se recuse a comprazer com eles é ”objecto de
zombarias e achincalhamento desavergonhados”.

Stubbes, que, sem dar conta disso, conseguiu com êxito, e não só nesta ocasião,
pintar um quadro algo atraente precisamente da cerimónia que pretendia
atacar, faz a seguir ao seu relato um austero e puritano sermão de
advertência. Aqueles que prestarem qualquer auxílio a tais folguedos ”estarão
combatendo sob as bandeiras e os pendões do Diabo, contra Cristo-Jesus e as
suas leis”, e verdade seja dita que, embora a cerimónia se desenrolasse em
terreno consagrado, é perfeitamente óbvio que esta circunstância era
inspirada antes por espírito de hostilidade, consciente ou não, temporária ou
permanente, para com a Igreja, mais do que propriamente pelo intuito de se
realizar lá uma festa do calendário cristão.

É indubitável que os puritanos adoptaram esta opinião, tempos depois. Prynne,


citando Polidoro Virgílio, acha que os Senhores da Confusão são ”provenientes
das bacchanalia e saturnalia romanas; razão bastante para que todo o piedoso
cristão lhes votasse eterna abominação”.

Também na França foi decaindo até desaparecer a Festa dos Loucos, sendo
substituída, tal como na Inglaterra, por uma tal Société Joyeuse, à qual
presidia um Prince dês Sots, de parceria com uma Mère Folie ou um Abbé de
Malgouveme. Informa-nos Petit de Julleville: ”La Société Joyeuse c’est Ia
Fête dês Fous secularisée.” Essa sociedade em Dijon era particularmente
famosa, tendo sido Filipe de Borgonha quem autorizou que se efectuasse a
festa pelo clero afecto à capela do seu palácio de Dijon, isso quando
precisamente essas celebrações estavam a ser objecto de severas sanções.

A Mère Folie, facto altamente significativo, era um homem disfarçado de


mulher. Por vezes, essa personagem tomava a peito aplicar castigos em pessoas
que tivessem infringido o sui generis, código de ética arvorado pela Sociedade,
usualmente os homens que batiam nas suas esposas. Uma vez por outra leva a
sua pouco ortodoxa ”justiça” até às esferas da política e da moral; em 1603
Luís XIII acabou com a Sociedade, em vista das desordens que ela causava.

Muitas das religiões pagãs relacionavam-se ou envolveram-se com bruxedos,


mistura essa que se demonstra pela presença de factores relacionados no culto
de divindades tais como Cernunnos, o deus comudo, a quem desenterraram um
dos altares sob os alicerces de Notre-Dame. As feiticeiras do tipo medieval
foram provavelmente inventadas, nos primeiros tempos dessa era, pela Igreja
cristã, com o propósito de explicar os fenómenos eróticos já descritos acima,
com o que ofereceu o modelo e estatuto aos que tinham ânsias de dar vazão à
sua discordância para com a atitude da Igreja no que tocava ao sexo. Muitas
das histórias correntes sobre feitiçaria - tais como confissões de se ter tido
relações sexuais com o diabo, etc. - pertencem ao domínio da fantasia, da
mesma forma que os incubi e succubi; e uma grande dose dos ”casos passados”
com aqueles que viviam a mexer com as ”artes negras” (artes do diabo) caem
também sob essa categoria, e a sua situação deve-se, em alguns dos exemplos
apontados, ao uso de drogas alucinantes. (Dizia-se, entre outras coisas, que as
feiticeiras aplicavam no próprio corpo um certo unguento que lhes permitia
saírem a voar pelo ar. Ora, conhece-se hoje a fórmula do célebre unguento, que
foi analisada e se viu que continha atropina e beladona. Ambos estes produtos
químicos são capazes de provocar alucinações e essa coisa de voar,
precisamente, constitui um repisado símbolo onírico do coito.) De qualquer
modo, era efectivo o autêntico e correspondente ritual de culto.

A expressão ”feitiçaria”, aplicada às acções de certos grupos existentes na


Europa até aos meados do século XVII, acarreta uma certa confusão, visto que
abrange quatro fenómenos distintos, embora definitivamente correlacionados
entre si.

Mencione-se em primeiro lugar a adoração ao Deus comudo, variada na forma


nos vários casos (verbi gratia, a de Cernunnos), assunto de que tratou
fartamente Margaret Murray. Tratava-se aí, essencialmente, de idolatria a
uma divindade pagã, mas no espírito dos cristãos que, à semelhança da maior
parte dos indivíduos de cérebro imaturo, eram excessivamente propensos ao
processo psicológico conhecido por decomposição, estabeleceu-se a confusão
dos diabos que o cristianismo exibe.

Em segundo lugar, reinava então um emaranhado de terrores supersticiosos


oriundos de histeria e alucinações eróticas, os quais se coligiram como provas,
em reforço das acompanhantes acusações produzidas nos julgamentos de
bruxas, embaralhando as questões e sendo provavelmente a causa responsável
de - em terceiro lugar - um genuíno malefício. E, em quarto lugar, pestes e
desastres inexplicáveis que, hoje em dia, tal é a ironia das coisas, se
designariam como ”actos de Deus”, naquele tempo eram sumariamente
atribuídos ”às bruxas”.

O culto do Deus cornudo, há absoluta razão para supô-lo, era uma repetição
das Priapeias, Liberálias e Dionísias da Grécia e Roma antigas, ainda que
possivelmente se aproxime mais do feitio romano do que do helénico. Essas
comemorações eram acompanhadas de danças, festa cerimonial e muita
fornicação plenamente promíscua. As bruxas que iam chegando aplicavam ao
dirigente daquele sabat o seu beijo obsceno - osculavam-no nas nádegas ou,
pelo menos, na máscara que haveria fixada sobre estas. No rito da iniciação
podia ser-lhes exigido que depusessem esse beijo em qualquer outra parte do
corpo do referido oficiante, à vontade deste. Os participantes de tal missa-
negra pertencentes ao sexo feminino tinham por dever copular com a
divindade-diabo, ou melhor, com o ”ministro” daquele culto, sempre que ele o
exigisse, algo do género da já citada ”jus primae noctis”. Era quase certo ele
estar provido de um falo artificial para essa situação. As confissões das
feiticeiras no tocante à sua cópula com o diabo frequentemente encerravam
uma descrição daquele membro viril diabólico, do qual diziam elas que ”era tão
longo quanto a metade de uma rabeca”, ”era coberto de escamas como peixe”,
”parecia-se com a verga de um jumento”, ”era frio como gelo”, ”quente de
escaldar”. Algumas declaravam que ele o trazia sempre pendente do lado de
fora da braguilha; outras, que aquilo era feito de chifre - ”e que era por isto
que fazia as mulheres gritarem tanto”. Do que não restam dúvidas é de que as
mulheres pareciam, sem excepção, concordar em que lhes era infligida dor e
somente um falo metálico pode sugerir uma explicação para as constantes
referências à sensação de regelante frialdade do pénis do diabo.

Os adoradores do Deus comudo não eram, na realidade, praticantes de


feitiçaria, isto é, do referido ”malefício”.

A dança atrás mencionada era uma parte importante dos ritos, geralmente
levada a efeito no campo-santo da igreja. Em 1282, o padre de Inverkeithing
era quem puxava a fieira no cemitério da sua própria Igreja.

A dança ritual foi sempre inconveniente aos chefes de um movimento de âmbito


restrito e a razão disso não é difícil de se apurar. É que há, primeiro, o
elemento espontaneidade; e, segundo, as associações com a ”teolépsia” das
divindades do Mundo Antigo. A dança liberta as emoções, os seres humanos
transformam-se, sob a sua influência, em autómatos, passando a agir segundo o
impulso imperioso das ditas emoções desenfreadas, e quem sabe de que
natureza poderão elas ser?!

Felipe Stubbes, que, embora escrevendo no século XVI, se enquadra, como


personalidade, mais propriamente nos meados do século XVII, tem muito a
dizer sobre o assunto. Além das suas observações pessoais, acrescenta as
contribuições de outros, a saber: a de Bullenger: ”A dança, mãe de toda a
sujeira e imundície”; a de Calvin: ”A dança, a malícia maior de que todas as
demais malícias”, acrescentando ainda este, como seu parecer exclusivo, que
”os bailantes são loucos”, que ”a dança desperta a luxúria” e que, ainda, é
”impossível que a dança seja boa coisa”.
O que se pode aplicar aos restricionistas puritanos é de forma semelhante
aplicável aos medievais. O número de condenações e de proibições despejadas
sobre a dança era enorme. A dança ocorria, segundo acabámos de ver, em
conjunção com as missas-negras, com a Festa dos Loucos e quejandas
cerimónias, de maneira que a Igreja tinha de estar perpetuamente em guarda
contra a respectiva infiltração sob a capa de ofícios divinos regulares. Isso
dava-se também sob uma outra forma. Em 1374, nos Países Baixos e na
Alemanha, apareceu um fantástico apego público pela dança, uma ”coreomania”
universal. As vítimas dessa nova epidemia, evidentemente acusando os
resultados de alguma tortura física que lhes fora administrada num qualquer
feitiço pelo diabo em pessoa, mas presumivelmente também movidas por um
tanto de corrupção interior das suas próprias almas, punham-se a dançar
freneticamente e sem que conseguissem parar. Por entre os seus rodopios e
esperneies, rogavam aos seus amigos que lhes atassem fortemente a barriga
com trapos e faixas, pois, ”doutro modo”, choramingavam elas, ”vamos morrer
aqui”. Demonstravam, simultaneamente, um pavor fanático e repugnância à
vista da cor vermelha.

Segundo Bachman, ”elas apareciam, provavelmente, mais ou menos despidas” - o


que certamente explicará a informação de Herenthal de que, ao dançar, elas
não observavam recato de espécie alguma em presença dos espectadores; De
Mezeray dá-as como ”doidas varridas”.

”Os coreomaníacos”, acrescenta ele, ”são acusados por quase todos os


cronistas, bem como pelos satíricos mofineiros da época, de se terem deixado
cair na imoralidade.”

O relato acima sugere que a possessão diabólica coreomaníaca talvez esteja


aliada às visitas dos íncubos e súcubos. Haverá aí igualmente, é provável, uma
conexão com o flagelacionismo, pois a epidemia, similarmente à flagelomania,
adveio logo após a erupção da grande calamidade que ficou na História como a
Morte Negra.

Os cristãos aperceberam-se, argutamente, da genuína origem de tais


fenómenos, pelo que os coreomaníacos foram simultaneamente acusados de
imoralidade sexual e de heresia.
Essa incorporação num todo, por um grupo autorizado, de toda uma série de
heresias - sexuais, religiosas e políticas (o pressuposto é que, se uma pessoa é
culpada de uma delas, é-o também das outras) - reveste-se de um particular
interesse quando alguém se põe a pensar na tendência que têm alguns
americanos (e não só) exibido no decurso das perseguições às ”bruxas”
comunistas nos Estados Unidos nos anos 50, a sugerir que a pecha política dos
indiciados correspondia, por alguma inexplicável correlação, a tendências
homossexuais neles discerníveis; e que, para além disso, um homossexual (além
da sua especial susceptibilidade de cair vítima de extorsões, risco esse que
mais o invalida), está mais sujeito a tomar-se comunista do que o seria um
heterossexual, dessa maneira constituindo-se, espontaneamente, uma ”ameaça”
mais imediata à ”segurança” nacional.

Há que pôr-se em guarda, não obstante, contra o equívoco de se exagerar a


parte representada pelo programa de propaganda da Igreja, parte essa que
será puramente ”automática”, entre as causas determinantes de tais
movimentos da opinião pública. Grande percentagem destes consistiu em
revoltas muito mais conscientes.

A peleja da Igreja cristã contra as danças já se iniciara no século IV,


conquanto, provavelmente, por volta dessa época, se voltasse principalmente,
se não inteiramente, contra aquelas danças de feição escancaradamente
obscena. Bem quisera Santo Agostinho proibir e condenar, radicalmente, toda e
qualquer forma de dança, mas nisso foi barrado por citações extraídas dos
próprios Evangelhos de São Mateus e São Lucas (o que não impediu os clérigos
medievais de pretenderem que a Bíblia condenava toda a dança). As proibições
foram-se multiplicando e aumentando de severidade - até que em 828 o
Concílio de Roma deplorava que ”as mulheres, especialmente nos dias de festa e
de efemérides dos Santos, só compareciam à igreja para aí cantar coplas
desavergonhadas e se entregarem a danças no coro”. À medida que avançamos
pela Idade Média adentro, vamos deparando com cada vez maior número de
proibições referentes à dança em conexão com a Festa dos Doidos, ou com os
excessos dos flagelantes.

Entre os que se davam às ilícitas danças havia certamente quem assim


procedesse levado por motivos inconscientes, como ocorria com os flagelantes
e os atormentados por íncubos; outros, porém, também muito certamente, já
não se achavam nesse grupo. Voltando agora àquele padre de Inverkeithing -
eis que aí estava uma ameaça igualmente grave à Igreja, na maneira como o
sexualismo pagão se infiltrava à sorrelfa nos arraiais da cristandade. Surgiram
até santos fálicos, como, por exemplo, São Foutin (nome engendrado do verbo
”foutre”, por hábil adulteração do nome de Pothin, o do primeiro e
perfeitamente digno bispo de Lyon); e, quanto à Virgem Maria, essa andava em
constante risco de se ver transformada em deusa da fertilidade.

Este aspecto da História Medieval, embora seja bastante aborrecido e


irritante para a sensibilidade dos altos prelados cristãos, surge, segundo o meu
modo de ver, infinitamente tranquilizador. É que mostra de que forma um
reduzido grupo de déspotas neuróticos quis impor um intolerável estado de
coisas a uma sociedade anteriormente sadia - e fracassou. Jamais conseguiram,
os perpetradores dessa tentativa, ter mão na gente que se propunham orientar
à sua maneira, ainda que só Deus saiba quanto mal causaram apenas com o
afinco de tentá-lo. Até mesmo dentre as suas fileiras de sacerdotes
esgueiravam-se desertores, sendo curioso apreciar as desculpas esfarrapadas
em que se apoiavam pastor e rebanho para se abandonarem à licenciosidade.

Além do mais, pairava no ar o prenúncio de transformação mais profunda no


consenso moral da sociedade. O Homem medieval via o universo, com todos os
seres que continha, como fazendo parte de um complexo e interdependente
sistema total construído por Deus. Era-lhe perigoso, portanto, tanto quanto
imoral, iludir umas tantas normas de comportamento, porque sabia-se lá que
terramotos, cometas, ou outros que tais cataclismos punitivos seriam
acarretados por alguma transgressão maior. Gradualmente, porém, foi
despontando na mente dos que aceitavam esse modo de pensar a suspeita do
disparate que isso constituía e, a partir desse lampejo de bom senso,
começaram a caducar muitas das restrições até então inatacáveis. À
semelhança de crianças presenteadas com toda uma carrada de novos
brinquedos, atiraram-se esses recém-despertos a um alvoroçado manuseio da
sua descoberta. Verdade seja dita, não há dúvida de que a licença total não é
mais compensadora do que a sua antítese, o tolhimento sistemático - mais uma
descoberta, esta agora que viria a ser feita, ainda, pelo Homem da Renascença.
No entanto, sempre era mudar e, por essa razão, quanto mais não fosse, uma
mudança para algo melhor. Desgraçadamente, uma coisa que não sofreu
alteração foi a intensidade de sofrimento físico diariamente infligido à mísera
carne humana. Tais crueldades eram perpetradas por indivíduos, verdade seja
dita, não pela Igreja - eis toda a diferença, se é que havia essa diferença. A
crueldade da Igreja e do Estado era uma crueldade obsessiva, às vezes um
mero sadismo pelo gosto do sadismo, tão-somente, aliás, sempre amparado em
intrincadas racionalizações morais. O modo de ver da Renascença foi já muito
diferente. O Homem medieval deixara-se dominar e preocupara-se quase que
absolutamente pelo que estava contido dentro do seu subconsciente. Já o
renascentista tratou de ver se conseguia esquecer o seu próprio subconsciente,
se conseguia descartar-se dele, de vez - nada de contenções; se se deseja
alguma coisa, é estender a mão e agarrá-la, sem mais delongas. A crueldade e o
assassínio gratuitos, por prazer, deixaram de ser uma característica dos novos
tempos - pois agora havia sempre a justificativa do dinheiro ou da
concupiscência, desculpas essas que poderiam, todavia, ser bastante frágeis, na
verdade, de modo que, ao cometer-se um crime, fazia-se-lo sem problemas de
consciência. A Era Renascentista pode ser apreciada como um retomo ao
matrismo em rebelião contra um longo lapso de tempo dominado por uma
organização e mentalidade patrísticas, mas o que na realidade ela representa
muito mais é uma total incapacidade de se identificar com alguém ou alguma
coisa que seja. É a era do desapego, do isolacionismo individual. Não restam
dúvidas de que aí se observam vários sintomas de um período matrista. Eis que
reaparece a cortesã, pela primeira vez desde os dias da antiga Grécia; e os
vestuários são cada vez mais luxuosos e voluptuosos... Veja-se o espoitrinement
à lafaçon de Venise, moda que consistia em aplicar vermelhão a seios nus, da
mesma forma como se nacarava lábios e faces. A gente rica e da moda tomou-
se de uma semelhante paixão por perfumaria, pois não só as pessoas, mas até
as peças de mobiliário, as próprias moedas nas escarcelas e as alimárias, eram
aspergidas com perfumes. O povo, em geral, desde então isento de imposições
penosas de gastar os seus mais dedicados esforços no coibir-se dos seus
desejos sexuais, tomou-se capaz de canalizar a sua energia para outros fins,
como, por exemplo, a criação de obras de arte. Mesmo assim, perdurava o lado
feio do quadro... A ubiquidade da violência, falha de consciência, mas sempre
escudada em motivações racionalizantes. É essa uma característica com que se
depara ao longo de toda a escala social, de alto a baixo. Exemplo disto é um tal
Sigismundo Malatesta, de quem diz Burckhardt: ”Não foi só o Tribunal de
Roma, mas o veredicto da própria História, que o condenou por assassínio,
estupro, adultério, incesto, sacrilégio, perjúrio e traição, cometidos não uma
vez apenas, porém muitas.” Pois a um já libelo tão farto e impressionante,
achou por bem Malatesta acrescentar um imundo assalto ao decoro na pessoa
do seu próprio filho, façanha que teria levado a cabo com êxito se o moço não
se tivesse salvo graças à ponta da sua faca.
Werner von Usslingen fez tecer na sua cota de malha a legenda: ”Inimigo de
Deus, da Piedade e da Misericórdia.”

No dia 12 de Agosto de 1495, o padre Don Niccolo de Pelagati, de Figarolo, foi


trancado dentro duma gaiola de ferro pendurada do lado externo da torre da
Igreja de San-Giulano, em Ferrara. Por duas vezes esse padre celebrara
”primeira missa”. É que, da primeira vez, cometera um assassínio no mesmo dia,
recebendo, porém, a absolvição de Roma; aí, então, matou quatro pessoas e
casou-se com quatro mulheres, com as quais viajava para todo o lado. Depois,
tomou parte em muitos assassínios, violou diversas mulheres, levou outras
consigo, à força, depredou à grande e à francesa e infestou o território de
Ferrara com a sua horda de sequazes uniformizados, a extorquir provisões e
alojamento por artes de toda a sorte de violência concebível.

E o que se disse sobre o que se relacionava com obtenção em geral de


vantagens e bem-estar das pessoas assenta por igual ao que toca a aventuras
sexuais.

A ”imoralidade” sexual estendia-se até mesmo aos conventos de freiras... Em


1497, o Doge de Veneza declarou que estes eram uns ”bordéis e casas de
tolerância”, invectiva que não impediu alguns jovens fidalgos de invadir um dos
tais estabelecimentos religiosos, decididos a servirem-se das freiras à força;
e, em 1509, no convento das ”Celestia”, urn bando de moços aristocratas tomou
parte num baile e dançou a noite inteira, ao som de trombetins e pífaros. Ao
fazer o Patriarca uma visita de surpresa àquela instituição, o que viu foi uma
jovem freira sem o véu e trazendo os cabelos arrebicados em anelados cachos.
Isso deixou o prelado extremamente enfurecido, mas as outras irmãs
conseguiram evitar que ele efectivasse o desejo expresso de atirar dali
directamente para a prisão a escandalosa freira.

Em 1561, vivia o padre Pietro Leon de Valcamonica ”em abominável estado de


pecado com as freiras dependentes do seu curato, as quais chegavam a cerca
de quatrocentas, na sua maior parte jovens e bonitas. Portas adentro do
convento, punha ele de lado a máscara da hipocrisia e mostrava-se tal como
verdadeiramente era: um libidinoso tirano. Valia-se do confessionário para
sedução de religiosas e, se alguma lhe resistia, recorria ao encarceramento e à
tortura. Pelo Verão, despia-se e tomava banho no telheiro dos barcos, diante
dele mesmo a fazer o papel dos anciãos de que fala o episódio bíblico de
Susana... A sua mesa vergava ao peso de iguarias tais como faisões, perdizes e
outras, e de excelentes vinhos, enquanto a sua câmara vivia cheia de confeitos
e cordiais”. Finalmente: ”Algumas das freiras, não podendo mais aturar tal
estado de coisas, puseram-se em fuga, indo denunciar os enormes desmandos
do padre.”

Espero que, por esta altura, já tenha ficado claro que a moral da época não era,
com efeito, compatível com os postulados da fé cristã. A Igreja cristã é uma
entidade autoritária e a Renascença, por seu lado, não foi um período que se
distinguisse pelo respeito à autoridade. Papas ateus não teriam como resultado
rebanhos piedosos. Assim falou Leão X, a propósito da questão da existência ou
não-existência de uma vida no Além: ”Redit in nihilum, quod antefuit nihil” (ao
Nada voltará, o que antes fora o Nada), e a corte papal de Alexandre VI, o
Bórgia, foi cenário de deboche a um tal grau que é difícil acreditar, não fora as
provas de John Burchard, Pontifício Mestre de Cerimónias e Bispo de Orta e
Civita Castellana, cujo diário goza de uma fidedignidade que é preciso aceitar
como absoluta.

Esse Alexandre, de nascimento Rodrigo Bórgia, aliás o pai de César e Lucrécia


Bórgia, já de muito cedo dera provas de seus pendores. Numa carta que lhe
dirigiu Pio II, este papa deplora os relatos que lhe chegaram aos ouvidos sobre
o comportamento de Rodrigo. A dita missiva tem a data de 11 de Junho de
1460 e reza o seguinte:

”Amado filho,

”Chegou aos Nossos ouvidos que Vossa Dignidade, esquecendo o elevado


ministério de que está investido, esteve presente, da décima sétima à vigésima
segunda horas, há quatro dias passados, nos jardins de Giovanni de Bichis, onde
se encontravam várias mulheres de Siena, pessoas estas inteiramente dadas às
vaidades do mundo... Ouvimos, igualmente, que as danças foram fruídas com
inteiro desregramento; não foram aí omissos nenhuns dos enlevos do amor
humano e a vossa pessoa, particularmente, aí se conduziu de maneira
absolutamente mundana. O pudor impede-nos de mencionar claramente tudo o
que se terá passado na reunião, porquanto não apenas as coisas, em si mesmas,
porém até as próprias designações delas, são indignas de vossa posição. E ainda
mais, para que a vossa concupiscência não sofresse maiores contenções,
maridos, pais, irmãos e parentes outros das jovens damas deixaram de ser
convidados a trazer a sua presença à festa. Vós outros, e alguns de vossos
servidores, fostes os cabeças e inspiradores dessa orgia.”

Pelos vistos, a carta pouco efeito produziu, pois, quarenta e um anos mais
tarde, eis o que regista o diário de John Burchard e se nos oferece agora à
leitura:

”Ao entardecer de 30 de Outubro de 1501, deu-se uma festa nos aposentos do


duque de Valentinois (César Bórgia), no Palácio Papal. Achavam-se presentes
cinquenta prostitutas, da espécie conhecida como cortesãs (corteggiane), que
não provêm da plebe. Terminado o repasto, puseram-se estas a dançar com os
servidores e demais pessoas presentes. De começo, conservaram-se
decorosamente vestidas, mas logo em seguida deram em se desnudar,
completamente. Já que se acabara de comer, colocaram-se no chão todas as
velas que se achavam sobre a mesa, acesas, e houve jogo de atirar nozes ao
chão, para que as apanhassem as cortesãs nuas, de gatas sobre as mãos e os
joelhos, serpenteando por entre os candelabros que iluminavam. O papa, o
duque e a irmã deste, Lucrécia, lá estavam também, apreciando os folguedos.
Para o fim, foi trazida e apresentada uma colecção de mimos, consistindo em
mantos de seda, finas meias, broches e outras prendas análogas, as quais foram
prometidas aos que entretivessem íntimo contacto com o maior número
daquelas prostitutas. E isso se fez em público. Os espectadores desse tomeio,
do qual foram simultaneamente os juizes e árbitros, conferiram os prémios aos
que provaram ser merecedores como lídimos campeões.”

Não havia ainda decorrido uma quinzena, eis que se planeou um novo
divertimento para Sua Santidade. ”Veio à cidade um campónio, trazendo pela
arreata duas éguas carregadas de lenha. Ao atingir a Praça de São Pedro,
alguns lacaios do papa correram ao seu encontro e apossaram-se das rédeas,
atiraram fora as cargas e conduziram as bestas para o pátio que fica do lado
de dentro do palácio, próximo aos portões. Soltaram os quatro garanhões que
pertenciam às coudelarias palacianas, livrando-os completamente dos freios e
dos bridões. Os fogosos machos atiraram-se às éguas e, após árdua peleja a
dentadas e patadas, e grande alvoroço de relinchos, cobriram-nas, não sem lhes
produzir sérios ferimentos e outras rudezas. O papa estava postado à janela
do seu aposento situado no tecto do Palácio e ao seu lado estava Lucrécia.
Ambos, pai e filha, olhavam a cena, quase a estourar de riso, com evidente
gosto.” (Cum magno risu et delectatione praedicta videntibus).

No dia de Natal de 1503, representou-se perante esse mesmo pontífice uma


indecente mascarada. Reuniram-se trinta embuçados na Praça de São Pedro...
”Eram de ver-se numerosíssimos narizes postiços arranjados em forma de
príapos”, isto é, simulando a forma de pénis em erecção. ”Tais macarados e,
como eles, outros, escancharam-se sobre míseros asnos, tão pequenos que as
pernas dos seus ’cavaleiros’ arrastavam pelo chão; e assim cavalgando,
dirigiram-se para o palácio, onde o Papa os apreciava de uma janela.”

Em carta a Silvio Savelli, Buchard fala de ”violações, actos incestuosos


cometidos nos Paços de São Pedro, coisas infames perpetradas em rapazolas e
moçoilas, a malta de prostitutas acolhida no palácio”, e mais, de ”rebentos do
Papa, nascidos de incestuosos conúbios”. E não se diga que o Sumo Pontífice era
obrigado a pagar do seu bolso os seus prazeres, pois em Piombino ”ele forçava
todas as matronas e donzelas bonitas da cidade a dançar horas seguidas na
praça pública fronteira ao seu palácio”.

Semelhante atitude, já o dissemos, causou uma regressão ao paganismo


- parcial, senão totalmente. Tirando uma geral ausência da ”moral cristã”,
instância que frequentemente se acompanha de genuíno ateísmo, a regra papal
tinha como traços marcantes incidentes ainda mais sugestivos. No papado de
Leão X, foi sacrificado um touro, dentro de ritos inequivocamente pagãos e no
próprio recinto do antigo fórum romano. A Quaresma assinalava-se com um
festival extravagante, símile das Saturnalia da velha Roma, cuja descrição,
abaixo transcrita, devemos a Anthony Munday. Ei-la:

”Durante os três dias gordos, há em Roma um tumultuado alvoroço a que lá


costumam chamar de ’Carne-vale’ e que tem a duração de três ou quatro dias;
ao longo de todo este prazo, o Papa conserva-se afastado de Roma, tais a
confusão e a barafunda que lá reinam. Os grão-senhores ataviam-se, então, de
diversas sortes de garbos, uns vestem-se de mulheres, outros como os turcos
e, aliás, quase toda a gente de alguma forma, analogamente contrária, de
disfarce. E transitam todos fazendo-se conduzir, seja em montadas, uns, seja
em viaturas, outros, nenhum porém a pé, dado que aqueles que permanecem de
pé para contemplar esses folguedos expõem a grande perigo as suas vidas, em
razão da passagem de carros e cavalos a correr, coisa como nunca vi igual, em
toda minha vida.”

”E tudo isso se passa nos sítios onde estão as cortesãs, para lhes dar prazer e
passatempo: elas lançam por sobre os peitoris das suas janelas garridas
colchas, sobre as quais se debruçam para fora a fim de receberem nas faces
molhas, sob várias formas, de água de rosas e outros gentis olores, as quais
lhes atiram cá debaixo os fidalgos passantes.”

”Durante essas folganças, toda a gente usa sobre o rosto uma falsa face, para
que ninguém saiba quem é o portador nem de onde procede; e se for o caso que
alguém tenha contra o seu próximo um secreto rancor, poderá bem matar o seu
desafecto, e ninguém jamais lhe porá as mãos em cima, pois, por todo o tempo
que perduram essas folias, não se obedece a nenhuma lei estabelecida. Eu vi um
bravo romano a rodar prazenteiro na sua carruagem, e subitamente sair-lhe à
frente alguém que lhe descarregou em cima uma pistola; e, no entanto, ninguém
se incomodou com o facto, nem se importou em deter o matador, ou de acudir
ao gentil-homem ferido. Aliás, havia muita gente igualmente abatida, tanto por
acções de vilania inimiga, quanto pelo tropel dos cavalos ou das carruagens, e
não obstante, prosseguia-se nos entretenimentos, sem curar dos caídos.”

O Carnaval, similarmente à Festa dos Loucos, era matéria em que se


confundiam entre si celebrações cristãs e pagãs, donde residia nele um
perpétuo foco de desassossego para a Igreja. Sob o papado de Júlio In,
realizaram-se portentosas lutas de touros contra cães, no fórum, e já Sisto V
fazia vigorosos esforços por extinguir o Carnaval, erigindo patíbulos em
lugares bem visíveis, à guisa de advertência aos desmandados. Se teve algum
êxito, este passou logo ao esquecimento geral, sendo que Florença ganhou até
grande fama pela licenciosidade do seu Carnaval. Esta festa aparece
actualmente nos Estados Unidos sob a denominação francesa de Mardigras
(Terça-Feira Gorda). Como ocorre em todos os festivais dessa natureza - jogos
de Maio, etc. -, actos de promiscuidade sexual eram uma figura obrigatória dos
divertimentos.

O que até aqui temos dito aplica-se sobretudo à Itália. Já na Inglaterra, a


situação era diferente. A Reforma luterana, que, por assim dizer, foi uma
reacção contra a Renascença, surgiu simultaneamente; ou, pelo menos, em todo
o caso, a Renascença só alcançou a Inglaterra por volta do advento de Henrique
de Tudor. O facto de ter começado tão prematuramente a Reforma é
atribuível a certos factores na vida íntima de Henrique VIII, mas realmente
uma coisa nada tem a ver com a outra. Porque, se a Reforma não se tivesse
iniciado tomando por ponto de partida, indirectamente, a satiríase do soberano
Tudor, teria começado incitada por uma qualquer outra causa. O que se quer
demonstrar é que esse início foi meramente artificial, sendo uma ironia das
coisas a circunstância de aquele movimento refreador se ter produzido por
impulso de uma doença venérea. Tempo houve em que os chamados
reformadores puritanos representavam um grupo minoritário, e sobre eles
teceremos considerações num outro capítulo.

Em Inglaterra, a Renascença não foi seguida de um completo insucesso na


formação de um super ego, falha que vimos ocorrer na Itália. Foi, antes, um
período de equilíbrio, um tempo bom, do ponto de vista dos que o viveram;
porém, nem por isso rico de formas exóticas de conduta sexual. Foi uma época
de franqueza a respeito de assuntos de sexo - uma época em que viram a luz,
na primeira edição, compêndios tais como o Quinze Joies du Mariage (As
Quinze Alegrias do Casamento) e L’Ecole dês Filies (A Escola das Donzelas).

Mesmo sob a modificada forma que teve, a Renascença inglesa possuiu força
bastante para provocar diatribes condenatórias por parte dos escritores
puritanos. Aja então caduca doutrina medieval de que todo o prazer é maligno
por si mesmo despia-se muito mais das inibições de antanho; a cerimónia
nupcial, simultaneamente, vai-se desprendendo também mais da significação
puramente espiritual da união dos nubentes.

Bullenger, no seu livro The Christian State of Matrimonye, deplora-o, nestes


termos:

”De manhã cedinho os nubentes começam já a exceder-se em supérfluos


comeres e beberes, de que se empanturram até chegar-se à metade do sermão.
E advindo o momento da pregação, acham-se então meio ébrios. Por
conseguinte, alguns há até que não ligam importância alguma seja à prédica,
seja às orações, deixando-se estar ali tão-somente em observância dos usos e
costumes.”

E quando chega a hora de festejarem a boda, após o banquete, momento em


que a noiva é conduzida ao lugar das danças, ao ar livre, ainda segundo ele:
”Vê-se aí tanta correria, cabriolas e agitação de braços entre eles e há tanta
vontade de se erguerem no ar as raparigas e de se lhes erguer as roupas, bem
como as das outras mulheres, que uma pessoa até pode pensar que aquela gente
pôs de lado toda a vergonha e ficou louca varrida e fora de si, entregue por
juramento a um bailar de diabos... E aquela algazarra e malefícios prosseguem
de tal jeito até à hora da ceia.”

E depois da ceia, quando os exaustos recém-casados tentam retirar-se para o


tálamo:

”Aquela turba sem modos nem sossego... primeiro há que se plantar à porta da
câmara nupcial e aí pôr-se a cantar ruins e maliciosas baladas, para que assim
tenha o diabo, no máximo possível, o seu botim de triunfo.”

As festas da fertilidade, as das colheitas pela Páscoa, e as do Sol pelo Natal,


que perduraram, clandestinamente, durante a Idade Média, ei-las agora
escancaradas, francas, e de igual maneira atraíram os escandalizados
protestos puritanos.

As ditas festas captavam um considerável interesse dos seus participantes,


mas não um interesse de antiquário pelo ”folclore”, antes coisa um tanto
diferente. É o que se pode ver claramente da descrição que delas nos faz
Stubbes:

”Por volta de Maio, pelo Pentecostes, ou qualquer outra ocasião, reúnem-se em


assembleia as gentes de cada paróquia, burgo ou aldeia, incluindo homens,
mulheres, crianças, moços e velhos... saem a correr alacremente para os
bosques e florestas, colinas e montes, onde passam toda a noite em agradáveis
entretenimentos, e pela manhã regressam, trazendo para suas casas varas de
vidoeiro e ramos de outras árvores. A coisa mais preciosa que daquelas
pousadas trazem para casa é o seu garrido mastro de Maio, cujo transporte
eles efectuam com grandes mostras de veneração. Dispõem de vinte, quarenta
parelhas de bois encangados, cada rês ornada com um belo ramalhete de flores
na ponta de cada chifre e as ditas reses é que arrastam para dentro do casario
o engalanado mastro (é caso para dizer-se o imundo ídolo, isso sim), o qual é
inteiramente revestido de flores e folhagens... e por vezes pintado de variadas
cores, sendo acompanhado por uns duzentos ou trezentos fiéis, homens,
mulheres e crianças, todos muito devotamente comportados. E sendo o poste
ainda enfeitado, também, de lenços e bandeirolas esvoaçantes do seu topo, eles
montam ao seu lado algumas polias e árvores de erguer. Em seguida, caem no
banquete e no festim, e saltitam e esperneiam em danças em tomo, como as que
praticavam as gentes pagãs ao erigirem os seus ídolos, do que este episódio é
uma perfeita paródia, senão talvez a própria idolatria rediviva.”

Que espécie de ”agradáveis entretenimentos” seriam aqueles a que alude o


cronista é coisa sobre que não restam dúvidas, diante da observação de que, no
seu regresso, dois terços das raparigas concorrentes tinham sido ”violadas”.

A moderação da Renascença inglesa, se comparada com o que se passou no


resto da Europa, teve como resultado uma certa dose de censura habitual aos
”desagradáveis debochados estrangeiros”, crítica esta nem sempre proveniente
de uma verdadeira noção realista.

William Lithgow, que escreveu e viajou quando reinava Jaime I, condenou,


enojado, os indícios de comportamento homossexual que vislumbrou no curso
das suas peregrinações através da Europa. Em Pádua, cidade por ele
considerada ”a mais melancólica da Europa”, ”os estudantes, pela calada da
noite, cometem muitos assassínios, sendo vítimas os seus inimigos pessoais e,
muitas vezes, nessas acções perecem forasteiros e inocentes; e, quanto à
animalesca sodomia, viceja aqui como em Roma, em Nápoles, em Florença, em
Bolonha, em Veneza, em Ferrara, em Génova e em Parma, nem esta última é
excepção, como tão-pouco ainda a mais pequena e remota aldeia de Itália; uma
imundície monstruosa que, todavia, para eles passa por grato passatempo, a
ponto de comporem canções e recitarem sonetos em que cantam a beleza dos
seus bardassi, ou seja, os mancebos que os acompanham na sua sodomia, e o
prazer que estes lhes proporcionam.”

Mas a Reforma, que cedo começara em Inglaterra, já se espraiava por toda a


Europa. Infelizmente, foi demasiado forte a reacção contra as contenções
exigidas pela Igreja cristã e, já que quanto mais acentuadamente se impõe um
desvio ao pêndulo, tanto mais rapidamente voltará este ao seu ponto de
equilíbrio. Os excessos da Renascença manifestaram-se tão desenfreados que,
em vez de retomar o pêndulo a sua posição vertical, antes se situou, no retomo,
quase que no extremo oposto, isto é, mais ou menos à situação que vigorara
outrora na posição de onde partira.
CAPÍTULO QUARTO

PURITANOS E LIBERTINOS
Na Inglaterra - já o dissemos - houve um período de sobreposição de
tendências antagónicas, isto é, durante o qual prevaleceram, simultaneamente,
por algum tempo ainda, aquelas restrições do sexo, a par com uma galopante
anarquia sexual.

