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MESTRADO INTEGRADO EM MEDICINA

FAMÍLIA, SOCIEDADE E SAÚDE II


ÉTICA NA RELAÇÃO MÉDICO-DOENTE

Pedro Miguel Vasquez Vieira | nº a57223

Universidade do Minho, 15 de Março de 2019


Universidade do Minho
Escola de Medicina
Família, Sociedade e Saúde II Pedro M.V. Vieira

ÍNDICE

1. Introdução ............................................................................................................................. 3
2. Ética e moral.......................................................................................................................... 3
3. Princípios de ética médica..................................................................................................... 4
4. Ética médica: que futuro? ..................................................................................................... 7
5. Conclusões............................................................................................................................. 8
Referências bibliográficas ............................................................................................................. 9

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Universidade do Minho
Escola de Medicina
Família, Sociedade e Saúde II Pedro M.V. Vieira

1. Introdução

O presente documento constitui um Relatório contendo uma reflexão pessoal


sobre ética na prática médica e suas implicações na relação médico-doente, no
âmbito da unidade curricular Família, Sociedade e Saúde II, da Área Científica
de Saúde Comunitária, do Mestrado Integrado em Medicina da Universidade do
Minho.
Abordam-se, de forma sucinta, aspectos conceptuais, princípios e práticas
relacionadas com a ética médica, pondo-se em evidência a sua evolução
histórica e os desafios que se colocam no futuro da actividade profissional do
médico na sua relação com o doente, tendo em consideração os múltiplos
factores que a influenciam.

2. Ética e moral

A palavra ética tem como étimo grego ethos que significa acção humana,
carácter, conduta. Pode considerar-se que a ética é, pois, a arte de
construirmos a nossa própria vida, mas como não vivemos isolados (somos
“animais sociais” como nos classificou Aristóteles), é com as nossas acções
éticas que construímos a sociedade e com a nossa falta de ética que a
destruímos.
Por definição, a ética busca o bem. E o bem atinge-se quando se conhece e
respeita o valor fundamental da verdade. O que faz bom o diagnóstico de um
médico? O que faz boa a sentença de um juiz? A resposta é só uma: a
verdade. Por conseguinte, fazer as coisas bem é fazê-las conforme a verdade.
Mas como o conhecimento da verdade não é fácil nem imediato, temos de nos
perguntar o que faz as acções realmente boas? A realidade é uma extensa teia
de relações e acontecimentos, objectos e pessoas, que se relacionam no
espaço e no tempo. Os Gregos antigos diziam que o bem era o prazer, ou seja,
a ausência de dor física ou de perturbação anímica. Mas também eles
reconheciam que as coisas não eram assim tão simples. Muitas condutas
profundamente boas não estão livres de dores e desassossegos. O bem pode
definir-se como o que convém a uma coisa, o que a torna perfeita ou completa,
independentemente do prazer ou da dor que pode provocar.
Se a ética aspira a ser critério para distinguir entre o bem e o mal, então deve
ser objetiva. A ética pode ser relativa no acidental, mas não no essencial. Da
natureza de um recém-nascido derivamos a obrigação que têm os seus pais de
o alimentar e vestir. Eles são livres de escolher entre diferentes alimentos e
roupas, mas a obrigação é intocável. Chegamos então à lei natural como
critério ético. Que não é uma invenção da cultura humana. É uma descoberta
que cada homem realiza dentro de si, de que há comportamentos naturalmente
bons.

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Qualquer pessoa concordará que respeitar os outros, dizer a verdade e cumprir


