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geógrafos, colocando-se como o grande desafio a ser superado, por dois motivos:
primeiro porque a análise do mundo moderno – urbano – aponta para o papel do
espaço como lugar e momento crucial da reprodução da sociedade capitalista. Isso
porque o desenvolvimento das forças produtivas e a realização do capitalismo en-
contra seus limites, uma vez que as contradições se produzem no próprio processo
de crescimento, exigindo novas estratégias de realização da acumulação. Neste mo-
mento, a produção do espaço urbano responde a elas. Isto é, diante das contradições
internas do capitalismo em relação à tendência à baixa da taxa de lucro, a busca da
realização da mais-valia desloca-se fundamentalmente para a produção do espaço,
num contexto que passa a ser marcado pela hegemonia do capital financeiro. Desse
modo, a urbanização aparece como momento determinado da reprodução do capital
em função da abertura de novas possibilidades de valorização do capital.
Em segundo lugar, diante do fato de que as análises sobre nossa “condição pós-
moderna” centram-se, hoje sobretudo, nas transformações do tempo e da cultura,
construindo no limite uma compreensão a-espacial da realidade. Isso vai na contramão
do fato – por exemplo – de que a ocupação dos espaços públicos, mundo afora, como
lugar da contestação e do exercício de cidadania negada, tem insistentemente apon-
tado para uma luta pelo espaço, tanto da realização da vida cotidiana, como aquele
que concretiza a esfera pública em suas possibilidades. Neste raciocínio, os planos
do político e da cultura, apesar de nada desprezíveis à compreensão dessa totalidade,
são insuficientes, exigindo a dimensão espaço-temporal.
Nossa tese – fundadora de uma metageografia – é que a produção do espaço,
como construção social é condição imanente da produção humana ao mesmo tempo
que é seu produto. Neste raciocínio, a produção do espaço seria uma das obras do
processo civilizatório. O espaço, em sua dimensão real, coloca-se como elemento
visível, em sua materialidade, mas também como representação de relações sociais
reais que a sociedade em cada momento da história. Na contramão do que apregoam
os geógrafos poderíamos construir a hipótese segundo a qual não existiria um “espaço
geográfico”, mas uma dimensão espacial da realidade, acarretando a necessidade de
um modo de entender o mundo através da compreensão do espaço como produção
social (e histórica).
Este livro pretende contribuir para o desvendamento da produção do espaço e
do papel da Geografia – no diálogo necessário com outras disciplinas – na compreen-
são do mundo moderno diante dos problemas de uma época, na qual o espaço vem
assumindo um protagonismo inédito, na medida em que a reprodução da sociedade
capitalista se realiza, hoje, através da produção do espaço urbano, como os capítulos
que se seguem vão demonstrar. Eles centram a investigação na dimensão social da
realidade, iluminando momentos da prática social como práxis espaço-temporal. São
produto de um trabalho de pesquisa e de reflexão exercidos num ambiente de debate
ainda possível na universidade.
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o espaço, portanto, se, de um lado, o espaço é um conceito abstrato, de outro tem uma
dimensão real e concreta enquanto lugar de realização da vida humana que ocorre dife-
rencialmente, no tempo e no lugar, ganhando materialidade através do território.
Todavia, o processo de produção do espaço, na qualidade de processo civiliza-
tório, traz em si aquilo que o nega, isto é, com o desenvolvimento do capitalismo, o
espaço (produção social) torna-se uma mercadoria, como todos os produtos do tra-
balho humano. Nessa condição, revela-se, no plano da vida pela contradição valor de
uso/valor de troca. A extensão do capitalismo tomou o espaço, fez dele sua condição
de produção, primeiro como recurso, depois como força produtiva, e finalmente como
mercadoria reprodutível, através do setor imobiliário. Seu movimento em direção à
sua reprodução aponta o urbano. Aqui os planos da realidade – econômico, político,
social – se imbricam, e as escalas – do local ao mundial – se justapõem esclarecendo
sujeitos produtores do espaço e seus processos constitutivos.
A construção dessa tríade repousa na noção de produção tal qual proposta por
Marx e evidencia a perspectiva de compreensão de uma totalidade que não se restringe
ao plano do econômico, mas abre-se para o entendimento da sociedade em seu movi-
mento mais amplo, o que pressupõe uma perspectiva que muda os termos da análise
espacial clássica. Além de objetos, o sentido da noção de produção revela um processo
real amplo e profundo enquanto um conjunto de relações, modelos de comportamento,
sistema de valores, formalizando e fixando as relações entre os membros da sociedade,
e, nesse processo, produzindo um espaço em sua dimensão prática. A produção, como
noção ampla, envolve a produção e suas relações mais abrangentes, e significa, neste
contexto, o que se passa na esfera produtiva e que envolve relações sociais de trabalho,
tecnologia, e, fora da esfera específica da produção de mercadorias e do mundo do
trabalho, estende-se ao plano do habitar, à vida privada, ao lazer, construindo repre-
sentações e guardando o sentido do dinamismo das necessidades e desejos que marcam
a reprodução da sociedade. Nesse sentido, a noção de produção abre a perspectiva
analítica do desvendamento de uma realidade em constituição, que se reproduz. Tal
noção reitera constantemente como seu fundamento uma contradição já apontada: a
produção do espaço revela uma contradição importante entre o processo de produção
social do espaço e sua apropriação privada. Seu fundamento repousa na existência e
desdobramento incessante das formas de apropriação privada da riqueza social.