Uma das peculiaridades mais perigosas daqueles que procuram exercer


autoridade do género da que exercitaram os pais do puritanismo e os padres da
Igreja medieval consiste em que a própria natureza, o próprio âmago e a
essência do desagradável que há nos seus objectivos é que conduz ao sucesso
destes. Quem pretende exercer o comando, poderá geralmente fazê-lo se para
tanto se esforçar bastante, especialmente se os indivíduos a quem visam
dominar se encontram em tal estado de rebelião contra a autoridade que já
nem suportam o pouco de organização imprescindível para oferecerem uma
inexpugnável resistência organizada. O total das energias do candidato a
patriarca deriva, indesviado, para as suas metas. Ao passo que o tolerante,
anárquico e sexualmente descomplexado dispersa as suas, desviando-as através
de vários canais.

De todas as diversas ramificações e seitas do movimento puritano, nenhuma


retrata melhor o carácter das demais do que a calvinista. Esse credo tinha na
maior conta, sobre tudo o mais, a santidade do princípio da autoridade -
especialmente a da autoridade paterna. Na Escócia, foi decapitada uma criança
por ter batido no pai. Os calvinistas tinham a paixão dos imaturos mentais
pelas normas e regulamentos escritos. Sentenciavam penalidades especiais por
toda a falta que pudesse imaginar a mente neurótica da gente de então. Só
porque criticou as doutrinas de Calvino, Gruet (que escreveu a palavra ”contra-
senso” à margem duma página de um dos livros do Mestre) foi perseguido pela
Justiça e, em seguida, executado por crime de blasfémia e traição, visto que a
união existente entre Igreja e Estado fundia num só o crime religioso e o crime
civil. Mencionar o nome de Calvino, ou dirigir-se-lhe pessoalmente, chamando-o
Calvino, simplesmente, e não ”Sr. Calvino”, acarretava ao imprudente uma
punição quase igualmente severa. As mulheres foram relegadas, mentalmente, a
uma condição de inferioridade, daí que, logicamente, se passou a considerar
tabu a veneração à Virgem Maria, e só a ideia de as mulheres ocuparem cargos
de autoridade tomou-se anátema. Knox escreveu o seu libelo intitulado ”O
Primeiro Clangor da Trombeta contra o Monstruoso Regimento de Mulheres”,
panfletos que teve a infelicidade de fazer coincidir com a ascensão ao trono da
rainha Isabel I, apenas conseguindo safar-se do sarilho mediante longas
justificações epistolares com Somerset.

Mas a autoridade puritana não era precisamente idêntica, na forma, à da


Igreja medieval. À semelhança desta, tentaram os puritanos incutir a noção do
pecado na mente das suas ovelhas mas, para começar, eles estenderam a sua
linha de fogo, já não actuando tão-somente na ideia de culpa sexual, mas na
culpa em geral, o pecado sob qualquer forma e, em segundo lugar, não tiveram
êxito, ao contrário dos medievais.

A sua bateria de propaganda, além de impotente, era ruidosa, incessante e


irrefreada. Pergunta Calvino: ”Não merecerão, acaso, as nossas inúmeras e
quotidianas transgressões mais severos e penosos castigos que aqueles que a
Sua Santa Clemência nos inflige? Não é, pois, altamente razoável, que seja
contida a nossa mísera carne e, por assim dizer, seja acostumada ao jugo, para
que não se desgarre, segundo as suas danadas propensões, nos excessos
errantes de qualquer lei?” Eis aqui exposto um importante aspecto de todo o
movimento restritivo, esse temor da espontaneidade, o medo de saber-se que
forças daninhas se soltarão, caso não se tenha com firme pulso a ”autoridade”...
”a licenciosidade da carne que, se não for rigidamente contida, ultrapassa e
transgride quaisquer mandamentos”, ideia esta que, por igual, se nos depara
noutros lugares: o prazer é proporcional ao grau em que se relaxam as rédeas
mentais. Nisto jaz a explicação do ”dissídio” entre Renascença e Restauração.

A autoridade puritana diferia da medieval ainda sob um outro aspecto. A regra,


analogamente à medieval, era a de um pai sobre a sua família, mas, junto com
este conceito, transitava um outro que não estivera presente naquela situação
anterior. A Igreja puritana abandonou a ideia de que a virgindade representava
um bem (excepto, naturalmente, no caso dos não-nubentes); frisava até mesmo,
pelo contrário, a importância de se constituir uma família grande, tanto que
chegou a parecer que esteve a ponto de restabelecer a
poligamia. O próprio Knox, apesar de lutar contra mulheres ”arregimentadas”,
nem por isso parecia avesso a que o seguisse, submisso, em adoração, um
verdadeiro rebanho delas. Casou-se duas vezes, provocou falatórios
escandalizados com a sua amizade muito íntima com uma certa Sr.a Bowes, de
repente tomou por esposa a filha dessa dama e retirou-se com ambas, sogra e
esposa, para Genebra, sem dar ouvidos aos furiosos protestos do Sr. Bowes.
Depois, ainda acrescentou à sua colecção uma tal Sr.a Locke, mais a filha dela e
uma aia das duas damas. Por ocasião do Sabath, dirigia-se ao templo em trajes
de cerimónia, acompanhado (a alguma distância, como convinha) pelas suas cinco
mulheres, que em breve já eram seis, com a adição de uma certa Sr.a Adamson.
Não é provável que todas estas ligações, a não ser aquela com a legítima Sr.a
Knox, tenham sido, de facto, sexuais. O puritano temor da espontaneidade,
anteriormente referido, era uma atitude mental profundamente enraizada.

Por artes de uma espécie de Estado policial, era possível a interferência na


vida privada dos cidadãos, sob todas as formas de métodos intoleráveis, para
já não falar da pura e simples proibição de todo o género de actividade que
cheirasse àquele temível relaxamento de contenção mental... tais como a dança,
a bebida, o canto, o poste de Maio e celebração da Páscoa e do Natal; tentou-
se seriamente garantir a prevalência intangível de uma melancolia positiva. Era
obrigatório o comparecimento à igreja às quartas-feiras e sábados, preceito
este que se fazia cumprir universalmente por acção policial; mas quem fosse à
casa de oração em dias que não aqueles, era punido. Damas de honor que
enfeitassem demasiado garridamente a noiva a seus cuidados iam presas; e os
homens, ou as mulheres, eram punidos se comessem peixe às sextas-feiras,
vestissem roupas alegres ou dissessem piadas. Praguejar - será preciso dizê-
lo? - era uma transgressão grave, dado que os puritanos censuravam não apenas
a blasfémia e as obscenidades sexuais, mas estendiam o seu desagrado a todas
as palavras relacionadas com as funções excrementais.

Quem se abalançasse apenas a deixar perceber desgosto em face de


ordenações dos padres puritanos, corria um risco. Os progenitores de uma
criança que reclamassem quando o padre resolvia baptizá-la sob um nome
diferente do que eles tinham proposto, seriam imediatamente detidos ”por
crime de traição e blasfémia”, segundo a fórmula costumeira.
Uma das mais significativas formas de propaganda e regulamentação era a que
dizia respeito ao vestuário. Tentaram os puritanos, por motivos que não nos
devem parecer demasiado obscuros, nada menos que masculinizar ao máximo
possível os homens e, correspondentemente, desfeminizar e tomar negativas as
representantes do sexo oposto. Em 1654, Thomas Hall publicou o seu opúsculo
”A Abjecção dos Cabelos Compridos, com um Apêndice sobre a Pintura, os
Sinais de Beleza, os Seios Nus, etc.”. Abria com uma selecção de versos
repetitivos e de longo fôlego, assim:

”Quanta gente vejo eu diariamente Toda ela entregue a um costume mulheril, Cabeça
de mulher com face de homem Vê-se, ora, ajuntar por toda a parte”

e por aí fora, em farta veia do mesmo teor. Desenterraram-se na Bíblia


citações do mesmo tipo, de cujo estudo ressaltou a conclusão de constituir
pecado tão grave o raspar-se totalmente a cabeça, quanto o era deixar-se
crescer o cabelo em longas madeixas. Daí suscitar-se a difícil questão: ”Quão
longo será o cabelo para que o condenem as Escrituras?” Atravessa todo o
livro, esse tratadista, a frisar que o que há de daninho nos cabelos longos é não
serem eles, meramente, uma demonstração de vaidade, mas também um traço
mulheril; e advindo daí, é um desfiar de tudo quanto é argumentação
malabarística para se provar que a Natureza pretendera que os homens
usassem as suas cabeleiras à tosquia.

Dirigindo-se às mulheres, fraseia mais à maneira de súplica do que de sermão,


implorando-lhes que não tentem, deliberadamente, despertar a concupiscência
nos corações masculinos.

A pintura facial é ”o distintivo da rameira, os moirões podres é que são


pintados e as nozes-moscadas doiradas são, em geral, as piores”. ”Tingir os
cabelos é coisa má porque é como querer fazer de tolo São Mateus, o qual
disse, versículo 36: ’Homem nenhum pode tomar branco ou preto um cabelo.’” E
que dizer dos ”seios nus”? São ”tentações e sabidas provocações à sujidade...
Matronas piedosas são recatadas: só as levianas e as tais que se oferecem por
dinheiro, que desse modo estão a convidar a freguesia, para isso abrindo as
portas das suas tendas”.
com o fim de porem em vigor as suas enjoativas regulamentações, todas as
seitas puritanas e, em particular, o próprio Calvino, apelavam para a violência,
as torturas e execuções capitais. As escapatórias que estavam ao alcance dos
sofredores medievais, não o estavam ao dos seus símiles do século XVII,
simplesmente porque os puritanos eram mais implacáveis ao imporem a sua
vontade e preceitos. Firmemente convictos de que o fim justifica os meios e
incapazes de atingir os seus fins por intermédio apenas da propaganda,
dispunham de meios mais eficazes de organização e, com um ”gauleiter” a
representá-los em cada aldeia, podiam permitir-se uma actuação mais
desapiedada. O sentimento popular, sabe-o todo o mundo, era contrário a tais
extremos, o que fica devidamente demonstrado pelo facto de terem os
puritanos verificado ser-lhes necessário lançar mão de métodos brutais.

Talvez a segunda frase do tópico precedente requeira maior explanação. Em


1641, foi publicado um opúsculo em que se atacava as actividades de uma seita
conhecida pelo nome de Família do Amor, a qual fora fundada por Nicolaes no
século XVI.

Susana Snow, filha de um respeitável fidalgo morador em Pitford, no Surrey,


em conversa, certo dia, com um dos apaniguados de seu pai, pôs-se a fazer-lhe
umas perguntas a respeito das ”novas seitas religiosas”, a querer saber das
novidades que ele teria ouvido relatar sobre qualquer delas. Falou-Ihe o
homem, então, de uma determinada sociedade ”que contava cerca de um cento”
e que ”todo o santo dia se reunia num local particular; esta agremiação tinha a
má fama de andar às voltas com a signa do Demo, em Bagshot. A grande
suspeita, porém, que mais a denegria, era a de que os respectivos membros
eram uns valdevinos quaisquer procedentes de Londres, em todo o caso a coisa
”era o assunto principal que andava na boca de todo a gente, no país inteiro”.
Susana bebeu avidamente tão sensacionais notícias, de tal maneira que, após
uma noite mal dormida, meteu os pés fora da cama, ainda bem não se erguera o
Sol e, tendo engolido às pressas uma refeição qualquer, atravessou no lombo de
um cavalo quartão uma sela amazona e lá se foi, escanchada, tanta era a ânsia
de essa pobre fidalga de atirar ao perigo”.

Chegada aos arredores de Bagshot, foi-lhe dado ver um agrupamento de pelo


menos cem pessoas, entre homens e mulheres, prestes a atravessar a charneca.
Chegou-se, pois, a uma das mulheres andejas e, por artes de astúcia, fazendo-
se passar como quem tinha encontro marcado com a Família do Amor, para o
qual chegava com atraso, pescou-lhe a informação de que se tratava, ali,
realmente, da seita em questão. Foi assim que logrou ingressar para a mesma.
Essa ”Família” tinha os seus ”dias certos, dedicados a uns tantos santos,
segundo é o seu modo de falar”. Entre esses ”santos” incluía-se Ovídio, ”o que
escreveu a ’Arte de Amar’”, e Príapo, ”o primeiro e crapuloso carniceiro que
jamais meteu vergalho em carne e o fez inflar”. Por ocasião das reuniões que
realizavam no recesso dos bosques, ouviam os membros da seita a arenga do
seu cabecilha, o qual ”começava por usar a linguagem mais estranha, como esta,
ou coisa parecida: ’Não nos deixemos persuadir, ainda que muitos há que bem
desejariam que nós o crêssemos, de que o nosso grande deus Cupido é um cego,
porquanto ele penetra entranhas adentro dos mais magnânimos.’
Em seguida a um tal discurso, ou análogo, ele pôs-se a recitar uma parte duma
poesia de Virgílio, os Epigramas: Non stat bene, mentula crassa, tema sobre o
qual passou a tecer toda a sua oração, ventilando estranhíssimas passagens
obscenas do mesmo; feito isso, fazem servir o seu jantar, do qual constam
finas e esquisitas iguarias”.

No decurso das cerimónias, o dirigente da seita tomou-se de uma tal simpatia


por Susana, que ”tinha absolutamente, das duas uma: ou gozá-la, ou sucumbir
de pena”. Assim, quando regressavam todos da floresta, ele apartou-a dos
demais sequazes e encheu-lhe os ouvidos com rebuscadas expressões de
sedução, muito palavroso, como se segue:

”Formosa irmã, dura é a minha sina, que deva eu morrer sem me manifestar, ou
senão ousar vir trazer à vossa presença insólita demanda; porém tão agreste
coisa é a morte, e tão aprazível, em troca, é o lisonjear dos meus anseios, que
eu antes desejo até que se me tenha como inviril, do que impedir-me de revelar
o meu enlevo de amor perante vossa bela pessoa.”

E foi bem sucedido: Susana incorporou-se à grei das demais ”irmãs”, em cujo
convívio permaneceu durante toda uma semana. Finda esta, voltou ao lar
paterno, onde explicou a sua ausência alegando ter estado em casa da tia que
tinha em Oakingham. A mãe sabia que tal era mentira, mas nem assim conseguiu
que a jovem desse outra desculpa. A menina Snow decidiu, então, ficar
casmurra, deixando-se estar, amuada, no seu quarto, sozinha, isto quando não
lhe dava na veneta espatifar copos e louça de barro, às vezes mesmo na cabeça
da criadagem. Os pais, aflitos até ao desespero, mandaram recados a Oxford,
suplicando socorro de um tal Mites Ybder, ”reverendíssimo teólogo”. Mal
chegou à casa dos Snow, foi o doutor em cânones imediatamente levado lá
acima, aos aposentos da jovem, pelos atormentados pais desta. Armando um
sorriso benévolo, penetrou ele no quarto, mas, ao vê-lo, logo se pôs a rapariga,
em voz esganiçada, a gritar ”O diabo! O diabo! Estou perdida! Caí em danação!
Estou amaldiçoada!” e, além destas, muitas outras exclamações horríveis e
danadas.

Mister Ybder procurou tranquilizá-la, garantindo-lhe que estava enganada,


tanto que ela chegou mesmo a consentir em dar-lhe ouvidos, ”mas pouco depois
começou a mostrar-se muito turbulenta e até, por vezes, ofensiva”, a reclamar
copos de água, para logo depois os deitar ao chão com rudeza. Finalmente, foi
aquietada e tranquilizada, mas aí já se dera a perceber toda a melindrosa
história.

Matizes medievais ensombram todo este episódio. Faz-nos lembrar aquelas


alucinações em que havia íncubos, bem como o costume que tinha a Igreja
medieval de denegrir com toda a espécie de labéus imagináveis todos os seus
inimigos. Aos heréticos não acusava apenas de heresia, mas também de
feitiçaria, homossexualidade e até de bestialidade, nada mais nada menos, tudo
junto. Nalgumas dessas vesânicas manias era apoiada pelas fantasias eróticas
dos seus próprios indicados, uns famintos sexuais e neuróticos, cujo estado
mental de alucinação a Igreja mesma tanto tinha feito por estabelecer. Será,
então, que um idêntico processo e mecanismo se repetia no século XVII? A
suspeita de que tal possa ter sido o caso toma difícil deduzir qual a verdadeira
natureza das actividades e do corpo de doutrina da Família do Amor. Não há
meio de se apurar isso de forma exacta, valendo então todas as conjecturas a
tal respeito. Mas, quer encaremos a coisa à luz da fantasia, ou dos factos
comprovados, ela será sempre um exemplo significativo daquilo em que resulta
o exercer-se uma pressão por demais intolerável em quem não é capaz de
suportá-la, ou não está disposto a aturá-la.

A Igreja católico-romana, muito naturalmente, dispunha-se, afanosamente, a


reprimir tais tendências. Todavia, bem sabia o pouco êxito que a esperaria, se
se permitisse prosseguir no cultivo daquela bonomia em que vivera, tão
alegremente, nos anos da Renascença. Para que se possa conter um movimento
de carácter autoritário, há que começar-se por ser também autoritário, e
assim é que, por paradoxal que o pareça, a Igreja de Roma foi adquirindo várias
das características da antagonista a que procurava resistir. tomou-se, mesmo,
extremamente autoritária. A doutrina da infalibilidade papal, na sua
modalidade mais truculenta e irrealista, adveio então, em contraposição à
paixão do puritano por normas e regulamentos alegadamente emanados da
Bíblia mas interpretados, aliás, consoante as conveniências das inclinações
pessoais.

A doutrina da infalibilidade papal acarretava frequentes embaraços... Por


exemplo, o papa Alexandre XI, o Bórgia, erradamente convencido de que a
Terra era plana, traçou uma recta sobre um mapa e decidiu que, conforme
informação que recebera, todos os territórios situados para o lado de oeste
seriam espanhóis e os de leste passariam a ser portugueses. Sem perda de
tempo, os portugueses circum-navegaram o globo para o nascente e, vindo a
desembarcar na América do Sul, tomaram posse daquela parte do continente, o
Brasil4.

É claro que as coisas não foram bem assim; Portugal e Espanha, exercendo múltiplas pressões
sobre o papado obrigaram a que o Papa tomasse essa decisão, mais para evitar conflitos que
por outra razão. E é também certo que por essa altura não tinham ainda os portugueses
efectuado qualquer circum-navegação. Deixemos que a erudição do autor se limite às orgias.
(N. do E.).

À medida que os católicos avançavam por esse caminho, foram-se contaminando


dos mesmos males dos seus inimigos. Indícios da mesma fobia
antiespontaneidade, do mesmo pavor à pesquisa científica ou de qualquer outra
ordem de inquirição; uma intransigente aversão a toda e qualquer verdade que
não condissesse com uma cega fidelidade à autoridade sagrada, formaram-lhe o
bestunto, ao mesmo tempo que criavam a atmosfera propícia à inquisição de um
Galileu, à execução capital de um Giordano Bruno, à tortura, sob os tratos, de
um Campanella, tudo isso acompanhado da recrudescência de uma atitude
mental sádica.

Tempos passados, porém, vieram os católicos a modificar a sua rejeição da


euforia, contanto, todavia, que essa euforia assentasse nas configurações
ortodoxas aceites como condignas e desejáveis pela Igreja. i

com a restauração de Carlos II no trono inglês, a verdadeira necessidade


física, imperante por motivos de autoconservação, abstenção do alívio sexual
ilícito, desapareceu. No entanto, os Ingleses, enquanto povo, não se deixaram
cair imediatamente numa situação universal de deboche. Verificaram-se, é
certo, alucinantes comemorações pelo regresso do rei, algumas das quais
assumiram modos significativos, tais como a erecção de postes de Maio, a
sanha maior das celebrações de esponsais e o porte de trajes mais garridos,
mas entre as pessoas não pertencentes à estouvada grei, constituída pelos
membros da aristocracia agregados à real pessoa, predominava mais o
equilíbrio que o excesso. Já nos círculos cortesãos era um pouco diferente. A
intemperança alcoólica e a incontinência sexual decorrem, muitas vezes, do
muito dinheiro para gastar e, correspondentemente, pouco trabalho que fazer.
Mesmo durante o equilibrado período Tudor, já se manifestavam descomedidos
estróinas, dum e doutro sexo. Refere John Aubrey a respeito de Mary,
condessa de Pembroke, e irmã de sir Philip Sidney: ”Era uma formosa dama e
de brilhante vivacidade de espírito e tivera a melhor educação que aqueles
tempos podiam proporcionar. Tinha uma linda face oval. O cabelo era de um
loiro-avermelhado. Era uma mulher muito lasciva e tinha disposto as coisas de
modo a que, em cada Primavera, época em que os garanhões cobrem as éguas,
eles fossem conduzidos para certa parte da propriedade onde ela arranjara
uma ’espreita’ para daí os observar e gozar com as peripécias amorosas dos
animais no cio; e aí então era ela que se punha a imitar-lhes as folganças com os
seus garanhões humanos. Um deles, e dos grandes, era o corcunda Cecill, conde
de Salisbury.”

Obtém-se uma visão mais surpreendente sobre a maneira como passavam os


seus ócios os aristocratas nas suas casas de campo ao lermos a transcrição do
processo em que foi julgado, a 5 de Abril de 1631, Mervyn, lord Castlehaven,
onde se diz: ”Por ter instigado violação na pessoa da sua própria condessa, por
ter cometido sodomia com os seus servos e por ter dirigido e apadrinhado a
libertinagem da sua própria filha.”

Julgado por um tribunal composto pelos seus pares, em Westminster, por essa
ocasião veio a público uma inaudita história por boca das testemunhas que
foram depor, a saber: os criados do conde, a esposa e a filha do dito.

Os criados haviam sido forçados a violentar a senhora condessa e, depois,


tiveram de dormir com o próprio conde. Dois deles, em particular Antill e
Skipwith, respectivamente, eram os favoritos do conde, sendo que este fizera
Skipwith casar com a fidalga filha.

Lady Audley filha depôs, quando intimada, que: ”Primeiramente, fui persuadida
a deitar-me com Skipwith por artes e ameaças do conde, dizendo-me que eu
nada mais teria a não ser o que me desse Skipwith. Ele viu-me, por diversas
vezes, deitada com Skipwith e, além dele, muitos outros dos criados da casa
nos viram assim. Da primeira vez, ele serviu-se de óleo para me entrar nas
partes porque nessa ocasião eu tinha apenas 12 anos de idade, e habitualmente
deitava-se comigo por arranjo e alcovitice do conde.”

O depoimento da condessa, lady Audley mãe, foi no sentido de que: ”Na


primeira, ou na segunda, noite do nosso casamento, veio Antill à nossa cama e
então pôs-se lord Audley a falar-me com linguagem lasciva, dizendo que o meu
corpo era propriedade sua, e que se eu me deitasse com qualquer homem que
fosse, com o seu consentimento, ’não teria culpa, só ele mesmo a teria’. Fez vir
nu Skipwith à nossa câmara nupcial e até ao nosso leito; e comprazia-se imenso
em convocar ali os seus lacaios, para que exibissem a sua nudez, forçando-me a
contemplar-lhes as vergonhas e louvar os que as tinham mais longas. Um dos
criados de milord, de nome Broadway, deitou-se comigo a mando de Sua
Senhoria e, como eu oferecesse resistência, lord Audley reteve-me as mãos e
um dos pés. Ele deliciou-se a apreciar a execução do acto, tanto que mandou vir
Antill juntar-se a nós, na nossa cama e pôr-se em mim de modo a que ele,
conde, pudesse ver tudo e, embora eu gritasse os meus protestos, ele não fez o
mínimo caso dos meus lamentos, antes incitava ainda mais o meu violador.”

Seguiram-se os depoimentos de vários criados, todos concordantes em


confirmar os das duas damas. Broadway ainda acrescentou que, depois de ter
violado lady Castlehaven, o conde ”serviu-se do meu corpo como mulher”.
Confirmou também o depoimento concernente ao episódio entre Skipwith e a
jovem lady A.: ”E quando ele montou sobre ela, lord Audley ficou ao pé deles, a
instigá-lo a que a emprenhasse, porque ele antes queria ter um rebento (da
formação) de Skipwith, do que da de qualquer outro.”

Outro criado, um tal Fitzpatrick, contou que aquele Skipwith era um grande
favorito junto a lord Audley e que ”regra geral, se deitavam os dois juntos, na
cama”. Ele mesmo, Fitzpatrick, estivera inúmeras vezes no leito com o lord e
acreditava que a maior parte da criadagem masculina tinha feito o mesmo.
Acrescentou, também, que o fidalgo Castlehaven ”tinha em casa uma mulher
manteúda, de nome Blandina, que era amante comum de Sua Senhoria e dos
seus lacaios. A ilustre casa não passava de um bordel como outro qualquer e o
conde deliciava-se não somente com o papel de actor, como também com o de
espectador quando tocava a vez, aos outros homens, de agirem. Certa vez foi
essa Blandina atormentada por ele, juntamente com os seus criados, durante
sete horas a fio, até que ela apanhou a ’doença francesa’”.

A defesa de Castlehaven consistiu em que, de facto, era verdade que os seus


criados se tinham deitado na cama juntamente com ele, mas isso fora apenas
devido a uma temporária escassez de espaço e que toda aquela historieta não
passava, em última análise, de uma intriga armada pelo filho, que desejava ficar
na posse dos seus bens - defesa que não foi bem acolhida pelo tribunal, pelo
que o desgraçado par do reino foi devidamente decapitado.

Toda a surpreendente situação vigente nas várias casas de campo do conde em


Wiltshire pode ser melhor explicada como uma extraordinária fuga à
realidade, com um sabor quase que daquela atitude mística perante as coisas do
sexo, observável em povos mais primitivos, mas já sem a inocência e a
simplicidade dos antigos, ingressando num mundo de desesperada fantasia, qual
faz-de-conta infantil. Esse Castlehaven poderá ter sido mesmo um genuíno
desequilibrado mental, sendo mais provável, porém, que o seu comportamento
fosse um exagerado exemplo a sintomatizar um estado de tédio (ennui) que há
já vários decénios se vinha notando.

Da pessoa do rei Carlos, verdadeiramente, pode dizer-se com sinceridade que


se destacava, entre os elementos de sua corte, como homem que não se
conformava com a universal feição circundante. Pode ter sido quase que
insaciável nos seus desejos sexuais. Pode ter sido inescrupuloso quanto aos
meios de que se serviu para se apossar das mulheres que cobiçou, dando
pouquíssimo de compensação aos desventurados maridos delas. Embora fosse
extremamente feio, podia permitir-se, uma vez possuídas essas mulheres,
descartar-se delas e arranjar outras com uma caleidoscópica rapidez. E havia
nele ainda uma outra faceta de personalidade. Tendo um físico atlético, descia
até Putney, pelas tardes de Verão, para ir nadar no rio e, todas as manhãs,
enquanto os restantes jaziam exaustos na cama, devido aos excessos da noite
anterior, ele, pelo contrário, erguia-se com o Sol e saía a fazer duas horas de
ténis bem puxado, no pátio do palácio. Despachava uma quantidade fenomenal
de negócios de Estado, possuía uma finíssima astúcia no trato tanto de coisas
de política como de finanças. Interessando-se por tudo, discorria, durante
quatro sucessivos turnos de passeios pelos jardins palacianos, com lordEvelyn,
sobre astronomia, supressão de fuligens, arquitectura e jardinagem, a sua
colecção particular de curiosidades e o mundo das abelhas.
Mas Carlos era uma excepção. Já despontavam os prenúncios daquele elemento,
a crueldade, que a princípio foi uma crueldade do tipo renascentista, mas, na
viragem do século, já exercia uma medonha fascinação nos que a punham em
prática - horrenda reedição do antigo caso romano, que já conhecemos.

De início, essas coisas passavam-se entre a gente da corte, mas acabaram por
alastrar entre o resto da população como uma espécie de atitude
desassombrada, salutar, realmente sincera e franca perante a vida. Estava-se
enjoado com aquele interminável auto-refreamento, de constantes
recriminações sobre o estado de pecado em que se acharia a consciência e, tal
como se fizera no tempo da Renascença, tratou de suprimir-se o jugo daqueles
órgãos, desprender-se de todos eles. Em Claydon houve um velho lavrador que
bebeu a taça da comunhão até a última gota, clamando zangado que fazia
questão de aproveitar inteirinho o valor do seu dinheiro, pois ”o facto é que ele
pagara por aquilo”. Em Londres, ao fazer arder manipanços representando
efígies do Papa e dos seus cardeais, entre o estalar de fogos-de-artifício e
uivos de abominação, ouviam-se ganidos de agonia sair de dentro dos bonecos,
que, para esse pormenor realista, tinham sido ”recheados” de gatos vivos.
Abespinhar-se alguém pelo mínimo agravo era uso corrente: fidalgote que se
sentisse acotovelado no meio de uma multidão, o mais certo era atravessar com
a sua lâmina o atrevido ”engraçadinho”, sem perder tempo a pensar duas vezes
antes de o fazer.

Figura típica da época foi sir Charles Sedley, homem de espírito e dramaturgo,
a quem Carlos II fez um cumprimento dizendo-lhe ”que lhe dera a Natureza [ao
dito lord Sedley], patente de vice-rei de Apoio”. O fidalgo era casado com uma
jovem católica romana que, desgraçadamente, desde cedo pareceu ser
indiscutivelmente louca, exibindo uma fantástica vaidade, acabando, por fim,
por exigir persistentemente que a tratassem por ”Majestade”. A filha de
Sedley, Catarina de nome, foi, durante um certo tempo, a favorita de James,
duque de York. Ora, fosse devido às suas desavenças conjugais, ou, o que é mais
provável, por força das suas taras pessoais, Sedley granjeou logo a reputação
de ser o mais descomedido de todos os devassos. Conquanto geralmente
reconhecido como um sujeito divertido e como tal proclamado, existia nele uma
veia de ressentimento, tanto que mandou aplicar, por alguns sicários, uma
tareia em Kynaston, por este o ter parodiado, de forma ridícula, nos modos e
no vestir. Por meados de 1663, andou à luta com uma súcia de outros estróinas
do seu género por causa de uma orgia na Taberna do Galo, na Rua do Arco (Bow
Street). Há uma entrada no Diário de Pepys versando o assunto, assim:

”Dia 1.° de Julho de 1663... e depois de jantar, pusemo-nos a tagarelar, nós


três, sir J. Minners, Mr. Batten e eu, tendo Mr. Batten contado de um recente
processo-crime a que respondeu sir Charles Sedley, ainda não há muitos dias,
perante o Desembargador-Real Póster e toda a corte de justiça, em peso, por
causa de uma das suas orgias mais recentes, na casa de Kate, de Oxford,
quando ele se expôs à vista de toda a gente em completa nudez no balcão da
janela... e por ter ofendido as Santas Escrituras, a fingir que pregava, dali, um
sermão bestialógico de cima do púlpito, clamando possuir ali consigo e oferecer
à venda uns pós de tal poder que seriam capazes de fazer com que todas (as
mulheres) daquela cidade lhe saíssem a correr no encalço e, após a façanha,
apanhou um copo de vinho... e emborcou-o de um golo, fazendo-o seguir de um
outro que bebeu à saúde do rei.”

As reticências do parágrafo anterior constam da edição de Wheatley, a mais


integral de que se dispõe. O leitor poderá, com a sua perspicácia, preencher
por sua conta as lacunas apresentadas.

O Dr. Johnson, na sua obra Lives ofthe Poets, oferece-nos a versão abaixo
citada, acerca do referido incidente. ”Sackville... juntamente com sir Charles
Sedley e sir Thomas Ogle, embebedou-se na (Taberna do) Galo, à Rua do Arco,
no bairro de Covent Garden, e passando para o balcão da janela da rua,
expuseram-se, todos os três, à vista do povo, em atitudes muito indecentes.
Por fim, e à medida que mais se assanhavam, Sedley colocou-se à frente,
completamente nu e discursou à turba em termos tão indecorosos que
chegaram a provocar indignação pública; o povo tentou forçar as portas e,
sendo repelido, obrigou, à força de pedradas, os exibicionistas a recolherem-
se, de tal maneira que ficaram rebentadas as vidraças de todas as janelas do
prédio. Os fidalgos foram autuados por causa desta desordem.”

A Sedley tocou uma pesada multa de não menos do que dois mil marcos e - di-lo
Pepys - ”os juizes, todos e um por um, passaram-lhe uma severíssima
reprimenda; dizendo o Excelentíssimo Senhor Desembargador-Ministro do
Supremo que ’por culpa daquele e de uns tantos outros iguais desgraçados
malfeitores é que a cólera e o irado julgamento de Deus pendiam ameaçadores
sobre as nossas cabeças’, isso dizendo enquanto o ia tratando sempre pela
forma abjecta e desprezível de ’sirrah’, em vez de ’sir’”.

Cinco anos depois, já se metia de novo Sedley em dificuldades, pois relata-nos


o Diário de Pepys, na entrada relativa ao dia 23 de Outubro de 1688, o que se
segue: ”Neste dia refere-me Pierce, entre outras novas, a mais recente
travessura e relaxamento de sir Charles Sedley e de Buckhurst, os dois a
correrem as ruas para cima e para baixo, a noite inteira, com as nádegas à
mostra, acabando por se atracarem em luta corporal com o alguazil da vigília
que os surrou e os atirou para uma cela por todo o resto da noite.”

Buckhurst, que fora o primeiro homem a trazer manteúda a famosa Nell Gwynn
(paredes-meias com a Taberna da Real Cabeça, em Epson, onde ele, a tal Nell e
Sedley mantinham uma ”casa alegre”, como Pepys veio a descobrir da vez em
que ficou naquela hospedaria), e que também tinha sido detido por mais de uma
vez (da primeira delas, por homicídio), era um sujeito quase tão desbragado de
costumes quanto Sedley, mas desta vez o rei estendeu-lhe a sua protecção, não
somente moral mas também efectiva, já que, segundo parece, se achava
envolvido igualmente na festança da noite citada. O mísero alguazil que
procedera à detenção ”pagou... bem caro, devendo justificar-se em sessões
ulteriores da justiça, facto positivamente vergonhoso ao extremo”.

Entre outras façanhas, conta-se da altercação que teve com o reverendo


Gilbert Sheldon, Arcebispo de Cantuária (Canterbury), de quem tira o nome o
Teatro Sheldoniano, em Oxford. O caso, conforme o regista o Diário de Pepys,
sob a data de 29 de Julho de 1667, passou-se assim:

”De entre outras coisas sobre que discorria, meu primo Roger contou-nos como
sendo um facto verídico que o Arcebispo de Cantuária, que o é agora, tem, sim
senhores, uma caseira como o que se pode chamar de caseira, amancebada; e
por aí fora, seguiu o primo a contar-nos ainda ser público e notório que sir
Charles Sedley arrebatara ao dito prelado uma de suas amantes, pelo que o
referido lhe mandou um recado, dizendo que a tal era sua familiar e muito se
admirava de ver o fidalgo trazer desonra e vergonha a pessoa aparentada com
ele, arcebispo. Ao que teria respondido sir Charles Sedley: ’Que a varíola
consuma Sua Graça! Tende a bondade de dizer a Sua Graça que eu acho é que
ele já é muito velho e daí que tenha medo de que eu o suplante junto às suas
damas e lhe estrague a vida.’”
É difícil saber, ou sequer adivinhar, o quanto haverá de verdade em toda esta
história.

Sedley sobreviveu o bastante para alcançar os começos do século XVIII, no


qual mais adequadamente teria vivido, mas em 1680 foi gravemente debilitado
por uma concussão sofrida quando uma instalação de pátio de ténis veio abaixo;
depois deste acidente, ao que parece, nunca mais se refez completamente, a
ponto de, nos seus últimos anos, lhe ter dado a maluquice para a mania
religiosa.

De qualquer forma, tal modo de vida, nas suas formas extremadas, restringia-
se à estouvada roda fidalga dos cortesãos. As peças teatrais da Restauração
são muitas vezes citadas como espelhos da geral libertinagem prevalente na
época. O teatro era então sustentado quase que inteiramente pelas classes
superiores da sociedade. As casas de espectáculos já eram, nesse tempo, e
viriam a sê-lo ainda mais no século seguinte, fornecedoras de fêmeas e
ambiente consagrado para diversões desenfreadas.

O rei Carlos ter-se-á esforçado, quiçá apenas episodicamente, para preservar


um certo grau de compostura entre a sua corte, possivelmente numa tentativa
de rivalizar com o seu emulo de além-Mancha, o rei Luís XIV. Fez o que pôde
para conter a bebedeira dentro de limites moderados e, para ele, conduta
liberal não significava desenvoltura de linguagem sem peias, tanto assim que
expulsou da corte Henry Killigrew por esse fidalgo ter dito que Barbara
Villiers fora, desde o início da puberdade, ”uma rapariguita depravada”. Esse
banimento da corte é tanto mais de estarrecer - ou tanto menos, se optarmos
pela atitude sarcástica - porquanto a acusação era, sem sombra de dúvida, bem
fundamentada. Destacava a personagem, entre todas as demais amantes reais,
o facto de a sua conduta ser inspirada mais pela luxúria, simples e sem mistura,
do que pelos motivos políticos ou financeiros. Ainda não contava 15 anos de
idade, quando estabeleceu com lord Chesterfield uma liaison; e muito tempo
depois de já andar no seu arranjinho com o rei Carlos, ainda continuava a
dormir com uns e com outros, às claras e amiudadamente. O seu procedimento
granjeou-lhe a antipatia pública, parte da qual se manifestou num boletim
contendo uma mofina avulsa sob a epígrafe de ”O Requerimento das Rameiras
Pobres”.
Apesar do seu pretenso decoro, o rei Carlos, uma vez ou outra, deixava-se cair
numa atitude menos contida com as suas amantes. LordEvelyn legou-nos a
narração de algo que ocorreu em Arlington, Euston, ”naquela vez em que a casa
inteira formigava, de um extremo ao outro, de lordes, de suas damas e de
pelintras; colocando-se aí uma grande mesa de banquetes tão carregada de
iguarias que coisa tal raramente vi de semelhante, muito menos de esplendor e
liberalidade maiores”. Suspeita-se que esse lord Evelyn, velho e disfarçado
hipócrita que era, terá visto muito mais e sabido de muito mais do que o que
deixa transparecer, embora o motivo essencial que o animou a transmitir-nos a
historieta que a seguir se transcreve pareça ser safar-se sem mácula.