as promessas que se fazem são comportamentos desejáveis e bons, enquanto
o ódio, a traição e a falsidade são condutas más e indesejáveis. É com base
nesta evidência que a razão emite os seus juízos sobre os diferentes atos
humanos, dizendo às nossas consciências que se deve fazer isto e não aquilo.
Estes juízos são anteriores à ação e não se confundem com as nossas
preferências. Pode argumentar-se que esta inclinação moral da natureza
humana não é mais do que o instinto gregário orientado para a sobrevivência,
mas a esta objeção também se pode responder que, se o desejo de ajudar o
próximo é um exemplo do instinto gregário, esse desejo é diferente da
convicção de que é nosso dever ajudar, porque esta convicção existirá, mesmo
quando não desejarmos ajudar.
A moral (com origem no termo latino mos moris), definida por alguns autores
como "conjunto de regras de conduta consideradas como válidas, éticas, quer
de modo absoluto para qualquer tempo ou lugar, quer para grupos ou pessoa
determinada" diferencia intenções, decisões e ações entre aquelas que são
distinguidas como próprias e as que são impróprias.1
Muitas vezes os termos “ética” e “moral” são usados indistintamente, pois é
difícil atribuir-lhes significados diferenciados, uma vez que os dois conceitos se
referem ao mesmo conteúdo genérico: as regras de conduta dos homens numa
sociedade.2 Deve referir-se, no entanto, que a palavra latina “moral” teve
origem na apropriação do significado da palavra grega ethos e não traduz por
completo o seu significado original. Com efeito, enquanto a “moral” nos remete
para as questões dos hábitos, costumes, usos e regras (o que se materializa
na assimilação social dos valores), ethos possuía para os gregos outro sentido
complementar: a interioridade do ato humano, ou seja, aquilo que gera uma
ação genuinamente, remetendo-nos para o âmago do agir, para a intenção.
Em termos práticos, para uma distinção terminológica e filosófica, podemos
relacionar a ética com a dimensão interior que impulsiona os comportamentos
exteriorizados pelos homens e a moral com a manifestação concreta desses
comportamentos numa série de atos humanos que, no seu todo, constituem um
padrão habitual numa determinada sociedade.
Entre as disciplinas clássicas, a ética fornece-nos um método para identificar,
confrontar e resolver as questões morais e profissionais que surgem na clínica
médica. Quer o problema surja na unidade de terapia intensiva neonatal, quer
no final da vida como no atendimento de doentes com cancro terminal ou
doença de Alzheimer, ou em qualquer outra situação intermédia, as atitudes
baseadas nos princípios da ética assumem interesse e valor essenciais para
todos os que prestam cuidados de saúde.

3. Princípios de ética médica

Ao longo dos séculos, a moral na prestação de cuidados de saúde, limitou-se a


algumas regras simples, ainda que inconscientemente, respeitadas: a
generosidade, a compaixão, a dedicação e a abnegação. As infracções não
eram invulgares, mas as regras morais eram transmitidas de geração em

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geração. A revolução científica do século XX fez desvanecer a moral como


único conceito a seguir, fazendo renascer um outro mais abrangente: a ética
que exige uma reflexão crítica sobre os comportamentos e um maior e melhor
respeito pela individualidade humana.3
Atualmente, as escolhas éticas, menores ou maiores, confrontam-nos todos os
dias na prestação de cuidados de saúde para pessoas com valores diversos
que vivem numa sociedade pluralista e multicultural. Diante de tal diversidade,
onde podemos encontrar orientações de ação moral quando há confusão ou
conflito sobre o que deve ou não ser feito, tratando-se, frequentemente, de
pessoas com culturas ou religiões diferentes? As múltiplas variáveis que se
colocam no contexto dos mais variados casos clínicos, podem beneficiar de
princípios éticos aplicáveis em muitas situações que, embora não sejam
considerados como absolutos, servem como poderosos guias de ação na
clínica médica.
Alguns dos princípios da ética médica estão em uso há séculos. Por exemplo,
no século IV aC, Hipócrates, médico-filósofo, orientou os médicos a “ajudar e
não fazer mal”.4 Da mesma forma, considerações de respeito pelas pessoas e
pela justiça estiveram presentes no desenvolvimento das sociedades desde os
primeiros tempos. Entretanto, especificamente em relação às decisões éticas
na Medicina, Beauchamp e Childress publicaram, em 1979, a primeira edição
dos “Princípios da Ética Biomédica”, popularizando um conjunto de princípios
idealizados para resolver questões éticas na prática clínica.5 Estes princípios,
consagrando o respeito pela autonomia, beneficência, não maleficência e
justiça, constituem um referencial geralmente aceite como orientador da
decisão em questões éticas tanto na prática clínica como na investigação
científica.

3.1 O princípio da autonomia


O processo de decisão com base em princípios morais pressupõe a
participação de agentes racionais na tomada de decisões informadas e
voluntárias. O respeito pela autonomia dos agentes de decisão (médico e
doente) traduz-se na consideração de que não há relação desigual no acto
médico, mas respeito mútuo pelas diferenças: a pessoa doente, apesar de
fragilizada, não perdeu a sua liberdade e por isso a sua dignidade humana; o
médico deve ser um profissional livre, sujeito apenas aos critérios da clínica
médica, sem se sujeitar a quaisquer outros, nomeadamente financeiros,
economicistas ou políticos.
Este princípio constitui a base para a prática do "consentimento informado" na
relação médico-doente, cujo âmbito tem implicações muito mais amplas do que
o simples procedimento de consentimento de rotina antes de uma cirurgia. Na
realidade, o médico deve informar e o doente tem o direito de ser informado
sobre a especificidade do ato médico, em termos da sua natureza e dos
resultados esperados.

