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SEXUALIDADE E SOCIALISMO – SHERRY WOLF (capítulos 1 e 6)

CAPÍTULO UM
As Raízes da Opressão LGBT

A opressão das pessoas lésbicas, gays, bissexuais e transgêneras (LGBT) nem sempre
existiu, e as pessoas LGBT não são um setor diferente da população. A opressão de
todas as minorias sexuais é uma das infnitas contradições do capitalismo moderno. O
capitalismo cria as condições materiais para que homens e mulheres tenham vidas
sexuais autônomas, mas simultaneamente busca impor normas heterossexuais na
sociedade para garantir a manutenção da ordem econômica, social e sexual.
Lésbicas famosas, como Melissa Etheridge enchem shows e a comediante Ellen
DeGeneres comanda um programa de entrevistas premiado com o Emmy, e ao
mesmo tempo leis homofóbicas defendem a discriminação no trabalho e no
casamento. As pessoas LGBT, como Matthew Shepard, são brutalmente espancadas
por extremistas, e ao mesmo tempo a opinião pública mudou radicalmente a favor
dos direitos civis LGBT.1 Esta situação aparentemente contraditória nos Estados
Unidos pode ser explicada.
A opressão LGBT, como a opressão às mulheres, está ligada à centralidade da família
nuclear como um dos meios do capitalismo para inculcar normas de gênero e
terceirizar o cuidado das gerações atuais e futuras de trabalhadores com pouco custo
para o estado, como explicado em detalhes abaixo. Além disso, a opressão às pessoas
LGBT sob o capitalismo, como o racismo e o sexismo, servem para dividir as pessoas
da classe trabalhadora, especialmente em suas batalhas por justiça econômica e
social. Enquanto a sociedade capitalista tenta encaixar as pessoas em certos papéis
de gênero e comportamentos sexuais, os socialistas rejeitam essas limitações. Em vez
disso, os socialistas lutam por um mundo em que a sexualidade é um assunto
puramente pessoal, sem restrições legais ou materiais de qualquer tipo. O direito à
autodeterminação para os indivíduos que os socialistas defendem deve incluir a
liberdade dos indivíduos de escolherem seu próprio comportamento sexual, aparência
e preferências eróticas.
A sexualidade, como muitos outros comportamentos, é um fenômeno fuidoonão é
fxo. A homossexualidade existe ao longo de um continuum. A expressão moderna
disso pode ser encontrada entre os milhões de homens e mulheres que se identifcam
como LGBTomuitas vezes identifcandoose diferentemente em momentos diferentes
em suas vidas. Não há dois tipos de pessoas no mundo, gay e heterossexuais. Até
onde os biólogos podem dizer, há apenas uma raça humana com uma multiplicidade
de possibilidades sexuais que podem ser frustradas ou liberadas, dependendo da
forma como a sociedade humana é organizada.
Muitas evidências históricas confrmam que o que defnimos hoje como
comportamento homossexual existe há pelo menos milhares de anos, e é lógico
assumir que os atos homossexuais têm ocorrido desde que os seres humanos
começaram a andar pela Terra. Mas foi necessária a Revolução Industrial do fnal do
século XIX para criar o potencial para um grande número de pessoas comuns viverem
fora da família nuclear, tornando possível que as modernas identidades gays, lésbicas
e bissexuais pudessem nascer. Apenas ao fnal do século XX algumas pessoas de
gênero variante começaram a se identifcar como transgêneras, embora as pessoas
que desafaram os conceitos Ocidentais modernos de comportamento apropriado ao

1
Matthew Shepard era um estudante gay na Universidade de Wyoming, em outubro de 1998, quando foi torturado e morto por
homens que o deixaram amarrado no poste de uma cerca em Laramie, Wyoming. A indignação pública levou a protestos em
muitas cidades ao redor do país e seu nome tornou-se sinônimo de brigas homosexuais. Para uma compilação de pesquisas
sobre as opiniões do público em relação às pessoas LGBT, consulte "Casamento do mesmo sexo/Direitos dos Gays" no
PollingReport.com.
gênero existissem ao longo da história em muitas culturas diferentes. A opressão
sistemática às pessoas LGBT, conforme está presente na maioria das sociedades
ocidentais contemporâneas, é, portanto, também um fenômeno bastante recente na
história humana. Isso não é para argumentar, no entanto, que, antes do capitalismo,
os seres humanos existiam em um paraíso sexual livre de repressão ou restrições de
qualquer tipo. Pelo contrário, as proibições legais e os tabus sociais existiram desde a
antiguidade até a era préocapitalista em muitas culturas com base em atos sexuais,
frequentemente denunciando o sexo não procriador, sem a condenação ou mesmo a
concepção de identidade sexual como um aspecto intrínseco ou saliente de uma
pessoa.