”Outubro de 71. Espalhava-se universalmente que a formosa Senhora Barregã


fora levada ao (real) leito uma dessas noites, sendo a sua meia atirada (aos
circunstantes), à maneira como é de uso fazer-se para com as noivas
legitimamente desposadas (ao recolherem ao tálamo). Por mim, o que sei é que
ela passou o dia quase despida, coberta apenas com as suas peças mais íntimas,
e que houve muito manuseio e muita gracinha e lascivo aconchego com a jovem
libertina. Nunca vi nem jamais ouvi falar de coisa tal como aquela enquanto lá
estive, muito embora tivesse eu estado na câmara dela, bem como por todo
aquele apartamento até altas horas e pessoalmente observei todas as
passagens com intensa curiosidade. Entretanto, acredita-se piamente que ela
se tomara primeiramente uma ’misse’, que tal é a designação que conferem, a
tais infortunadas criaturas, e com solenidade, dessa vez.”

Uma razão mais sólida para dar crédito aos boatos foi fornecida exactamente
nove meses mais tarde, com o nascimento das entranhas dessa formosa
Senhora Barregã - Louise Penancoet de Kéroualle - de um rebento que, segundo
era crença geral, seria obra de Carlos, o rei.

A violência do tipo renascentista e os desabridamentos sexuais da Restauração


poderiam ser atribuídos a um grupo limitado e bem poderiam, também, ser
estranhos ao carácter pessoal do próprio soberano.

A violência, todavia, havia de se revelar tão contagiante e de tal maneira


virulenta como o fora para o Império Romano, e o estado supremamente agudo
do mal manifestar-se-ia, também e se tal é possível, de forma ainda mais
execrável.
CAPÍTULO QUINTO

OS MEDMENHAMITAS E OS LIBERTINOS
GEORGIANOS
O século XVII foi, marcadamente, a era dos ”clubes”. Em nenhuma outra época,
os homens animados de interesses análogos denotaram tal propensão a
juntarem-se em sociedades formalmente instituídas. Esta nota aplica-se
precisamente tão bem àqueles portadores de má fama, como aos que se
inspiravam em propósitos dignos de respeito. No decorrer desse século
acentuou-se, em ambos os tipos de associação, uma definida tendência para
uma cada vez maior formalização, logo, consequentemente, para se imporem
mais e mais normas e regulamentos. Houve também, no seio da grei mal
conceituada, tendência para se fazerem cada vez mais respeitáveis ou, quanto
mais não fosse, cada vez menos violentas. (Semelhante tendência reflectia-se,
é claro, através de toda a trama da teia social.)

Nos primeiros anos do dito século, os clubes de libertinos, cujo número, em


Londres, era bem avultado, ainda deixavam perceber, de modo mais do que
evidente, que provinham da ”rapaziada ribombante” do século anterior. Os
garanhões e os pelintras andavam pelas ruas, acima e abaixo, aterrorizando os
mais velhos, batendo nos alguazis da guarda-nocturna, rebentando janelas e
cometendo outras ousadias tais como violações e até, às vezes, assassínios.
Penduravam de cabeça para baixo, sobre a sarjeta, pobres meninas, e metiam
as senhoras idosas em barricas que, com um pontapé, faziam descer calçada
abaixo pela Ladeira da Neve (Snow Hill). A violência estava na ordem do dia, do
que dão testemunho clubes tais como o ”Mohawks” e os ”Mata-homens”. O dos
mohawks, imitando a famigerada tribo pele-vermelha, aterrorizou a cidade
durante um largo período. Os seus membros inventaram um ”passatempo”que
denominaram ”fazer de leão”. Consistia em achatar brutalmente o nariz dos
transeuntes, ao mesmo tempo que faziam estufar e arregalar os olhos das
pobres vítimas que tinham tido a desgraça de lhes cair na emboscada. Levavam
com eles um aparelho especialmente criado para distender cavidades bucais, e,
a alternar com essas brincadeiras, permitiam-se rachar as orelhas do
prisioneiro. Não há nenhuma dúvida de que existiam vários clubes desse tipo em
Londres, no decurso dos dois ou três primeiros decénios do século, e que as
suas actividades a tal ponto ultrapassaram o que é brincadeira grosseira, que
foram sendo gradualmente postos fora da circulação e existência. Só de então
em diante, isto é, desaparecidos todos, é que o pelintra do século XVIII se viu
constrangido a dar vazão às mais discretas formas de vício.

Existia, nesse tempo, um grande número de bordéis, casas de passe e tabernas


de má fama em Londres, não havendo então nenhuma escassez de prostitutas
para guarnecer todos esses estabelecimentos. Gozavam, aliás, da vantagem de
um eficiente anúncio publicitário, dado que se publicava anualmente a ”Harris
List of Covent Garden Ladies” (como quem diz, Catálogo Harris das Damas de
Covent Garden), que enumerava pormenorizadamente os encantos físicos e as
”habilidades” de todas as rameiras de mais nomeada na cidade. (E tal êxito
obteve esta empresa publicitária, que esse mesmo Harris veio a editar, tempos
depois, um catálogo análogo e suplementar referente à congénere confraria
feminina de Piccadilly.)

O vício de primeiro plano daquele tempo era, porém, a bebida, não a


imoralidade sexual; mas uma coisa puxa a outra, de forma que, embora a
grande maioria dos clubes de libertinos jamais contasse com a presença de
mulheres nas suas reuniões, estavam sempre a falar nelas e, repetidamente,
iam acabar as suas noitadas numa visita a algum bordel ou teatro onde era
certo encontrarem rameiras e ”mulheres faladas”, com fartura e fácil escolha.
Ned Ward, jornalista e escritor que nos legou a sua The Secret History of
Clubs, descreve uma noitada típica dos sócios do Beaus’ Club (Clube dos
Rapazes Bonitos). Após se terem suficientemente encharcado de ”champanhe,
Borgonha e Hermitage”, serviram-se das suas caixas de rapé e, uma vez
aliviadas as ventas, passaram a beber à saúde ”duma qualquer libertina, galinha
do Mercado do Feno (Haymarket), ou hetera da corte”. Esse brinde foi seguido
de uma longa dissertação, versando a circunstância de ser dotada a dama
homenageada de ”covinhas, húmidos labiozinhos lúbricos e uns embriagadores
seiozinhos lascivos, com todas as demais mostras exteriores de que a
encantadora e ilustre pessoa em questão dispõe para dar a entender que é uma
infatigável companheira de leito”. E, após terem emborcado copázios
suficientes para lhes insuflar a conveniente coragem e acumulado o devido
entusiasmo ao proferirem tais saúdes, atiram-se ao teatro ou, mais
exactamente, ”ao assalto às beldades mascaradas que perambulam ali pela casa
do teatro metidas nos seus folhos de segunda-mão, dispostas a descerrar a
portinhola do jardim zoológico do amor a qualquer aventureiro audaz que
alimente a ousada ambição de pôr o seu canicho a correr”.
As mulheres de má vida, de todas as proveniências, costumavam frequentar as
galerias de baixo preço dos teatros, a que granjeavam acesso, pode-se bem
imaginar por que meios, os quais, pelos vistos, não compreendiam qualquer
desembolso de dinheiro por parte delas. Nem todas, no entanto, faziam o seu
comércio nos teatros. Fundara-se, por volta do ano de 1670, um certo clube
conhecido pelo nome de The Dancing Club (Clube da Dança). A sociedade que o
constituía compunha-se, principalmente, de ”valentões, libertinos e rameiras” -
diz o citado Ward, que se mostra arrasador (e divertido) no seu relato e
descrição dos membros da agremiação. ”Não havia limitação de número nem
restrição quanto a qualificações para o ingresso nos quadros deste clube,
bastando a qualquer um que soubesse rebolar as ancas e mexer-se ao ritmo de
uma peça de música.” Compareciam meretrizes de porta aberta, como a
conhecida Oyster Moll, por exemplo, ”cujo cabeludo traseiro estava sempre
disposto a submeter-se à rude prova do ”gantlope”’ aplicado por uma dupla fila
de guardas da Real Infantaria; e sem dúvida que ofereceram a sua eficiente
colaboração a bem do melhor andamento das coisas, muito embora pareça que
ambos os sexos ali vieram ter com o primordial intuito de se proporcionarem
satisfação específica (”para afinarem os ânus, mediante uma espécie de dança,
ao jeito de certa outra dança”). Assim, dificilmente é de surpreender que a
festança fosse um sucesso. E a verdade é que o mestre de danças fundador da
casa muito em breve se viu forçado a mudar as instalações para um prédio de
mais recursos e comodidade. As dançarolas que lá se verificavam eram
desbragadas e coribânticas orgias, absolutamente nada do tipo respeitável que
se professava na maior parte das escolas de dança. A sociedade presente
desde logo chegou a um estado de paroxismo, ainda que, segundo Ward, não
propriamente de elegância. Ao que parece, compunha-se ela, essencialmente, de
criadagem que conseguira apossar-se temporariamente de vestuário dos seus
amos e das suas senhoras, mas também se encontrariam ali jovens pelintras
esperançosos de obter, e com muita probabilidade de consegui-los, os favores
de alguma criada de servir. Ward tece extensos e volúveis comentários sobre o
estouvamento e o esperneio endiabrado dos dançarinos, e acrescenta ainda que
se dispunha de quartos de repouso, para serviço de quem se sentisse tomado do
desejo de passar a outro género de dança; mas, ao que parece, careciam alguns
dos foliões do lastro de recursos financeiros com que pudessem auferir as
vantagens desse luxo, pelo que sucumbiam aos seus impulsos ali mesmo pelo
soalho, por entre as pernas dos outros dançarinos.
Assim sendo, é de crer que muitas prostitutas profissionais compareceriam a
funções semelhantes, mais ou menos particulares, umas vezes a convite, outras
por artes de intriga e astúcia e conta própria. Era frequente os bailes de
máscaras providenciarem desculpa e pretexto para se envergarem fantasias
inconvenientes, ou até imorais.

Lady Elizabeth Montague faz uma interessante descrição da ”fantasia”


apresentada por uma tal Miss Chudleigh num baile de máscaras de 1750:

”Miss Chudleigh veio vestida, ou melhor, despida, de maneira muito curiosa.


Representava ’Ifigénia antes do sacrifício’, mas era tal a escassez de
cobertura sobre si, que o Sumo Sacerdote não experimentou dificuldade
alguma em proceder a um detido exame da ’vítima’. As senhoras presentes, que,
por sinal, nem por isso estavam lá muito circunspectamente vestidas, ficaram
tão revoltadas, diante de tal desfaçatez, que daí por diante passaram a
recusar-lhe a palavra.”

Alguns dos degenerados da época, mais abonados de riqueza, eram propensos a


honrar com a sua presença as folias da ralé. Homens do estofo do coronel
Charteris, que era ladrão, vigarista e cobarde, e que fora sentenciado em 1730
por ter violado a sua camareira, e de quem escreveu Arbuthnot no Gentleman ’s
Magazine que teimava, ”a despeito da idade e dos achaques, em cultivar toda a
espécie de vícios da humanidade, com excepção do da prodigalidade e da
hipocrisia”, e que mantinha um harém particular no seu castelo de Hornby, sob
a administração duma velha proxeneta - tais indivíduos podiam bem permitir-se
prazeres mais recatados.

William Douglas, o Velho Q, gozava da fama de promover orgias infames no n.°


138 da Rua Piccadilly e na sua mansão de Richmond. Algumas subtis indirectas
foram dirigidas à vida que levava, falando-se de sua casa como sendo a sede de
”volúpias orientais” e ”requintada sensualidade”.

Morreu em consequência de ter comido frutas em demasia, conseguindo porém,


por meios lícitos ou ilícitos, manter-se sexualmente activo até ao fim.

Sir Francis Dashwood tinha sociedade nos proventos da casa de passe gerida
por Mrs. Stanhope, perto de Drury Lane, o que indubitavelmente lhe foi útil
como fonte provedora de ”material” para as suas próprias expansões pessoais
em Medmenham e West Wycombe. A ausência de uma combinação simultânea
da vida sexual e a vida de clube não incomodava os libertinos, sempre
habilitados a encaminhar as suas reuniões para algum bordel, como os de Molly
King, da mãe Douglas, de Mrs. Gould, ou mesmo para casa da célebre Mrs.
Goadby, a qual, após uma viagem a França, introduziu no seu estabelecimento
uma ampla série de inovações e requintes, para enriquecer a vida hetérica
inglesa com maiores seduções. Aí podiam ter a seu serviço manjares, bebidas e,
naturalmente, moças.

Se as relações sexuais com prostitutas merecem porventura a qualificação de


satisfatórias, então o século XVIII foi época em que o gozo mercantilizado
provavelmente mais se mostrou apetecível. Os bordéis da Londres do século
XVIII podiam ser aproveitados para festas particulares e, assim, eram
equipados e geridos de maneira a mostrar que os seus proprietários, de
qualquer modo e a todo custo, levavam as suas responsabilidades profissionais
muito a sério.

A mencionada Mrs. Goadby traçou um regulamento muito rigoroso a ser


observado pelas suas pupilas. Os hábitos de comer e de beber destas eram,
particularmente, objecto de severa fiscalização. O freguês tinha de ser
satisfeito, sempre e de qualquer maneira.

O famigerado Casanova visitou a Inglaterra e procedeu a uma investigação em


tomo da vida cortesã da capital do país. Ao fim de uma noitada passada em
companhia de um amigo e duas raparigas, surgiu a ideia de dançarem, nus, a
”Rompaipe”. Arranjaram uns músicos de olhos vendados, fecharam as portas,
mas Casanova negou-se a tomar parte na brincadeira e não se deixou
impressionar muito por ela.

”Foi aquele um desses momentos em que se me revelaram muitas verdades.


Naquela ocasião, percebi que os prazeres do amor são uma consequência, e não
a causa, da alegria. Estavam ali, diante dos meus olhos, três corpos magníficos,
admiráveis pela frescura da sua juventude e regularidade das suas linhas, os
seus movimentos e gestos, até mesmo a música, era tudo empolgante e sedutor;
porém, nenhuma emoção brotou daquilo tudo para vir revelar que eu era
sensível ao espectáculo.”
Tratou-se aí, inequivocamente, de uma pequena festa particular. Todos os
bordéis de alta categoria eram mantidos sob o sistema ”salon”. A clientela
reunia-se na respectiva sala de visitas, à saída dos teatros. Charlotte Hayes,
que foi lesta a acompanhar o exemplo de Mrs. Goadby, dotando as suas
pequenas de vestidos, relógios e brincos de ouro, teve um bordel em King’s
Place, no Pall Mall, cujos visitantes, di-lo Bloch (Sexual Life in England), ”eram,
quase todos, uns libertinos impotentes, que precisavam de tudo quanto é
estímulo possível para a satisfação da sua lubricidade”.

Charlotte Hayes enviou um dia aos seus fregueses um convite assim redigido:

”Mrs. Hayes recomenda-se, muito respeitosamente, a lord X e toma a liberdade


de avisar Sua Senhoria que esta noite, às 7 horas em ponto,

lindas ninfas, virgens sem mácula, realizarão a famosa Festa de Vénus, tal como
se faz no Taiti, sob a direcção e chefia da Rainha Oberea (cujo papel será
assumido pela própria Mrs. Hayes em pessoa).”

Hawksworth, que foi companheiro de viagens do capitão Cook, contara que, no


Taiti, ”os rapazes e as moças copulam muita vez publicamente, sim, à vista de
todo o mundo, e, enquanto isso, vão sendo orientados com sábios conselhos a
respeito, da parte dos apreciadores, normalmente mulheres, entre cujo número
se acharão os habitantes mais importantes. Assim é que as meninas (de 11 anos
de idade) ficam habilitadas e práticas já desde cedo”.

Mrs. Hayes, ao ler a narrativa de Hawksworth, decidira levar a efeito idêntica


cerimónia na presença dos seus hóspedes de King’s Place. Segundo Bloch,
responderam ao convite vinte e três pessoas, contando-se entre essas cinco
membros da Casa dos Comuns.

”Pontualmente, ao bater das 7 horas, começou a festa para cujo


desenvolvimento, no que se referia ao papel a representar por homens, Mrs.
Hayes contratara doze rapazes atléticos. Esses jovens, juntamente com as
ninfas, puseram-se então a celebrar a Festa de Vénus taitiana ali à vista da
extasiada assistência; depois, serviu-se um sumptuoso banquete.”

Miss Falkland tinha um bordel conhecido por Templo dos Mistérios, onde, ao
que se dizia, tinham lugar orgias de natureza inenarrável e, infelizmente,
também misteriosa. Tinha ainda essa dama dois outros bordéis, um deles uma
casa de aprendizes, conhecida pelo nome de Templo de Flora, e o outro, Templo
de Aurora.

Um género mais moderado de gozo sexual forneciam-no as raparigas


”atitudistas”, que se despiam completamente e, assim nuas, postavam-se em
atitudes estatuárias sobre uma mesa colocada ao centro do salão. Uma dessas
jovens, que atendia pela alcunha de ”Posture Nan”, foi uma afamada mestra
nessa arte de então.

Tal costume foi censurado por ”Urbanus” no seu The Midnight Spy. Descreve
uma cena dessas, passada num bordel da Rua Great Russell:

”Contemplai aquela coisa que nos causa, simultaneamente, repulsão e piedade.


Estirada no chão, jaz uma bonita mulher, oferecendo à vista de todos
precisamente aquelas partes do seu corpo que, não estivesse ela inteiramente
destituída de vergonha, procuraria esconder o mais zelosamente possível. Dado
que lhe deixam beber, ela já chega ali, geralmente, meio embriagada, de modo
que, com mais dois ou três copos de Madeira, já não hesita em expor-se
daquela forma inconcebível. Vede, ei-la, agora, de gatas, a quatro pés, como um
irracional. Os homens que a rodeiam escarnecem dela, sem deixarem de
saborear de olhos arregalados semelhante prostituição daquela incomparável
beldade.”

Sob certo aspecto surpreendentemente notável, a vida sexual inglesa, durante


esse período, não primou em desejabilidade, muito embora tal pudesse ter
sucedido no que toca à subtileza e à organização.

Visto, como o vimos, o que se deu durante a era romana, não nos podemos
espantar de que a violência prevalente na primeira parte do século se
atrelasse, desde logo, ao sexualismo - se é que não tinha já a sua origem e base
nele. Numa era de liberdades como o eram a Renascença e a Restauração - e o
século XVIII -, espera verificar-se que a atitude do homem perante as
mulheres seja a de igualdade, senão de ligeira superioridade, e que tal atitude
se reflicta em todos os aspectos da vida. No que se refere aos dois primeiros
períodos, essa expectativa cumpre-se. Mas no terceiro citado, ela é
violentamente negada. O galã desse tão falado ”tempo áureo” bem podia
imaginar-se desprovido de todas as algemas e, de facto, num certo sentido,
era-o; mas, para o seu próprio inconsciente, ele não passava de um autêntico
escravo. A sua atitude para com as mulheres, conquanto profunda e
francamente sexual, assentava em sentimentos de ódio e hostilidade. O elo
existente entre violência e sexualismo, nesse período, era forte, como já o
referi. É nesse século que aparecem pela primeira vez, e sob as suas mais
violentas e extremadas formas, as três manias características: a do
”desfloramento”, a da caça a raparigas ainda impúberes, e a ”flagelomania”.

Desflorar uma rapariga pode bem ser considerado uma agressão, um acto de
hostilidade. Na literatura pornográfica da época, insiste-se sobre os gritos de
dor e o clamor por socorro que lança a vítima, e mais ainda sobre a presença do
sangue, da humilhação, do pavor. A cópula com rapariga em quem não se
despertaram completamente ainda os instintos sexuais, considerando-se o
ponto de vista dela, representa um assustador e cruel assalto. Assim sendo, o
acto sexual, em vez de ser uma fonte de prazer para ambos os participantes,
relacionou-se com a degradação da mulher, um meio concedido ao homem para
exibir a sua superioridade e manifestar-lhe o seu desprezo. (Taine descreve o
”Don Juan” inglês como imbuído de um ”orgulho indomável, o desejo de subjugar
os outros, o gosto de provocar brigas cruéis, a necessidade de exibir
ascendente - tais são as suas características dominantes”.)

A procura do artigo era atendida pelos alcoviteiros de profissão e pelos


proxenetas (os quais não ignoravam os numerosos recursos de que se podia
lançar mão para falsificar virgindade), fornecendo tais agentes um
correspondente contingente de ”virgens” e ”mocinhas impúberes” - às vezes até
verdadeiras, sem terem razão de ser essas aspas de cepticismo.

Decorre de tal situação até à mania da flagelação um curto passo a transpor. A


quantidade de literatura pornográfica que versa sobre essa perversão e que se
publicou no decurso do século XVIII quase que ultrapassa a credibilidade.

O instinto sado-masoquista encontra-se presente em todas as pessoas, em


maior ou menor proporção, e tem alguma influência no efectivo exercício das
relações sexuais de cada indivíduo.

Bartolinus afirma: ”Os persas e os russos vergastam as suas mulheres a golpes


de vara no traseiro, antes de efectuarem o dever conjugal. A recém-casada, na
Rússia, preferiria passar sem qualquer outra peça de serventia em sua casa do
que lhe faltarem os bastões. Os ditos objectos jamais são empregados para
castigo real, mas unicamente para aquela finalidade erótica supramencionada.”

Nessa instância, a motivação é conscientemente sexual, e a flagelação é então


aplicada meramente como uma espécie de preliminar de cópula - não em função
do acto sexual, por si mesmo. Já no século XVIII, porém, eis que esse gesto em
breve se tomou, de facto, um acto sexual, dado que a atitude do sádico ou
masoquista em face dos reais motivos do seu comportamento ficava cada vez
menos franca e cada vez mais envolta em simulação.

O vício espraiou-se com extrema rapidez; os flagelantes, dum ou do outro sexo,


activos e passivos, heterossexuais ou homossexuais, logo se contaminaram com
a praga. Dum modo geral, os homens tendem à flagelação passiva, ao passo que
as mulheres são mais propensas para a activa. E não há aqui o paradoxo que, à
primeira vista, aparenta. É que somente podemos provar o nosso ascendente, ou
a nossa submissão a um jugo, quando paira alguma dúvida a esse respeito. Pela
mesma razão, a percentagem de flagelantes homossexuais de ambos os sexos é
ligeiramente mais elevada do que a que se verifica entre heterossexuais.

Não sendo, de maneira nenhuma, universal a prática da flagelação, ainda que


seja tremendamente espalhada, não consegue ela ser tão facilmente satisfeita
como o conseguem os desejos mais normais. Os flagelantes, portanto, tendiam
a congregar-se em clubes e bordéis. Um bom número destes últimos,
inteiramente dedicados a actos desse tipo, foram desde logo organizados pelos
vários representantes da classe dos proxenetas, de olho vivo para o dinheiro, e
talvez eles próprios portadores de uma tara de sadismo. A rainha dos
flagelantes foi a senhora Teresa Berkeley, que, na sua casa no número 28 da
Rua Charlotte, em Portland Place, ”era mais que mestra na sua arte, perita em
adivinhar as diversas fantasias dos seus fregueses masculinos, caprichos que
ela satisfazia pela maneira mais requintada: era ao mesmo tempo uma
excelente mulher de negócios, tanto que amealhou uma considerável fortuna”.
(Ganhou 10 000 libras em oito anos, vivendo sempre no ^meio de grande
conforto.) ”O seu arsenal de instrumentos ’de serviço’ era imensamente mais
completo do que o de qualquer outra governanta... No seu estabelecimento,
quem quer que dispusesse de razoáveis recursos podia fazer-se surrar à
bengala, com vergalhos, chicote ou correias, podia ser espetado com agulhas,
semiestrangulado, arranhado a escovadelas ásperas de uma série de escovas
grossas, vergastado com ramos de urtigas, penteado com um escovão de alisar
pêlo de cavalo, ferido até fazer sangue e torturado de mil maneiras, até dizer
’chega, estou satisfeito’.” É Bloch quem o diz.

Para além de tudo isso, Mrs. Berkeley inventou ainda o ”cavalo da Berkeley” ou
”cavalete” - ”que consistia numa escada ajustável, que se podia estender até
uma considerável distância e sobre a qual a vítima era fortemente atada com
correias, deixando-se livres, por aberturas, a cabeça e os genitais. Nas
Memórias deixadas pela senhora Berkeley vem uma gravura em cobre,
mostrando-nos o cavalete em funcionamento. Bloch acrescenta pormenores a
essa ilustração, colocando Mrs. Berkeley, ajudada por uma sua assistente,
sentada por baixo do tal cavalete, fazendo o serviço exigido por um resistente
frequentador do seu estabelecimento.

Os clubes proviam, também, um outro gosto mais satisfatório para o


flagelante. Aí, ele, ou ela, podia misturar-se com os demais, seus ”confrades”
em predilecções eróticas, autênticos confrades, e não meros simuladores de
sadismo por espírito de ganância mercantil.

O Bon Ton Magazine de Dezembro de 1792 descreve-nos um clube de


flagelantes, do sexo feminino.

”Essas sócias são principalmente mulheres casadas que, cansadas da prática


usual do matrimónio e da fria indiferença de que essa é propensa a fazer-se
seguir, decidiram reacender, mediante novos métodos, aquele êxtase que
outrora fruíram nos primeiros tempos da sua vida conjugal... A distinta
sociedade ou o clube a que nos referimos jamais conta menos de doze sócias
nos seus quadros. Em cada reunião, seis destas recebem castigos corporais
aplicados pelas outras seis. Tiram à sorte, para ver quem bate e quem apanha;
depois, lê-se, ou improvisa-se, um discurso acerca dos efeitos da flagelação,
que tem sido praticada desde os tempos mais remotos até aos dias actuais...
após o que as seis pacientes assumem os seus lugares e a sua posição e as
flagelantes iniciam a demonstração prática. A presidente do conclave entrega a
cada uma destas últimas uma boa vara e enceta pessoalmente a fustigação,
entremeando-a de quaisquer variações que lhe venham à fantasia, o que as suas
companheiras apreciam. Uma vez por outra, e à ordem da presidente, a
flagelação principia pelas barrigas das pernas e vai subindo, daí para os
traseiros, até que toda a região maltratada, de láctea brancura que era, ”fica
um todo vermelho” no dizer de Shakespeare. (Tais mudanças de coloração
constituem indubitavelmente, tal o sugeriu Bloch, um importante factor da
satisfação sexual dos flagelantes.)

A profissão de mestre-escola sempre atraiu os flagelantes homossexuais,


fazendo subir à tona recônditos desejos sádicos naqueles em cujo íntimo estes
jaziam até então adormecidos.

Em ambos os casos, os motivos verdadeiros latentes nas suas ideias de


disciplina podem estar ocultos das suas próprias consciências, ou das de
outrem, quando empenhados em acção de carácter profissional; porém, na vida
particular, o disfarce pode muito bem ser deixado de lado.

Bloch narrou, transcrevendo-a, a historieta acerca de um curioso jantar


originariamente relatado por um autor anónimo. Gira em tomo ”da visita de um
mestre-escola do Norte do Yorkshire a um colega da sua vizinhança, um viúvo
extremamente amigo de manejar a palmatória e que aplacava essa paixão dos
modos mais extravagantes. A sua governanta tinha a alcunha de ”a tia
Vidoeiro”, face ao excepcional jeito que tinha para esculpir umas boas vergas
cheias de nós pontudos. O narrador veio a deparar, em companhia dos seus
colegas, com dois outros pedagogos, um tal Dr. S., muito sabidamente um
flagelador fanático, e ainda um certo Sr. T., de cara um tanto ameninada. Ao
passar para a sala de jantar, surgiu-lhes uma cena memorável. Nos quatro
ângulos do cómodo havia um candelabro, e pareciam estar sustentados por
outros tantos meninos que traziam descobertos os seus traseiros. Mas os
meninos estavam amarrados e as suas mãos dispostas de modo a simular que
seguravam os candelabros. Servido e comido o primeiro prato, os quatro dignos
pedagogos puseram-se a vergastar os expostos traseiros dos rapazinhos,
tarefa em que o Dr. S. e o seu anfitrião se mostraram de zelo inigualável. Em
seguida, retomaram os seus lugares à mesa, mostrando grande apetite e, então,
”o Dr. S. roía os ossos da sua porção como se fossem os dos próprios garotos a
quem acabava de bastonar.” Trouxeram à sobremesa quatro outros meninos
vestindo jaquetas azuis rematadas de prata e calções brancos. Nessa ocasião,
o dono da casa foi buscar quatro ”lindas varinhas enroladas com fitas azuis” e o
extravagante quarteto logo se pôs em acção nas suas discutíveis actividades.

Após isso, amarraram ao ”cavalete” o Sr. T., e aí foram os esperneies e caretas


dele que muito divertiram os seus três amáveis colegas. O anfitrião em pessoa
executou a sova de vara no seu convidado, na qual empregou o método do
famigerado doutor Keate, aliás muito mortificante para a vítima. O Sr. T.
urrava de dor, suplicando que o soltassem, apelos patéticos que, todavia, não
desviaram esse segundo Dr. Keate da sua ocupação favorita. O Dr. S. tomou a
si o prosseguimento da flagelação do pobre Sr. T., até que esse desgraçado seu
colega, meio desmaiado pelo sofrimento, foi desamarrado, operação a que se
seguiu um joguinho de whist, o qual finalizou o edificante ”jantarzinho”.

No intuito de fugir aos ambientes de perversões e de bordéis, os membros


mais endinheirados da sociedade visitavam uma das casas de campo dos seus
amigos, certo número das quais claramente imitando as petites maisons
galantes, de tanto agrado público na França, e que já começavam a aparecer
aqui e ali. O principal exemplo de tais estabelecimentos, claro, é Medmenham.

As personagens que podiam dar-se ao luxo, gostavam de condimentar com uma


pitada de pimenta e de malícia os seus pequenos prazeres; e, dado que já iam
desaparecendo dos seus passatempos a violência e as desordens, puseram-se a
procurar alguma forma de substituto desses divertimentos. E tanto buscaram,
que alguns acabaram por encontrar o que precisavam numa embrulhada de
postulados, ritos e observâncias neo-religiosos, que poderiam entrosar, como
um todo, nas suas orgias, a fim de incutir nestas aquela ”vida” sem a qual em
breve cairiam num abismo de tédio, desalento e nojo da existência. Eis que
descobriram - o satanismo.

No século XVII, o satanismo foi coisa muito séria, muito eivada de verdadeiro
pavor para muitos dos membros da sociedade, para que se arriscassem a tratá-
la como uma brincadeira, mesmo que ao de leve. Ao entrar-se no século XVIII,
já esse terror se atenuava gradualmente, fenómeno que se reflectia bem na
atitude de panfletários desafiando os clubes, com ataques pelo facto de estes
o praticarem.

Não há dúvida de que tais clubes existiam e foram atacados nos alvores do
século (antes de mais nada, por motivos políticos), e também forçados a
dissolverem-se ou, pelo menos, passarem a funcionar subterraneamente, para
maior segurança; mas, quando ressurgiram à luz do dia, vinte anos depois, a
atitude perante eles já foi diferente, parecendo mais chacota do que medo ou
repugnância. A meticulosa inversão e perversão da liturgia da Igreja cristã
forneceu aos membros dos clubes do Fogo do Inferno o laborioso ritual e a
regulamentação minuciosa, mais a organização meticulosa do complicado
brinquedo infantil que fazia parte da tendência do movimento que há pouco
mencionei. Do primeiro clube do fogo infernal, sob a presidência de lord
Wharton, diziam os tais pasquineiros que se atiraram ao assalto contra esse e
outros congéneres seus aliados, que promoviam orgias indecentes e blasfemas
em Somerset House, um palacete situado em Westminster, e num outro da Rua
Conduit O clube era composto por quarenta sócios, quinze dos quais eram
mulheres.

Na Irlanda, um tal Sr. Conolly dava orgias satânicas no seu pavilhão de caça
situado bem no pico do monte Pelier, próximo a Rathfarnham. Os pormenores
dessas pândegas consistem, na sua maior parte, em invenções desmedidas e
improváveis; contava-se, por exemplo, que as cerimónias eram presididas por
um imenso gato preto e que, entre si, eles se tratavam por alcunhas, tais como
Velho Dragão e Excelentíssima Senhora Gomorra. (As damas encontravam-se,
invariavelmente, presentes nas sessões desse clube. Tal presença era até
condição imprescindível para as reuniões.) Bebia-se uma mistura de whisky e
manteiga, servida quente, e procedia-se a pretensas crucificações, em ar de
troça. Por fim, acabaram por se dispersar aí por volta do ano de 1740, por ter
sido o seu gato objecto de exorcismos. É que um clérigo a quem tinham
convidado a assistir a uma de suas festas e que se sentira ofendido por ver
servirem o animal antes da sua pessoa, desatou em preces de modo tão
espectacular que o bichano fugiu, assustado, ganhando a liberdade através do
telhado a uma velocidade tão fantástica que nunca mais ninguém lhe pôs os
olhos em cima. Esse episódio, ao que parece, teria iniciado o colapso do próprio
prédio, pois, dez anos mais tarde, não passava de um montão de ruínas e,
quanto aos sócios da agremiação, também nunca mais se reuniram.

O clube fora fundado pelo conde de Rosse, libertino excêntrico e infatigável,


que punha mais ”panache” e originalidade na satisfação dos seus vícios do que
qualquer outro homem da mesma idade. O Dr. Madden, de Dublin, chegando, um
dia, à casa desse lord, ern visita, ficou um tanto assustado ao ver surgir-lhe à
frente, na sala, de um pulo e completamente nu, o dono da casa, a agitar braços
e pernas, qual macaco e, após ter manifestado de forma cortês o prazer que
lhe causava a presença do médico, correu a plantar-se diante da porta da rua,
exibindo-se do jeito em que estava aos passantes.
Ao ingressar nessas confrarias, qualquer noviço, e uma vez ultrapassadas as
formalidades da iniciação, tinha permissão para buscar a realização dos seus
desejos mais sensuais.

”Eis que é este o lugar onde as mais cativantes ninfas pululam constantemente
para saciar os nossos apetites incessantemente famintos; tão-pouco nos
congregamos senão quando a nossa concupiscência vai alta e as acumulações da
natureza aportam novas forças ao amor” - escreveu o autor de uma carga feroz
contra este clube e, a julgar-se pelo que consta a respeito da personalidade de
cada um dos sócios do dito, parece possível haver verdade no que ele diz.

Entretanto, o satanismo sossegou um pouco. Os escrevinhadores de boletins


panfletários voltaram a atenção para instituições do género do Mollie’s Club,
agremiação de homossexuais associados, que se reuniam vestidos de mulher,
num estabelecimento público da cidade e, depois de se terem divertido com
rebuscada fantasia e confortado com copiosas libações de vinho, ”começavam a
dar-se às suas estúpidas obscenidades e a tomar umas tantas liberdades
infames uns com os outros, nas quais homem nenhum que não haja ainda
mergulhado num estado de diabolismo pode ao menos pensar sem corar de
vergonha”, di-lo Ward, que andou às voltas especialmente com esse clube
durante um dilatado tempo e com indisfarçado gosto.

O satanismo, como o praticavam os libertinos, estava apenas adormecido, não


morto de todo. Pelo meio do século, surgiu, afinal, o último e o mais famoso,
também, além de supremo em requintes, de todos os clubes de fogo infernal de
que há notícia.

O mundo em que respiravam slr Francis Dashwood e os seus assecias não pode
ser considerado típico da época sua contemporânea. A verdade é que, pela
própria natureza da sua associação, eles porfiavam em descobrir uma brecha
por onde escapar à realidade mais profunda, mais cerrada (mas, ao mesmo
tempo, menos sintomática de mal interior), do que aquela maneira de evasão
que porventura se proporcionaram quaisquer outros agrupamentos formais de
libertinos. Assim é que viviam eles num rebuscado e cuidadosamente
preservado sonho em vigília e, para que possamos explicar a sua exótica e quase
pueril farsa, devemos analisar o carácter do próprio sir Francis, e não outro.
Nos seus primeiros anos de mocidade, sir Francis fora membro da sociedade
dos Dilettanti, agremiação de moços que se juntavam em clube para comer,
beber, discutir arte, tudo de um modo que a muitos dos seus contemporâneos
parecia pretensioso e absurdo. Deles troçou Smollet, no seu Count Fathom,
sendo nisso imitado por outros autores; apesar disso, conseguiram todos
sobreviver à façanha e prosperar. Os tais dilettanti trouxeram de volta das
suas viagens à Itália recordações dos esplendores de Palias Athena, mas
também trouxeram, misturada, aquela bizarra ideia do século XVIII de
jardinagem paisagística que consistia em empilhar ruínas e grutas numa
confusão propositada no meio de rijas árvores mortas, bosques cerrados e
espessos e cascatas. Lado a lado, postavam-se um templo minervino e uma
arcada gótica. Semelhante mania do pitoresco e de todas as agradáveis
idiotices que o acompanhavam ressoavam na memória e mente de homens como
sir Francis Dashwood sob a égide da palavra ”gótico”. Uma onda de curiosa
melancolia romântica, de medievalismo ideal, empolgara as mentes dos
componentes da Sociedade dos Dilettanti; e o termo ”gótico”, desde então,
passou de insulto a elogio.

No coração do Buckinghamshire, dominando a vista de um dos mais formosos


vales da Inglaterra, vivia sir Francis Dashwood, na sua mansão de West
Wycombe, acima da aldeia do mesmo nome. Essa residência senhorial era talvez
menos esplendorosa, menos extravagante na sua magnificência, do que os
solares de alguns outros fidalgos, mas compensava a desvantagem pelo esmero
dos seus jardins, bem como pelas estátuas e templos que os decoravam. Assim
é que dispusera uma parte do jardim de modo a fazê-la configurar uma mulher,
com o recurso a sugestivos agrupamentos de pilares e arbustos, pilhéria
obscena e dispendiosa que só poderia ser plenamente compreendida e apreciada
depois da invenção do avião, então ainda muito distante. John Wilkes, que
visitou West Wycombe, faz-nos um relato de tudo o que lá viu, pouco depois da
construção da igreja ”sobre o cimo de uma colina, para conveniência da cidade
que lhe ficava no sopé”.