3.2 O princípio da Beneficência


O significado comum deste princípio é o de que os prestadores de cuidados de
saúde devem constituir um benefício para o doente, isto é, têm o dever de

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promover positivamente o bem do doente, tomando as medidas que se


imponham para prevenir ou eliminar os males de que ele padece. Estes
deveres são vistos como racionais e evidentes e são amplamente aceites como
os objetivos fundamentais da medicina.
Este princípio está no cerne dos cuidados de saúde, implicando que um doente
pode aceder a alguém que a sociedade licenciou como competente para
prestar cuidados médicos, confiando que o principal objetivo do médico é
ajudar.

3.3 O princípio da Não-Beneficência


O princípio da não-maleficência assume que os prestadores de cuidados de
saúde não criem intencionalmente dano ou prejuízo ao doente, seja através de
atos ou omissões. Em todas as suas acções, o médico deve procurar o bem-
estar do seu doente, respeitando o princípio Hipocrático primum non nocere
(não fazer mal a outrem, não prejudicar o doente).
Este princípio afirma a necessidade do exercício de competência médica,
evitando a prática de atos de negligência que comportem riscos de danos para
o doente.

3.4 O princípio da Justiça


A justiça nos cuidados de saúde é geralmente definida como uma forma de
justiça ou, segundo Aristóteles, "dando a cada um aquilo que lhe é devido". Isto
implica que a distribuição justa de bens exige um olhar especial para com os
elementos mais desfavorecidos da sociedade. A questão da justiça distributiva
nos cuidados de saúde deve considerar o facto de alguns bens e serviços
serem escassos, determinando o estabelecimento de mecanismos justos para
a sua alocação aos vários estratos da sociedade, sem qualquer discriminação
baseada na raça, no sexo, na idade, na religião, na nacionalidade ou no
estatuto social.
Muitas das desigualdades que experimentamos são resultado de uma "lotaria
natural" ou de uma "lotaria social" pela qual o indivíduo afetado não é culpado
e, por isso, a sociedade deve ajudá-lo, fornecendo recursos para superar a
situação desfavorecida.6
A Constituição da República Portuguesa, no seu Artigo 64.º, tenta responder a
uma das questões mais controversas nos cuidados de saúde modernos: "quem
tem direito aos cuidados de saúde?". Nos seu pontos 1 e 2 estabelece-se que:
“Todos têm direito à proteção da saúde e o dever de a defender e promover” e
“O direito à proteção da saúde é realizado através de um serviço nacional de
saúde universal e geral e, tendo em conta as condições económicas e sociais
dos cidadãos, tendencialmente gratuito”.

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4. Ética médica: que futuro?

Historicamente, a prática profissional do médico tem sido encarada numa


perspectiva hipocrática beneficente, estabelecendo uma deontologia médica
com base no paradigma paternalista e autoritário do ato médico. Nos tempos
modernos, particularmente a partir da década de 1960, este paradigma tem
merecido análise e reflexão, questionando-se esta moral deduzida da
deontologia para uma outra moral baseada na ética, adaptada às novas formas
de praticar a medicina.
Daniel Serrão7 justifica esta crise de paradigma pela crescente componente
científica da medicina resultante da investigação científica e tecnológica que
proporcionam às intervenções médicas uma fundamentação rigorosa e uma
notável eficácia. Desta forma, o médico aparece aos olhos dos doentes não já
como um ser humano compassivo e bom mas como um técnico que realiza
actos profissionais cientificamente apoiados.
Esta mudança de paradigma levanta uma série de questões éticas que se
colocam hoje e no futuro à prática clínica, de entre as quais se podem destacar
as que decorrem de: erros médicos; fim de vida; confidencialidade; alocação de
recursos e inteligência artificial.

