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Dados Internacionais de Catalogacio na Publicagio (CIP) (Cémara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Histérias e memérias da educaglo no Brasil, vol. 1 séculos XVI-XVIII / Maria Stephanou, Maria Helena Camara Bastos, (organizadoras). — Petropolis, RJ : Vozes, 2004. ISBN 85,326.3079-0 1, Educagao — Brasil — Historia I. Stephanou, Maria. TL. Bastos, Maria Helena Camara. 04-6218 CDD-370.981 indices para catilogo sistematico: 1. Brasil : Educago : Historia 370.981 2, Educagdo : Brasil : Historia 370.981 EDUCAGAO E COLONIZAGAQ:AS IDEIAS PEDAGOGICAS NO BRASIL Dermeval Saviani Brasil entra pata a histéria da chamada “civilizagao ocidental ¢ cris- 1a” em 1500, com a chegada dos portugueses. As tentativas de colonizacdo do novo territério nas primeiras décadas do século XVI sofreram diversos reveses. Convenceu-se, entlo, o rei de Portugal, D. Jodo IIL, da necessidade de ‘envolver a monarquia na ocupago da nova terra. Instituiu, pois, um gover- no geral no Brasil nomeando para essa fungo Tomé de Sousa. primeiro governador-geral do Brasil chegou em 1549 trazendo con- sigo os primeiros jesuitas, cujo grupo era constituido por quatto padres € dois irmaos chefiados por Manuel da Nobrega. Eles vieram com a missio conferida pelo rei de converter os gentios: “Porque a principal coisa que ‘me moveu'amandar povoar as ditas terras do Brasil foi para que a gente de- las se convertesse a nossa santa fé catdlica”fle modo que os gentios “pos- sam ser doutrinados ¢ ensinados nas coisas de nossa santa fé” (D. Jodo III, 1549, p. 145 e 148). Para atender a esse mandato os jesuitas criaram escolas ¢ instituiram colégios ¢ semindrios que foram se espalhando pelas diversas regides do territério. Por essa razio considera-se que a Historia da Educagao Brasilei- ase inicia em 1549 com a chegada desse primeiro grupo de jesuitas. A insergio do Brasil no chamado mundo ocidental se deu, assim, atra- vés de um processo envolvendo trés aspectos intimamente articulados en- tre si: a colonizagio, a educagio e a catequese Convém, preliminarmente, caracterizar, ainda que a largos tragos, esse processo. E 0 faremos em dois planos. No primeiro plano nos colocaremos 122 Historias e memérias da educagio no Brasil~ Vol. 1 ‘no dmbito da linguagem, No segundo, procuraremos entender a sua mani- festaciio especifica nas condigdes de espago e tempo que tomamos como ‘objeto de anilise. ss A UNIDADE DO PROCESSO NO PLANO DA LINGUAGEM: A RAIZ ETIMOLOGICA COMUM A COLONIZACAO, EDUCACAO E CATEQUESE, SENTIDO DE COLONIZAGAO A palavra colonizagio deriva diretamente do verbo latino “colo”, Os diciondrios registram os seguintes significados para 0 verbo colo, colui, cultum, colere: 1) cultivar; 2) morar; 3) cuidar de; 4) querer bem a, prote- ger; 5) realizar; 6) honrar, venerar (Torrinha, 1945, p. 163). Os dois primeiros significados deram origem palavra colonizayao. “Colo significou, na lingua de Romafeu moro, eu ocupo a terra, e, por ex- tensio, eu trabalho, eu cultivo o campo. Um herdeiro antigo de colo & cola, o habitante; outro & inquilinus, aquele que reside em terra alheia”. Alfredo Bosi nos esclarece, ainda, citando 0 Diciondério Etimolégico da Lingua Latina, de Augusto Magne: “Colonus & 0 que cultiva uma proprie- dade rural em vez do seu dono; 0 seu feitor no sentido técnico e legal da pa- lavra”. E conelui: “Nao por acaso, sempre que se quer classificar os tipos de colonizagio, distinguem-se dois processos: o que se atém ao simples povoamento e 0 que conduz.a exploragdo do solo. Colo esté em ambos: cu ‘moro; eu cultivo” (Bosi, 1992, p. 11-12), Col6nia significa, pois, espago que se ocupa, mas também terra ou. ovo que se pode trabalhar ou sujeitar. / COLONIZACAO E EDUCAGAO Mas o verbo “colo” significa igualmente tomar conta de; cuidar; man- dar, querer bem a; proteger. E do supino “‘cultum” deriva o participio futu- ro “culturus” (0 que se vai trabalhar, cultivar), aplicando-se tanto ao culti- vo da terra