O aspecto dos jardins de lord Despencer não foi de molde a inspirar a Wilkes
melhor conceito da moral do cavalheiro do que a dita ermida lhe fazia supor da
sua piedade religiosa. Ele reparou particularmente num notável templo
”dedicado ao Tetragammaton de Tristam Shandy”. Observa Wilkes que,
embora não fosse provavelmente fervorosa a devoção de Sua Senhoria a esse
objecto de culto, era de se lhe reconhecer, pelo menos, coerência, pelo que o
cronista passa a referir-se a um quadro que pendia da parede da taberna das
Armas Reais, no Pátio do Palácio, com que sir Francis presenteara o Clube dos
Dilettanti. Nessa pintura, mostra-se ele retratado com o hábito de frade
franciscano e ajoelhado diante da Vénus de Medicis, ”fixando de olhos
esbugalhados, como em transe, aquilo que o recato da natureza parece ter mais
anseio de ocultar e tendo numa das mãos um copázio sobre o qual se gravaram
em maiúsculas as palavras MATRI SANCTORUM (à mãe dos santos). O
luminoso halo da Eterna Glória, que até então só ornava as cabeças ao Nosso
Salvador e Seus apóstolos, é igualmente posto, a brilhar, sobre o assim
santificado sítio, a ponto de parecer dispersar a névoa tristonha do Matagal de
Maidenhead (Maidenhead Thicket)”.

De seguida, Wilkes descreve o mencionado templo. A entrada, diz ele, ”era a


mesma através da qual todos nós vimos a este mundo, sendo a porta algo que
alguns espíritos ociosos denominaram a porta da vida”.

Não se encontrava nos jardins nenhum busto de filósofos ou estadistas, mas


havia, isso sim, ”uma indecentíssima estátua do antinatural sátiro”, e o pináculo
do templo era encimado por uma ”especial coluna cingida, na sua base, de lindos
arbustos, as murtas-de-chipre, etc.”, com cuja significação confessa Wilkes
não ter podido atinar. Não lhe causaram impressão os apetrechos existentes
dentro do prédio, sendo que, no entanto, pôde admirar ”um quadro muito moral,
representando uma jovem a esgueirar-se para o leito do amo, ao mesmo tempo
em que punha os dedos sobre os lábios, como se fosse a ’Dea Angerona’ de
West Wycombe”.

Inquirindo no livro de Hannan, Four Views of West Wycombe House, é-nos


possível fazer uma melhor ideia, talvez um tanto retocada e idealizada, do
solar. Espalham-se em profusão pelos jardins estátuas e vasos ornamentais,
uma cascata artificial despenha-se sobre um Neptuno reclinado, uma porção de
pessoas elegantemente vestidas perambulam pelos relvados bebericando
chávenas de chá e ao longe distingue-se uma barca festiva singrando as águas
do lago.

Sir Francis herdara do pai aquela propriedade e, por volta da altura em que se
tomou sócio dos dilettanti, já a havia modificado e redecorado, no que o
ajudaram o arquitecto Nicholas Revett e o pintor Joseph Borgnis. Nesse tempo
já ele havia granjeado fama de grande estouvado e debochado. Atribuía-se-lhe
o mérito de já ter ingressado num dos primeiros clubes do fogo infernal que
surgiram, supondo-se mesmo que fosse aquele do qual fizera parte lord
Sandwich. Em obediência às convenções, consentira em empreender as Grandes
Viagens para se aprimorar, tendo todo o cuidado, porém, em fazê-lo da maneira
menos convencional possível. Atravessou como gato sobre brasas toda a
Europa, deixando sempre após a sua passagem um rastilho de cochichos, de
escândalos e de notoriedade. Deu-lhe para gostar de proferir blasfémias e
palavrões; ridicularizava o mentor que, com a ingénua esperança de fazer dele
um devoto católico, lhe fazia de cicerone num giro por todos os templos de
Roma. Ainda aí, na Cidade Eterna, levou a efeito um escárnio de que poderiam
ter resultado consequências desastrosas para si próprio. Foi numa Sexta-Feira
Santa; na Capela Sistina, os penitentes seviciavam-se brandamente,
acompanhando a mortificação simbólica com brados de simulado sofrimento.
Sir Francis meteu-se na fila de devotos, recebeu um chicote em miniatura,
entrou na capela e escondeu-se atrás de uma pilastra, até o momento em que os
penitentes se despiram do tronco até à cintura. Nesse momento, ele sacou de
sob o casaco, onde o trazia escondido, um grande chicote de picadeiro com o
qual passa a vergastar às cegas, para a direita e para a esquerda, até que a
igreja retiniu do alarido de agonia e dos brados de terror: ”// diavolo! ”

Na época em que perpetrou esta partida, já não era Dashwood nenhum


rapazinho. Verdade seja dita que a chave para decifrar o seu estouvado
carácter poderá ser encontrada, parcialmente, no facto de ele jamais se ter
tomado adulto. Também pode acontecer, apesar de sobre isso eu alimentar
dúvidas, que ele tenha sido declaradamente um louco. Um por um, iam-se
cansando os que iam vê-lo a Medmenham, acabando por cessar de vez a
frequência às orgias de São Francisco, mas o respectivo mestre, esse é que
não, pois perseverou nos seus cultos até ao fim.

Mesmo quando ainda sócio dos dilettanti, já revelava sir Francis indícios da
conformação do seu carácter, os quais o levariam passo a passo na direcção de
Medmenham. Corriam boatos dumas tantas práticas, que lá ocorriam, muito ao
sabor das artes de magia negra e estreitamente ligadas às demais actividades
originárias dos primórdios desse clube, e claro está que sir Francis ali podia
com facilidade permitir-se envergar trajes de fantasia, no que era maníaco. O
presidente das sessões metia-se em vestes cerimoniais simulando a forma de
magnífica toga romana, de carmesim. O arquimestre usava um fato semelhante,
mas acrescido de ”um rico barrete húngaro” e uma longa espada. Dashwood
travou conhecimento com uma alma irmã na pessoa de John Montague, lord
Sandwich, seu consócio, e aquele futuro ”Jemmy Twitcher” dos panfletários. A
sua esgrouviada figura, a cara desenxabida e concupiscente, trazendo
estampado um perene sorriso pretensamente insinuante porém não sincero, era
visto de pernas abertas, desgraciosamente, por toda a Londres, como se, no
dizer dos espirituosos do seu tempo, quisesse ele descer rua abaixo pelos dois
lados ao mesmo tempo. Diziam dele que ”nenhum outro jamais levara a tão altos
níveis a arte da sedução”. Era um homem ”maligno que nem um macaco e lúbrico
que nem um bode”. Era ”mesquinho para com as suas amantes e traiçoeiro para
com os amigos”. Era, em suma, ”universalmente detestado”. O seu falar era
”entremeado de expressões grosseiras e duplos-sentidos obscenos”. E, mesmo
assim, sir Francis gostava dele. Para além do amor à bebida, ao mulherio e ao
palavreado sujo, que ambos nutriam em comum, o novo amigo de sir Francis
tinha também, como ele, passado um certo tempo em Constantinopla e
partilhava da paixão de Dashwood pelos turcos.

O Clube do Divã foi oriundo dessa paixão, colocando-se os dois, sir Francis e
lord Sandwich, no primeiro contingente de sócios. Pouco se conhece da vida
desse clube, a não ser que aí se procedia aos complicados brinquedos infantis e
estendal de fantasioso guarda-roupa que parecem ter constituído as
características básicas de todo o clube a que pertencesse sir Francis. Tanto
ele como lord Sandwich fizeram-se retratar por pintores, engalanados nos seus
paramentos à turca e em atitude de erguerem um brinde a uma Vénus
minúscula e prostrada, tal como se vê em mais de um retrato. A mão não
ocupada em segurar a taça está disposta num gesto meio disfarçado, discreto,
mas inequivocamente obsceno. O uniforme do clube consistia num enxoval de
mantos verdes e carmesins e um turbante verde-azulado, mas não existe prova
de que outro qualquer sócio do clube, além de sir Francis e de lord Sandwich,
usasse alguma vez tal indumentária. Dos retratos acima descritos é que nasceu
a confusão com o hábito dos frades de Medmenham, que induziu alguns autores
a classificar estes últimos como sendo ”mantos turcos”. O ”Divã” em breve se
diluiu e, por fim, morreu, devido à falta de entusiasmo dos sócios, mas mesmo
assim marcou uma etapa decisiva na marcha para Medmenham. Anteriormente
à derrocada do Clube do Divã, em 1746, ingressara nos dilettanti mais um dos
futuros frades de Medmenham. E esse foi nada menos do que George Bubb
Dodington, mais tarde barão de Melcombe. Este atraente palhaço, cuja vasta
presunção chegava a exibir-se sob a forma de autoparódia, assunto favorito
dos caricaturistas, com a sua enorme pança, a sua papada balofa e oscilante e o
seu ridículo nariz de batatinha, era o mais velho de todos os frades de
Medmenham, pois já transpusera os 60 anos de idade ao visitar pela primeira
vez a abadia. Nos seus tempos de moço, erguera uma enorme mansão para sua
morada em Eastbury, à custa dos proventos de uma herança. Traçado num
grandioso e geométrico projecto arquitectónico, o esplêndido edifício
encerrava uma colecção de móveis exóticos, porém vistosos. Nem um único
quadro ornava as paredes. Aí, à noitinha, sentava-se Bubb, a ler em voz alta
para as senhoras, com a sua voz untuosa e como que a escorrer sumos de fruta,
algumas das passagens mais indecentes das obras de Shakespeare. Mais tarde,
bastante mais vivido, mais bombástico, mais debochado, esse pretenso Lobo
Mau construiu outra residência em Hammersmith, nas margens do rio Tamisa,
casa a que deu o nome de ”La Trappe”. Aí costumava receber como seus
convidados, aos quais metia também em hábitos de monges, muitos dos vultos
famosos do momento. O salão principal exibia, altaneiro, uma lareira de
mármore da qual pendiam, como ornatos, imitações de estalactites e, nos
jardins, havia um templo dedicado a Vénus.

Sir Francis prosseguia no seu colorido modo de vida. Dizia-se que ”ele
suplantava em licenciosidade, e por larga margem, tudo o que se pudesse ter
visto desde os dias de Carlos II”. Horace Walpole fez notar que raramente o
viu em estado de temperança. O nosso herói tinha fama de já ter dormido com
todas as meretrizes mais conhecidas da cidade. Gostava também de se imiscuir
nas intrigas políticas e foi nessa esfera de actividades da sua vida que ele veio
a travar relações com Paul Whitehead, quiçá o principal agente e promotor da
fundação de Medmenham.

Mais novo do que sir Francis, parecia no entanto o poeta ter muito mais idade
do que ele, a tal ponto infatigável fora o enérgico afã que pusera no perseguir a
satisfação dos seus desejos inauditos. Esta maldosa, pretensiosa e libertina
figura, ao emergir da prisão onde passara grande parte da sua mocidade, por
ter patrocinado as despesas feitas por um empresário teatral que, no fim, ele,
o nosso poeta, se revelara incapacitado de saldar, decidiu-se, então, pela
profissão de beleguim mercenário de políticos. Desposou uma mentecapta, pelo
dote dela, e essa fortuna que ela lhe trouxe deu-lhe possibilidades de se
entregar mais ou menos amplamente aos seus gozos. Sir Francis tolerava-o, não
sem deixar de ridicularizá-lo abertamente, tanto que, aquando da sua morte, o
lord parodiou-o numas exéquias picarescas realizadas em West Wycombe.
Whitehead organizara uma complexa e ultrajante paródia da grande parada
anual dos pedreiros-livres. Uma cambada de malandros, mendigos,
engraxadores e aleijados, recrutada a soldo para essa palhaçada, cabriolava
rua abaixo pelo Strand até para além de Somerset House, conduzindo pregados
em varapaus dísticos e insígnias indecorosos, sendo acompanhados por uma
escolta de desordeiros empenhados em produzir o máximo de alarido com o
bater de utensílios de cozinha e o bramir de trombetas.

O incidente fez as delícias de Dashwood e, daí por diante, o busto de


Whitehead passou a figurar entre as Vénus e os sátiros dos jardins de West
Wycombe.

Ocorrendo um tal aglomerado de personalidades afins, não podia tardar por


mais tempo a fundação de Medmenham. Para isso só faltava um factor
circunstancial, que seria o encontro de sir Francis Dashwood com Francis
Duffield. Duffield comungava a estouvadice de Dashwood, bem como a sua
muito peculiar especialidade de gosto em matéria de artes, tendo ambos
cogitado sobre uma confraria que os ligasse. Duffield foi um dos primeiros
sócios dessa agremiação. O ambiente em que se enquadrava a sua mansão
familiar não podia deixar de seduzir sir Francis Dashwood: uma igreja em
ruínas seria o cenário ideal para as suas teatralidades, de modo que, aí por
volta de 1752 ou 1753, assinou-se o arrendamento, sir Francis ocupava a
propriedade e Duffield desocupava-a. Num arroubo de entusiasmo juvenil, qual
menino com um brinquedo novo, Dashwood arrastou Nicholas Revett até
Medmenham e pôs-se a percorrer numa grande azáfama casa e jardins, sempre
a debater possíveis alterações. O solar era um casarão baixo, decadente,
avermelhado e com uma aparência triste de coisa abandonada, mas afinal
sempre lá estava aquele ambiente feliz proporcionado pela decrépita abadia.

Logo se iniciaram os trabalhos de reparação, trazendo-se de Londres, em


segredo, os operários, que voltavam, à noite, também à socapa. Os criados
estavam presos, sob juramento, ao compromisso de não falar a ninguém daquele
distrito, nem jamais revelar a singular natureza dos elementos decorativos que
se estavam a instalar na mansão e nos terrenos. Mesmo assim, porém, sempre
transpiraram alguns boatos.

No intuito de emprestar cor local ao ambiente sonhado por Dashwood,


levantaram-se, a esmo, torres ”em ruínas”, uma arcada gótica, claustros,
colunatas revestidas de hera. No que ainda restava de pé da igreja da velha
abadia, foi ele descobrir uma imagem da Virgem e o Menino, a qual trasladou
para um nicho existente nas ”ruínas” da sua nova torre. Por sobre a entrada
senhorial da mansão mandou pintar a famosa inscrição que encima as portadas
da Abadia de Theleme, de Rabelais - Fay Ce Que Vouldra (Faz o Que
Quiseres).

A capela de família dos Duffields foi convertida num oratório especial


dedicado unicamente à invocação a São Francisco. Após as ”alterações”
introduzidas, ninguém, a não ser sir Francis e Duffield, além do pintor Borgnis
e do arquitecto Revett, teve permissão de penetrar os umbrais. É que o tecto
estava todo pintado de frescos indecentes e as paredes ostentavam
caricaturas brutalmente grosseiras dos doze apóstolos. Na extremidade da
nave, por trás da grade fronteira ao altar-mor, erguia-se um simulacro
parodístico das Santas Aras.

Wilkes e Walpole descreveram o solar e os seus jardins tais como os viram já


prontos e acabados. Saíram também alguns artigos publicados nas edições de
1769 e de 1773 do Town and Country Magazine. De entre esses cronistas
Wilkes é, provavelmente, o mais fidedigno, pois fez parte da confraria, durante
algum tempo, até se ter esquivado, por fim, à sociedade dos demais ”frades”.

”No cimo da grande escadaria lia-se a famosa inscrição Fay Ce Que Vouldra,
tomada à Abadia de Theleme, de Rabelais. Ao fim da passagem, lia-se Aude
Hospes, Contemnere Opes. Numa das extremidades do refeitório, encontrava-
se Harpócrates, o deus egípcio do Silêncio; e na outra, oposta, a deusa
Angerona, significando que idêntico dever de sigilo se impunha a ambos os
sexos.

O jardim, a horta e o pomar, os bosques vizinhos, tudo falava dos amores e das
fraquezas dos monges mais jovens, que, ao que parece, pecariam naturalmente.
Assim é que se veria, algures:

”lei pama dejoie dês mortels lê plus heureux”,

enquanto, noutro local, se lia dificilmente a imperfeita inscrição:

”Mourut un amant sur lê sein de Ia dame”,


e ainda, mais além:

”En cet endroit mille baisers furent donnés et mille autres rendus”.

No tronco de um belo e vetusto carvalho afixava-se:

”Hic satyrum naias victorem vicia subegit”.

À entrada de uma gruta, achava-se Vénus, baixando-se para extrair do pé um espinho.


A estátua voltava o dorso ao observador, deixando-o ver apostos sobre as duas
alvinitentes colinas do traseiro da deusa os seguintes versos de Virgílio:

”Hic locus est ubi se via fundit in ambas Hac iter Elysium nobis: at laeva malorum,
Exercei poenas et ad ímpia Tartars mittit...”

Dentro da gruta, e em cima de um natural divã de aveludado musgo, exibia-se a


exortação:

”Ite, agite ò juvenes panter sudate medullis Omnibus inter vos; non murmure vestra
columbae Branchae non hederae, non vivant oscula conchae”.

Evidencia-se claramente não ser a penitência doutrina muito do agrado da descrita


abadia, porquanto no centro do pomar havia uma grotesca figura brandindo numa das
mãos um flamejante bastonete, para usarmos a expressão com que Milton designa a
coisa, podendo-se a custo distinguir esta legenda:

”PENI TENTO

non PENITENTI”

No pedestal podia apreciar-se uma fantasiosa representação da caverna de


Trofónio, que tinha fama de fazer com que todas as criaturas, ao saírem lá de
dentro, viessem saturadas de melancolia. No meio do estranho e tristonho
grupo ali figurado, podia, entretanto, notar-se um galo e um carmelita a
gargalhar. Mal se consegue ler as palavras gallum gallinaceum et sacerdotem
grátis.

Próximo à abadia encontrava-se um pequeno templo, dedicado à deusa Cloacina,


no qual havia a inscrição ”Esta capela votada ao alívio foi fundada no ano de
1760”.
Não existem motivos, a não ser de possível animosidade política, para se pôr em
dúvida a descrição que faz Wilkes dos jardins de Medmenham. Claro que
haveria outros, naquela época, igualmente enriquecidos de incisões análogas de
tais legendas. A casa dos Stowe, por exemplo, tinha a reputação de possuir
uma capela cujas paredes eram revestidas de poesias igualmente indecentes,
em latim, de teor ”inconcebível até mesmo pela imaginação mais lúbrica”. Sir
Francis obteve a maior parte das suas patifarias escultóricas dos irmãos
Charron, de Leghorn.

Walpole e o Town and Country Magazine são mais elucidativos quanto à parte
interna da casa. A sala de estar vivia atulhada de cartas de jogar, tabuleiros
de xadrez ou de gamão, e outros entretenimentos, sendo ornamentada com
retratos dos reis da Inglaterra. Sobre a face de Henrique VIII haviam colado
um pedaço de papel, como mostra do desfavor em que o tinham. Havia ainda
vários outros retratos a pincel, representando monges e freiras, sendo que, em
volta do aposento, pendiam os hábitos respectivos, de cabides a que
correspondia, em cada um, o pseudónimo do dono do burel. Tais vestes, diz um
tanto desdenhosamente Walpole, mais pareciam guardas de aguadeiro do que
roupagem de frade, pois consistiam num chapéu branco, jaqueta branca e
calças também brancas. Ao prior cabia um chapéu vermelho como o dos
cardeais, mais um solidéu rematado de couro de coelho. A biblioteca continha
uma vasta e seleccionada messe de obras pornográficas, encadernadas e
ostentando nas capas famigerados títulos, tais como Sherlock on Death e The
Book ofCommon Prayer... ”Nunca, jamais, de modo algum, poderia comparar-se
com esta a célebre colecção dos devassos e dissolutos papas Alexandre e
Júlio.”

No gabinete sobranceiro à capela, e que era uma sala de visitas, havia ”dois ou
três compridos sofás de libações, forrados de seda adamascada e estruturados
segundo o modelo de análogos móveis dos antigos Romanos, do tempo em que,
entre eles, atingia o máximo o culto do requinte e do efeminamento”. O dito
cómodo recebera decoração especial à Grande Gala, de tal forma que
inspirasse e provocasse impulsos de imoralidade e lubricidade.

Grande parte do restante das decorações da casa deve ser deixada à


imaginação do leitor. Johnstone, autor do livro Chrysal, or the Adventures ofa
Guinea, avança mais algumas veladas indicações a tal respeito. Trata-se aí de
uma novela satírica, é verdade, mas transparece dela a certeza de que o
escritor ouvira algo da realidade a alguém que frequentara as orgias de
Medmenham.

”Não haveria vício imaginável para cuja prática não se houvesse ali devidamente
provido de antemão. As adegas transbordavam dos vinhos mais finos, as
dispensas estavam abarrotadas de delicadas iguarias de todas as procedências
e climas.” Os pequenos gabinetes reservados, embora sob quaisquer outros
aspectos bastante desprovidos de graça, estavam, contudo, ”equipados de tudo
o necessário para quaisquer fins de lascívia, para o que também contavam com
vários e adequados instrumentos”.

Ei-la pronta, a abadia, que agora só estava à espera de que chegasse a monacal
congregação...

E não se fizeram esperar os seus frades. Languidamente devassos, rodavam nos


seus dourados coches fidalgos pela estrada que ia ter a Medmenham. E eram
eles lord Sandwich, Bubb Dodington, Duffield, Whitehead, os Vansittarts,
Thomas Potter...

Este último, Potter, bem-parecido, espirituoso, ultradevasso, filho do


Arcebispo de Cantuária (Canterbury), era tido, mesmo naquele meio que era o
século XVIII, como perverso, mau, e um perdulário incrivelmente desatinado.
com a saúde já minada, aos 35 anos de idade, pela vida que levava, era sujeito a
frequentes acessos de abatimento e hipocondria. Sendo amigo de John Wilkes,
foi ele quem induziu este cronista satírico a visitar Medmenham. Potter deve
ter sido um dos poucos indivíduos que tiveram influência sobre Wilkes, assim
como, por sinal, Dashwood fora um dos poucos homens que a tiveram junto do
dito Potter. De qualquer modo, fosse por obediência a ditames de São
Francisco, ou porque o aguilhoasse o desejo de prazeres ainda não provados,
juntou-se à primeira leva de peregrinos em demanda de Medmenham.

Antes de condenarmos ou detestarmos esses ”frades”, convém que tenhamos


em mente que eles provavelmente não efectuavam as suas reuniões muito mais
do que duas vezes ao ano (ponto este sobre o qual paira um considerável
conflito de opiniões), e só duraria cada congresso uma quinzena inteira, pois, se
assim não fosse, a sua associação jamais conseguiria perdurar tanto tempo
como o fez. E, mesmo assim, é de estarrecer que a tenham
mantido tão longamente, pois o certo é que, sem a ajuda de um pungente motivo
instigador, jamais o teriam conseguido fazer. É difícil conceber que o motivo
propulsor dos confrades da companhia de S. Francisco possa ter sido outro que
não o excessivamente forte impulso sexual de que eram animados, em suma, o
facto de serem física e mentalmente obcecados pelas suas fantasias sexuais.
As suas pueris pantomimas satânicas, acompanhadas daquele complicado ritual
de colegiais, deverão ser levadas à conta de condimento, ou então
interpretadas como uma crosta de romantismo, que lhes tomasse mais gratos
os desmandos de prazeres da carne que a si mesmos se permitiam. Mesmo
naquela época de libidinagem, não podiam eles consentir-se a si próprios o gozo
do seu sexo puro e simples, constantemente, circunstância que talvez seja o
que situa a irmandade de Medmenham alguns furos acima dos contemporâneos
e a subtrai ao nosso desprezo.

Não adianta levianamente ignorar o aspecto demonolátrico das orgias de


Medmenham, pois no satanismo granjeavam os ”irmãos”, uma espécie de
escapismo, da mesma forma como logravam uma outra espécie de fuga nos
braços das confreiras. Não obstante, analisando-se os caracteres que se
moviam no seio da confraria, não se pode deixar de ficar com a impressão de
que era da presença das suas acessíveis ”irmãs” que eles obtinham o mais
sedutor factor do viver, no recesso do seu ”mosteiro”.

Nos alvores do presente século, o livro de actas mantido por Paul Whitehead,
que nele fazia constar os divertissements da alegre sociedade, foi queimado
por um eduardiano excessivamente zeloso, que tomou sobre os próprios ombros
a responsabilidade de decidir, segundo o seu arbítrio, que o livro era por
demais obsceno para ter o direito de ser conservado. Para que saibamos o que
foi, precisamente, que sucedeu, teremos de colher daqui e dali retalhos de
informações procedentes de inúmeras e diferentes fontes. Que algo de
incomum ocorreu, só houve um homem que tentasse negá-lo: o Dr. Benjamim
Bates, que foi na sua mocidade um dos ”frades” e, na velhice, protestou
indignado que não, nada de escandaloso se verificara. Ele, aliás, nunca fora um
dos mais fiéis confrades e, possivelmente para seu próprio benefício, preferiu
apagar da memória minúcias desagradáveis e inconvenientes. Mas o peso de
provas factuais está contra ele.
A epistolografia dos ”irmãos” é desalentadoramente discreta, já que, ao
comunicarem uns com os outros, cingem-se rigorosamente a uma linguagem
cerimoniosa. No entanto, os cochichos chegavam até cá fora.

Havia duas ordens de frades: a superior e a inferior. Esta última consistia


principalmente em ilustres visitantes locais, para os quais se destinavam celas
em número suficiente para as ocasiões especiais, quando eles compareciam a
convite. Corria o boato de que a ordem superior não dormia em camas, mas sim
em gigantescos berços. Tal história parece ter sido engendrada por uma tal
Miss Berry que, visitando a abadia uma vez, reparou num velho berço
pertencente ao zelador e fantasiou, de facto, a divertida e sinistra balela.

Tirando o dito zelador, não havia criadagem permanente. O pessoal necessário


para preparar e servir as refeições era alugado ao dia, dispensado logo depois
do serviço e, no dia seguinte, substituído por novos contingentes.

O tratamento era provavelmente rico, abundante e exótico. O anónimo autor


de Hell upon Earth; or the Town in an Uproar, condena os hábitos alimentares
de sociedades do género desta de São Francisco, chegando a reproduzir uma
das suas ementas:

Soupe de Santé

Soupe au Bourgeois

Carpe au Court Bouillon

Pupton (?) de Perdizes

Cullets à Ia Mame

Beefà Ia Tremblade

Fricassé de Salamandras

Arrufadas de Frango

Ensopado de Leão

Pain Perdu
Ostras à Danublana

Blanc Manger

As ”freiras” eram aliciadas nos lupanares de Londres e remetidas para


Medmenham em carruagens fechadas. O conhecimento entre sir Francis e a
Senhora ”Fornalha-Infernal” Stanhope foi-lhe aí muito útil; porém, mais tarde,
quando a situação se complicou e quando os murmúrios locais já andavam
bastante incendiados, conseguiram arranjar um satisfatório contingente
daquelas damas nos bordéis vizinhos, uma vez que estas, tendo ouvido falar do
luxo e riqueza em que viviam os ”monges”, bem como da carnalidade de que
eram portadores, mostravam-se prontas a ir ao encontro deles a meio caminho,
o que era natural.

As ditas ”freiras” usavam pequenos broches de prata em que tinham sido


gravadas as palavras ”Amor e Amizade”. Nem todas eram meretrizes ou moças
fáceis das redondezas. Os ”frades” costumavam apresentar à sua sociedade
senhoras de superior condição.

A estas era permitido comparecer mascaradas, no princípio, para que pudessem


sem constrangimento passar em revista os presentes, evitando algum
desastrado encontro com o marido ou noivo. Tinham sempre à mão um médico,
um cirurgião e uma parteira, de plantão, de modo que, se alguma das ”irmãs” se
sentisse grávida em consequência das suas ”devoções”, podia recolher-se a um
cómodo expressamente preparado na abadia, ”onde lhe era permitido acamar-
se na ocasião devida”.

As freiras só compareciam nas noites em que também o faziam as ordens


superiores, mas nessas noites a presença delas constituía condição
indispensável para a reunião. O cargo de abade era assumido à vez, cabendo ao
prior do dia uns tantos privilégios, tais como: a primazia na escolha das
mulheres e vários deveres correspondentes, verbi gratia, a vistoria nas adegas,
para certificar-se de que a provisão de vinhos aí era mais do que suficiente,
bem como nas celas, a ver com certeza se dispunham de tudo aquilo que os
irmãos pudessem requerer. Esse posto de abade-prior podia ser temporário,
mas já o de grão-mestre era permanente. Era ele quem oficiava nas sinistras
cerimónias preparatórias, na capela, e quem administrava o pervertido
sacramento ao macaco de Medmenham, quem presidia à iniciação de irmãos
noviços na ordem, quem, em suma, oferecia ao diabo as libações litúrgicas.

Preenchidos esses auto-impostos deveres, acomodavam-se, então, de


consciência mais aliviada, para a fruição dos seus prazeres. Eram brindes após
brindes, através de todo o interminável repasto no abacial refeitório, até que,
fartos de vinho e de ”ensopado de leão”, um após outro iam os irmãos agarrando
cada um a sua irmã, ou ”freira” e, ali mesmo ao pé da mesa, ou nas suas celas,
ou sobre o relvado aos últimos raios do Sol poente estival, rendiam preito de
adoração, não ao diabo, nem mesmo ao símio seu figurante, mas àquela deusa e
senhora do templo no jardim.

A abadia continuou a funcionar ainda durante um período surpreendentemente


longo e, embora a maioria dos irmãos, com o passar do tempo, se fosse
cansando e afastando, quando a dissolução final liquidou Medmenham, tal
deveu-se a causas políticas e não propriamente ao tédio dos seus congregados.
Na troca de pazadas de lama que se seguiu à detenção de Wilkes em
consequência da publicação do número 45 do North Briton, caiu sobre
Medmenham a dose que lhe cabia. Lavrando a dissensão entre os ”frades”, e
tendo lord Sandwich lido em voz alta, perante a Câmara dos Lordes, o ”Ensaio
sobre a Mulher”, afectando um tom de escandalizada pudicícia (com o que
sugeriu um dito jocoso na boca de uma personagem da Ópera dos Mendigos,
nestes termos: ”Ora, não é que Jemmy deu com a língua nos dentes contra
mim? Fiquei de queixo caído com essa!”), os consócios, já em progressiva
decadência física, decidiram que a viva luz da publicidade lhes feria demasiado
os cansados olhos e, assim, transferiram-se para uma (literalmente)
subterrânea clandestinidade.

Sir Francis tinha mandado abrir uma estrada transitável (talvez movido, ou
não, por intenções filantrópicas), e a cal necessária aos trabalhos foi retirada
das caleiras da colina de West Wycombe, o que lhe proporcionou, e aos seus
confrades, o brinde dum conjunto de grutas naturais, aptas para
aproveitamento imediato. Essas escavações apresentavam uma fachada gótica,
arcadas pontiagudas e agudas colunas talhadas no calcário e, em suas húmidas
e labirínticas profundidades, tiveram lugar as últimas orgias da confraria de
Medmenham.
Mas já então sir Francis tinha em andamento um novo projecto, a saber, o
daquela pseudo-igreja a que se refere Wilkes no trecho (já citado) onde nos
descreve os jardins de West Wycombe. Esse fantástico exemplar de
construção, provavelmente projectado como ponto central donde se
descortinaria toda a propriedade, e encimado pela sua gigantesca cúpula de
ouro, plantava-se qual bizarro farol dominando da sua elevação a aldeia; causou
espanto, sim, porém nenhuma gratidão acendeu nos corações dos paroquianos.
Mais salão de baile do que templo, como observou um visitante, não comportava
assentos para os aldeões, deficiência essa que se compensava pela presença de
bilhas de refrescar vinhos, postadas nas passagens ao centro da nave, para
proveito de lord Despencer e seus familiares.

Quando Bubb Dodington, já velho, atormentado de achaques e cercado de


charlatães, ao transpor, desajeitadamente, uma passagem em Eastbury,
tropeçou e, rolando com a cara no chão, foi cair, numa ruidosa cambalhota,
escada abaixo, na cozinha, ainda teve tempo de acrescentar ao seu testamento,
antes de o levar a Parca, uma cláusula deixando a sir Francis a soma de
quinhentos esterlinos para que o beneficiário lhe erguesse um templo destinado
a acolher-lhe as cinzas. A construção que Dashwood, assim, pôde levantar,
anexa à sua própria igreja, tomou-se o mausoléu da maior parte dos ”frades”
de Medmenham.

Mas os dias de Medmenham chegavam ao fim. Sir Francis, por força da natural
contingência física, ficou mais temperado. Deixava-se ficar sentado lá no alto
da sua igreja, na bola dourada, a bebericar ponche de leite, a intrigar
estúpidas conspirações e contemplando infindavelmente o magnífico panorama,
até ao dia 11 de Dezembro de 1781, em que morreu.

As suas fantasias, porém, ainda se mantiveram no ar, após a sua partida.


Muitas delas, de qualidade inferior apesar do engenhoso feitio, desabaram
como torreões, à semelhança do que se deu com o templo mencionado por
Wilkes, transformando-se em pó; mas na aldeia corre à boca pequena que lá em
cima, no solar de West Wycombe, existe um aposento que desde os tempos da
rainha Vitória vive trancado e selado, tão indecentes são as coisas que encerra
entre as suas paredes.

Antes de abandonarmos o século XVIII, desejo falar de dois outros clubes, um


deles, instituição-mãe e, o outro, instituição-filha, os quais existiram na
Escócia durante os três últimos quartéis daquele século. Refiro-me à
antiquíssima e poderosíssima Ordem da Bênção da Mendiga e Merryland, e ao
Clube da Peruca (Wig Club).

Em Anstruther, no Fifeshire (ou Condado de Fife), viviam os senhores condes


de Anstruther no seu castelo de Dreel. Já desde o século XIV que ali estavam
estabelecidos, sendo que esses fidalgos, em conjunto com um grupo de pares do
lugar, empreenderam por sua conta a formação de uma sociedade visando
proteger os seus direitos de pesca contra intrusos ingleses, flamengos e
franceses. Estabeleceram como centro das suas operações a ilha de May. Aí
existira, no século XII, um mosteiro. Mas os monges, respectivos ocupantes,
abandonaram-no após terem ali permanecido apenas durante um
comparativamente breve lapso de tempo, apesar de até alguns anos antes haver
na ilha um capelão encarregado de zelar pelas santas relíquias deixadas, entre
estas o ataúde de Santo Adriano. Dizia-se que um simples toque nesse esquife
era cura certa para a esterilidade. Aos peregrinos que visitavam a ilha era
imposta a bênção com estas palavras: ”Sede fecundos e multiplicai-vos!”
Murmurava-se, aliás, que a castidade não se contava entre as virtudes dos
capelães.

Este fragmento de História assume uma considerável relevância em face da


impressionante recrudescência do culto fálico, do modo que, normalmente, só
se assemelha aos primitivos festivais pagãos da fertilidade, que se verificaram
nestas paragens da Escócia no decorrer dos séculos XVIII e XIX. E
impressiona ainda mais considerar-se que o fenómeno estava ainda em pleno
florescimento muito tempo após o pêndulo da História já ter iniciado o seu
impulso de retomo para o ”vitorianismo”.

A origem da denominação ”Bênção do Mendigo” localiza-se numa anedota,


provavelmente uma invenção, em tomo de Jaime V. Conta-se que esse rei
gostava de percorrer incógnito o país, disfarçado de gaiteiro ou de pedinte.

Certo dia, viajando ele com destino à Feira de Anstruther, alcançou a margem
do Dreel Burn, corrente sobre a qual não existia ponte. À beira da água, por
acaso, achava-se, de pé, uma rapariga mendiga. Muito amavelmente, a jovem
pegou na pessoa do viajante real e levou-o às costas até à outra margem do rio.
Ao pagar-lhe o rei o favor dando-lhe um soberano de ouro, ela por sua vez deu-
lhe as graças na seguinte bênção:
”Tomara que a tua bolsa nunca se esvazie E que a tua verga seja sempre florescente!”

Chegando o rei Jaime ao castelo de Dreel e tendo-se dado a conhecer aos


habitantes da praça-forte, tão divertido ainda estava com a aventura do vau
que logo quis narrá-la a todos e entendeu instituir ali mesmo e desde logo uma
ordem de Cavalaria a que denominou de ”Ordem da Bênção da Mendiga”.

A moderna Ordem de igual nome, da qual aqui nos ocupamos, foi fundada em
1732, data que consta em dois dos seus sinetes. As assembleias eram
convocadas duas vezes ao ano, no Dia de Nossa senhora das Candeias e no de
Santo André, sendo que, cada ano, admitiam-se mais dois, três ou até quatro
noviços. A sessão começava com um jantar ligeiro, após o qual se passava ao
”templo”.

As actas em que se consignam os ritos da iniciação ainda existem, mas, caso


não se achasse prova confirmativa nos objectos integrantes da Colecção
Kavanagh (actualmente em poder da senhora Canch Cavanagh), seria caso de
hesitarmos em aceitar a descrição que delas consta como literalmente verídica.

O ”soberano” presidia. Trazia uma faixa de cetim verde, sobre a qual se lia as
palavras: ”Bênção do Soberano Mendigo”. Todos os demais membros do
conclave exibiam a faixa e uma medalha. Nesta última via-se, dum lado, a
tríade Adónis, Vénus e Cupido, e do outro, apenas Adónis e Vénus. Algumas
medalhas mais recentes trazem inscrita a bênção dos monges da ilha de May:
”Sede fecundos e multiplicai-vos.”

A cerimónia de iniciação principiava quando o ”Relembrador” acorria com a


”Salva da Prova”, que depositava sobre um alto tamborete, ao centro da sala. A
dita salva, tal como se vê na Colecção Kavanagh, é de formato oval, medindo uns
vinte centímetros de comprimento e apresentando a inscrição ”Beggar’s
Benison 1732. Como Faz um Homem com uma Mulher. Salva da Prova”.
Em seguida trazia-se o noviço, que já vinha preparado para o rito. A sua entrada,

soava um pequeno como de prata5, como que a insinuar um trocadilho em tomo


da bênção proferida pela campónia mendiga. A dita trompa tem gravadas as
palavras ”Meu hálito é estranho. Lev. x5. 16. 17.”6 A referência refere-se à
passagem do Levítico que versa sobre as leis da purificação e tem cabimento na
cerimónia em causa, cuja natureza, como já se terá depreendido, era auto-
erótica e simultaneamente exibicionista. Uma declaração que se vê registada a
arranhões na base da bandeja confirma essa suposição.

Concluída a cerimónia, brindava-se em libações sorvidas de dois copos de vinho


com a forma de falos, da altura de dezassete centímetros (actualmente na
citada Colecção Kavanagh).