Na sociedade fundada sobre as relações de troca capitalistas (permeadas pela
mediação do mercado), a produção do espaço-mercadoria realiza-se como extensão da
propriedade privada do solo urbano e da terra e revela um novo momento da produção
social do espaço no qual as condições de acesso aos lugares de realização da vida são
invadidas e mediadas pelo valor de troca que desvaloriza as práticas submetendo-as as
necessidades do mercado. Envolta no universo da troca mercantil, a propriedade está
dissimulada nas relações entre os sujeitos e atividades. A existência da propriedade
privada da riqueza ganha forma impondo-se e dominando a vida e as relações sociais.
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Da pesquisa individual
ao trabalho coletivo
Como nos lembra Paul Klee,6 “o que a gente não entende agora, talvez consiga
entender um dia”. Tendo por gênese uma preocupação e um trabalho de pesquisa
individual, ao longo de décadas de orientação, foi se gestando como um trabalho
coletivo junto ao programa de pós-graduação da FFLCH-USP, formulada como a linha
de pesquisa “a reprodução do espaço urbano”, como já apontado.7
O caminho teórico metodológico “marxista-lefebvriano” foi acentuando a
centralidade da categoria “produção do espaço”, que foi fundamentando a análise e
compreensão da realidade urbana metropolitana (paulistana). Tal orientação enfoca o
papel da produção do espaço no processo de acumulação e reprodução da sociedade
capitalista. Envolve, também, uma postura frente ao trabalho acadêmico (num mo-
mento de crise do pensamento teórico e deterioração da ética acadêmica), fundado
no compromisso de construção de um pensamento crítico.
Nesse percurso, constituiu-se o que chamamos, nos últimos anos, de metageogra-
fia, que se revela como um momento de exigência do pensamento crítico a partir da
crítica à produção do conhecimento da geografia. Desenvolve-se uma crítica radical
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O que está posto pelo método é que não existe como ponto de partida um con-
junto de pressupostos, logo também não existem modelos de análise fundados numa
verdade absoluta. O mundo move-se e é necessário uma teoria que o explicite em seu
movimento, descortinando as possibilidades futuras. Portanto, vislumbra-se a possibi-
lidade do pensamento utópico como realização da essência perdida do homem – sua
liberdade criadora, sua emancipação diante das condições que o escravizam sob novas
formas. Como adverte Sève,9 vivemos o momento no qual o capital autoproclamado
gestionário do planeta, dá livre curso à sua tendência constitutiva: a subordinação
sem freio dos sujeitos humanos à sua majestade, a taxa de lucro.
Notas
1
Apud Fischbach, 2008: 366.
2
A partir das leituras de suas obras, realizadas no grupo coordenado pelo professor José de Souza Martins entre 1975-1993.
3
Marx, 1980.
4
Idem: 100.
5
Carlos, 1996.
6
Klee, 1990: 21.
7
Desde 1989, oriento pesquisas de mestrado e doutorado junto ao Programa de Pós-Graduação em Geografia Humana.
Os estudantes, sob minha orientação, exercem a liberdade de escolher seus temas e orientação teórico–metodológica, o
que significa que não existe um conjunto homogêneo. Mesmo assim, um grupo se formou naturalmente em função das
aproximações teórico-metodológicas e das preocupações frente às mudanças da realidade e às transformações da universidade.
O gesp ganhou estrutura em 2001, reunindo investigadores de vários momentos da pós-graduação. Glória da Anunciação
Alves, Simone Scifoni e Isabel Aparecida Pinto Alvarez fazem parte de meu primeiro grupo de orientandos de 1989 (hoje
professoras do Departamento de Geografia da USP). Sávio Augusto de Freitas Miele, Rafael Faleiros de Padua, Danilo
Volochko, Fabiana Valdoski Ribeiro e Camila Salles de Faria formam o núcleo duro do gesp. Jose Raimundo Ribeiro Jr.,
Cesar Ricardo Simoni Santos, Renata Alves Sampaio a ele se agregaram pouquíssimo tempo depois do gesp formado.
Hoje destaca-se a colaboração de Daniel de Mello Sanfelici.
Em seu desdobramento, o gesp conta com a presença das professoras Silvana Maria Pintaudi (Unesp – Rio Claro,
com seus orientandos e ex-orientandos ) e Rita Ariza da Cruz. Novos estudantes – sob minha orientação acadê-
mica – dão sangue novo ao grupo: Elisa Favaro Verdi, Denys Silva Nogueira, Gilmar Soares e Renan Coradine
Meireles. Sob orientação de Glória Alves, Livia Maschio Fioravanti.
8
Bensaid, 2004: 12.
9
Sève, 2008: 560.
Bibliografia
AURIACK, F.; Brunet, R. Espaces, jeux et enjeux. Paris: Fayard; Fondation Diderot, 1986.
BENSAID, D. Cambiar el mundo. Madrid: Viento Sur, 2004.
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_____. Espaço e tempo na metrópole. São Paulo: Contexto, 2001.
_____. O espaço urbano: novos escritos sobre a cidade. São Paulo: Labur, 2007. Disponível em: <www.fflch.usp.br/
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LIMONAD, E.; GUSMÃO, P. P. de (orgs.). Desafios ao planejamento: produção da metrópole e questões ambientais.
Rio de Janeiro: Letra Capital / Anpur, 2012.
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