quanto ao trabalho de formagdo humana, acepgao em que esse termo latino traduzia 0 vocdbulo grego “paideia”. Manifesta-se aqui o significado de educagao, tanto em termos amplos, ‘no que ela coincide com cultura enquanto “conjunto das praticas, das téc- nieas, dos simbolos e dos valores que se devem transmitir 4s novas ge- rages para garantir a reprodugo de um estado de coexisténcia social” 8, Educagio @ colonizagao: as idéias pedagégicas no Brasil 123 (Bosi, 1992, p. 16) como em termos mais especificos, enquanto tomar con- ta das criangas, cuidar delas, disciplina-las, ensinar-Ihes comportamentos, conhecimentos e modos de operar. Entendendo a educagao como um processo através do qual a humani- dade clabora a si mesma em todos os seus mais variados aspectos, Mana- corda (1989, p. 6) acredita “poder sintetizé-los na inculturagio nas tradi- Bes e nos costumes (ou aculturagdo, no caso de procederem néio do dina- mismo intemo, mas do externo), na instrugdo intelectual em seus dois as- pectos, o formal-instrumental (ler, escrever, contar) e o conereto (contet- do do conhecimento), e, finalmente, na aprendizagem do oficio”. Ora, no caso da educagao instaurada no ambito do processo de coloni- zagao trata-se, evidentemente, de aculturagao jé que as tradigdes € costu- ‘mes que se busca inculear decorrem de um dinamismo externo, isto é, que vai do meio cultural do colonizador paraa situagio objeto de colonizagao. Finalmente, “colo” significa honrar; venerar. _) a Aqui, do supino “cultum” deriva o participio passado “cultus”, Culto designava 0 campo que ja havia sido preparado e plantado por geragdes su- cessivas. Refere-se, portanto, no apenas ao processo mas também ao pro- duto fundidos numa mesma denominagao. COLONIZACAO F CATEQUESE & também dai que se origina o substantivo “cultus, us” que além do sentido bisico de cultivo da terra significava igualmente 0 “culto dos mor- tos” forma primeira de religido: “o ser humano preso a terra ¢ nela abrindo covas que 0 alimentam vivo e abrigam morto” (Bosi, 1992, p. 14). Irrompe aqui a dimensio religiosa. Com eftito, religido evoca restabele- cer vinculos (do latim, “religare”). E, pois, 0 conjunto de mediagdes simbo- licas por meio das quais determinada comunidade busca ligar sua experién- cia presente coma tradicZo, isto é, com os espiritos de seus antepassados re- montando, no caso das religiées monoteistas, a Deus, entendido como a fon- tede tudo o que existe e, como tal, o antepassado por exceléncia porque o pai ‘que esti na origem de todos os membros da comunidade que o cultua, O processo de colonizagio abarca, de forma articulada mas nfo homo- génea ou harménica, antes dialeticamente, esses trés momentos represen- tados pela colonizagao propriamente dita, ou seja, a posse e exploracao da terra subjugando os seus habitantes (os incolas); a edueagio enquanto aculturagio, isto ¢, a inculcagao nos colonizados das priticas, técnicas, 124 Histérias © momérias da educagao no Brasil - Vol. 1 simbolos e valores préprios dos colonizadores; ¢ a catequese entendida como a difuusao e conversao dos colonizados a relig dos colonizadores. COLONIZAGAO E EDUCAGAO NO BRASIL, Uma questiio que intriga de modo geral os analistas se refere ao fato aparentemente paradoxal de Portugal ter sido pioneiro na expansio ultra- ‘marina ¢, ao mesmo tempo, ter se attasado consideravelmente no que re peita ao desenvolvimento capitalista quando comparado com outros paises curopeus. ‘ Para esclarecer essa questio é preciso levar em conta que Portugal, di- ferentemente da maioria dos paises europeus, era um pais plenamente constituido, com fronteiras definidas, ja no século XV. Além disso, conta- va com um poder centralizado: D. Jofo II, que govemnou de 1481 a 1495, pode ser considerado o primeiro monarca absoluto da Europa. E este era tum fator importante no caso de um empreendimento do porte das grandes navegagdes maritimas. Ademais, nobreza e burguesia, embora tendo obje- tivos econdmicos diversos, comungavam do