Feito o brinde, mandava-se o noviço escolher um trecho à sua vontade no


Cântico dos Cânticos de Salomão e lê-lo em voz alta, acompanhando a leitura
com comentários seus. Para tal fim, oferecia a Ordem uma Bíblia especial,
estando assinaladas todas as passagens escabrosas do respectivo texto, além
da inclusão extra, na folha em branco do antetexto, de exemplos de prosa e
verso eróticos. Essa Bíblia estava guardada com duas chaves diferentes, uma
das quais pertencia à sociedade-mãe e, a outra, complementar, à mencionada
filial.

Os respectivos buracos das fechaduras eram de ouro e apresentavam forma de


vulvas, cruzadas pelo dístico Lignum Scientiae Boni et Mali.

Uma vez iniciado, o novo confrade era paramentado com as insígnias da


sociedade e bebia, brindando, ”à rapariga pedinte e à alegria”.

Seguia-se, então, um banquete, festejo esse que, ao que parece, se desenrolava


num espírito de saturnal. Cantavam-se canções lúbricas, erguiam-se brindes
canalhas, passavam-se de mão em mão quinquilharias e bugigangas de carácter
erótico.

A certa altura, no decorrer da festa, era o momento de o novo sócio receber o


seu diploma. Tal documento vinha redigido em estilo de caricatura de alvará
marítimo, em trocadilhos, pois conferia-lhe ”plenos poderes e

5 Horn: como ou também verga, excrescência. (N. do T.)

6 Hálito, ou odor, que se verá mais condizente no caso. (N. do T.)

privilégios de aportar, zarpar e arribar, navegar para dentro e para fora, de


procedência e com destino a todos os portos, angras e enseadas e baías do
litoral dos nossos... territórios ao seu bel-prazer”.
Passado algum tempo, pela noite dentro, eram-lhe desvendados os segredos
arcanos, além de lhe trazerem uma jovem das vizinhanças.

Surgia também o sinete da Potentíssima Ordem. É uma peça de desenho e


feitura de evidente alto teor. Vêem-se nele figurados um falo e uma escarcela,
sobrepostos a uma âncora como fundo. O sinete da filial de Edimburgo baseia-
se, essencialmente, num desenho idêntico. Existem mais dois outros selos de
época anterior, muito mais singelos quanto a desenho e feitura, ostentando a
legenda:

ANSTRUTHER

BEGGAR’S

love ’s

cave.

BENISON
1732

(Gruta do Amor da Pedinte de Anstruther. Bênção. 1732), para além de dois


outros, um dos quais, de lavra incomparavelmente superior, apresentando as
figuras de um coração e uma vulva, e os dizeres ”com o ver, cresce o prazer.
Bênção da Pedinte, Anstruther”; o outro representa um farol peniforme,
assente sobre uma base vulviforme e flanqueado por dois pelicanos.

A ordem apenas foi dissolvida no dia de Santo André do ano de 1836, menos de
um ano depois de subir ao trono a rainha Vitória. Facto digno de nota, acerca
dessa sociedade, é que os seus componentes eram não apenas elementos de
ambos os principais partidos políticos, como também quase todos eram
representantes da fidalguia local, com os seus solares num curto raio de
distância em redor do castelo de Dreel.

As relações que ligavam a ordem da Bênção da Mendiga com o Clube da Peruca


(Wig Club) eram muito curiosas, dado que, embora a sua filial de Edimburgo
tivesse sido fundada por sócios descontentes com a Bênção da Mendiga, que
carregaram consigo o mais valioso tesouro da sociedade-matriz, muitos dos
membros de uma das agremiações continuavam sendo-o também da outra e,
assim, parece que perduraram as relações amistosas entre ambas.
Em 1775, os lords Moray e Aboyne desligaram-se da sociedade, levando o
símbolo do clube, a peruca. Provavelmente nunca se saberá ao certo a verdade
sobre a feitura desse ornamento, mas, à época da sua transferência para
Edimburgo, andava ele cercado de uma aura de lendário erotismo. Diziam
alguns, os da Ordem, que a tal cabeleira fora outorgada à família Moray pelo
rei Carlos II, em sinal de gratidão por serviços dela recebidos, e que era
inteiramente constituído de cabeleiras púbicas das amantes do referido
soberano. O quanto há de verdade nessa história, prefiro deixar que seja o
leitor a decidir; mas lá que o dito objecto era feito mesmo de cabelos do
baixo-ventre de fosse lá quem fosse, isso era-o de facto, tanto mais que cada
novo sócio era convidado a pedir à respectiva amante a devida contribuição, a
ser acrescentada à peça.

Nas cerimónias rituais do Clube da Peruca, que por natureza se assemelhavam


às da Bênção da Mendiga, cada membro tinha permissão de beijar a referida
cabeleira e até trazê-la à cabeça durante um breve momento.

Os da Bênção da Mendiga, sem se darem por vencidos, puseram-se, mais tarde,


a recolher matéria-prima para uma outra peruca, essa agora a ser feita dos
devidos pêlos íntimos da amante doutro rei, Jorge IV. Mas a verdade é que o
vigor hanoveriano não era de molde a ombrear com as energias dos Stuarts, de
modo que tudo o que resta hoje em dia desta última peruca adventícia são
alguns tristes pêlos metidos numa caixinha de rapé, sob o ”epitáfio” de
”Cabelos do Monte de Vénus de uma Real Cortesã de Jorge IV...”

Da Colecção Kavanagh consta também, não tendo sido até aqui mencionado, um
falo oco, metálico, de dezassete centímetros de comprimento e pintado ao
natural. Precisamente para que serviria isso, ninguém sabe. Houve quem
insinuasse que o objecto tinha sido fabricado no decurso dos últimos anos de
existência do clube, para que os sócios pudessem com ele disfarçar os seus
próprios órgãos, por motivo de algum acanhamento, mas isso parece improvável.

Mas os tempos estavam a mudar, lá isso é verdade. Começavam agora os clubes


de libertinos a dar-se ares de respeitabilidade. Invadia a sociedade uma
mentalidade nova e, muito embora continuasse florescente o vício, teria, já
então, de vicejar em sítios e de maneiras mais recônditos, mais velados, mais
lúgubres.
Essa mudança começara e desenrolava-se há muitíssimo mais tempo do que o
supõe a maioria das pessoas. Já em 1757 fora lançada, por um punhado restrito
de indivíduos cheios de iniciativa, a ”Sociedade Pró-Reforma dos Costumes”
(embora esse grémio tenha falido cinco anos depois, na sequência de um
processo e condenação por aliciar a peso de ouro testemunhas falsas).

Jorge In lançara a sua ”Proclamação Contra o Vício”, a cujos postulados


ofereceu apoio material a ”Sociedade da Proclamação” (fundada em 1789). Daí
em diante, começaram a pulular, a toque de caixa, numerosas sociedades desse
tipo, e conquanto a Igreja ortodoxa não emparelhasse com a medieval em
matéria de actos de proibicionismo e de propaganda, a Igreja wesleiana quase a
superou. Esta reacção contra a licença de costumes veio a resultar na atitude
diante da vida que geralmente se designa por ”vitoriana”.

O Movimento Romântico, que se exprimia, no continente europeu, de diversas


formas, cingiu-se, na Inglaterra, à literatura e às artes da pintura. Para os
românticos, era coisa impossível dar expressão sexual às suas crenças, de tal
modo os suplantavam em número e organização os wesleianos e seus aliados. (É
claro que aqui me refiro a uma luta mais espiritual do que física.)

Bem sabiam os vitorianos da existência do sexo e de que este sempre existiria;


mas resolveram que o baniriam da vista da sociedade. À semelhança das
cloacas, era uma coisa necessária à vida, quer o quiséssemos ou não; mas,
também como as sentinas, não era coisa para a sala de visitas.

Eram óbvias as desvantagens deste modo de pensar. Se o sexo é impureza, suj


idade - pois essa era a categoria que lhe conferiam os vitorianos -, então
sujidade continuava a ser; e se assumia a forma, tanto na realidade como na
literatura pornográfica, de abomináveis fantasias, eles só se poderiam
censurar a si mesmos. Dadas essas circunstâncias, não é de estranhar que
todas as indesejáveis características da vida sexual do século XVIII, tais
como a flagelação, com os seus bordéis especiais, o tráfico de virgens e de
juvenis, se constituísse como eterno monumento à sua desatinada conduta
sexual.

CAPÍTULO SEXTO
O SÉCULO XVIII NA EUROPA CONTINENTAL
Está muito bem que Taine tenha formulado um esmagador e desapiedado
estudo crítico da libertinagem inglesa, que acabamos de apreciar no capítulo
precedente. Evidentemente que as acusações por ele lançadas são, em grande
parte, justificadas. Mas pairam dúvidas sobre se o panorama exibido terá sido
exclusivamente privilégio dos moços galantes da Inglaterra.

Os equívocos em tomo do assunto, no que se refere ao século XVIII, são


bifaces. Há quem sustente, sem grande base justificativa, que os actos viciosos
da época eram levados a efeito com um toque de elegância e bom gosto. Assim
poderá ter sido no caso de uns tantos indivíduos apenas; e em que época é que
isso não acontece? Mas não era assim na Inglaterra da maioria. E tal foi o que
depreendemos do capítulo anterior. Mas, para cada xenófobo, existe, em
contrapartida, um xenófilo, de modo que há muito quem afague a convicção de
que tudo o que é mau na Inglaterra foi carinhosamente adoptado pelos
continentais, bem mais espertos. Casanova, obstinam-se a crê-lo, era um tipo
muito diferente de lord Sandwich. Ora, quão sem cabimento factual é
semelhante ideia, eis o que nos propomos demonstrar neste capítulo.

No decorrer de uma apreciação objectiva e analítica dos caracteres de dois


indivíduos-símbolos, que passarei a explanar, espero lançar alguma luz sobre a
questão de poder ser a orgia (a do rebelde) tida porventura como uma
modalidade ”normal” de comportamento sexual. Rogo aos leitores que tenham
em mente essa consideração, antes de me acusarem de reunir dados abstrusos,
que se ajustem, e só eles, à minha tese; e que se lembrem, também, de que o
simbolismo convencional comum aos dois referentes é, segundo os padrões da
maioria, excessivamente diversificado.
Giacomo Girolamo Casanova di Seingalt faleceu em 1798, aos 73 anos de idade,
deixando como legado à posteridade uma colossal quantidade de memórias,
escritas evidentemente pelo mero prazer de escrever, sem qualquer intuito de
publicação.

Filho de um actor e de uma actriz, teve o que hoje se consideraria uma infância
infeliz. De pequeno, já o destinavam à Igreja, mas a sua inadequação para o
sacerdócio desde logo se revelou. (Mais tarde fez-se pedreiro-livre e, ao longo
de todo o contexto das suas referidas memórias e até mesmo como elemento
integrante das suas actividades de sedutor galante, volta e meia surgem
manifestações da algaravia cabalística em que, pelos vistos, Casanova
acreditava firmemente.) Acabou por não assumir profissão nenhuma conhecida,
pois, se agora era gerente de uma lotaria do governo, doutra vez aparecia
(1774 a 1782) como espião de polícia, em Veneza. Durante toda a vida mostrou
uma ininterrupta paixão pelo jogo.

As tais memórias versam, quase exclusivamente, sobre as suas conquistas


amorosas, a par com umas revelações algo sórdidas, à Samuel Pepys, em tomo
do seu próprio estado de espírito. Casanova, porém, era um carácter ainda mais
tortuoso do que Pepys. Lendo-se as suas memórias, tem-se de imediato a
impressão de se estar a ler literatura pornográfica de ficção.

Cada incidente tresanda a invenção, mas, no entanto, a veracidade do autor,


onde pode ser verificável, sai ilesa de dúvidas, de modo que há que tratá-lo
como homem que diz a verdade e às suas memórias dá-las como casos
realmente acontecidos.

A primeira coisa que me impressionou quando me detive nas várias situações e


nos diversos episódios constantes dessas memórias foi a insistente recorrência
de uma certa situação, recorrência essa que, na verdade, oferece uma
exactidão quase suspeita.

Movia Casanova - o que bem claramente se extrai das suas próprias


declarações -, seja hipoteticamente ou de facto, um pronunciado impulso no
sentido de executar o acto sexual com uma mulher e em presença de uma
segunda. Por exemplo, no caso de Helena e Hedwig, as duas jovens que ele
desflorou, uma diante da outra:

”Inundei-as de gozo durante várias horas, passando umas cinco ou seis vezes
dos braços de uma para os da outra até me sentir esgotado. Nos intervalos,
vendo como eram dóceis e ansiavam por mais, fi-las executar as mais
complicadas posições segundo Aretino, o que as divertiu além de qualquer
possibilidade de relato. Beijávamo-nos, mutuamente, fosse qual fosse a parte
das nossas anatomias que nos indicasse a fantasia.” (Seguem-se, aqui, minúcias
do texto original, impossíveis de transcrição.) ”...Ela deliciou-se com a cena,
acompanhando todo o processo até ao fim, com a acurada atenção e interesse
de que seria capaz um médico.”
Neste ponto, o que parece é que Casanova projectara, numa transferência para
Hedwig, a sua própria atitude mental. Porque ele mesmo é que é o portador
desse interesse pseudoclínico, e algo mórbido, nos pormenores do curso de uma
cópula.

Análoga situação, ou de muito próxima similitude, ocorre num outro caso seu,
com Annette e Veronique.

”Veronique resignou-se a aceitar a parte passiva que a sua irmã mais nova lhe
impôs e, voltando-se de lado, pousou a cabeça sobre a mão, deixando ver um
seio que teria afogueado o mais frio dos homens e me convidou a iniciar o meu
assalto a Annette. Não seria essa uma difícil tarefa que ela me impusesse,
porque eu já estava em chamas e sentia-me seguro de agradar-lhe enquanto ela
tivesse os olhos postos em mim. Dado que Annette era míope, não tinha meios
de distinguir, no calor da acção, para que lado eu estaria a olhar e eu, sem que
ela o percebesse, consegui deixar livre a minha mão direita, com a qual logrei
proporcionar à outra um gozo tão real, ainda que não igualmente intenso,
quanto o seu. Sempre que se desarranjava a coberta, Veronique tinha o cuidado
de repô-la, acto esse que me granjeava, a modo de acidente, um novo e sedutor
espectáculo. Ela notou que eu gostava de entrever os seus encantos e isso
acendia-lhe o olhar. Por fim, transbordando de desejo insatisfeito, ela
patenteou-me francamente todos os tesouros de que a Natureza a havia
dotado, precisamente no instante em que eu chegava ao termo do quarto
abraço com Annette. Bem podia ela pensar que eu estava apenas a ensaiar para
o que viria na noite seguinte, e a sua imaginação deve ter fantasiado sob as
cores mais vivas as delícias que a esperavam.”

E há ainda as tais ”Ceias de Ostras” de Casanova. Tratava-se de recepções


oferecidas pelo célebre galã a duas freiras, Armelline e Emilie, as quais
empanturrou de enormes quantidades de ostras e champanhe.
Propositadamente, ele faz com que a sala fique de tal modo superaquecida, que
obrigue as jovens a despojarem-se dos vestidos de cima. Aí então, mediante um
joguinho de prendas, segundo o qual uma pessoa retira uma ostra da boca da
outra por sucção, ele consegue fazer cair uma ostra, como que acidentalmente,
para dentro do entre-seios do corpete de uma das monjas, primeiro, depois no
da outra. Esse ardil é causa de agradáveis operações exploratórias no afã de se
recuperar o pitéu fugitivo, seguindo-se-lhe uma apreciação comparativa, de
início apenas visual, depois sensorial, táctil, das relativas dimensões dos dois
pares de pernas. É interessante notar, sob outro ponto de vista, que esta
aventura com as monjas se passou durante uns dias de Carnaval.

Uma modalidade mais exagerada de idênticas manobras é a que se contempla


no incidente da ceia em casa de Bassi (que foi sócio nos negócios de Casanova,
durante algum tempo).

”Tendo a ceia e a vinhaça acendido suficientemente o meu ânimo, pus-me a


dedicar as minhas atenções à filha de Bassi, que me deixou fazer o que eu bem
quis, enquanto a mãe e o pai não faziam mais que rir, ao passo que o toleirão do
Arlequim se roía e fumegava de raiva por não poder tomar iguais liberdades
com a sua Dulcineia. Finda a refeição, porém, tendo eu já posto a rapariga no
estado natural em que nasceu e achando-me, também, tão vestido quanto Adão
no Paraíso, antes da ingestão da fatal maçã, o Arlequim ergueu-se e, agarrando
a namorada pelo braço, fez menção de afastá-la dali. Em tom imperioso,
mandei-lhe que se sentasse, no que ele me obedeceu, espantado, contentando-
se em voltar-me as costas, como única forma de protesto. A namorada não lhe
seguiu o exemplo e até se colocou, pretensamente, no propósito de defender a
vítima contra mim, seu algoz, calculadamente de tal jeito que mais ainda me
aumentou o prazer, ao passo que as tontices da minha mão vadia sobre o seu
corpo pareciam não a desgostar de modo nenhum.

”A cena excitou a mulher de Bassi, a qual passou a pedir ao marido que lhe
desse desde logo uma prova do seu amor por ela, súplica a que ele prontamente
atendeu, enquanto o pudico Arlequim se deixava estar junto à lareira, com a
cabeça entre as mãos.

”A alsaciana já estava num estado de grande excitação, pelo que se aproveitou


da posição em que se postara o namorado para me conceder tudo o que eu
desejei e, assim sendo, enveredei, sem mais delongas, na frenética operação,
durante a qual os violentos movimentos do seu corpo provavam que ela
colaborava tão activamente quanto eu próprio.”

O modo geral de procedimento do nosso herói, a esta altura, já se vai


definindo. Casanova interessa-se tanto, quiçá ainda mais, pelas reacções dos
espectadores, ou do espectador, quanto pelas da pessoa que efectivamente
compartilha com ele o acto sexual. Pode com justiça avançar-se que ele era um
exibicionista sexual. Verdade seja dita que o exibicionismo, particularmente no
sentido jurídico, é às vezes manifestado publicamente, movido pela intenção, no
tarado, de escandalizar ou de causar sofrimento ou simples constrangimento.
Mas tal não é sempre o caso. Bem pelo contrário, no dizer do Dr. Lindsay
Neustatter (Encyclopaedia of Medicai Practicé): ”A sua intenção até pode ser
a de causar profunda e agradável impressão.” No texto de onde é colhido o
conceito encontra-se uma outra observação do mesmo médico que igualmente
cabe aqui transcrever-se: ”A História demonstra repetidamente que, por volta
dos seus cinco anos de idade, muitos dos exibicionistas já possuem fortes
impulsos sexuais. Possivelmente até revelam indícios de embriões de outras
perversões, como o sadismo, por exemplo.”

O sadismo, se o reduzirmos ao princípio fundamental que o norteia, pouco mais


será do que o desejo de vincar indelevelmente, e da maneira mais inequívoca e
extrema, a marca da própria personalidade sobre as coisas e os seres do mundo
exterior.

O factor ”dinheiro” tem muita importância na vida de Casanova, acompanhando-


o de perto um outro, que é a extrema consciência das classes sociais. Poderá
encantá-lo a ideia de que o que lhe conquista as mulheres é o encanto pessoal, a
atracção física que possui. No entanto, prefere a isso o gosto de lhes comprar
os favores.

Metade do propósito subjacente à aventura Bassi, do interesse que o incidente


assume aos olhos de Casanova, é a circunstância de se causar humilhação e
sofrimento a Arlequim. No fim da orgia, ele regista, numa anotação especial, o
prazer e o sentimento de poder que aufere do facto de pagar às criaturas
humanas de que se servira como fantoches.

Quando encontra uma barreira intransponível aos seus amores, fica petulante e
violento. Charpillon, que, confessa-o ele, se divertiu a arreliá-lo até mais não
poder, por causa disso é atirada ao chão, surrada, semiestrangulada, arranhada
e pisada até no nariz - só por se mostrar indiferente e insensível às atenções e
galanteios de Casanova. Vê-se que ele demonstra possuir também a sua
pontinha de voyeurismo, perversão sexual quase sempre gémea do
exibicionismo no mesmo indivíduo. O nosso Casanova, pois, muito ao contrário
de ser o sadio e extrovertido padrão de sexualidade masculina, já assume
numerosas características de neurótico pervertido. O célebre caso da ”cadeira
de Gouda” (que, aliás, cheira muito mais fortemente a fantasia do que a
veracidade, comparado a qualquer outro incidente dos que compõem todo o
crivelmente fantasmagórico calhamaço que aqui vimos investigando), então,
consubstancia semelhante impressão.

A dita cadeira era, segundo Casanova, apenas uma peça feíssima, parecida,
quanto ao resto, com uma qualquer outra cadeira. Mas, sentando-se nela uma
mulher (ou mesmo um homem), ”saltavam dela duas molas que lhe agarravam os
braços e os retinham fortemente, enquanto duas outras separavam as pernas
da vítima e uma quinta mola levantava o assento da cadeira”.

Segundo o narrador, Gouda (Angelo, não Sara) toma assento nesse móvel e, mal
o faz, ”saltam as molas do seu dispositivo e forçam-no a assumir a posição de
uma mulher em trabalho de parto”. Casanova, após devanear em silêncio e em
tomo dos recursos que possivelmente lhe ofereceria semelhante engenho -
como, por exemplo, a humilhação e sujeição da difícil Charpillon -, acaba por
rejeitar a ideia de comprar a peça, pois era coisa muito deprimente para o seu
amor-próprio... mas, de qualquer modo, o facto incontestável é que a ideia
chegou a empolgar-lhe a imaginação.

Se juntarmos ainda o incidente em que Casanova tem cópula com uma mulher
corcunda (vencendo dificuldades que ele pormenoriza com a sua costumeira
obsessão médico-anatómica), o retrato final será, bastante nitidamente, de um
homem que não parecerá nem agradável nem normal.

Conquanto egocêntrico e imaturo, Casanova era uma personalidade apenas


levemente - não totalmente - pervertida e anormal. O que já se não poderá
dizer de uma outra figura sua contemporânea.

Donatien Alphonse François de Sade - é essa a referida figura - nasceu em


1740, tendo sido criado, não pelos próprios pais, mas pelo tio, o abade François
de Sade, o qual mantinha publicamente duas amantes, vivia em Vaucluse e era
autoridade respeitada em Petrarca.

O moço De Sade desposou uma jovem por quem não se sentia realmente
atraído, pois nutria muito maior interesse pela irmã dela. Pouco depois de se
ter casado, teve ele o seu primeiro atrito com os representantes da Lei, que o
meteram nas masmorras de Vincennes por um caso qualquer de devassidão cuja
exacta natureza, ainda que tenha sido de molde a produzir um considerável
escândalo na época, não se pode descobrir agora qual tenha sido.

De Sade, à semelhança de muitos outros homens do seu tempo, tinha a sua


petite maison - casa ou chalé no campo, reservada somente para fins eróticos.
A sua era situada em Arceuil, nos arredores de Paris, e já em 1764 gozava De
Sade duma reputação pior do que a da maior parte dos seus contemporâneos.
Acontece que nesse ano escreveu o inspector de polícia Marais uma carta a
uma alcoviteira conhecida como ”a Brissaut”, missiva em que recomendava
fortemente a essa proxeneta para não arranjar rapariga nenhuma destinada a
acompanhar De Sade a Arceuil.

Três anos mais tarde, não muito depois da Páscoa, explodiu o escândalo que
ficou designado como ”o caso Keller”, achando-se agora o Marquês de Sade, e
pela primeira vez, em situação realmente difícil.

Eis o que aconteceu: uma mulher de 36 anos, de nome Rose Keller, atravessou-
se no caminho do marquês a pedir-lhe uma esmola, quando ele cruzava a Praça
de Santa Vitória, no dia de Páscoa daquele ano de 1767. Sade retorquiu ao
pedido da mendiga, perguntando-lhe se ela não quereria ganhar um dinheirinho
”como governanta”, referiu ela posteriormente. O marquês, porém, defendeu-
se depois alegando que na altura falara claramente ”numa festinha libertina”
(”partie de libertinage”). Qualquer que tenha sido a versão verdadeira, o facto
é que a mulher aceitou a proposta.

Chegados a Arceuil, foi ela levada a um quarto, e ali ”forçada a despir-se,


amarrada à cama, em decúbito ventral, e impiedosamente surrada com várias
chicotadas e bastonadas, retalhada com faca em diversos e numerosos lugares
do seu corpo e, finalmente, ’tratada’ das feridas recebidas, com cera de lacrar,
pingada a ferver sobre as mesmas”. A desgraçada suplicava ao seu carrasco
que não a matasse então, pois não havia ainda feito a sua confissão daquela
Páscoa. Rangendo os dentes, replicou-lhe ele: ”Podes confessar-te a mim!”, e
tentou mesmo obrigá-la a fazê-lo, mediante afirmar-lhe que ia matá-la e
enterrá-la no jardim. Ela, porém, recusou com valentia obedecer-lhe nisso e
conseguiu, por fim, fugir-lhe e ser tratada por Madame Jouette, através da
qual essa história veio a saber-se. Este testemunho, todavia, tem de ser
encarado como prova de ”ouvir dizer”, de pouca valia e nenhuma aceitação
perante um tribunal dos dias de hoje, embora, em face de posteriores
acontecimentos da vida de De Sade, possamos razoavelmente apreciá-la como
substancialmente fidedigna.

O cirurgião convocado pelas autoridades para exame pericial confirmou, em


termos gerais, o depoimento da Jouette. De Sade alegou, por seu lado, que
Keller fora uma vítima complacente e que ele utilizara nela apenas um
”martinete”, ou seja, um pequeno chicote feito de cordões com nós.

A família do marquês conseguiu comprar o silêncio de Keller pela gorda soma de


2400 libras, o que não impediu que o processo prosseguisse o seu curso, devido
a rivalidades pessoais entre as partes litigantes. Num conto, que tempos depois
veio a escrever, De Sade põe na boca de uma das suas personagens estas
palavras: ”Vêm-me à lembrança os juizes de Paris e aquele célebre incidente de
1767, quando, muito mais movidos de piedade pelo vergastado traseiro duma
mulher de sarjeta do que pela condição do vulgar plebeu, cujo pai protector
eles se dão ares de ser mas que deixam rebentar de fome, ao desamparo, eles
encarniçaram-se nas suas acusações contra um jovem oficial que, ao acabar de
fazer o sacrifício dos melhores anos de sua existência à causa do seu rei, a
recompensa que recebeu foi humilhação às mãos dos inimigos dessa pátria que
ele acabava de defender.” A despeito dessa longa e incompreensível
choradeira, De Sade chegou a obter, mesmo, da justiça de Luís XV, uma ”carta
de indulto” e foi absolvido.

A circunstância de aqueles maus tratos terem sido infligidos a Keller num dia
de Páscoa é que agravaram a seriedade do atentado, aos olhos dos magistrados,
como também a significação de todo o acontecimento aos olhos do próprio De
Sade.

Em 1772, andou ele outra vez atrapalhado, sob a acusação de tentativa de


envenenamento na pessoa de Marguerite Coste, à qual, alegava-se, dera a
tomar cantáridas, que são ao mesmo tempo veneno e afrodisíaco. A mulher caiu
gravemente doente, não chegando, porém, a ficar em sério perigo de vida, o que
não poupou De Sade à acusação, posterior, de assassínio, pois no mesmo dia
meteu-se ele numa outra aventura de natureza ainda mais complicada.
Arrebanhou num bordel três ”pensionistas” e atraiu-as a uma certa casa dos
arredores da cidade (de Marselha). Aí foram elas recebidas pelo marquês, que
as mimoseou com uma surra e, em seguida, mandou-lhes que lhe fizessem o
mesmo a ele. E foi-lhes requerido executar tal pedido servindo-se de um
enorme chicote ”feito de couro de bode ou carneiro e entremeado de pregos de
diversos tamanhos, tudo coberto de manchas de sangue”. Elas, porém,
recusaram-se a aplicar-lhe esse instrumento que acharam demasiado perigoso
e empregaram, em vez disso, uma vassoura de cipós, com a qual lhe deram, se é
coisa em que se possa acreditar, oitocentos golpes, que ele ia marcando, numa
contagem, por meio de entalhes na coberta da lareira existente na sala. Até o
seu criado, que o acompanhava em toda a aventura, tomou parte na operação de
surrar o amo.

Em seguida a esses tratos, ele passou ao coito anal com as três raparigas,
enquanto era submetido ao mesmo processo por aquele referido criado.
Ofereceu, posteriormente, às mulheres, alguns doces, que só uma delas
aceitou, e sentiu-se mal momentos depois, mas, mesmo assim, não tão mal
quanto a anteriormente referida Marguerite Coste. Concordar-se-á em que a
conduta dele, no decurso deste incidente, não se enquadra na categoria que
geralmente se designa como ”sádica”, termo este, aliás, criado com base no
nome do próprio marquês, um século após, por Kraft-Ebbing.

Pouco tempo depois, eram detidos De Sade e o tal valet-de-chambre, sob


acusações de sodomia e assassínio. Corre ainda uma outra história em tomo
dessa famosa visita a Marselha. (Nas Mémoires Sécrètes, da autoria (?) de
Dachaumont.)

”A novidade que vem de Marselha é que o Sr. Conde de Sade, que tanta celeuma
provocou em 1767, com os desatinados horrores que infligiu a uma rapariga...
acaba de dar naquela cidade um espectáculo, a princípio até agradável, porém
de aterradoras consequências. É que ele deu um baile para o qual convidou um
grande número de pessoas. Ao ser servido o pudim, cada porção levava
escondido um bombom de chocolate, tão delicioso que diversos dos convivas o
comeram. Havia uma ampla provisão desses chocolates, de modo que ninguém
foi privado da sua parte, mas o pior é que cada um dos bombons envolvia uma
certa dose de ’mosca espanhola’ (cantáridas). As virtudes dessa droga são
geralmente bem conhecidas, de modo que, como veio a suceder, todos os que
consumiram os diabólicos doces, subitamente abrasados em furiosos desejos da
carne, entregaram-se a todos os excessos a que possa impelir uma pessoa a
fantasia mais lúbrica. E o baile degenerou, então, numa reedição daqueles
licenciosos festins, já memoráveis entre os antigos Romanos. Nem as mais
virtuosas damas ali presentes escaparam, não sabendo o que mais fazer para
satisfazer o frenesim que se apossara delas. E assim foi que o Sr. De Sade
fruiu os encantos da própria cunhada, com a qual fugiu para escapar às sanções
que merece. Vários convivas vieram a falecer em consequência dos excessos a
que se abandonaram em sua fúria priapesca, sendo que alguns outros ainda se
acham atacados de grave mal-estar”.

Num artigo publicado na Révue de Paris, em 1837, vem relatado ainda outro
incidente que se diz ter ocorrido durante a mesma expedição turística do
marquês. Ei-lo:

”...e ele dirigiu-se a Marselha aí por volta do mês de Junho, acompanhado de um


fiel servidor que ele vestira de maneira a que o assistisse nas suas indizíveis
devassidões. Provera-se de um bom fornecimento de chocolates, em cuja
confecção introduzira uma forte dose de musca hispânica, esse terrivelmente
poderoso, mas também perigoso, estimulante que produz desordens tão
assustadoras no sistema nervoso. Os dois, de forma cúmplice, dirigiram-se para
um bordel, onde ingeriram uma boa dose de vinho e outras bebidas
espirituosas, mais os citados bombons insidiosos. O efeito destes não se
limitou, está visto, a gargalhadas, danças lascivas e repugnantes manifestações
de histerismo; uma das infortunadas mulheres, que a droga reduzira à condição
de bacante dos tempos da Antiguidade clássica, atirou-se pela janela, ferindo-
se mortalmente, ao passo que as outras suas companheiras, seminuas, caíram na
mais desenfreada e nojenta devassidão, à plena vista duma multidão que se
juntara diante da casa, donde ressoavam os ecos de uivos, gritaria e cantigas
desvairados.

”A essa altura, já o marquês e o seu lacaio tinham fugido, mas foram ambos,
sem embargo, anatematizados pelo clamor público, enquanto os magistrados se
aliavam aos médicos no sentido de pormenorizar as circunstâncias agravantes
do criminoso e impudico cometimento. Duas das raparigas morreram em
resultado da sua superexcitação erótica, ou quiçá dos ferimentos que as
desgraçadas causaram a si próprias, ou umas às outras, na espantosa confusão.”

A cada incidente surgiam relatos contraditórios a respeito das ”escapadelas”


de De Sade, de forma que há a possibilidade de, no caso presente, um único
facto ter sido decomposto, por distorção, em vários e diversos outros.
De Sade conseguiu esquivar-se a consequências mais severas mediante fuga
para a Itália, e, dois anos depois, lá estava ele ainda empenhado nas suas
equívocas iniciativas; desta vez, porém, assistido e presumivelmente até
apoiado pela esposa. Em 1777 foi preso em Paris, a pedido da própria mãe e, no
seguimento a uma série de detenções e alternadas libertações, foi finalmente
recolhido aos calabouços da Bastilha, onde escreveu a maior parte dos seus
livros, tão obscenos quanto, em grande parte, incompreensíveis. Deu-Ihe para
se apaixonar, imitando Casanova, por pirâmides cabalísticas, relacionando a
numerologia, no seu modo confuso, com o número de golpes dados e recebidos
nas suas orgias flagelatórias.

A incompreensibilidade de uma boa parte da sua obra literária deve-se,


principalmente, à sua tortuosa e complexa ”filosofia”. Muitos indivíduos
dominados por irreprimíveis e desatinados impulsos têm a mania de querer
explicá-los, antes de mais nada, e a bem da sua própria paz de espírito, com
base num pretenso processo ”racional”, cuja desejada conclusão é apreendida,
nebulosamente embora, mas firmemente, no curso de toda a sua argumentação
- e De Sade era, sem sombra de dúvida, um de tais tipos. A sua tese girava, é
claro, em tomo dos seus desarrazoados impulsos sexuais, incompatíveis com
uma qualquer justificação e, embora tivesse produzido uma longa e
provavelmente sincera análise do seu instinto sexual e das suas perversões, é
ainda extraordinária a profundidade da auto-ilusão em que vivia submerso.

Da Bastilha, transferiram-no, primeiro de forma provisória, depois


permanente, para o Asilo de Loucos de Charenton, onde veio a morrer em 1814.
Não foi atendida a sua última vontade, expressa em testamento, que era ser
enterrado sem funerais no meio de um bosque, coberto de bolotas. Fizeram-
Ihe, pelo contrário, um enterro cristão, muito embora mais tarde lhe tenham
exumado o crânio, para ser estudado por um investigador frenologista, que
teve a pusilanimidade de restringir o seu diagnóstico ao minúsculo comentário
de que a peça anatómica examinada indicara ”uma mistura de vícios e virtudes”.

O aspecto da vida do marquês de Sade que mais repulsa tem suscitado é ter
advogado o cultivo deliberado de novos prazeres sexuais. Geoffrey Gorer (Life
and Ideas ofíhe Marquis de Sade) bate-se contra o valor de tal razão como
fundamento para se condenar aquela personalidade, dado que, diz ele: Ӄ
apenas na esfera sexual que semelhante coisa se toma passível de repreensão,
já que, em todas as demais actividades humanas, o cultivo de mais vastos
âmbitos de gosto é até coisa tida como extremamente louvável. O estudo e o
desenvolvimento das artes outro sentido não tem do que capacitar-nos para
sentir o belo nas formas, nos sons e nas cores, elementos primariamente
privados de sentido, quando não repulsivos. Um pároco de aldeia inglês, que
desfaleceria de horror se lhe fosse insinuado que, juntamente com a esposa,
tentasse ampliar de alguma maneira os seus deleites sexuais, não hesitaria,
entretanto, em lambuzar a cara do filho com a cauda sangrenta de uma raposa
recém-abatida, incitando-o, ao mesmo tempo, a achar divertida semelhante
operação; ou ainda em ingerir iguarias nauseantes, da ordem de caças e queijos
putrefactos. E não só consegue deglutir tais alimentos, nauseabundos por sua
própria natureza, como até os considerará mais apetitosos do que as comidas
usuais, chegando a recusar a caça e o queijo frescos como coisas insonsas e
desenxabidas. Os prazeres mais intensos provêm de repugnâncias superadas.”

O erro subjacente na comparação acima citada (a qual o próprio De Sade


gostava muito de trazer à baila) parece-me residir na seguinte consideração:
tanto as avesfaisandées quanto os seus equivalentes sexuais, os prazeres
discutíveis, poderão ser deliciosos; mas àquelas, segundo ficou provado pela
observação, não se atribuirá inconveniente maior do que algumas horas de
distúrbio digestivo, enquanto é visível que os referidos prazeres causam dano
permanente sob a forma de infelicidade e sentimento de solidão e, ao que
parece, não se tomarão algo desejável nem compartilhável de livre vontade,
antes possuirão o atractivo maligno de uma droga maléfica e viciante. Um dos
termos da comparação não comporta maior mal; mas o outro pode fazer, e
normalmente fá-lo, muito mais mal do que bem, nem que seja apenas à pessoa
do imprudente experimentador sexual. Mas o dano nem sempre se limita a ferir
apenas esse iniciador.

Levando a argumentação às suas extremas consequências lógicas, chegar-se-ia


à conclusão de ser admirável o cultivo do gosto pelos sintomas da febre
amarela, ou uma certa predilecção pelo cheiro do gás cianídrico, simplesmente
para se transcender as experiências essencialmente limitadas do que é
saudável mas corriqueiro.

O comportamento sexual ”anormal”, ainda que alguns neguem a sua existência,


pode ser definido como sendo o comportamento avesso à própria vida, ao bem-
estar emocional e à sensação e sentimento de felicidade. As dificuldades para
reconhecer esse comportamento são grandes, é certo, e nem mesmo atingindo
esse reconhecimento se granjeia tranquilidade. Há muito quem se apegue às
suas mazelas e, entre tal espécie, nenhuma o faz com tanto e tão acentuado
afinco, quanto a confraria dos psiconeuróticos.

O factor ”exploração” e ”experimentação”, presente nas formas anormais ou


insólitas do comportamento sexual, é um fenómeno que requer um extremo
aprofundamento, até ao seu âmago. Relaciona-se, provavelmente, e de modo
muito chegado, com o sentido de misticismo que muita gente experimenta no
que toca à sexualidade: um sentimento, algo indefinido, de que existe um outro
mundo para além deste, estando livre a via de escape que a ele conduz, talvez
sob a forma de autodestruição.