As sociedades industriais contemporâneas criaram a possibilidade de homens e


mulheres se identifcarem e viverem como gays e lésbicas, argumenta a coleção
Hidden from History/Escondido da História.

“O que chamamos de “homossexualidade” (no sentido de traços distintivos de


“homossexuais”), por exemplo, não era considerado um conjunto de atos, muito
menos um conjunto de qualidades que defniam pessoas em particular, nas
sociedades préocapitalistas [...] Heterossexuais e homossexuais estão envolvidos em
“papéis” sociais e atitudes que pertencem à uma sociedade em particular, o
capitalismo moderno.”2

Foi o capitalismo, na verdade, que deu origem à individualidade moderna e às


condições para que as pessoas tenham vidas íntimas baseadas no desejo pessoal,
uma ruptura histórica do poder da igreja feudal e da comunidade que arranjava
casamentos. Sob o capitalismo, o trabalho de uma pessoa é convertido em uma
mercadoria de propriedade individual que é comprada e vendida no mercado.
Indivíduos são empurrados para a concorrência uns com os outros pelo trabalho,
moradia, educação, etc., e cidadãos individuais dos estados são contados em um
censo e registrados para votar, ou, se eles possuírem os meios para isso, terem
propriedades. Todas essas características da sociedade capitalista estabelecem a
individualidade de maneiras impensáveis em sistemas anteriores como o feudalismo,
criando também o potencial de um forescimento da autonomia sexual. Como Karl
Marx afrmouu "Nesta sociedade da livre concorrência, o indivíduo se destaca dos
laços naturais, etc., o que nos períodos históricos anteriores o tornaram acessório de
um conglomerado humano defnido e limitado".3
Evidências históricas sugerem que o comportamento homossexual foi integrado em
muitas culturas préocapitalistas com sucesso. O exemplo mais famoso é a Grécia
antiga, onde as relações sexuais entre homens mais velhos e adolescentes eram
aclamadas como uma das maiores formas de amor. Esses relacionamentos, no
entanto, eram encorajados entre os mais ricos, mais velhos, e poderosos "melhores" e
seus subordinados, que eram mais jovens, mais pobres ou conquistados. Para os
primeiros Gregos e Romanos, o status e o poder entre os amantes eram fundamentais
para a sua concepção das relações entre o mesmo sexo e eles tinham visões muito
diferentes daqueles que desempenhavam o papel penetrante no sexo e aqueles que
eram penetrados. Plutarco, historiador de origem grega do primeiro século, explicouu
"Nós classifcamos aqueles que apreciam a parte passiva como pertencentes ao nível
mais baixo e não permitimos a eles o menor grau de confança ou respeito ou
amizade".4
Muitas tribos indígenas americanas abraçaram homens e mulheres travestis,
conhecidos como berdaches, que adotaram os papéis de gênero do sexo "oposto" e às
2
Martin Duberman, Martha Vicinus, e George Chauncey, eds., Hidden from History: Reclaiming the Gay and Lesbian Past
(New York: Meridian, 1989), 20.
3
Karl Marx, Grundrisse: Foundations of the Critique of Political Economy (Harmondsworth: Penguin, 1973), 83.
4
Retirado de David F. Greenberg, The Construction of Homosexuality (Chicago: University of Chicago Press, 1988), 149.
vezes são citados hoje como pessoas "de dois espíritos". Uma multiplicidade de
acordos sexuais e de gênero existiam de tribo a tribo, segundo antropólogos. Algunss
berdaches masculinos tinham relações sexuais exclusivamente com outros homens,
mas não com outros berdaches, enquanto alguns permaneceram celibatários, alguns
tinham parceiros de ambos os sexos, ou tinham sexo exclusivamente heterossexual. 5
A variação de gênero, não a preferência sexual, defnia o berdache e, ao invés de
ridicularizáolos por sua nãooconformidade de gênero, as tribos indígenas americanas
viam os berdaches como membros valiosos de sua sociedade. Um ancião indígena
explicau "Não desperdiçamos as pessoas como a sociedade branca faz. Toda pessoa
tem seu dom."6
Até mesmo a Igreja Católica Romana, até o século XII, celebrava o amor entre os
homens. Quando acabou com o casamento sacerdotal e forçou a castidade, a
homossexualidade também foi proibida.7 No entanto, nessas sociedades, foram ações
homossexuais que foram toleradas, louvadas ou aceitas, e não uma categoria
identifcável de pessoas. As condições econômicas e sociais ainda não tinham se
desenvolvido de maneira que permitissem que um grande número de pessoas
reconhecessem, expressassem ou explorassem o desejo do mesmo sexo como uma
característica central de suas vidas ou suas identidades.