mesmo interesse expansio- nista. E como se revelava invidvel a expansio no aimbito do continente eu- Topeu, abria-se a altemativa da expansio ultramarina para o que a posigo geogritfica de Portugal representava uma condigao bastante vantajosa Para além dos interesses e intengdes dos dirigentes, o historiador por- tugués Vitorino de Magalhaes Godinho (1968, p. 84-85) propée uma ex- plicagio, digamos assim, objetiva, para a expansio ultramarina, Para tanto sugere a correlagdo entre duas séries de fatos, a primeira ligada a caréncias enecessidades da sociedade portuguesa do século XV em termos de ce- reais, ouro, especiarias, mio-de-obra, alargamento da area de pesca, domi- nio do mercado dos téxteis, aumento da receita das casas senhoriais; a se- gunda, ligada as potencialidades contidas em dreas de ultramar como Mar- rocos, arquipélagos atlanticos, incluidas as Ithas Canirias, Guiné, india e Brasil. A ligagdo entre essas duas séries resulta numa outra série de fatos ascim apreventada: 7 8) conquista de pragas marroquinas; ~~ ») ocupagao e colonizagao dos arquipélagos atlanticos; ©) descobrimento da Guiné ¢ estabelecimento de feitorias; 4) descobrimento do caminho maritimo para a india, estabelecimento de feitorias e formagao do império oriental; €) descobrimento e colonizagio do Brasil (Godinho, 1968, p. 85). 8, Educagio e colonizagéo: as idéias pedagégicas no Brasil 125 Nao obstante todos esses feitos e conquistas, Portugal se atrasou, do ponto de vista do desenvolvimento capitalista, em relago aos demais pai- ses europeus. Para se compreender esse fendmeno é preciso levar em conta que, em- bora a expansao tenha enriquecido a burguesia mercantil, seu controle este- ‘ve nas mios da Coroa que a financiou ¢ a explorou através de monopélio, 0 que reforgou ojparasitismo da nobreza (Como, porém, ao mesmo tempo as conquistas ultramarinas reforgavam as posigdes econdmicas e sociais da ‘burguesia, a nobreza reagiu a essa contradigio reforgando a ordem: feudal langando mao da Inquisi¢o como instrumento politico cuja introdugao em: Portugal se deu no reinado de D. Joao III (1521-1557). Com esse instrumen- to o Estado portugués reprimiu, por mais de dois séculos, a burguesia mer- cantil identificaado-a com os eristios novos, isto &, com os criptojudeus. ‘Nesse contexto o mercantilismo portugués se reduziu a exploragao co- lonialista, abrindo mao do protecionismo industrial, conduta adotada pela Inglaterra ¢ Franga. Como resultado constata-se que 0 colonialismo contri- ‘buiu para a acumulagdo nos paises que jé haviam desenvolvido em algum grau 0 modo de produciio capitalista, como a Inglaterra e, mais tarde, a Ho- Tanda e a Franga. Nao, porém, em Portugal e Espanha onde, ao contratio, 0 processo de acumulagio foi obstaculizado pelo colonialismo. Em verdade, Portugal atuou “como especialista no comércio de intermediagio interna- cional, no carrying trade, sobre o qual escreveu Adam Smith, que retirava ‘capital do apoio ao trabalho produtivo do proprio pais ¢ 0 desviava para 0 estimulo 4 produgao em outros paises” (Gorender, 1978, p. 123). Assim, apenas para dar um exemplo, constata-se que, embora o Brasil tenha propi- ciado a Portugal 0 monopélio da exportago mundial de agticar no século XVI, nao foram constituidas refinarias em Portugal; elas surgiram na Ho- Janda, Inglaterra e Franga. AS IDEIAS PEDAGOGICAS NO BRASIL NA EPOCA DA COLONIZAGAO (Com jé foi salicntado, hé uma estreita simbiose entre educagio e cate- quese na colonizagio do Brasil. Em verdade a emergéncia da educacao ‘como um fendmeno de aculturagao tinha na catequese a sua idéia-forga, 0 que fica claramente formulado no Regimento de D. Jodo III estatuido em 1549 ¢ que continha as diretrizes a serem seauidas ¢ implementadas na co- 6nia brasileira pelo primeiro governo-geral. A referida centralidade da catequese ja foi objeto de aniilise de diver- 308 estudiosos. José Maria de Paiva, por exemplo, defendeu a tese de que

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