O homem desgostoso ou insatisfeito, achando-se irritado, revoltado, a


desesperar por qualquer libertação da sua própria personalidade neste mundo,
tenta ligar-se a algo que concebe como sendo um controlo proveniente de
outras forças. De entre essas forças, o misterioso poder de sua própria
sexualidade afigura-se-lhe como sendo o mais facilmente alcançável. No seu
afã por efectuar a sua libertação das cordas da responsabilidade, ele
usualmente não consegue senão acumular sobre si mais desgostos e desilusões;
e o que antes lhe parecia um recurso de escape só contribui, de facto, para
mais amargamente acentuar o seu sentimento de clausura.

Em Inglaterra, a palavra ”romântico” só se aplicava a géneros literários e


pictóricos. Já no Continente europeu podia referir-se a todo um modo de vida,
ou pelo menos a uma forma de ver as coisas em matéria de vida sexual ou
matrimonial.

Os representantes do movimento romântico europeu-continental constituíam


uma minoria de indivíduos bonacheirões dando largas à expressão da sua solidão
e anarquia por entre os restricionistas que representavam, tal como em
Inglaterra, uma força em constante crescimento, sendo o sentido do realismo
pouco mais significativo que o dos seus etéreos opositores.

Os Gregos aperceberam-se das três funções atribuíveis à mulher: a de mãe, a


de esposa e - não se entendendo o termo em sentido amesquinhante

- a de concubina. Achavam eles que havia aí três diferentes tipos de mulher. Os


românticos dos séculos XVIII e XIX nutriam a esperança de encontrar as três
qualidades coexistentes numa só rapariga. Como é de esperar, naturalmente,
não a concretizaram. Uma das coisas que se distinguem logo nessas pessoas é
que não alcançaram nada, nada deixaram feito. Andavam sempre a perseguir um
ideal, guardando as suas energias sexuais para o grande momento em que
alcançassem a realização plena da sua fantasia: a tal história da ”jovem
incomparável, ímpar no mundo!” E daí, quem sabe?

- é-se levado a supor com alguma caridade -, talvez eles assim procedessem
porque afinal não queriam mesmo fazer nada.

Alguns houve, entre eles, que assentaram num meio-termo sob a forma de
mariage à trois, arranjo que se deve considerar como algo diferente do hábito
de ter amante amancebada. (Neste último caso, os dois lares eram
completamente separados, enquanto no anteriormente mencionado as duas
mulheres viviam sob o mesmo tecto.) Mesmo com este afrouxamento das
normas sociais, o romantismo não podia esperar sobreviver por muito tempo
como protótipo. Já vimos, noutro ponto, para dentro de que sulcos um
movimento restritivo encaminhará, no fim de contas, o instinto sexual. E
voltaremos a vê-lo novamente. Pois nem mesmo os ”livres pensadores” estão
imunes a essa transformação. As façanhas da gente de Medmenham, com as
suas satânicas fantasias góticas, não passavam de um mero indício de coisas
piores que haviam de vir. Sir Francis Dashwood e a sua malta podiam permitir-
se o gozo de uma vida sexual mais ou menos normal, contanto que esta se
revestisse de adequadas roupagens. Isso, porém, não se aplicava aos indivíduos
de ambos os sexos que haveriam de lhes suceder numa era em que nasceria
gente do estofo de uma Princesa Belgioso, que conservou na sua vila de Locate,
durante várias semanas, o cadáver embalsamado do amante, e tê-lo-ia retido
por muito mais tempo, provavelmente, se a Polícia austríaca não tivesse
descoberto a macabra relíquia, no decurso de uma vistoria. Essa mesma dama
costumava dormir numa alcova aparelhada ao jeito de catafalco, sob a guarda
de um melancólico criado negro, que, fazendo uma conveniente cara
melodramática, conduzia à sua presença os visitantes. Ou ainda como
Swinburne, a repisar a sua lúgubre poética necrófilo-sado-masoquista:

”Porém o verme te despertará da morte aos beijos; Então te transformarás,


transmudando-te num deus, Qual o mosaico bastão numa serpente sibilante, De novo,
a serpente voltando a ser bastão. Embora o gentio nos supere e sobreviva E as nossas
vidas e os nossos anseios sejam gémeos... Oh! Perdoa-nos as nossas virtudes, perdoa-
nos, Nossa Senhora da Dor!”
Tal era o poeta que, com 14 anos de idade, se identificava com determinados
tipos e personalidades correntes na já então copiosa pornografia flagelatória
que aquela época produziu. Toda a espécie de filigranada fantasia que a mente
era capaz de engendrar: tortuosas, bizarras, engenhosas. Toda a espécie de
ideia, mas muito pouco de acção. Eis os percalços e armadilhas que se
atravessavam no caminho do romântico, ao empreender a sua marcha em
direcção ao estágio vitoriano.

CAPITULO SÉTIMO

OS VITORIANOS
Um autor (Cyril Pearl: The Girl with the Swansdown Seat) professou que as
nossas ideias acerca do período chamado ”vitoriano” são inteiramente erradas.
Aquela não foi, na verdade, uma era de repressão, de modo nenhum. Tenham-se
em vista todas aquelas prostitutas, umas pobres e outras ricas, que então
pululavam; considerem-se todos aqueles casos de divórcio escandaloso, leia-se
toda aquela literatura pornográfica, a força da sugestividade cultivada nos
vestuários femininos (as crinolinas, os decotes ousados, o apelo e apego a
espartilhos cada vez mais apertados) e outras seduções de tal género. Foi, isso
sim, uma época em que ”a prostituição estava muito difundida e flagrante,
muito à vista, e muitas ruas de Londres mais pareciam bazares de carne
lúbrica, de feição oriental... dias havia em que as cortesãs da moda passeavam
de carruagem ao lado de duquesas, em Rotten Row”.

Há muito de inegavelmente verdadeiro no que avança esse escritor, embora


seja também acrescentar demasiado o dizer-se que era, então, muito
”flagrante”, a menos que se queira emprestar a essa expressão o significado de
numericamente considerável. E ainda que fosse este o sentido e o caso,
prostituição em larga escala é sinal de uma de duas coisas: extrema
licenciosidade ou, ao contrário, extrema contenção, numa dada época. (A
maioria dos homens não dorme em companhia de mulheres públicas, a não ser
que eles não possam, ou não queiram, por este ou aquele motivo em cada caso,
dormir com outro género de mulher.) Não há, espero eu, quem se abalance a
dar o período vitoriano como um tempo de deboche e, assim, a presença da
prostituição, pelo que me parece, até se enquadra perfeitamente no resto do
panorama de então, segundo o encara o homem comum. (Entende Pearl ser uma
coisa destituída de sentido, e provavelmente assente num falacioso sistema de
evidências, a triagem de um determinado período histórico em categorias
definidas, como seja restricionista, ou o que quer que seja. Não consigo pôr-me
de acordo com ele. O sexo não é um factor que se possa muito simplesmente
suprimir do quadro; ele estará lá sempre presente, sob uma ou outra forma
qualquer... e essa forma sob a qual ele comparece é que encerra todo o
interesse da questão, pois dela conseguimos extrair com justeza as nossas
deduções.)

Esta crítica incide igualmente sobre a importância e significação da


pornografia; lê-se, quando se não pode agir... a menos que, por uma ou outra
razão qualquer, se nos tenha tomado impossível extrair prazer das formas
usuais do comportamento sexual.

Os vitorianos eram severos; mas, por trás do irrealismo dos seus ideais e
esforços, existia um sentido basilar de realidade. Eles eram austeros e
idealistas nos seus objectivos, mas sabiam reservar-se algumas janelas para
arejamento. Não eram românticos... o costume vitoriano de manter amantes, de
fruir numa casa, o lar, os prazeres da vida de família e, noutra, os
arrebatamentos do sexo, eis o que prova irrecusavelmente a proposição. As
suas mentes estavam surpreendentemente eivadas de malícia erótica (facto
que, como se viu no caso dos medievais, longe de ser incompatível com um
período restricionista, é até o seu inevitável resultado). Eram, isso sim,
propositadamente cegos a umas tantas coisas, algumas vezes, ao mesmo tempo
que (sempre propositadamente) ilógicos.

Essa malícia erótica dos seus espíritos tanto mais se aplicava à expansiva série
de assuntos, quanto mais tópicos portadores de delicadas associações de ideias
se tomavam tabu - tanto os assuntos sexuais, como os seus substitutivos. E que
os vitorianos eram dotados de um cérebro extraordinariamente inventivo que
os ajudava a efectuar essas substituições, demonstra-se perfeitamente com
apelo ao interessantíssimo e bastante conhecido exemplo do curioso incidente
das pernas do mobiliário. , ;• i .
Como se sabe, os cavalheiros do período vitoriano ficavam loucos de desejo à
simples vista de um tomozelo feminino, casualmente, ou talvez
propositadamente exposto. (Já que tudo o mais dos encantos femininos vivia
encoberto, os pobres coitados tinham que se contentar com esse pouco para se
deleitarem.) Todavia, umas tantas damas vitorianas, atribuindo gratuitamente
aos elementos masculinos do círculo das suas relações sociais os seus próprios
e pouco castos recalcamentos sexuais, entenderam que seria de bom aviso e
benéfico à reputação delas mesmas, para a preservação da virtude das suas
filhas e até para o bem-estar moral dos ditos cavalheiros, que fossem
envolvidas as pernas dos pianos, sofás e poltronas em capas parecidas com os
cobre-pernas dos respectivos proprietários desses móveis. Assim
resguardadas, não restaria perigo de que um visitante calçudo viesse a sofrer
um súbito acesso de lubricidade à vista daquele pormenor da estrutura,
inevitavelmente acompanhada por uma elementar associação de ideias, com a
imaginação de uma feminina perna nua.

Idêntica precaução se depara na maníaca expurgação de muitos livros,


inteiramente inofensivos, aliás. A propensão a deixar-se estimular pelo que de
mais remotamente sugestivo houvesse, que os editores atribuíam aos seus
leitores, é verdadeiramente espantosa.

Os versos de As You Like (Como E do Vosso Gosto):

Under the greenwood tree, Who loves to lie wlth me.

(Sob a fronde da árvore resinosa do bosque, quem gosta de estar comigo), nos
quais o verbo lie (estar, deitar-se) é empregue num sentido totalmente não-
sexual, toma-se necessário um esforço verdadeiramente contorcionista de
imaginação para o forçar; pois, mesmo assim, foi prudentemente corrigido o
texto do mestre clássico, na edição de Plumtree, por esta forma:

Under the greenwood tree, Who loves to work with me.

(Sob a fronde da árvore resinosa do bosque, quem gosta de trabalhar comigo


(!)) O significado real dessa correcção, a que atribuo grande importância, está
no facto de ter-se metido na cabeça de Plumtree que alguém fosse jamais
retorcer essa passagem para um certo sentido e, ainda mais, vislumbrar nela
esse mesmo sentido, qual o que ele próprio obviamente interpretava maldoso. E
essa importância reflecte que o receio dele era indubitavelmente bem fundado.

Análoga obsessão ir-se-ia encontrar no caso da palavra falada (o doméstico


galináceo macho era designado verbalmente pela gente de boas maneiras sob a
denominação de rooster (ave de poleiro), bem como na discreta alteração de
uns tantos sobrenomes que soavam inconvenientemente aos ouvidos delicados
dos seus portadores.

O efectivo deus ex-machina do movimento restricionista, está visto que era o


pater famílias, capacitado, quiçá, a juntar à contenção moral mais uma outra, a
financeira, sobre o procedimento da esposa e da prole.

E como reagiam a essa situação, na prática, as pessoas, homens e mulheres


comuns? Não restam muitas dúvidas de que, no caso das raparigas das classes
superior e média, anteriormente ao casamento e na vasta maioria dos casos,
não lhes restava outro desafogo que não fosse a masturbação (se é que lhes
restava ao menos a ousadia de praticá-la). Tal devia-se (totalmente excluída a
questão de repugnância mental incutida por doutrinas psicológicas mais ou
menos deliberadas) à pura e simples inviabilidade física.

Tratando-se de rapazes (voltaremos mais adiante aos indivíduos casados, de


ambos os sexos), as oportunidades, presumindo que apresentavam a devida
força de carácter, não eram assim tão poucas.

A população prostitucional de Londres, naquele tempo, era numericamente


satisfatória e de fácil acesso. Até mesmo as contenções morais não eram assim
tão severas, ou, em todo o caso, não se comparariam com as que coibiam as
irmãs desses jovens. As diferenças entre a teoria dos códigos éticos e a sua
aplicação na prática são sempre consideráveis. Os vitorianos fiel e
persistentemente pregavam, da boca para fora, que os homens deviam
permanecer castos antes do casamento e, uma vez cumprida essa reverência à
moral corrente, podiam, já de consciência leve, incentivar os filhos, por meias-
palavras, bem entendido, a sair à procura de mulheres pela cidade fora, a fim
de completarem a sua educação sexual.

Nem todos os vitorianos, ou, pelo menos, a Imprensa, se iludiam com esta
farsazinha esquizofrénica.
As gazetas contemporâneas estampam, como seria de esperar, uma grande
quantidade de cartas exigindo a sistemática depuração das ruas públicas. Como
também estampam respostas de outros leitores que saem em defesa do direito
que assiste à rameira de procurar movimentar o seu comércio apesar de os
autores destas últimas epístolas quixotescas não serem, geralmente, sinceros
nos motivos que os inspiram, e tecerem rebuscados bordados piegas na sua
argumentação, a qual baseiam nos princípios da tolerância e caridade cristãs e
da suposta condição ”indefesa” e ”patética” das criaturas em questão. (Punha-
se de lado, na época, e de modo absoluto, o facto de algumas destas, pelo
menos algumas, possuírem rendas mais avultadas do que os seus defensores.)

Em 1841, a população da zona hoje conhecida como a Grande Londres contava 2


235 344 almas. Em 1857 havia aí, segundo o cálculo estimativo de The Lancei,
80 000 prostitutas, só no Condado de Londres. Em 1951, cria-se estarem elas
reduzidas a 10 000. Essas estimativas englobam, provavelmente, as
profissionais empart-time e as semiamadoras, mas excluem, presume-se,
algumas prostitutas da variedade ”cortesã”. Afirma também a citada revista
médica que, de cada sessenta casas, uma pelo menos era um bordel e, de entre
cada grupo de dezasseis mulheres (incluindo todas as idades!), uma delas era
prostituta. Tais dados carecem, é claro, de total fidedignidade, embora
tenham sido colhidos de outros ”estudiosos inquiridores” e por outros
confrades seus. Ao seu tempo, mereceram fé, mas esta circunstância é mais
reveladora dos atacantes do que dos atacados.

Verdade seja dita que as estatísticas levantadas por The Lancei conferem,
mais ou menos, com as de Michael Ryan, médico, se é que assim pode ser
chamado, e que floresceu no decénio de 1830, mas também o mais certo é que
umas se terão baseado nas outras. A estimativa de Mayhew, orçando pelas
7000, parece ter muito mais possibilidade de acertar (mas até este estatístico
se deixou levar mais tarde para declarações numéricas bastante desatinadas,
que fazem crer que a mística cifra de 80 000 possuiria uma qualquer
irresistível sedução). O livro de Ryan patenteia, de princípio ao fim, uma
completa incapacidade para distinguir factos reais de fictícios.

Embora fosse um médico devidamente habilitado, mete-se a postular como


verdade científica que a masturbação, comprovadamente, provoca doenças tais
como ”a pior forma de hipocondria - o aneurisma -, e todas as doenças do
cérebro e da medula espinhal, debilidade de todo o sistema muscular,
inflamação crónica das vísceras do tórax, abdómen e pélvis - tuberculose,
estreitamento da uretra -, incontinência urinária, hemorróidas, poluções
nocturnas etc., etc.”

Pela amostra contida nessa disparatada e implausível enumeração, pode’Se


fazer alguma ideia da autoridade que lhe assiste. Interessa-o apenas forjar um
veredicto ajustado à conveniência das suas convicções emocionais.

Se é que os algarismos de The Lancei estão certos e supondo-se que essas


mulheres ”atendessem” os seus quinze fregueses, cada uma, por semana (e aqui
vai, decerto, uma estimativa muito modesta), isso significaria
- conforme o indicou Pearl, embora ”suspirando” por números mais sensacionais
- que, no total, elas perfariam, semanalmente, um número de ”atendimentos”
notoriamente muito superior ao de toda a população masculina de Londres
(incluindo, com o hábito estatística da época, as ”crianças de colo”). Há por aí
alguma coisa errada, na aritmética de alguém. Mas mesmo aceitando-se a cifra
mais discreta, continua de pé a contradição básica.

Os clérigos rurais bem se podiam queixar de terem sido rudemente tomados


pelo braço no Mercado do Feno (Haymarket) e solicitados num sem-número de
línguas românicas, por uma corte de mulheres, quase todas bêbadas, e algumas
até fumando charutos. Inquilinos respeitáveis podiam queixar-se do barulho de
pândegas e gargalhadas. Bem podiam as comissões colher dados estatísticos, ou
antes, engendrá-los, e apresentar depois os seus horrorizados relatórios.
Deitassem abaixo, se quisessem, os seus bonitos pilares Nash os lojistas, que
os mantinham de pé há apenas trinta e cinco anos, a fim de acederem às
pretensões dos seus fregueses e a despeito das damas da cidade que se
reuniam à sua sombra durante a noite. Bem que podia a imprensa aproveitar a
oportunidade para ”uma denunciazinha desta medonha situação”, com o que
incrementariam a sua tiragem por uma ou duas semanas. O caso é que havia
alguém que amparava as damas em questão. Quem era?

Não existem dúvidas sobre quem era a maioria das próprias damas. Eram
representantes das classes mais baixas, operárias de fábrica e outras
mulheres vivendo de salários insuficientes, que não se podiam permitir o luxo
de delicados escrúpulos morais, como os que arvoravam as suas irmãs de sexo
mais favorecidas da fortuna e que sabiam muito bem que o macho da espécie
não hesitaria em convocá-las para o aliviar.

As fábricas do século XIX levavam com a culpa da campeante imoralidade


sexual, muito à maneira de como hoje em dia é imputado à conta dos ”lares
desfeitos” e de outras causas psicológicas tudo quanto é acção delinquente da
juventude actual. Clamava-se, talvez com razão, que o intenso calor a que eram
submetidas as raparigas durante as suas longas jornadas de trabalho,
despertava nelas uma intensidade prematura e uma antinatural libidinagem, à
qual os moços janotas das imediações ofereciam, solícitos, toda a possibilidade
de satisfazer.

Esses vilões, afirmou Mr. Gaskell, um reformista ferrenho, alugavam casas ali
pelas imediações ”às quais compareciam as suas vítimas, nada de má vontade,
aliás, a tomar parte nas vergonhosas orgias dos seus galanteadores”. Nessas
reuniões, continua Mr. Gaskell, ”representavam-se cenas que fariam corar de
vergonha os romanos nas suas lascivas saturnais, ou as sacerdotisas hindus dos
pagodes nos seus ritos lúbricos, e empanariam a própria vida de harém do mais
voluptuoso otomano”.

A imaginação de Mr. Gaskell, pelos vistos, tomou o freio nos dentes; até onde o
arrastou, é difícil avaliar-se com alguma certeza. Se os dados que apresenta
são mais ou menos correctos, fica então explicada qual a fonte de suprimento
de carne de amor à Metrópole. Visto que, àquela época, a idade do
consentimento se situava nos doze anos, qualquer pequena que o quisesse
poderia, uma vez saboreada a doçura do dinheirinho fácil, ingressar desde logo,
o mais cedo possível, na sua longa e rendosa carreira.

A prostituta era o bode expiatório do século XIX e os vitorianos, portanto,


serviam-se dela como de cabeça-de-turco das suas culpas sexuais,
precisamente do mesmo modo como a Igreja dos tempos medievais tinha
empilhado sobre a cabeça da bruxa todos os pecados do mundo.

Para uns ela assumia a aparência de um monstro, para outros a de mártir, e


ainda, para outros mais, a de anjos benfazejos. Quem sabe se a maneira mais
comum de a encarar seria ver na sua figura uma pessoa que, tendo sugado com
a própria boca a peçonha mortal que ameaçava a vida de outrem, logo se toma,
apesar de heroína, por sua vez peçonhenta e intocável.
Mas qual, na verdade, era a natureza do escape que elas ofereciam, essas
damas de reputação teoricamente baixa, mas, na realidade, elevada?

A modalidade mais evidente sob que aparecia a prostituição, e também a que


provocava os mais ferozes arreganhos de zelo dos puritanos cruzados da moral
pública, era a presença de numerosas prostitutas - e quão numerosas, já foi
debatido atrás - a obstruir as ruas com as suas abarracadas crinolinas,
fazendo subir rubores às faces dos pudicos e dos pretensiosos e, em suma,
atrapalhando o caminho de cada um e de todos. Havia ainda, mesmo durante os
primeiros cinco anos de reinado da rainha Vitória, um punhado das chamadas
”prostitutas de teatro”, com as quais já travámos conhecimento no capítulo
anterior; mas essas eram uma minoria e olhadas como nitidamente de ”segunda
classe” pelas suas colegas de ramo. Curiosamente, o que ao mais alto grau
confrangia o respeitável público frequentador de teatro não era propriamente
a profissão que elas praticavam, mas o facto de ”não se vestirem
decentemente”.

Porém, mesmo as de estadão, aquelas que viviam em bordéis, também essas não
eram imunes ao desdém público. O atravancamento que elas faziam em
Haymarket, na Regent Street e na Arcada Burlington, era de molde a provocar
o clamor público, mas por igual o mereciam as condições verificadas em algumas
outras ruas do West End, caso a vida nocturna londrina se fosse expandindo de
mansinho e inexoravelmente.

A Norton Street, ao que parece, não era mais do que um lupanar, de ponta a
ponta. O mulherio forasteiro, entocado nos vários ”estabelecimentos” ali
sedeados, fazia daquela rua um caminho proibido às pessoas recatadas, devido
à sua maneira de se sentarem nuas no peitoril das suas janelas e de correrem à
rua em trajes menores, no afã de agarrar e rebocar para os seus antros os
recalcitrantes marmanjos, acção que equivalia a um verdadeiro rapto e
violação, no dizer dos cruzados das campanhas de moralização.

É possível que tenha havido algum exagero em semelhantes relatos, que sempre
o tiveram e sempre o hão-de ter. Não obstante isso, a verdade é que as coisas
que se viam ali eram bem pitorescas e divertidas, se se soubesse para onde
olhar.
No decénio de 1850 florescia, algo arredado de Leicester Square, um elegante
e luxuosamente mobilado saloon (casa de bebidas), arranjado à moda
americana. Quem conseguisse penetrar nesse estabelecimento (pois não eram
admitidos todos que o quisessem) poderia servir-se de uma enorme variedade
de uma novidade, então considerada fantasticamente ousada - o cocktail. O
halo de raridade e, ao mesmo tempo, vulgaridade, deselegância, que prestigiava
essa bebida, tomava o seu consumo um acto que, por si só, assinalava o seu
consumidor com um distintivo de ”homem macho” de primeira categoria, muito
embora o ”herói” nada mais fizesse além disso. É que o acontecimento era digno
de nota, como coisa proibida.

No extremo da grande sala sentava-se a proprietária, Kate Hamilton,


resplandecente de jóias (nem todas falsas), solene sobre o seu trono de veludo.
Assistia junto a essa soberana uma pequena corte de formosas damas de
companhia, às quais ela expedia ordens gritadas em voz roufenha e estridente
de rasgar tímpanos. Feia e gorducha, era mulher de meter medo e, na verdade,
com fortes razões, pois gozava da reputação de ser monarca absoluta do seu
pequeno reino e mostrava-se muito exigente a respeito de quem descia os
degraus que conduziam à subterrânea passagem para os seus domínios. Os
fregueses eram não apenas examinados dos pés à cabeça, pelo buraco
existente na porta de acesso, como também precisavam de ser tipos muito
espertos e especiais para satisfazer os requisitos exigidos pela ”rainha” Kate e
obter a graciosa permissão de lhe encher a bolsa à custa das aristocráticas
algibeiras da sociedade ali presente. Havia muitos que ansiavam por consegui-
lo, e os que conseguiam ali aportar já não se dirigiam mais a nenhuma outra
parte. ”Eles sentir-se-iam amesquinhados, se comparecessem a qualquer dos
’cafés’ de Haymarket, ou aos salões de ceias, localizados, em grande número,
nas ruas adjacentes”, opina Mayhew.

Até algumas cabeças coroadas, uma vez por outra, favoreciam a casa com a sua
comparência. Em 1857, teve ela a honra de receber a visita de dois reis do Sião
(por uma razão qualquer que nos escapa, havia então dois soberanos no Sião),
acompanhados pelo embaixador do seu país. Embora tenham experimentado
unicamente as bebidas da casa, parece que se aguentaram muito bem, talvez
devido ao hábito que teriam de engolir tudo quanto era espécie de bebidas
espirituosas e da sua perfeita ausência de reserva.
O xá da Pérsia, o mesmo que tivera uma recepção um tanto fria no Palácio de
Buckingham, devido às suas desbragadas maneiras à mesa e à forma demasiado
inequívoca como manifestara o seu agrado pelos encantos físicos de uma das
damas de honor da rainha, também esteve no estabelecimento, numa visita,
todavia, de outro género, mais furtiva e menos simpática - a acreditar no que
diz Mr. Beeton.

No Christmas Annual, desse autor, almanaque do ano de 1873, saiu publicado


um imenso poema épico intitulado The Siliad7, o qual celebra, entre outras
tolices e despautérios, a vida nocturna da cidade.

Depois de passar em meticulosa revista as mulheres de Haymarket, entoa o


poeta:

”...onde o vício

estabelece tarifas e anuncia preços.

Enumera os stocks; alguns cotados altos;

O ’francês’ é do fino e tem grande procura

Já o belga ’sai’ pouco, e não é nada escasso.

Transacções sobre ’Áfricas’ são um tanto parcas.

Quanto a ’britânico’ vai de alta a baixa a cotação,

Embora não sofram alteração as cotações máximas.”

De Haymarket, passam à Empresa Kate, onde a variedade e flutuação de


preços é mais caprichosa. Entretanto, ela, a proprietária, parece rejubilar-se
ao vê-los e reciprocamente eles ao vê-la, porquanto é desta maneira
arrebatada que saúdam a adorada anfitriã:

”Ó peituda mulher, que foste bela em teu tempo, E cuja alegre carreira a polícia não parará.”

Quem sabe se em sinal de gratidão por essa lisonjeadora e apropriadamente


atenciosa tirada, ela lhes concede a sua magnânima permissão para que se
reunam num dos gabinetes reservados. Em caminho, um dos foliões erra
desastradamente de porta e - horror! - com que se depara ele no aposento
invadido?

”Que cara é aquela, tenebrosa como a noite, Aquele cabide de alfaias, com uns olhos maus,
cruéis, Que faíscam relâmpagos de ódio selvagem, ousadia? ’É o xá!’, brada uma voz
angustiada na penumbra.”

7 Trocadilho com a Ilíada de Homero e o adjectivo inglês silly, tolo. (N. do T.)

E como logo se confirmou:

”Sim, era o xá; potentado manhoso, andava ele a estudar-nos os mistérios que
três gordas actrizes, com ânimo e vigor, se revezavam na faina de lhe expor.”

Todavia, e embora considerassem o xá

”No máximo, um cruel sibarita oriental

Indigno de homenagens de rainha-viúva anfitriã”,

tratam de retirar-se, discretamente, deixando o sátrapa às suas diversões e


passam ao gabinete que lhes estava devidamente destinado, onde:

”...enquanto não chega a bandeja da ceia, rendem o seu culto a Vénus, calmamente.”

É com estupefacção que passeiam o olhar em redor, maravilhados com a


sumptuosidade da decoração que, acham eles,

”...incita

A profunda adoração, meticulosos ritos:

Aquele tecto espelhado; e os altos espelhos das paredes,

Cai em dobras sob os pés fofo veludo;

E há três coxins acetinados... um azul-celeste,

Outro, negro de pez e o terceiro, carmim.

Das telas pende a sugestão perene: do belo feminil, sem vexame de vestes.”
Interrompe-se o curso dos seus pensamentos, ou é, de alguma forma,
temporariamente desviado, pela chegada das vitualhas de um gargantuesco
repasto.

”Nativos” insulares, lagostas, um capão, uma língua de vaca, frango à


mayonnaise, empadas, ”tomates cozidos de dois modos”, um fricassé de galinha,
anho com ervilhas, rins ensopados, uma frioleira qualquer nevada (”volátil como
o ar”), sorvetes, alfenins, bolo de vinho, charlotte-aux-pommes, creme de
Noyau; tudo isso enviado goela abaixo às catadupas de champanhe e de curaçau
com soda em taças de prata. No seguimento de umas presumíveis horas inteiras
de ininterrupto empanturramento, ocorre uma reticente linha de asteriscos
que a imaginação traduz e, a esse episódio, o concludente e algo assustado
pedido da conta... Ei-la, pois:

”...Emudece, ó Musa! Sê clemente:

Não nos fulmines com a menção do preço!...”,

é a pusilânime e vã súplica que lhes sobe aos lábios.

Mas, pelos vistos, as alegrias da noitada ainda não estão esgotadas, porque
ainda há a boa troca de mexericos e piadas com Kate. Desgraçadamente, não
pode ser aqui transcrita a matéria versada, porquanto:

”...sob as asas de Kate se aninharam

Muitos dos figurões escapados das ’regrinhas’... E, confessos pedantes, mas fingidos,
Eram, secretamente, loucos por folias...”

Instigados pelo que lhes chega ao conhecimento, recobram novo fôlego e


reclamam que se prolongue a folia:

”Pseudo-Hebes, em tentador desalinho, ;; Servem o oloroso Mocha em argênteo


charão: Detém-se, aqui e ali, em travessos folguedos, Lestas, enrolam fragrantes
cigarrilhas Cuja erva alumiam, Nicotina invocando A espargir, sobre todos, êxtases e
sonho... E o que se passa, então, não sabemos dizer, Pois a nuvem de fumo acoberta o
prazer...”
Já vai alta a madrugada quando os convivas do festim são despertados da
profunda letargia de cansaço pelo ruído dos passos cadenciados ”de pesados
patarrões”, indício, que eles acertadamente interpretam, de batida policial. É
aí que se descobre uma falha subjacente em todos aqueles arranjinhos até
então perfeitos, não fora a calamitosa circunstância de só agora, e com aquela
notável indiferença, diante das suas caras angustiadas, lhes revelar a digna
Kate que o seu estabelecimento ”não tinha a saída pelas traseiras” que eles
procuravam.

Confrontam-se, pois, com a dura necessidade de abrir caminho combatendo,


façanha que, após organizar um movimento de resistência, conseguem
executar, infligindo pesados danos e perdas, em sangue vertido e material
estragado, aos intrometidos agentes da ordem e, terminado o prélio, indo
regalar-se no seu clube com restauradoras ”inundações de vinho” e inalações de
sais.

Passado o negócio para outras mãos, por morte de Kate, chegaram os negros
dias da interferência policial. Um inspector da polícia, relatando certa batida a
que procedeu ali, declarou que as marafonas presentes superavam em número
os cavalheiros, na proporção de 95 para 90, sinal evidente do verdadeiro
motivo da comparência ao local da maior parte dos ”calçudos” lá encontrados.
E, no entanto, ao prestar o seu depoimento, mais tarde, perante o tribunal, o
mesmo funcionário declarou ter dito a William Barton, o novo dono do
estabelecimento: ”Você tem aqui mais de setenta prostitutas.” Retrucou-lhe
aquele, com admirável prova de insolente sangue-frio: ”E que fossem até cento
e cinquenta, que mal há nisso, uma vez que elas se comportem ordeiramente?”
No decurso do julgamento, o cavalheiro queixoso afirmou que o sossego das
suas noites era perturbado pela constante chegada de mulheres de má vida em
carros de aluguer - algumas desacompanhadas, outras escoltadas por senhoras,
mas todas, sem distinção, fazendo igualmente uma escandalosa algazarra e
ferindo os seus sentimentos de decência.

Barton saiu-se do processo com uma multa de 3 libras, soma que, mesmo
naqueles ditosos tempos em que dinheiro era dinheiro, não lhe pode ter feito
muita mossa.
Mas nem todas as casas desse género eram geridas com o mesmo senso de
decoro. A época foi, segundo a polícia e, até certo ponto, a opinião dos
cronistas, um reinado de singular intemperança e turbulência.

As sessões de julgamento dos casos de divórcio, por seu lado, ofereciam


diversão abundante e gratuita, do género que os vitorianos tinham por ”alto
grau de indecência”. Essas audiências eram públicas, franqueadas, pois, a todos
os membros da sociedade que tivessem a sorte de conseguir passagem por
entre a apinhada assistência até às galerias destinadas à mesma. É que, por
ocasião dos debates, surgiam comprovantes e alegações de natureza
fortemente picante, as quais eram avidamente saboreadas por aqueles mesmos
circunstantes que, todavia, em sociedade, manifestavam pesar pela crua
necessidade que impunha a jovens e imaculadas criadinhas exporem,
ruborizadas, minuciosas revelações do que teriam, ”sem querer”, apreciado
através de buracos de fechaduras. Lá no seu íntimo, nem é preciso dizê-lo, o
público bem fruía cada gotícula do gozo que lhe era dado sorver na jurídica
demonstração, anotando, para fins de futura e particular referência, bem como
meditada prudência, os exemplos de buracos perfurados em paredes, de certas
manchas encontradas em roupas de cama, de barulhinhos sugestivos, vindos da
alcova.

Os vitorianos, ainda mais do que qualquer outro povo de qualquer outro período
da História, tiveram de aprender a alcançar indirectamente, mediante
substitutivos, a satisfação dos seus instintos sexuais. O processo apresentava
desvantagens. E tais prazeres eram destilados, para o gosto dos espectadores,
pela máscara convencional de santidade e escandalizada surpresa, que eram
obrigados a afivelar ao rosto.

Entretanto, valia bem a pena pôr a vista em cima do dito prazer - se não era
tão embriagante de imoralidade, pelo menos, em todo o caso, sempre era
possível suprir-lhe as deficiências de excitação com o devido ”faz-de-conta”.

A fuga às convenções, por intermédio do imaginário recurso, ofertava-a o


”barão” Renton Nicholson, que encenava reconstituições, ”enriquecidas”, de uns
tantos ”casos” recém-ocorridos na sociedade, enfeitando a sua versão com uns
acrescentos de ”quem conta um conto”, por sua conta e risco. O Tribunal de
Justiça, diz-nos Greville - ”que, pessoalmente, achou os autos do processo
’nojentos’ -, tem em mãos o trato com grosseiríssimas obscenidades”.
O tal ”barão” Nicholson tivera uma carreira pitoresca, pintalgada de colorida
variedade, pois na mocidade ganhara a vida ora como prestamista de penhores,
ora como croupier de roleta, em barracas de hipódromos. Fez publicar, ainda
em vida, umas Memórias, em cujo frontispício figurava um arremedo
caricatural de brasão de armas ornado da legenda Ecce incorporo hilaritatem
cum lege (Eis que associo a gargalhada à lei). Essas memórias, embora eivadas
de uma boa dose de pieguice algo hipócrita, encerram muita coisa interessante
a respeito do barão e das primeiras relações que travou na sua vida - campeões
de pugilato, criminosos, marafonas e alcoviteiros. Mas o que lhe granjeou
mesmo verdadeira fama e fortuna foi a corte que inaugurou, tendo duplicado o
seu êxito, como ele próprio o informa, quando introduziu, por volta de 1846, as
suas poses plastiques. Tratava-se, então, de apresentar, metidas em malhas de
seda justíssimas e cor de carne, umas pequenas deliciosas, estáticas em
posições estudadas sobre um palco circular giratório, movido à mão, com
acompanhamento de forte guincharia de mecânica não lubrificada e de
sufocados grunhidos dos desgraçados manobradores de tal estrutura.

No decorrer do resto da sua vida, o barão, que trazia do passado uma longa e
amarga experiência, prosseguiu com o seu negócio, prosperamente e em paz. A
clientela era gente que, tirando o facto de ser efectivamente frequentadora
dos seus espectáculos, no mais era tida como de respeito; e, quanto a ele,
tratava sempre, pelo menos no que tocava à sua empresa ”estética”, de
esquivar-se a oportunidades de qualquer incidente sério com os representantes
da lei. Parece ter exercido sobre os seus ilustres habituées uma espécie de
fascínio magnético, porquanto Suas Senhorias o chamavam sempre pelo seu
pretenso título nobiliárquico e em tudo o mais lhe conferiam todo o respeito e
consideração.

Já o seu sucessor, excessivamente ambicioso, porém não ajudado por igual


quantidade de boas relações, não tardou que tivesse de comparecer diante dos
magistrados, sob acusação de promover espectáculos obscenos. Idêntico
resultado obteve um outro imitador, que mantinha um análogo tipo de função
em Hampstead - todavia, conforme o consenso geral, com pouco apreciável
brilho de espírito.

Até aqui, os recursos ao alcance do público para aprazimento sexual eram


aptos à satisfação de desejos sexuais mais ou menos normais. Mas as
campanhas pró-moralidade e as convenções hipócritas não deixariam de acabar
por imprimir em alguns indivíduos a marca e o ferrete da sua influência.

Havia muito quem colhesse maior deleite do simples facto de estarem cientes
de que estavam a provar fruto proibido, e se arrepiassam de emoção muito
mais viva ao transporem a passagem subterrânea que conduzia ao reino de
delícias de Kate. Esses eram os ”anárquicos”, os homens dotados de
personalidade forte, aqueles em quem as convenções da época não causariam
outro efeito senão o desejo de reagir contra elas.

Nem todos os homens, entretanto, eram tão levemente afectados. A proporção


do número de bordéis onde se cultivavam perversões (especialmente aquelas
três obsessões, que já catalogámos, do século precedente) permanecia
alarmantemente elevada.

Sobressaía a todas essas manifestações a crescente procura de meninas e


virgens. Wickam Steed criticou, longamente, esse tráfico, enquanto foi
redactor-chefe da Pall Mall Gazette. Ao princípio, só obteve a extrema
antipatia pública, para além do descrédito por parte de muita gente; mas,
finalmente, conseguiu ver instaurada a comissão de inquérito pela qual se
debatera.