O flósofo francês Michel Foucault desafou as tentativas da sociedade moderna de


sobrepor sua visão sexual sobre as antigas. Ele discuteu

“Os gregos não viam o amor pelo próprio sexo e amor pelo outro sexo como opostos,
como duas escolhas exclusivas, dois tipos radicalmente diferentes de comportamento
[...] Os gregos eram então bissexuais? Sim, se queremos dizer com isso que um grego
[livre] poderia, simultaneamente ou cada um de uma vez, se apaixonar por um
menino ou uma menina [...] Mas se quisermos voltar nossa atenção para a maneira
como eles conceberam essa prática dupla, precisamos levar em consideração o fato
de que eles não reconheciam dois tipos de "desejo" [...] Seu modo de pensar, o que
possibilitava desejar um homem ou uma mulher era simplesmente o apetite que a
natureza implantou no coração do homem pelos "belos" seres humanos, seja qual for
o sexo deles.”8

Enquanto as sociedades de classes anteriores proibiram certos atos sexuais, o estado


capitalista em ascensão e seus defensores nos domínios da medicina, do direito e da
academia vieram para defnir e controlar a sexualidade humana de maneiras antes
inimagináveis. Esses profssionais do século XIXoquase todos homens brancoso
refetiam os interesses e os preconceitos da classe média em ascensão. Com o
crescimento econômico e o desenvolvimento surgiu a necessidade de maiores níveis
de educação para mais tipos de empregos, que ampliou a adolescência e removeu os
adolescentes de muitas profssões, reduzindo assim a interação social entre adultos e
crianças não relacionadas. Profssionais médicos tentando legitimar sua masturbação
de patologização, enquanto os legisladores encorajaram as leis de idade do
consentimento e pressionaram por maiores idades mínimas para o casamento. As
relações homossexuais entre adultos e "menores inocentes" foram proibidas e os
juvenis foram colocados como assexuais.9 Nada menos que uma fgura como Sigmund
Freud, o pai da psiquiatria moderna na virada do século XX, teorizou e popularizou o
"problema da homossexualidade" enquanto transformava a heterossexualidade na
"norma que todos conhecemos sem nunca pensar muito sobre isso."10
5
Ibid., 44.
6
Retirado de Will Roscoe, Changing Ones: Third and Fourth Genders in Native North America (New York: Macmillan, 2000),
4.
7
Duberman, Vicinus, e Chauncey, Hidden from History, 5.
8
Michel Foucault, The Use of Pleasure, vol. 2, The History of Sexuality (New York: Pantheon, 1986), 187–88.
9
Greenberg, Construction of Homosexuality, 399.
10
Retirado de Jonathan Ned Katz, The Invention of Heterosexuality
Nossas concepções sobre os papéis de gênero mudaram radicalmente de uma
sociedade para outra e de um período histórico para o outro. Mesmo os nossos corpos
se transformaram radicalmente pelas mudanças nas nossas condições materiais.
Atletas femininas modernas, como a atleta olímpica e mãe de quarenta e um anos,
Dara Torres, cujo corpo magro e musculoso é capaz de vencer nadadores profssionais
masculinos e femininos com a metade da sua idade, seriam inconcebíveis há uma
geração. Os avanços na nutrição, no treinamento e direitos civis para as mulheres
criaram o potencial, não só para uma mulher americana de meia idade de competir e
ganhar três medalhas de prata nas Olimpíadas de Verão de 2008, mas para que sua
aparência andrógina seja aceita e até valorizada nas páginas do New York Times.11 Em
contraposição, acreditaose que o início precoce da puberdade entre as meninas nos
Estados Unidos, particularmente das meninas afrooamericanas de baixa renda, é
resultado da dieta, de produtos químicos ambientais, de inatividade e outros fatores
que são característicos da sociedade industrial moderna.12
A ciência médica reconheceu há muito tempo a existência de milhões de pessoas
cujos corpos combinam características anatômicas que são convencionalmente
associadas com homens ou mulheres. Esses indivíduos intersexuais, estimados em
um para cada dois mil somente nos Estados Unidos,13 são operados legalmente por
pediatras que forçam as normas tradicionais de aparência genital em recémonascidos,
muitas vezes tornandooos incapazes de experimentar prazer sexual mais tarde na
vida. A realidade física das pessoas intersexuais questiona as noções fxas que somos
ensinados a aceitar sobre homens e mulheres. As pessoas intersexuais desafam não
só a construção da sociedade de papéis de gênero, mas nos obrigam a examinar o
conceito de que o próprio sexo é construído, confnado e forçado a se encaixar em um
binário masculino/feminino. Parece que mesmo nosso sexo físicooe não apenas como
nos comportamosoé muito mais ambíguo e fuido do que se imaginava
anteriormente. A imposição de cirurgia em bebês perfeitamente saudáveis para forçar
seus corpos a se conformarem com as normas sociais do sexo é uma forma fagrante
de abuso físico sancionado pelo estado. Esses atos de mutilação sexual devem ter a
oposição de todos os que acreditam que a autodeterminação deve incluir o direito dos
indivíduos de controlar e experimentar o prazer de seus próprios corpos, além de se
defnirem como qualquer gênero que eles escolherem.
Os socialistas argumentam que o que os seres humanos construíram eles também
podem derrubar. Se a afrmação deste livro é precisaoque a sociedade capitalista
transformou a forma como as pessoas se expressam sexualmente, porém
simultaneamente buscou restringir a sexualidade humana como meio de controle
socialoentão um tipo de sociedade fundamentalmente diferente, baseado na
necessidade humana e não no lucro, poderia pôr um fm às defnições e limitações
modernas de gênero e sexo. Uma sociedade socialista deve ser uma na qual as
pessoas são sexualmente libertasoisto é, todas teriam a liberdade de escolher se,
como, quando e com quem se envolver em qualquer gratifcação sexual que
desejassem, desde que nenhuma outra pessoa fosse agredida.