4.1 Erros médicos


Não há estatísticas exatas sobre o número de mortes por erros médicos, mas
estimam-se em centenas de milhares em todo o mundo. É crescente,
principalmente no mundo ocidental, o número de processos jurídicos a exigir
indeminizações por atos de negligência médica. Por isso, a redução de custos
humanos e financeiros causados por erros médicos passou a ser uma
prioridade ética. Embora seja generalizadamente aceite que os médicos têm a
obrigação ética de transparência sobre os seus erros médicos, como podem
ser encorajados a fazê-lo quando se sabe que as consequências pessoais e
profissionais da honestidade podem ser devastadoras?

4.2 Fim de vida


A capacidade em cuidados de saúde, muito suportada no formidável
desenvolvimento de meios tecnológicos, permite-nos possibilidades cada vez
maiores em manter as pessoas desesperadamente doentes. Devemos ajudar
pessoas que querem acabar com as suas vidas? Em caso afirmativo, devem
ser apenas doentes terminais ou incluir aqueles que sofrem de doenças
psiquiátricas ou outras que determinam precárias condições e qualidade de
vida?

4.3 Confidencialidade
Os médicos têm a obrigação de manter sigilo relativamente às condições de
saúde dos seus doentes? Mas quando é que isso pode ser violado? É lícito ao
médico informar os parentes de um seu doente portador de doença genética
grave com risco de transmissão, mesmo com a recusa do doente? Se uma
pessoa diz ao seu médico que foi vítima de abuso sexual, mas se recusa a
informar a polícia, o médico deve fazê-lo?

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4.4 Alocação de recursos


A manutenção de elevados padrões de qualidade de vida das populações
implica grandes necessidades em investimento público na área da saúde. O
Estado deve apostar em garantir um serviço público de acesso universal?
Dentro do orçamento da saúde, qual deve ser a distribuição por cada
componente orçamental: investimento em novos hospitais, alargamento de
redes de cuidados continuados, reforço dos cuidados de saúde primários?

4.5 Inteligência artificial


A utilização da Inteligência Artificial (IA) está cada vez mais banalizada nos
vários domínios da medicina, como são os casos de software interpretando os
exames de radiologistas, fazendo planos de tratamento e auxiliando cirurgiões
no bloco operatório. Com o papel e importância da IA a crescer continuamente,
surgem novas questões éticas e legais que ainda não estão suficientemente
abordadas.
Se a IA provar mau funcionamento com consequências desastrosas, quem
será o culpado? O designer, o fabricante, o pessoal de manutenção, o hospital,
o médico? Como é que os médicos podem obter o consentimento informado
dos doentes se ninguém entender o funcionamento do algoritmo de auto-
aprendizagem da IA?

5. Conclusões

A ética na relação médico-doente é importante simplesmente porque é uma


dimensão essencial do trabalho dos médicos que, muitas vezes sem o saber,
confiam nos seus princípios para formular juízos e tomar decisões em nome
dos seus doentes.
A abordagem dos “quatro princípios” de Beauchamp e Childress fornece uma
perspetiva simples, acessível e culturalmente neutra para serem equacionadas
questões éticas na área da saúde. Baseada em quatro compromissos morais,
esta abordagem oferece uma estrutura analítica e linguagem básica que pode
ajudar os médicos e outros profissionais de saúde a tomar decisões, refletindo
sobre questões morais e encontrando soluções práticas para os problemas que
surgem no seu trabalho quotidiano.
Na complexa prática clínica moderna, a autonomia é essencial na relação do
médico, que radica as suas decisões na ética e seus fundamentos filosóficos,
com o doente, cada vez mais informado e disponível para a formalização do
seu consentimento.

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Referências bibliográficas

1. Aurélio Buarque de Holanda Ferreira “Novo Dicionário Aurélio da Língua


Portuguesa”. Editora Positivo. 2009.
2. José Ferrater Mora “Dicionário de Filosofia”. Editora Dom Quixote, 1991.
3. José Augusto Rodrigues Simões “A ética em Medicina Geral e Familiar”. Rev Port
Clin Geral 2008;24:45-7.
4. Hippocrates “The history of epidemics”. Samuel Farr (trans.) London: T. Cadell,
1780.
5. Tom Beauchamp, James Childress “Principles of Biomedical Ethics”. 7th Edition.
New York: Oxford University Press, 2013.
6. K Rawls J. “A Theory of Justice”. Cambridge, MA: Harvard University Press, 1999.
7. Daniel Serrão “O adeus a Hipócrates – ou talvez não!”.
http://www.danielserrao.com/gca/index.php?id=84 (acesso em 11.03.2019).

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