Veio à luz do dia ”uma escandalosa organização de lenocínio”. Dado que as


operárias fabris habitualmente já tinham perdido toda a pretensão à
virgindade muito antes mesmo de chegar a Londres, tomava-se necessário sair
à busca por outros lados. Abordava-se amas-secas nos parques, empreendia-se
”expedições de caça” às zonas rurais. E, o que é mais horripilante, chegou-se a
descobrir que certas damas ”da profissão”, já algo idosas, vendiam (sim:
literalmente vendiam, como se vendem escravas) por preços comparativamente
vis, as coitadinhas que haviam engendrado como ilegítimo produto das suas
actividades. Casos houve, segundo constou, em que as pequenas eram vendidas
para exportação para o Ultramar.

A despeito do súbito clamor público que se levantou, agora todo a favor de


Steed - tendo os seus adeptos efectuado uma enorme manifestação em redor
de Hyde Park, parada cujos componentes levavam à lapela uma rosa branca
como sinal da sua pureza (recurso de efeito mas prejudicado, apenas, por uma
fieira de prostitutas que se puseram a segui-los em busca de freguesia) -, nada
mais foi feito. ”Da boca para fora” era o lema dos vitorianos e continuou a ser,
sempre.

A tensão imposta pelo grau de abstinência, pelo moralismo convencional,


simplesmente aniquilaria qualquer homem normal que se metesse a observá-la
de forma consciente. É que, claramente, não está na natureza humana, nem é
fisicamente praticável pelos seres humanos, manter-se alguém completamente
em abstinência. O moço do século XIX podia tentar resolver pelo casamento os
seus problemas. Mas nem mesmo isso provaria ter completa eficácia. É claro,
pois, que ele não praticava de facto a abstinência. Tudo o que os vitorianos
praticavam era a hipocrisia, aquela espécie de esquizofrenia contida que já
apreciámos. A própria tensão desta última já era, por si só, excessiva. E a
reacção veio repentina e violenta.

Em 1867, escrevia o London Society: ”Não há muitos anos ainda, considerava-se


o cúmulo da indecência e da pouca-vergonha... qualquer moço... deixar perceber
que apenas pusera reparo - nada mais que reparo, ’em público’, no vulto dessas
’belas infelizes’... Pouco resta hoje em dia de tal respeito pelas conveniências
sociais.”

Pouco restava mesmo. As damas equívocas da cidade, as mais conhecidas,


passaram à condição de ”visíveis” para olhos bem comportados, de gente séria.
E não só visíveis, como até abordáveis, também, em plena via pública. Um
qualquer moço, de passeio a pé ou a cavalo, em companhia de sua irmã, pelo
parque, não tinha o menor constrangimento em erguer o chapéu ou dirigir a
palavra a uma dama que toda a gente sabia ser uma cortesã. E a irmã tão-pouco
se perturbava. Longe disso. A imoralidade tomava-se elegância, finura. Passou a
ser ambição de muita filha de família de toda a seriedade e costumes
respeitáveis, vestir-se, agir à moda de cortesã e, possivelmente, até ser
confundida com uma decaída. Está visto que não chegavam a levar essa tolice
até à sua conclusão lógica. Ainda lhes faltava a coragem para tomar realidade
os seus sonhos. Mesmo assim...

A ”alta roda”, de qualquer época, sempre porfiou em se destacar


inconfundivelmente do resto da sociedade humana; em fazer ver que é feita de
um outro estofo - em rebelar-se, em suma. A rebeldia é a essência mesma da
orgia; rebeldia, entenda-se, contra os padrões sociais estabelecidos. Poderá
ser uma rebeldia temporária. Ou poderá ser permanente. E, se é permanente,
mesmo assim não poderá evitar atravessar uma fase de transição, durante a
qual é tida como um fenómeno excepcional, em vez da regra.

Esse movimento de minoria, no que se refere a um certo número de indivíduos,


tem sido contínuo.

Viviam ainda, ao tempo em que era readmitida à ”respeitabilidade a meretriz”,


muitos homens que tinham bem na lembrança lord Hertford, o qual, conta
Greville:

”Chegando à altura da vida que vai dos 60 aos 70 anos de idade, alquebrado por
diversas enfermidades e quase ininteligível devido à paralisia da língua...
mantivera o hábito de viajar acompanhado dum bando de prostitutas que
constituíam a sua principal companhia e que o rodeou até ao momento da sua
morte; geralmente, recrutava-as entre as camadas mais sórdidas daquela
classe, trocando-as por outras conforme lhe dava na veneta e fantasia. Foi
visto a rodar de carro pela cidade, sendo apeado e carregado pelos braços de
dois lacaios que o tiravam do carro para o bordel escolhido... pois nunca lhe
pareceu necessário atirar o mais ténue véu de recato sobre os hábitos que
cultivava.”

Semelhantes tempos estavam de volta, e traziam no seu séquito o renovado


reinado da cortesã da moda. As meretrizes deixaram de ser invisíveis anónimas
e começavam já a ser conhecidas pelo nome - fosse este o verdadeiro ou um
”de guerra”. Houve a Cora Pearl, a Skittles, a Mabel Gray, a Laura Bell, a Kate
Cook, a Agnes Willoughby, e muitas outras.

A mais notável de todas, inglesa de nascimento, conquanto tivesse passado


muito tempo da sua vida no continente europeu, era Cora Pearl. Vira a luz do
dia no Devonshire, recebendo o nome de Emma Elisabeth Crouch, e desde muito
cedo se apercebera, ainda que ninguém mais o fizesse, das potencialidades
contidas na sua cabecinha de cabelos de fogo e na picante marotice da sua
carinha de gata brincalhona. Decidiu, logo, qual seria a sua futura profissão e,
mais ainda, que havia de atingir o cume do sucesso na mesma. Galgou,
metodicamente, os sucessivos degraus da escala ascendente de categorias do
meretrício. Ia ter uma vida curta, mas não o sabia, naturalmente. Entretanto,
não perdeu tempo. Extremamente venal, original e inventiva, ”soube manter-se
nos galarins da nomeada devido ao seu desmesurado talento para criar
excentricidades voluptuosas”. Dava festas nas quais trazia os seus convivas em
perpétua expectativa e perplexidade. Que iria ela fazer desta vez, aquela
Cora? Em diversas ocasiões fez a sua aparição, na sala de jantar, não à mesa,
como os demais, mas sim sobre a mesa, sendo servida inteiramente nua e com
os comestíveis a cobri-la, ou por baixo dela, como se fosse um ingrediente do
prato, servido dentro duma grande travessa coberta com uma tampa de prata.
Certa vez, ao levantarem essa tampa, lá estava ela, mergulhada em molho, como
que antecipando as futuras brincadeiras de milionários de Além-mar, daí a meio
século. Dançava o cancan sobre o piso atapetado de rosas e fazia o seu banho
em presença de todos os convidados, numa banheira cheia de champanhe.
Constantemente a organizar festas retumbantes, sucedeu-lhe, por isso, ser
expulsa, uma vez por outra, pelas polícias de diversas cidades, tais como Baden,
Monte Cario, Nice, Vichy e Roma. Antes de redigir as suas memórias,
comunicou com todos os seus ex-amantes, para saber quanto estava cada um
disposto a pagar-lhe para não aparecer no texto. Isso deve ter sido um golpe
de mestre, como chantagem, pois a obra pronta saiu surpreendentemente
pobre de interesse escandaloso. Embora ela fosse dotada, como já o dissemos,
de originalidade, não era, no entanto, uma mulher agradável. Acrescente-se à
sua cupidez, o modo estridente de falar, com sotaque plebeu londrino (um
cockney pouco simpático, no qual ela se desbocava nas obscenidades que eram o
apanágio, mais do que a inevitável herança, da cortesã do século XIX), tudo
junto contribuía para lhe emprestar uma aparência de rudeza e insensibilidade.

Intensamente narcisista, mandou que lhe fizessem um molde de gesso dos seios
- curiosa peça essa que foi encontrada entre outros artigos do género e sem
valor num miserável sótão parisiense, onde ela morreu de cancro e pobreza, em
1886.

Os admiradores das diversas mulheres da vida não se contavam tão-somente


entre aqueles indivíduos bastante afortunados para disporem dos fundos
suficientes que lhes permitissem gozar, ao vivo, os seus encantos. Os demais,
os que não podiam permitir-se o luxo do corporal alívio às restrições impostas
pelas convenções sociais, contentavam-se com uma satisfação imaginária. As
vitrinas de certas tabacarias exibiam fotografias daquelas damas, pondo-lhes
os respectivos nomes; é que essas criaturas gozavam de uma fama equivalente
e de um culto mais intenso, se as compararmos, do que qualquer estrela
cinematográfica do século XX. Eram idolatradas, por assim dizer, quase com a
devoção estendida a Vénus e Afrodite; e a sua inacessibilidade não só as fazia
ainda mais desejadas, bem como mais irreais e divinizadas.

Alguns - poucos - dos admiradores que lhes eram mais próximos chegaram até
a contrair matrimónio com algumas; porém, tais casamentos nunca ”deram
certo”. Só a violenta e decidida intervenção dos seus parentes é que evitou que
Henry Vane Milbank efectuasse tais núpcias; entretanto, William Frederick
Windham fê-lo. O seu casamento com Agnes Willoughby fez com que a
Comissão Pró-Alienados se mobilizasse no sentido de tentar impedi-lo de
concretizar essa união. O facto é que, desde os seus tempos de estudante em
Eton, já era apelidado de William, o Louco, embora não se possa dizer que isso
chegue a constituir prova em processo. Chegou a invocar-se argumentos do
género: ele seria dado a envergar uniformes de polícias e bagageiros de
estação ferroviária, a imitar vozes de gatos, galinhas e outros bichos, a lançar
gritos histéricos, e a comer nada menos do que dezassete ovos duma vez ao
pequeno-almoço. O esforço no sentido de dá-lo legalmente por alienado
resultou em nada, ao passo que conseguiu uma estrondosa ovação pública; mas o
consórcio com Agnes Willoughby finou-se em menos de dois meses. Isso talvez
nem fosse de surpreender. É que ele estabelecera para ela a magra mesada de
800 libras por ano, quando ela podia ganhar consideravelmente mais do que isso
por outros meios. A verdadeira moral da história está em que o firme ponto de
vista da meretriz do século XIX é que ela é meretriz e mais nada é; assim,
deve manter-se em parte um ser misterioso e inacessível.

O genuíno mal dos vitorianos, e também o motivo pelo qual os marmanjos


procuravam as prostitutas para sua satisfação sexual, mais do que as suas
próprias esposas, era uma espécie de contenção das suas emoções, uma
deliberada auto-anestesia. Quando o cavalheiro vitoriano se dignava ter coito
com a esposa, ela, senão ele mesmo, tinha de esconder a ambos, à própria
consciência e ao conhecimento do cônjuge, a percepção do facto de estarem a
experimentar prazer no conúbio. Que semelhante atitude era, em alto grau,
emocionalmente danosa para os parceiros, é um facto óbvio e irrecusável. Todo
o ser humano necessita de uma purga emocional, de vez em quando, do mesmo
modo como o assalta, de tempos em tempos, a de defecar ou de vomitar.
Podemos admitir que os vitorianos teriam alguma consciência disto e tenham
tentado drenar a sexualidade dos seus organismos sob alguma outra forma,
discretamente disfarçada.
A profissão do magistério escolar não se tem destacado muito pelos seus dons
de introspecção ou pelo seu espírito de progresso em assuntos referentes à
sexualidade. No século XIX, os jogos atléticos eram, simultaneamente, bem
organizados e universalmente praticados nas escolas da Inglaterra. É bem
sabido que os atletas não costumam ser muito atormentados por imperiosos
impulsos sexuais. Este exigente impulso é de tal índole que, não havendo
expansão exterior sob a sua modalidade específica, despontará implacável, sob
o disfarce de outras manifestações. Não estou a querer impingir que a razão
lastreadora do prazer dos jogos desportivos seja, apenas, ou ao menos na maior
parte, de ordem sexual. O que eu quero dizer é que, tratando-se de estudantes
na puberdade - período culminante dos seus desejos sexuais -, grande parte da
excitação relacionada com a efectivação dos seus jogos de força ou destreza
tem aquela remota origem. Como substituto da actividade sexual, o desporto
tem a vantagem de dar oportunidade a que se demonstrem o próprio ânimo
combativo e a superioridade do seu valor, em confronto com os outros. Um dos
factores que abonam em favor desta suposição consiste, confesso-o
francamente, no facto de os vitorianos terem aceitado tantos sacrifícios a
bem de ampararem a efectivação dos desportos nas escolas.

Mesmo assim, é necessário rebuscar até se encontrar a válvula de escape mais


conscientemente catártica do que qualquer outra até agora deparada,
conquanto, tendo-se em conta o modo de ver e sentir da época, não haverá
razão para se esperar, necessariamente, tal descoberta. Um dos aspectos da
vida social que, conforme já o sabemos agora, deve ser sempre examinado, é a
dança.

A dança, no período em questão, é, geralmente, considerada como uma coisa


sagrada e cerimoniosa, contrariada, pode dizer-se, por toda a espécie de
empecilhos e entraves à espontaneidade das atitudes. Pode falar-se assim no
que toca às danças da sociedade entre gente adulta; não, porém, às outras. A
dança que tenho em mente e que instantaneamente nos atrai a atenção é o
cancan. Há agora quem a julgue um tipo de espectáculo de ”variedades” e
revista já fora de moda - a corriqueira xaropada - e é possível que seja isso
mesmo, hoje em dia. Mas não naquele tempo; pelo menos nem sempre.

Há que ter em vista que as mulheres não mostravam, normalmente, as suas


pernas acima do tomozelo. A imaginação é que podia alçar-se, embevecida,
coluna acima; não os olhos. Ora, o cancan supria essa privação, além de
promover, ao mesmo tempo, mais outros deleites visuais de fazer cair o queixo
aos espectadores.

Fora muito apreciado no Continente, durante alguns anos, primeiro como dança
de sociedade - ”dança um tanto estouvada”, diz a Dance Encyclopaedia -, depois
como número teatral.

Nesta sua segunda forma subiu à cena inglesa em 1867 e, a despeito, senão
talvez por causa, da modificação de algumas das suas mais deslavadas
indecências - opinião que o The Times pretendia inculcar -, foi um sucesso
instantâneo.

Já em Paris, quando ela apareceu pela primeira vez, aí pelo decénio de


1830, causou, ao começo, desagrado, em breve seguido de uma enérgica
intervenção policial. Tirando o significado bastante inequívoco de uns tantos
movimentos que ela comporta, essa dança era tida como eivada de intenções
políticas, como de facto, e em certo sentido, acontecia.

Kracauer opina que ela fora utilizada pelos revolucionários e pelos espíritos
anárquicos e negativistas para exteriorizarem a sua raiva e desprezo contra o
novo regime político e contra toda a sociedade.

Outro observador do cancan, citado por Pearl, entende que:

”O ritmo da música é acelerado, os dançarinos agitam-se mais celeremente,


mais animados, mais agressivos e, finalmente, a contradança, já frenética,
degenera num grande galope... Embora, a essa altura, já não se percebam os
movimentos indecentes dos indivíduos, cada um per se, o comportamento geral
e a comum expressão facial do grupo dão testemunho da presença de um
estado da mais intensa voluptuosidade... pois a música vai-se apressando cada
vez mais, até se verem, por fim, mulheres mascaradas feitas bacantes em
êxtase, faces afogueadas, seios agitados pela falta de ar, lábios ressequidos e
cabelos semidesfeitos a esvoaçar, rodopiarem em volta da sala, não tanto sobre
os próprios pés mas mais literalmente carregadas, senão arrastadas, pelos
braços dos seus parceiros.”

As emoções da Europa estavam em pleno desabrochar e, uma vez aspirado o


perfume da liberdade, já nada mais detinha o europeu continental. Essa
mudança terá sido ajudada na Inglaterra pelo valor que o snobismo emprestava
à imoralidade, através do comportamento habitual do Príncipe de Gales do
momento, que em breve seria Eduardo VII. Quando a amante do rei podia ser
chamada à cabeceira de um rei moribundo, então já não se podia mais esconder
que os tempos tinham mudado.

Esse processo de mudança veio a completar-se com o terramoto social trazido


pela I Guerra Mundial. Infelizmente, o verbo ”completar-se”, acima empregado,
não é o indicado.

As pessoas nunca aprendem com os seus próprios erros e menos ainda com os
dos seus semelhantes. Os que se lembravam, com desagrado, de terem
testemunhado a repressão vitoriana ou, com ainda maior desagrado, de a terem
experimentado, tudo faziam por apagar essa lembrança, sem perceber que não
apenas as convenções, mas também a sua ausência, parecem erguer jaulas.

Se a claustrofobia do espírito fora a doença dos vitorianos, em troca, era,


agora, a agorafobia do espírito o tormento que viria a atazanar os seus
descendentes.

CAPÍTULO OITAVO

O SÉCULO XX
Não haverá muito quem hesite em admitir que a época actual é, sob o ponto de
vista sexual, uma era de liberdade. Mesmo não levando em conta o fosso que
separa a moralidade teórica e moralidade corrente, separação sempre presente
- dando a impressão, a primeira, ao ser examinada, de arvorar um código de
ética mais severo do que o que na realidade subsiste -, o facto apontado é
indiscutível.

Ainda mais: note-se que o movimento pendular em direcção à liberdade ainda


não atingiu o seu ponto morto. Vários indícios corroborantes o sugerem: a
discussão de leis referentes a homossexuais e prostitutas; atitude de um
género muito diferente daquele vigente no século XIX; e as tentativas no
sentido de se revogar ou, pelo menos, de se modificar a Lei Contra Publicações
Obscenas.

Persistem alguns em opor-se a tais movimentos, os quais, tal como acontecia


aos seus equivalentes de épocas anteriores, fazem um barulho desproporcional
ao número que realmente representam. Nesse seu afinco, ajuda-os agora a
imprensa, cuja influência sobre a opinião pública é, hoje em dia, muito maior do
que a das igrejas de antigamente (na Inglaterra, pelo menos), e cujas
motivações fazem consideravelmente menos por apoiá-los.

Mas os apodos lançados aos que resistem ao actual movimento libertário não
conseguirão esconder o facto de que a experimentação social ainda não
alcançou, até agora, um completo êxito - muito embora não se tenha chegado
aos extremos limites da licenciosidade, como os que prevaleciam durante a
Renascença, por exemplo.

Mas, ai!, não há dúvida de que muitos dos cidadãos deste nosso século sofrem
de um mal-estar comum, claramente perceptível à observação. O que nos cabe
considerar é até que ponto o dito mal-estar se relaciona directamente com a
nova moralidade, ou é por ela causado.

Quer-me parecer que as duas alternativas se relacionam muito intimamente,


mesmo não sendo necessariamente causa, uma, e efeito, outra. Esta crença é,
da minha parte, inicialmente baseada mais num movimento instintivo do que
propriamente num processo de raciocínio. Isto não visa exprimir que ela não se
possa confirmar por este processo, por muito perigoso que seja um tal sistema
de pensamento.

Existe uma tendência, muito difundida, aliás, mas destituída de justificação,


que consigna todos os males humanos mais a circunstâncias externas do que a
internas. Supõe-se que todo o embaraço é devido a isto ou aquilo, e que,
descoberto e suprimido esse isto ou aquele aquilo, pronto - desaparece o
embaraço.

As criaturas humanas deixaram-se embriagar pelo orgulho dos seus êxitos e


progressos no terreno das descobertas científicas, demonstrando, em troca,
porém, serem perfeitamente incapazes de aplicar a mesma capacidade, a
mesma ausência de preconceitos enfraquecedores e os mesmos cuidados no uso
dos seus métodos de investigação nas suas próprias pessoas. Quando tentam
fazer isso, há sempre alguma coisa que falha.

O salto do restricionismo para a liberdade exemplifica e ilustra esta ideia.


Gente que se sente infeliz, insatisfeita e falha de auto-realização, atribui, às
vezes, essas suas angústias à natureza do sistema social em que gravitam. E
esse seu modo de pensar contamina outros. Opera-se, então, uma mudança do
reaccionarismo para a liberdade, ou vice-versa. Mas será que, aí, obnubilam-se
de uma vez os seus sentimentos amargos? No caso que aqui contemplamos, tal
não sucedeu.

A situação seria imensamente mais simples se tivesse fundamento a tal crença


de que à sociedade cabe toda a culpa. Mas não tem. Longe disso! E, no entanto,
quando a causa do mal é afastada, permanece ainda o mal. Por quê? Será o
descontentamento uma autêntica necessidade humana, uma substância que
deva estar sempre presente, dirigida contra uma causa ou outra e, se afastada
qualquer destas, aquele soturno complemento por si mesmo rectifique a mira,
dirigindo-a para alguma outra causa? Parece estranho que tal seja o caso; mas,
pensando bem, parece haver também uma boa razão para se acreditar que sim,
é possível tal acontecer. Pouco há a ganhar com o repisar do tema do ”por
quê?”, não obstante quão interessante seja o processo. Os humanos continuam
até agora incapazes de pesquisar as suas próprias entranhas com um
microscópio de confiança. Ao contrário da maior parte dos outros animais, e
até mesmo dos vegetais, parecem ainda mais incapazes de distinguir o que
conduz a uma vida saudável e agradável daquilo que é adverso a esse
desiderato, defrontam-se com a necessidade de tomar uma decisão e optar,
numa alternativa de acções, em especial, ou numa encruzilhada de linhas gerais
de comportamento. Uma época em que reine o equilíbrio é mais apta a produzir
um agrupamento de homens contente e cordato do que qualquer outra sob um
signo diferente; mas quantas vezes já ocorreu semelhante Idade de Ouro?
Onde ocorreu? E quanto tempo durou? O género humano tem passado através
dessas situações intermédias, transitórias, à velocidade de um comboio
expresso que desdenhosamente nem sequer vê as pequenas estações do
percurso que o leva de uma cidade a outra.

Os homens e as mulheres deste século não padecem nem das restrições com
que porventura lhes poderiam tolher os movimentos efectivos nem de
empecilhos externos. Não os afligem muitas de entre as mais graves
consequências acarretadas aos pertencentes a uma sociedade reaccionária por
determinados mecanismos mentais do subconsciente. Mas sofrem.

Sem embargo de quantas cadeias tenham rompido, os seres humanos continuam


aprisionados nas suas diversas jaulas. O homem do século XX não é mais livre
do que o seu antecessor do século XIX. Pelo menos, supõe-se que não consegue
sentir-se livre, pois por toda a parte anda ele a debater-se em desesperados
esforços para escapar... a alguma coisa. Que coisa é essa, eis o que ainda não
conseguiu perceber, sabendo apenas que a existência dessa coisa é necessária
à sua paz de espírito: ora, não havendo causa maléfica a destruir, como há-de
ele escapar-lhe aos efeitos? Por toda a parte o vemos ainda a entregar-se a
excessos - na bebida, na comida, na violência e na cópula; vive tentando adoptar
o antigo sistema, a orgia, mas não tem êxito nos seus esforços para purgar-se
emotivamente, simplesmente por não saber, em primeiro lugar, de que é que
deseja purgar-se.

A acção catártica não passa de um dos aspectos da orgia; a sua característica


teoléptica é o outro. Os seres humanos não são racionais, eis a verdade; pois,
de facto, até parecem extremamente avessos a desprenderem-se das suas
irracionalidades. Cansados de lutar por equilibrar, em si, as suas tendências
primitivas e ”civilizadas”; cada vez mais assustados, não lhe ameaçam a
segurança daquelas as progressivas coerções destas; não é de estranhar que
alguns deles voltem as costas, arrepiados, ao panorama que lhes abre diante
dos olhos o avanço ininterrupto do conhecimento científico, para regressarem
ao misticismo dos Antigos.

Desse modo, atiram-se para trás, para os tempos em que, pelo menos, tudo,
absolutamente tudo, era incompreensível. É a meia-luz do conhecimento parcial
que provoca a intolerável inquietação no Homem.
Esse vão esforço para fazer voltar atrás os ponteiros do relógio nota-se,
mormente, em ninharias. Por exemplo, o carinhoso manter de uma colecção de
pequenas superstições, à revelia dos cientistas, as quais, em vez de causarem
aquele primitivo temor do troglodita, antes ocasionam, em quem as alimenta e
cultiva, precisamente o sentimento oposto, um sentimento até de segurança.
Mas quem quer que leve mais além essas ideias poderá ser visto como burlão ou
impostor, e não como um simples equivocado.
Sir Francis Dashwood não acreditava, realmente, nas suas trapalhadas
satanísticas, mero condimento com que ele temperava os seus regalos
basicamente sexuais. Ele vivia em pleno meio-caminho do século XVIII. Mas, no
entanto, um outro homem, nascido mais de cem anos depois da morte de
Dashwood, levou a sinceridade e o fervor da sua crença em doutrina análoga à
daquele muito mais longe do que qualquer coisa de tal género que tivesse
atraído a atenção geral desde a Idade Média.

Edward Alexander Crowley, para além de se tratar de um tipo ímpar, como


pessoa, possui, como objecto de estudo, a adicional atracção de conter em si,
qual humana olla podrida*, os bem misturados ingredientes que compunham
cada um dos figurões com quem até aqui travámos conhecimento.

Filho de um eminente e enérgico confrade dos Irmãos de Plymouth, era


obcecado, tal como o pai, pela mania do pecado, conquanto esta se
manifestasse no íntimo da sua personalidade de maneira um tanto diferente e
pouco ortodoxa. Afagando, desde cedo, aspirações poéticas, nos seus primeiros
voos tomou por modelo Swinburne:

”Toda a degradação e a genuína infâmia

Suportarás, face no lodo mergulhada,

E de indignas mulheres quererás a imundície”,

escreveu o bacharelando Crowley, que, aliás, já resolvera mudar o nome,


adoptando o de Aleister, que lhe parecia mais propício esotericamente.

A sua atitude mística perante a vida definiu-se logo nos seus anos de
juventude, se é que não era mesmo congénita; e combinou essa característica
com a consciência, ou antes, uma convicta crença no seu próprio
hermafroditismo e exibição de tendências masoquistas. Parece que se imaginou
a si mesmo a entregar-se de corpo e alma às forças da natureza, bem como às
da luxúria e da crueldade, para que todas elas o guiassem aonde quisessem,

1 Prato típico espanhol (N. do T.).

revelando-lhe por intermédio dos seus mandamentos a vontade da divindade


panteísta, cuja existência as suas crenças faziam depreender. Bem mais tarde,
no decurso da sua vida, obcecava-o essa mesma ideia, ainda que, então, numa
maneira diferente, modificada.

Manifestou essa atitude mística ao escrever sobre um incidente no qual teve o


azar de contrair gonorreia de uma prostituta de Glasgow; declara, com
inequívoca e absoluta seriedade, que fora ”entregue vendado e de mãos atadas
à ultrajada majestade da Natureza”.

Nunca deixa de estar presente, em qualquer mecanismo teoléptico, um certo


elemento de masoquismo.

Nesses primeiros tempos da sua vida, Crowley não conseguia desfazer a sua
dúvida sobre se a ”presença”, de que ele ficara consciente através desses
antigos meios de culto, era o ”bem” ou o ”mal”. Quiçá se inclinasse para esta
última suposição; ou talvez até que para nenhuma, pois o deus em quem ele
realmente acreditava era Pa. Para poder comungar com a presença deste,
utilizava, além de narcóticos, também um sistema a que chamava ”magia
sexual”, ou seja, para dizê-lo clara e francamente, a cópula. Não há dúvida de
que o homem era um supersexualista, mas, também, indubitavelmente, sincero
na sua fé, de modo que as suas motivações terão de ser aqui tratadas tanto
como razões práticas como de carácter religioso. A sua incessante busca da
”verdadeira” mulher pode ser interpretada como indício de insaciável desejo de
aventuras sexuais ainda mais profundamente satisfatórias, mas Crowley
reservava-se o direito de interpretar a sua intensa actividade sexual como
sendo o meio hábil para a realização do melhor entendimento possível da
”presença”, de cuja magnificência ele deveria colher o conhecimento da
natureza da sua própria ”verdadeira vontade”. Considerava as mulheres
essencialmente como um meio, destinado à consecução de um fim,
exteriorizando, por mais de uma ocasião, como sua a opinião de que elas deviam
ser ”fornecidas pela porta dos fundos da nossa vida, como faz o leiteiro com a
sua mercadoria”. Não se pode negar que ele tinha uma alta opinião de si mesmo.
Pois não era ele o eleito, o recipiente do conhecimento que a ”presença”
decidira outorgar-nos por sua via, a nós outros, todo o género humano?

As suas tentativas no sentido de estabelecer contacto com as divindades, pelos


vistos, terão sido notavelmente bem sucedidas - mesmo sem o recurso à ”magia
do sexo”. O seu Livro da Lei foi-lhe ditado, palavra por palavra, à razão de um
capítulo inteiro por dia, por Aiwass, o ”Santo Anjo-da-Guarda”. As suas
entrevistas com esse espírito de luz efectuavam-se conforme Aiwass marcava
e, durante as mesmas, ele ia registando as palavras-da-sabedoria tão depressa
quanto lhe era possível garatujá-las, ao ritmo a que falava o iluminado. Esse
livro foi subsequentemente publicado como sendo da sua própria autoria.

O seu zelo catequista veio, mais tarde, permitir-lhe constituir uma confraria,
conhecida como ”Os Irmãos e Irmãs de A.\ A.-.”.

Mais ou menos por essa altura, organizou sete ”ritos”, que foram executados
em público em Caxton Hall. A função parece ter impressionado mais como coisa
incompreensível do que como indecência, de modo que, na maior parte, as
críticas especializadas manifestaram-se desfavoráveis. Enquanto director da
referida confraria, Crowley foi-se interessando cada vez mais pela tal ”magia
do sexo” como recurso para as suas comunhões com o invisível. Por essa altura,
deu em usar um penteado num estilo que imitava um falo, para isso raspando
quase completamente a cabeça, deixando apenas uma mecha ao meio da testa, a
cair-lhe sobre as sobrancelhas. O seu encontro com o chefe de uma outra
sociedade que defendia conceitos semelhantes aos seus - a ”Ordo Templis
Orientis” - serviu-lhe para corroborar a sua linha de experimentações místicas.

As suas actividades, nessa época, foram narradas pelo World Magazine, cujo
repórter afirmava ter assistido a uma cerimónia na Fulham Road, onde, numa
sala ”mobilada de divãs e literalmente toda atapetada de coxins” se teriam
desenrolado os mistérios da ”Besta Apocalíptica” e dos seus sequazes. ”Música
de toada chinesa, livros de aspecto sinistro, encadernados em couro negro e
sinais cabalísticos pintados no chão, tudo isso contribuía para dar a impressão
geral de ambiente de corrupção e fantasmagoria, ao mesmo tempo. Como que
ondeando dum lado ao outro do altar, via-se uma convulsa e atormentada
serpente. Entraram os ’fiéis’. Muitos eram ’mulheres de porte aristocrático’.
Todas as damas vinham mascaradas, mas a porção de rosto que traziam
descoberta tinha uma aparência de ’cera branca, de velas’. Os oficiantes
cantaram, os círios tremeluziram e apagaram-se, propositadamente extintos;
seguiram-se inauditas orgias.”

Absolutamente nada abalado por essa revelação das suas artes, Crowley
retirou-se, ao começar a Guerra de 1914, para os Estados Unidos.
Conservando ainda o seu ”quê” de Swinburniano, na atitude que mantinha em
relação às mulheres, foi vivendo a sua vida no meio de uma fieira de amantes
exóticas e disformes. Sobre estas escreveu comentários sucintos mas ferinos,
pungentes. ”Pretende ser ’cem por cento americana’ (!) mas é apenas, creio eu,
mestiça de negro e japonês.” E também: ”Negralhona gorda, mas ardente.”

Punha até anúncios, à procura de: ”Anãs, corcundas, tatuadas... mostrengos de


toda a qualidade; mulheres de cor, só as que forem excepcionalmente feias ou
disformes.”

Nos Estados Unidos é que veio, afinal, a encontrar a sua Mulher-Rubra’, Leah
Faesi, americana que nascera na Suíça e possuía uma aparência impressionante,
mais do que propriamente atraente e por quem parece que Crowley desde logo
se apaixonou, tanto quanto ela por ele.

Durante a sua estada na América, escreveu o seu Hino a Pa, uma das suas mais
felizes obras poéticas, para além de uma positiva exposição da sua fé.

”Vem! Oh! Vem!

Como soturno e lúbrico demónio, Rompe-me, à espada, algemas que me esfolam,


Grande Devoradora e Suma Procriadora:

Estende-me o sinal do Olhar Alerta de Argos, O erecto penhor da áspera coxa, E a


palavra de loucura e de mistério, Oh! Divina lo-Pã!”

A cidade de Nova Iorque não era ainda, naqueles tempos do alvorecer do século
XX, uma paragem conveniente para cultos panteístas. Assim, Crowley consultou
o seu esotérico hexagrama, sobre qual seria o melhor local onde poderia ir
fundar a sua comunidade, que cada vez desejava mais e com maior urgência, e
eis que ”os poderes” lhe estendem a resposta, a saber: ”Cefalu não poderia ter
rival.”

Então mudou-se para a Sicília. A ”abadia” não era, absolutamente, o que ele
esperava. O seu grandioso plano original - pilares curvos e tectos de vidro
abobadado - teve de ser abandonado; o gerente do banco italiano a quem
solicitou um empréstimo demonstrou não estar muito crente na justeza da
transacção. Afinal, o tabernáculo com que teve de contentar-se A Besta saiu
coisa muito mais modesta: com efeito, foi uma ”vila” banal, o que não lhe
desmereceu a solene designação de ”Abadia de Telema”. A sala central do
prédio servia de Sanctum Sanctorum. Aí, sobre o soalho, pintaram o círculo
mágico e o pentagrama. Ao centro do círculo, levantava-se um altar de seis
faces. Tanto as paredes desse aposento como as dos demais da casa eram
decoradas com pinturas obscenas. No altar guardavam-se os chamados ”Bolos
de Luz”, em cuja receita entravam, entre outros ingredientes, aveia, mel, vinho
tinto e azeite (”posteriormente humedecido e amolecido com

’ Numa alusão bíblica. (N. do T.)

sangue rubro e fresco”). O Sunday Express insinuaria, mais tarde, a inclusão,


também, de outros ingredientes ainda mais vis e nojentos do que o sangue.

Por essa época, a absorção diária de heroína, que Crowley usava, já atingira as
raias do absolutamente prodigioso. Todavia, a sua saúde geral e o seu cérebro,
em particular, continuavam incólumes, tanto que conseguiu elaborar, num prazo
extraordinariamente breve (fazendo em média cinco mil palavras por dia), o
seu Diário do Viciado em Entorpecentes. Redigiu essa obra ditando-a àquela
que apelidara de ”minha Mulher Rubra do meretrício”, e terminou o trabalho
num mês, apesar de combalido por uma misteriosa febre que contraiu na última
semana desse mês.

Como é natural, o livro não passou despercebido.

No Sunday Express de 19 de Novembro de 1922, um destacado jornalista


daquele decénio, James Douglas, atirou-se fogosamente ao ataque, com a
declarada e proclamada intenção de clamar até que a Lei se resolvesse a
processar o autor. Após algumas ligeiras considerações sobre a inconveniência
de se proporcionar publicidade gratuita à literatura licenciosa pelo simples
facto de a trazer à tona da crítica, conclui, porém, ser de muito mais proveito
fazer com que a indignação das pessoas de bom-pensar, despertada por essa
crítica, desça sobre o repugnante escritor. E tendo chegado a tal decisão,
satisfeito com ela, sente-se livre de movimentos para entrar na matéria com
apetite.

”Trata-se de uma novela em que se descrevem as orgias de vício praticadas por


uma súcia de degenerados morais, acostumados a estimular a própria
degradante lubricidade mediante sorvos de entorpecentes, cocaína e heroína”,
e por aí fora, vai ele citando triunfantemente, fora do contexto, frases tais
como: ”Enquanto não se teve cheia a boca de cocaína, não se sabe
verdadeiramente o que é beijar.” Conforme seria de esperar, o crítico repele
terminantemente a possibilidade de se equilibrar as motivações dos
”telemistas” com qualquer outro conteúdo que não seja unicamente a brutal e
desenfreada luxúria.

Isto era apenas o começo, pois na semana seguinte Crowley era assunto de
primeira página. Eis o título:

”DEFINITIVO DESMASCARAMENTO DE ESCRITOR TOXICÓMANO!”

”O tal Aleister Crowley é organizador de sociedades para realização de orgias


pagãs.”

”Esse indivíduo andou metido em propaganda germanófila, durante a guerra.”

”É ele o autor de certos ataques, em termos obscenos, contra a pessoa do rei.”

Eram deste género os títulos, em caixa alta, dos artigos.

Dizia o Sunday Express ter entrevistado uma das ”vítimas” femininas de


Crowley. Os dados que colheu, pelo menos aqueles que poderiam ser
verificados, parecem conferir com os factos conhecidos. Supõe-se que a dama
entrevistada era Mary Butts, que estivera em Cefalu. Da sua boca soube o
jornal que Crowley pendurava nas paredes ”coisas inenarravelmente feias,
quadros representando orgias e monstruosos vícios de outros tempos”.

Vem, depois, uma descrição do Sanctum Sanctorum, onde, expõe o jornal, ”se
efectuam indizíveis orgias, impossíveis de descrever... basta dizer que são
horrendas em tal medida que ultrapassam as receosas suposições da gente de
bem”.

Crowley arrasta consigo um rebanho de mulheres, que o adoram, apesar de


constantemente traídas e que estão sempre às suas ordens, inclusive para
saírem à rua, por ordem dele, para sacar dinheiro dos homens de Palermo e
Nápoles, quando os fundos da tesouraria abacial andam curtos. Os seus livros
são, das duas uma: ”Ou incompreensíveis, ou nauseabundos; mas, geralmente,
são as duas coisas.”

É preciso reconhecer que as acusações do Sunday Express não eram


inteiramente sem fundamento. Parece que o ascetismo também representava
uma parte nas cerimónias e ritos duradouros levados a efeito em Cefalu,
particularmente quando se tratava de iniciar catecúmenos. As exigências que
Crowley fazia, de períodos de silêncio, trabalho e meditação, eram tão
exorbitantes, que raramente os recém-convertidos as aceitavam, se é que
alguma vez o faziam. Os ”Mistérios de Elêusis” da abadia sempre se
evidenciaram mais ao gosto dos seus frequentadores do que o elemento
ascético do culto.

Ninguém poderia negar que a Grande Besta era dotada de uma personalidade
magnética, devido à qual não era problema angariarem-se novos pupilos
convenientemente insensatos. Foi a visita, com um desastrado epílogo, de um de
tais noviços que forneceu à imprensa de Beaverbrook um novo bocado de
suculento material para os seus dentes.

Para a necessidade, que tinha Crowley, de mais discípulos, a pessoa de Raoul


Loveday foi o maná ideal. Esse moço, inteligente, porém meio desequilibrado,
casara-se, ainda antes de terminar os estudos, com Betty May, uma modelo de
atelier, que carregava um passado tempestuoso e um génio violento, tanto que
deu, a si própria, na sua autobiografia, a designação de ”Mulher-Tigre”.
Entretanto, segundo ela insistentemente se queixava, ele dedicava-se mais às
artes mágicas do que à pessoa dela. Era inevitável, pois, que no decorrer das
suas explorações esotéricas ele esbarrasse, mais tarde ou mais cedo, em
Crowley; e, quando tal sucedeu, sentiu-se instantânea e fatalmente
magnetizado, ao mesmo tempo que Betty ficou excluída.

Percebendo em Loveday material plástico e moldável que ele facilmente


formataria ao seu jeito e conveniência, Crowley despachou-lhe um convite para
comparecer na abadia. A chamada foi imediatamente aceite por Loveday,
embora Betty se manifestasse contra essa visita desde o primeiro momento,
pois dissera-lhe Epstein: ”Se vocês forem, um jamais regressará.”

Depois de uma jornada transcontinental medonhamente desconfortável, num


compartimento de comboio de terceira classe (durante a qual Betty se viu
forçada pelo seu companheiro a vender a sua aliança de casamento), incidente
que foi para ela mais uma razão de ressentimento e ciúmes, chegaram, enfim,
suados e exaustos, à abadia de Telema.

Abriram-se-lhes as portas de par em par e, na soleira, estava Crowley,


revestido das suas vestes rituais, entoando teatralmente à guisa de salmo:
”Faz como te aprouver, eis toda a Lei.” Foi recusada admissão a Betty, a
rebelde, enquanto ela não se conformou em articular o responso: ”O Amor é a
Lei, o Amor por Vontade.”

No recinto da abadia, reinava a Besta com o seu ceptro de ferro. As suas


mulheres tinham de tingir os cabelos, alternadamente, de carmesim e preto.
Era proibido o uso verbal da primeira pessoa do singular, sendo qualquer
transgressão a essa regra punida com ferimentos auto-infligidos. Encontravam-
se entorpecentes por todos os cantos da casa. Até o filhinho de Crowley, de
apenas 5 anos, já era um viciado. Essa criança dirigiu à escandalizada Betty a
seguinte ameaça: ”Deixa-me em paz, ouviste? Eu sou a Besta número dois e,
assim, sou capaz de te esmigalhar!”

O rito diário da abadia tinha início pela madrugada, com um cântico ao deus-Sol
dos Egípcios, Ra: ”Salve, ó Tu que és Ra, em teu despontar!” Ao anoitecer, os
conventuais deviam assistir ao ”Pentagrama”.

A comida era desagradável e imprópria; conveniências sanitárias eram coisa


inexistente. Betty May - ela mesma o conta - queixava-se em alto e bom som.
Crowley intimara-a, dizendo que ela passara a ser, desde então, a ”Irmã
Sibilina” e estava sujeita à regra da casa, ou seja, à dele. Ela, porém, recusou
redondamente subordinar-se às determinações dele, embora, somente para
conseguir ali penetrar, tivesse previamente assinado um compromisso de o
fazer. Certo dia, estando ela, sob protesto, a servi-lo à mesa, derramou uma
bacia de água sobre a cabeça dele; Crowley não se deu por achado, não se lhe
agitando nem um fio de cabelo; ou, melhor (visto que andava agora de cabeça
raspada, careca que nem um ovo), não moveu um só músculo; mas, passados
poucos dias, apanhando mansamente, de uma gaveta, um facalhão de cozinha,
assim falou, em tom absolutamente normal: ”Esta noite, às 8 horas, vamos
sacrificar a Irmã Sibilina.” E não parecia estar a brincar. Mas, por via das
dúvidas, Betty achou que as coisas já estavam suficientemente malparadas, e
resolveu esgueirar-se para fora daquela casa e entocar-se nalgum esconderijo,
lá para as montanhas (onde quase morreu, por se ter exposto às inclemências
do tempo), só voltando quando achou que passara o perigo.

Regressando, viu que a Suma Besta tinha transferido para um pobre gato os
seus projectos e desejos de ritos cruéis. O triste animal, que Betty ainda
tentou poupar à horrenda sorte, levando-o, às escondidas, para os montes, mas
que estupidamente retomou, como se estivesse ansioso por morrer, foi, afinal,
sacrificado, poucas horas depois, no Sanctum Sanctorum; e, por sinal, de
maneira muito desajeitada.

Acontece que Crowley hipnotizara a vítima, para a manter sossegada e, ao


iniciar-se a cerimónia, estava o bicho tranquilamente alojado numa conveniente
sacola. A actual Mulher-Rubra do credo de Telema, agora sob o apelido ritual
de ”Mono de Thoth”, erguia-se, sustendo a ”Taça das Abominações”, pronta a
recolher o sangue vertido. Mas Loveday, a quem se confiara o cometimento do
sacrifício, superexcitado por aquela atmosfera estranha, bem como por fortes
doses de entorpecentes, a que não estava habituado, feriu o gato
abruptamente e muito ao de leve. O desgraçado gato, sangrando e esganiçando-
se em miados atroadores, conseguiu, contorcendo-se, fugir às mãos do
sacrificador e desatou a correr pelos quatro cantos do salão, exprimindo o seu
sofrimento e pavor. Momentos depois, o enfurecido ”Suma Besta” lá conseguiu
apanhar e anestesiar o felino, sendo o precioso sangue deste devidamente
recebido na Taça e ritualmente consumido pelos comungantes.

Poucos dias mais tarde, Loveday caiu de cama, doente: febre tifóide.

Betty May entendeu que a moléstia fora causada pelo sangue do gato, mais o
uso de entorpecentes. A verdade é que é mais provável que tal se devesse a ele
ter bebido água (contra a expressa advertência da Besta) num mosteiro
situado nas montanhas, que o doente visitara, dias antes, em companhia de
Crowley. Este, então, fez notar, friamente, que acreditava que Loveday
morreria no dia 16 de Fevereiro, e a verdade é que, conforme se viu, assim foi.

Mas, para Betty May, chegava de confusões. Tratou de fugir, de vez, de tal
abadia, indo acolher-se, primeiramente, no consulado britânico de Palermo e,
depois, embarcando para Inglaterra, onde despejou, inteirinha, a história das
suas amargas aventuras, nos vorazes ouvidos de um repórter do Sunday
Express.
É fácil imaginar quanto proveito o jornal tirou de tão suculento material.

Citaram-se as palavras de Betty, nas quais afirmava que as descrições dos tais
ritos abaciais, tal como haviam sido anteriormente apresentadas, nos primeiros
artigos do jornal sobre o assunto, eram tremendamente reduzidas, quanto à
realidade dos factos por ela testemunhados.

Loveday (cujo nome não apareceu) fora seduzido e atraído por falsas
promessas e engodos a ”um sorvedouro infernal, qual remoinho, de sujeira e
obscenidades”.

E as crianças, santo Deus! ”Imaginem que elas são trazidas a presenciar


medonhos deboches sexuais, incrivelmente revoltantes.” O artigo concluía com
um desafio a Crowley, a que este movesse um processo.

Ele, porém, não quis nada com processos. O ciclo da abadia aproximava-se do
momento do encerramento. Cada vez mais transpiravam cochichos, oriundos de
Cefalu, de natureza alucinante. Dois visitantes de tempos mais recuados
regressaram da abadia contando umas histórias em que a Mulher-Rubra era
dada como tendo copulado ritualmente, em plena cerimónia, com um bode,
sacrificando-se o animal no momento em que este atingia o orgasmo, para que o
seu sangue fluísse em caudais sobre o dorso, branco e nu, da ”sacerdotisa”.
Esta informação fora facultada ao Sunday Express por Mary Butts, aquela que
trouxera os elementos para os artigos anteriores; mas a redacção, percebe-se,
considerou demasiado salgada a iguaria para o paladar dos seus leitores.

A Besta confessou francamente que ”se deixara levar, a si próprio, a deliciar-


se com sujos e nojentos deboches”.

Muito pouco tempo depois do incidente Loveday, chegou-lhe às mãos um


”pedido”, formulado em termos polidos, porém inflexíveis, para que deixasse
imediatamente o território italiano.

”Mas, nós todos?” - perguntou o aterrado e abatido grão-mestre da Besta. com


um ar solene e contrafeito, como que a pedir desculpas, confirmou que sim, com
um gesto de cabeça, o Chefe da Polícia. Cheio de desespero, partiu dali a Besta.
Foram-se, para sempre, os grandes dias da sua maior magia.
Em 1922 e 1923, Crowley esquivara-se, talvez sensatamente, a processar o
Sunday Express por difamação. Mas, em 1934, decidiu-se, claro que
imprudentemente, a processar Nina Hamnett, outrora sua amiga, apenas por
causa de um único período incluído no livro Laughing Torso, por ela escrito.

É que, falando do templo de Telema, em Cefalu, dissera ela: ”Achavam que ele
praticava ali a Magia Negra, e dizia-se, até, que certo dia desaparecera de lá
uma criancinha, em circunstâncias misteriosas. Falavam também da presença de
um bode. Tudo isso eram indícios a apontar para a Magia Negra comentava o
povo -, e o certo é que os aldeões, em redor, tinham medo dele.”

Agora, por que razão Crowley resolveu mover esse processo, com base num
trecho literário comparativamente inócuo - eis o que é impossível adivinhar. A
defesa de Miss Hamnett, dos seus editores e impressores, resultou no que era
fácil de prever: os acusados ganharam a causa.

O ponto de vista de Crowley era que se considerava mágico, mas de magia


branca, não de magia negra. Nesta diferença estava toda a razão da sua
atitude mental, e da queixa contra o que ele considerava uma confusão
caluniosa.

Convidado a esclarecer a diferença existente entre o que reputava negro ou


branco, em matéria de magia, explicou Crowley que mágica era a arte de
modelar circunstâncias externas segundo o império da vontade. Se esta era
inspirada no bem, a magia era branca; se no mal, era tenebrosa.

Para sua desgraça, foi apresentada em tribunal uma formidável quantidade de


provas em seu desabono, fortemente eivadas, precisamente, do inverso das
características benévolas que, arrogante, ele pretendia invocar em favor do
seu particular género de magia.

”Proferiu o senhor a frase: ’Horatio Bottomley ferrou-me com o apodo de


degenerado e imundo canibal”? - inquiriu o órgão da justiça pública. Ao que
respondeu Crowley: ”Sim, proferi.”

Durou várias horas o depoimento de Betty May, sendo visível que não se
deixava minimamente perturbar por quaisquer esforços visando desmenti-la. (À
pergunta de ”Quantas vezes já se casou?”, ela respondeu, sem hesitar: ”Acho
que umas quatro.”)

A testemunha repetiu o que já narrara sobre a existência da abadia, embora,


desta vez, um tanto incoerentemente. ”Aquilo lá era uma espécie de negócio de
histeria. Clamavam por uns deuses. Houve uma invocação. Havia, também, um
enorme quadro, uma pintura, na sala.”

”Como era a pintura?”

”Oh! Medonha!”

”Quer dizer, com isso, indecente?”

”Principalmente.”

O advogado que representava os três acusados não deixou de aproveitar as


ilimitadas oportunidades que se lhe ofereciam para alardear um espírito jocoso
de colegial. Intimou-se Crowley a efectuar, ali mesmo, uma desaparição, da sua
própria pessoa, ou a do ilustre promotor. (Intervenção do juiz, mantendo a
objecção.) Interrogou-se, ainda, o queixoso, acerca dos seus numerosos nomes
falsos.

”O queixoso tomou para si a denominação de ’a Besta 666’?” ’”A Besta 666’ é


uma designação que significa apenas ”luz do Sol”; assim sendo, os senhores
podem chamar-me ’Pequena Luz Solar’.” (Hilaridade geral na sala.)

Por fim, o Excelentíssimo Desembargador Swift, que começara já, há horas, a


ficar entediado, ergueu a mão a impor silêncio e falou ao júri:

”Há quarenta anos que sirvo a administração da Justiça, ora numa, ora noutra
função. Assim sendo, pensava já ter conhecido todas as modalidades
concebíveis de maldade humana. Acreditava que já me fora dado a ver
esporadicamente patenteado diante de mim tudo o que havia no mundo, de
perverso e malvado. No presente pleito, porém, apercebi-me de que, realmente,
quanto mais se vive, mais se aprende. Jamais ouviram, antes, os meus ouvidos,
discorrer sobre coisas tão medonhas, horrorosas, blasfemas e abomináveis,
como essas que acaba de expor-nos esse homem que se intitula a si mesmo o
maior poeta vivo. Compartilham os senhores, em suma, a minha opinião, ou
preferem ainda prosseguir com os debates?”

O júri nem precisou de retirar-se para a sala de reuniões: decidiu, logo e in


loco, em favor dos acusados.

Apesar desta tremenda propaganda, os dias de Crowley como mágico estavam


terminados. No fim da sua vida, viu-se reduzido a vender (a preços
exorbitantes, reconhecia-o) uma espécie de elixir-panaceia, de sua invenção, a
que chamava ”Amrita”.

Na edição em que se descrevia o andamento do último dia daquela acção


judicial, trazia o Daily Mail um artigo dizendo que Crowley não era, de modo
nenhum, o único praticante das Artes Negras. Havia ainda, sustentava o
articulista, cultos de feitiçaria disseminados por toda a Inglaterra, de Norte a
Sul e de Leste a Oeste.

”Tais ritos exercem um efeito desmoralizador sobre quem os testemunha.


Diminuem-se as luzes, queimam-se grandes quantidades de incenso numa
imitação de altar, em cuja parte traseira uns ’discípulos’, ali escondidos,
entoam uma espécie de ’cantochão’. O hierofante (ou ’sacerdote’ oficiante)
cantarola em igual estilo uma lenga-lenga em inglês e em latim, enquanto vai
demonstrando os ’mistérios sagrados’. Muitas vezes o efeito geral é reforçado
pelo zumbido duma coisa a que chamam na Austrália ’mugido de touro’, isto é,
um rudimentar instrumento giratório que emite um som grave, monótono e
gemebundo e cujas permanentes vibrações visam propositadamente provocar
no ouvinte um estado nervoso e histérico. Geralmente, erguem-se aí preces a
’Nosso Senhor Satanás, Asmodeu, Belzebu, Senhor do Mundo’. Agora, o que
vem depois do ponto culminante do cerimonial é coisa por demais abominável
para se poder descrevê-la.”

Crowley faleceu a l de Dezembro de 1947. Foi incinerado no Crematório de


Brighton, quatro dias depois. Durante a efectivação desse serviço, os seus
poucos fiéis que estavam presentes entoaram o seu Hino a Pa. Devido a este
tipo de exéquias, brotaram protestos escandalizados, não somente perante o
respeitável Conselho, como emanados também deste mesmo. Finalmente, o
presidente da Mesa Directora da Administração do Crematório fez saber que
”tomaremos todas as providências necessárias para impedir que se repita tal
incidente!”

Não parece haver, realmente, grande perigo de que se repita um incidente tão
extravagante. Crowley viveu setenta e dois anos, tendo-se dedicado com
evidente sinceridade, através de todo esse tempo, às suas manigâncias
ocultistas. O culto da feitiçaria subsiste ainda, na Europa dita ”civilizada” - é
verdade -, mas de maneira muito sorrateira e rodeado de menos pompas e
exóticos recursos do que os ritos dos telemistas. Não são muitos os homens
dotados da inclinação ou da paciência necessárias para se levar a semelhantes
culminâncias idênticas brincadeiras, sendo que, afinal de contas, no caso de
Crowley, não se tratava de brincadeiras.

Se compararmos o caso acima estudado com a vida de uma figura a bem dizer
contemporânea, mas inequivocamente similar, colhemos uma impressão
diferente, e apercebemo-nos até que ponto Crowley se mostrou ímpar.

Gregor Efimovitch ”Rasputin” nasceu de pais humildes, numa singela aldeia de


nome Petronovskoye, na Sibéria, no ano de 1871. Inegavelmente, o pai era
detentor de algumas das mesmas qualidades que mais tarde vieram a distinguir
o seu rebento, dado que a palavra ”rasputny”, em russo, já quer dizer ”devasso”.
Em 1904, Gregor Efimovitch aderiu a uma seita religiosa conhecida pela
designação de ”Khlysty”, cujo mote e bandeira parece ter sido o mandamento
exclusivo: ”Peca, para que sejas perdoado!” Isto, positivamente, encantou
Rasputin, pois, ainda bem não se escoara um tempo relativamente curto, já
andava ele rodeado de um embevecido grupo de belas raparigas em combinação.
Era na companhia dessas suas adoradoras que ele efectuava umas funçõezinhas
a que gostava de referir-se como ”reuniões para penitência e oração”. Essas
reuniões foram relatadas minuciosamente ”pelos habitantes de Petronovskoye”
- descrição essa mencionada por Vogel Jorgensen, que aqui transcrevemos:

”À noite, quando surgem no firmamento as estrelas, Rasputin, seguido dos seus


familiares e dos seus adeptos, homens e mulheres, realiza excursões pelos
bosques vizinhos. Por lá, juntam lenha para uma fogueira, que acendem. Sobre
um tripé pousado sobre a pira colocam um vaso contendo incenso e ervas
diversas. Homens e mulheres dão as mãos e formam uma roda em volta do fogo,
dançando e cantando, sem parar e sempre estes mesmos versos monótonos:
’Nós pecamos para nos arrependermos,

Nosso pecado, ó Senhor Deus, é a nossa penitência!’

A dança em tomo do fogo, aí, vai-se acelerando, acelerando, cada vez mais
desenfreada, mais furiosa; ouvem-se suspiros e estertores; a fogueira
extingue-se e, nas trevas que descem sobre os ’penitentes’, ouve-se a voz de
Rasputin exclamar: ’Ponde à prova a vossa carne!’

É o sinal para que todos se atirem ao chão e se estabeleça uma confusão geral
em que se dá começo a uma desavergonhada orgia.

O credo que Rasputin professava, segundo o expunha ele próprio, consistia


nisto: ’Uma partícula do Ser Supremo está encarnada em mim. Somente por
meu intermédio podereis salvar-vos; e a maneira de vos salvardes é esta: deveis
unir-vos a mim, de alma e corpo.”1” (O itálico é do autor.)

Religião um tanto grosseira, tosca, mal elaborada; ocasionalmente, alguns


beliscões de consciência desassossegavam de ansiedade, parece, os seus
seguidores. Uma das jovem catecúmenas de Rasputin perguntou-lhe um dia,
ingenuamente e aflita: ”Mas não será pecaminoso, Gregor Efimovitch, isto que
praticamos contigo?” Ao que ele, tranquilizador, se bem que com flagrante
incoerência, lhe retorquiu: ”Não, minha filha, não é pecaminoso: a nossa carne é
dádiva de Deus e, como tal, podemos fruí-la livremente.”

Semelhante resposta parece estar directamente em contradição com o magno


e fundamental dogma do credo rasputiniano. Mas aquilo que a Rasputin faltava
em matéria de coerência, compensava-o sobejamente através da força de
domínio hipnótico dos seus modos e do seu trajar; e não seria de estranhar que
ele muito breve viesse a dirigir os seus talentos para objectivos mais
requintados.

Durante uma visita a São Petersburgo, travou conhecimento com o


arquimandrita do mosteiro ortodoxo, o qual, fascinado pela sua personalidade e
comovido pelo relato (sem dúvida exposto com dramatismo, e habilmente
”censurado”) da sua ”conversão” e das suas actividades religiosas, o apresentou
na corte imperial.
A oportunidade apresentada a Gregor Efimovitch não foi desperdiçada. Por
muito que ele fosse um formidável charlatão, no que toca à seriedade das suas
crenças, a verdade é que as suas qualidades pessoais para vencer, fossem quais
fossem, lá isso possuía ele, não há dúvida, muito embora com a característica
de impressionar mais as mulheres do que os homens. A sua estapafúrdia
aparência pessoal e as suas maneiras lorpas, em vez de o prejudicarem,
funcionavam, antes, como atractivo suplementar.

À mesa, acabando de comer (o que fazia com os dedos), ”estende as mãos às


senhoras, suas admiradoras, todas pertencentes à mais alta nobreza, fazendo-
as lamber-lhes os dedos até os limparem completamente, tarefa essa que elas
executam como um dever e cheias de gratidão, para não dizer frementes de
devoção idólatra”.

Esse ”encurralar” das damas da corte russa, mais a influência política que
desejava exercer, naturalmente que lhe angariariam inimizades. E ele próprio
forneceu a estas vasta munição em potencial, que os seus inimigos não
hesitaram em transformar numa ameaça real.

Se bem que normalmente imundo e sebento nas vestes e hábitos, Rasputin não
fazia objecções a tomar um banho, se todas as demais pessoas presentes na
sala de banhos fossem mulheres. Von Zanka descreveu (sem citar a fonte onde
se baseou) um dos tais saraus religiosos dado pelo monge Rasputin na mansão
de uma dama de Marselha, conhecida pela alcunha de ”Madame Discretion”.

Cinco senhoras chegaram em trenós, dando entrada, em primeiro lugar, na casa,


e depois, nos banhos. (Os banhos russos são qualquer coisa de parecido com os
conhecidos ”banhos turcos”.)

”Gregor Efimovitch já está aí. Está muito quente lá dentro, um bons 40 graus
centígrados. Quando o Padre Grischka10 encontra os seus fiéis reunidos,
começa a pregar. Discorre com grande animação, pois, como já dissemos, faz
muito calor e o Padre Grischka tem muito que exteriorizar aquilo de que o seu
amoroso coração parece transbordar. O Padre Grischka gesticula e esbraceja.
Em cores infernais, ei-lo que pinta os engodos do pecado e a peçonha da carne.
A audiência, com o olhar incendiado, está suspensa dos seus lábios e, como já
dissemos, faz muito calor. Latejam os pulsos dos fiéis e o calor quase os faz
desmaiar; mas o pregador fica ainda mais exaltado pela
Diminutivo russo de Gregório. (N. do T.)

tremenda temperatura ambiente. com mais vigor ainda, pincela o quadro de


como toda a humanidade veio a ficar presa do pecado, do vício e dos crimes...
Em breve toda a congregação está enfeitiçada por aquela fogosa eloquência...
Os olhos do profeta flamejam. Ah! O vício é temível e a carne é inimiga do
espírito. Por que teria Deus, na sua sabedoria, feito irresistíveis as tentações
da carne? A audiência não lhe sabe responder. Mas sobe ainda mais a
temperatura e a audiência encontra-se agora numa correspondente condição de
fervor, devida ao duplo aquecimento simultâneo: o calor do local e as candentes
palavras do Padre Grischka. Mas se o pecado é colossal, muito mais o é a fonte
de perdão que espera o pecador. Ao chegar a este ponto, o Padre Grischka está
em estado de êxtase: a sua voz recusa-se a soltar-se da garganta: ele fala
apenas com os movimentos da boca e da língua. O auditório rosna e tem
espasmos de soluços, enquanto o calor se vai fazendo mais e mais intenso...”

Mas de tal ordem era a personalidade do homem, que a difusão dessas


histórias, verdadeiras que fossem - e eram-no, não há dúvida -, não lhe fazia
mossa. Pode dar-se o caso, até, de que essa divulgação desse exactamente o
resultado oposto do desejado. Ele continuava a ser recebido com guarda de
honra nas estações ferroviárias; o seu nome era sempre murmurado por entre
suspiros de atónita reverência, em todas as salas de visitas da Rússia.
Contemplando-se a fotografia deste charlatão de hirsuta carantonha, é difícil
descobrir que atractivos poderia alguém ali discernir. A atitude de quem quer
que o defrontasse era a de se achar em presença de um ente proveniente de
outro mundo. Só a morte violenta, pelo assassínio, poderia acabar com ele, e
mesmo essa quase falhou.

Um grupo de conspiradores chefiado pelo príncipe Yusupoff e o grão-duque


Dimitri Pavlovitch arquitectou o plano de acção. Rechearam-se bolos com
cristais de cianureto de potássio. Uma dose liberal do mesmo veneno ”lavou”
previamente o lado interno de um copo, antes de se encher de vinho. Convidou-
se, então, Rasputin a vir fazer uma visita ao príncipe. O ogre compareceu,
devidamente, envolto numa das suas exóticas vestimentas. (Às vezes, dava-lhe
para envergar uma rubachka de seda azul-celeste, como blusa, com calças de
veludo.) Por ocasião dessa visita fatal, a blusa era enfeitada com bordados de
flores-de-escovinha (centáureas). A Yusupoff fora confiada a tarefa de
distrair e envenenar o sinistro hóspede. Este, depois de ter começado por
repelir com maus modos os bolos, a pretexto de que lhe pareciam demasiado
doces, acabou por devorá-los todos, um atrás do outro. Cada um deles continha
veneno suficiente para derrubar um outro homem qualquer. Yusupoff, agora
enormemente aliviado da ansiedade inicial, atirou-se para uma cadeira, à espera
dos acontecimentos. Nada, porém, aconteceu. Transcorrido um conveniente
lapso de tempo, volta à carga Yusupoff, ofertando ao visitante um pouco de
vinho Madeira envenenado. A libação desceu devagar pela garganta de
Rasputin, bebericada, sorvida aos golinhos, ”com uma concentração apreciativa
de ’connoisseur’”... Minutos mais tarde, queixava-se ele de uma irritaçãozinha
na garganta, e pediu mais vinho, para acalmá-la. Ainda dessa vez, nenhum
efeito que se notasse. Mas Yusupoff é que estava à beira de desmaiar, de
aflição. Pediu-lhe Rasputin que cantasse. O príncipe tentou aceder ao seu
desejo, mas a voz saía trémula. Quanto a Rasputin - nenhuns sinais, por mínimos
que fossem, de qualquer mal-estar. Retirando-se do salão com o passo mais
firme que conseguiu exibir, Yusupoff arranjou com os seus cúmplices um
revólver carregado e, de regresso, baleou o monge em pleno coração. ”Ouviu-se
um urro semelhante ao de um animal selvagem e viu-se Rasputin tombar
pesadamente, de costas, sobre o tapete de pele de urso.” O príncipe chamou os
seus amigos. Acorrendo à pressa, eles viram Rasputin jazendo no chão e com o
aspecto de estar morto.

Momentos depois, porém, enquanto os aliados se preparavam para fazer


desaparecer o cadáver, este retoma subitamente à vida. Primeiro, abriu o olho
esquerdo, vagarosamente, olhando fixamente os seus matadores, de um modo
aterrador. Pondo-se, com dificuldade, de pé, atirou-se, cambaleante, sobre
Yusupoff, de olhos vesgos e punhos fortemente fechados. ”Ressoou o salão
todo, com o seu urro medonho.” Dos cantos da boca escapava-lhe uma baba
espumosa. Num rouco murmúrio, os seus lábios pronunciavam repetidamente o
nome de Yusupoff.

Por fim, o príncipe conseguiu escapar das garras demoníacas do inimigo e pediu
aos amigos o revólver. Quando este lhe voltou às mãos, procurava a sua vítima
escapar-lhe, arrastando-se de gatas pela escada acima. Deram-lhe ainda mais
quatro tiros e, finalmente, o alvejado tombou parecendo finalmente inerte, no
soalho. Mas não: ei-lo que se mexe de novo. Possesso de um frenesim de raiva,
ao mesmo tempo que de terror, o príncipe pôs-se a golpear-lhe o crânio com um
pesado porrete. Tamanha era a fenomenal vitalidade daquele homem que
fascinara a corte imperial russa.

Embora a inquietude dos dias actuais pareça dever-se ao que eu denominei de


agorafobia mental, ou pelo menos, no fim de contas, se relacione com ela, a
marcha para a liberdade sexual ainda não chegou à sua meta final, pois
certamente haverá ainda alguns indivíduos que continuam a sentir necessidade
de contenções.

O que há de notável no fenómeno da contenção sexual, de tipo actual, é o facto


de ela provir do íntimo, não do exterior. Está claro que é uma forma preferível,
sob todos os aspectos, ao ”autodomínio” medieval baseado em neuroses.

Quanto mais se pensa no número e qualidade de indivíduos que exercitam a


contenção aqui tratada, mais se indaga, perplexamente, se porventura chegará
a completar-se o movimento do citado pêndulo, na direcção que leva
presentemente. (Não quero dar a entender que o impulso de retomo possa
deixar de efectivar-se, mas, sim, que cada oscilação virá a ter um âmbito cada
vez mais reduzido.) Já havia quem se tivesse apercebido de alguns dos perigos
da liberdade; agora, passaram a distinguir, também, os da reacção restritiva.

Cada um interpreta tais perigos a seu modo. Alguns, à maneira dos clérigos que,
afanosamente, resistiam a todas as tentativas no sentido de consentirem a
Festa dos Loucos; outros, porém, e estes em número progressivamente maior,
revelando-se portadores de autocrítica e perspicácia maiores. As resultantes
dos processos mentais, se bem que análogas, estão muito longe de serem
idênticas em ambos os casos; e devemos agradecer à Providência o facto de
estarem a declinar as restrições do género medieval, ao passo que, em inversa
proporção, vão em maré cheia os movimentos restritivos oriundos de impulsos
mais naturais.

E ainda há algo mais por que se deve dar graças. Encontramo-nos, no presente
momento, num período de equilíbrio e, por uma vez na sua História, o género
humano parece encarar a possibilidade de puxar a corda de comunicações do
seu comboio e sair a espairecer um pouco sobre a plataforma duma estação
qualquer. É muito prematuro ainda, no entanto, predizer-se quais os possíveis
resultados de uma tal experiência, se é que alguma vez ela se •verificará.
Mas, mesmo assim, já se tem feito muitos progressos. Os seres humanos estão
a desenvolver a sua autocrítica, bem como a compreensão de que lhes é
necessário um sistema estabelecido para ela e de um outro, pari-passu, para o
seu autodomínio, tão meticulosamente organizado e mantido, quanto os seus
serviços de estradas e ferrovias.

O nosso problema está, portanto, em estabelecer o equilíbrio entre inocência e


conhecimento. Afirmar que nos aproximámos já de um modo de encarar a vida
tão saudável quanto o dos antigos Gregos, ou mesmo que estávamos
conscientemente a tentar fazê-lo, seria avançar muito. Mas fugir espavoridos
das amplitudes desenroladas às nossas vistas, mediante, por exemplo, a
descoberta da fissão nuclear (caso em que o sugerido pavor é muito adequado),
poderia ser interpretado como sendo um movimento, porventura inconsciente,
na direcção das ingenuidades dos helenos, uma tentativa de reaver a nossa
inocência perdida.

Da culpa sexual já nos desprendemos quase todos, mas de tal facto não nos
adveio, nem por isso, uma explosão de devassidão universal, como aquela que se
observou na era da Renascença. O que vemos é, pelo contrário, uma espécie de
prazenteira autocontenção, voluntariamente adoptada, nas nossas decisões de
comportamento quotidiano. Em semelhantes circunstâncias, seria de esperar
que nos deparássemos com exemplos dos periódicos extravasamentos de
impulso sexual que apreciamos na Grécia de outrora.

As chamadas pétíing-parties” são essencialmente exclusivas do século XX.


Kinsey, Pomeroy e Martin, num livro escrito em parceria intitulado Sexual
Behaviour in the Human Male, tratando dessa modalidade de acção sexual,
dizem:

”Durante uns poucos decénios recém-transactos, os contactos físicos pré-


maritais entre pares amorosos têm-se expandido consideravelmente no que
toca à variedade de liberdades entre homem e mulher em tais casos, sem que,
todavia, se verificasse uma exacta frequência do extremo de chegarem os
compartes ao coito efectivo. Esses contactos poderão ir muito mais longe do
que os simples abraços e beijos que eram permitidos às gerações precedentes.
Agora, nos seus avanços máximos, eles poderão chegar a todas as técnicas dos
jogos amorosos pré-coitais em que se empenham casais ’avançados’.”
A característica importante que este tipo de procedimento contém é
proporcionar às pessoas uma válvula de escape emocional, bem como físico,
simultaneamente (já que chegam ao orgasmo pela masturbação). Não há, aí,
nada daquela ”retenção” que era de uso praticar-se no período vitoriano. Deve
recordar-se que os que se entregam ao jogo de carícias de que aqui tratamos
são solteiros, homem e mulher.

Conquanto se verifique, então, uma purga emocional e a presença de outros


indivíduos humanos produza a impressão de partilha do prazer, numa emoção
comum, com um correspondente sentido de ausência de responsabilidade
pessoal (que no mundo antigo era introduzido pela suposição da existência de
uma divindade), acha-se ausente, aí, a catarse.

Não pode dizer-se o mesmo de uma outra acção corrente do século XX, na qual,
no entanto, o escape emocional, embora violento, é menos conscientemente
sexual.

Em todos os cultos antigos que continham sexualidade, a característica maior


da divindade, aos olhos do seu idólatra, é a sua impessoalidade. Não significa
isto, claro está, que a divindade não possua uma individualidade

Troca de carícias amorosas. (N. do T.)

extremamente poderosa; acontece, porém, que se trata de um ente remoto,


tão visível, mas também tão intangível, quanto as estrelas. Por muito que o deus
possa afectar rudemente as vidas humanas, ainda assim permanecerá distante
e intocável. Eis, portanto, que, em certo momento da História da Religião de
Roma, era de uso que a jovem desposada, antes de subir ao leito marital, se
agachava sobre o falo de madeira de Mutuno Tutuno, o deus que representava,
abstractamente, toda a sexualidade do macho.

Uma parte da finalidade desse acto, fosse ele consciente ou inconsciente, era
fazer com que a noiva, se ainda virgem, não criasse qualquer ressentimento
pessoal contra o marido, por este lhe infligir dor ao desflorá-la. De algum
modo, pois, a impessoalidade do deus facilitava-lhe a transição, mais gradual,
menos abrupta, da sua prévia castidade à próxima condição de casamento
consumado.
No começo do século XX, ou pouco mais dele transcorrido, os jovens dum e
doutro sexo idolatravam artistas de cinema. Hoje em dia, anda aí uma forma
nova de tal idolatria, surgida recentemente, qual seja uma enfiada de
variedades modernas de formas musicais - congas, sambas, rock-and-roll, etc.,
que, especialmente o último, compreendem um certo ritmo e movimentos
capazes de, individualmente, porém mais ainda em combinação de indivíduos,
produzirem uma impressão sugestiva em extremo. As ”divindades” deste novo
culto parece que são exclusivamente os machos, dos quais emanará para os
elementos do sexo contrário o extravasamento emocional. As sobras de
energias dos machos parece que se descarregam por diversas maneiras,
algumas destas através de actos passíveis de sanção judicial.

Em todas as épocas em que não impera um género qualquer de ”policiamento”


que regule a moralidade pública, ou antes, a imoralidade, resulta
frequentemente tomarem-se ocasião para o deboche colectivo as feiras, os
arraiais, as festividades públicas, em suma; subjacente a essas manifestações
encontra-se uma das noções essenciais da orgia - a de que o que se fizer então,
”não tem importância”, nada se leva em conta. As celebrações da Terça-Feira
Gorda nos Estados Unidos, em particular, têm fama de conduzirem a
comportamentos francamente indecentes - ou melhor, a um comportamento
que, sob outras circunstâncias, normais, se consideraria indecente. Outros
países têm equivalentes dessa orgia, tais como a Alemanha, com o seu
”Fasching”, para citarmos só um exemplo; mas, de um modo geral, nenhum deles
difere, em nenhum aspecto fundamental, das festas equiparáveis dos Antigos
(a não ser a ausência duma divindade). Ocorre, às vezes, sem dúvida, medrar na
mente dos normalmente religiosos a concepção oportuna de uma
”antidivindade”. Isto é, o pensamento de estarem eles em estado de rebeldia
temporária contra a pessoa ou o conceito de Deus. (Exactamente como no caso
dos padres e a sua Festa dos Loucos.)

Na época actual, há muita gente que não experimenta essa necessidade de


orgias. E ainda são mais numerosos os que até acham que não precisam dela em
absoluto; mas o povo vai aprendendo a tomar conta de si mesmo, cada um com a
sua consciência individual. As descobertas dos psicólogos trouxeram muitas
modificações ao nosso modo de ver as coisas e, muito em particular, de encarar
o sexo. Já não nos podemos esquivar à responsabilidade pelos nossos actos,
agora que conhecemos a verdade a seu respeito. E o conhecimento, uma vez
adquirido, não pode ser suprimido.
Mesmo assim, o princípio ”orgia” não deixa de ter as suas vantagens. Algumas,
já as defini no prefácio deste livro. toma-se essencial, para todos nós, uma
mudança de panorama. Não há glutão que tolere a ideia de comer o seu pitéu
favorito, de seguida, ao almoço, ao lanche, ao jantar e à ceia. Mas, também, não
haverá quem, no seu perfeito juízo, pense em dedicar a sua vida inteiramente
ao gozo sexual, como tão-pouco renunciar a ele, de todo. Muito embora já não
se tema a ira divina, teme-se, todavia, o desdém e desprezo do círculo de
amigos, os beliscões da própria consciência, mas também é justo e adequado
que haja escapadelas ocasionais à usual continência, especialmente se essa
escapadela se puder situar, de alguma forma, fora dos imperativos da moral
convencional. Alguns, percebendo a verdade desses preceitos, continuarão a
achar imperioso criar, caso não a tenham já por artigo de fé, alguma influência
externa pairando sobre as suas acções. Para esses, que renegam a sua própria
responsabilidade e rejeitam a dúbia sabedoria da era científica, continuará a
ser a orgia uma possibilidade e uma necessidade.

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ÍNDICE
PREFÁCIO

Capítulo Primeiro
OS GREGOS

Capítulo Segundo
OS ROMANOS

Capítulo Terceiro
IDADE MÉDIA E RENASCENÇA

Capítulo Quarto
PURITANOS E LIBERTINOS
Capítulo Quinto
OS MEDMENHAMITAS E OS LIBERTINOS
GEORGIANOS

Capítulo Sexto
O SÉCULO XVIII NA EUROPA CONTINENTAL

Capítulo Sétimo
OS VITORIANOS

Capítulo Oitavo
O SÉCULO XX

BIBLIOGRAFIA SELECCIONADA.

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