As mudanças na família

As raízes da identidade homossexual e sua repressão subsequente podem ser


encontradas no papel em constante mudança da família. A famíliaoessa instituição
supostamente sacrossanta, exaltada pelos direitistas e retratada surrealmente em

(Chicago: University of Chicago Press, 2007), 67.


11
Elizabeth Weil, “A Swimmer of a Certain Age,” New York Times,
29 de Junho, 2008.
12
Sandra Steingraber, “The Falling Age of Puberty in U.S. Girls:
What We Know, What We Need to Know,” Breast Cancer Fund,
August 2007, http://www.breastcancerfund.org/site/c.kwKXLd-
PaE/6.3266509/k.27C1/Falling_Age_of_Puberty_Main_Page.htm.
13
“How Common Is Intersex?” Intersex Society of North America, http://www.isna.org/faq/frequency
inúmeros comerciais de sabão em póomudou radicalmente ao longo da história
humana. Na verdade, a própria família nem sempre existiu.
O colaborador mais próximo de Karl Marx, Frederick Engels, usou a pesquisa
antropológica de Lewis Henry Morgan em sua inovadora obra do século XIX, A Origem
da Família, Propriedade Privada e do Estado . A antropologia era então uma ciência
nova; no entanto, as conclusões teóricas de Engels foram fundamentadas por
pesquisas antropológicas mais recentes.14
Engels argumentou que, embora os seres humanos modernos tenham existido como
uma espécie há mais de cem mil anos, as pessoas só começaram a viver em unidades
familiares nos últimos milhares de anosoquando as sociedades anteriormente
igualitárias se dividiram em classes. A organização social humana préoclasses era
baseada em grandes clãs e na produção e distribuição coletivas, e criação coletiva
das crianças. Uma divisão do trabalho frequentemente existia entre homens e
mulheres nas sociedades préoclasses, mas não há evidências que sugerissem que as
mulheres eram sistematicamente oprimidasoe em algumas sociedades, as mulheres
recebiam um status ainda maior do que os homens.15
A antropóloga Eleanor Burke Leacock forneceu estudos detalhados sobre as primeiras
sociedades, em particular os MontagnaisoNaskapi da Península de Labrador, para
discutiru "No que diz respeito à autonomia das mulheres, nada na estrutura das
sociedades igualitárias exigia uma deferência especial para os homens". 16 As
mulheres tomavam decisões ao lado dos homens sobre para onde e quando se mover,
se juntar ou se separar de um companheiro, e sobre a distribuição de alimentoso
todas essas centrais para a vida cotidiana e a sobrevivência. Mesmo a divisão sexual
do trabalho é questionada por Leacock e outros antropólogos que examinaram as
sociedades nas quais as mulheres faziam a caça e os homens assumiam papéis como
a criação das crianças tão frequentemente quanto realizavam tarefas que a sociedade
moderna entende como adequada ao seu gênero.
A opressão das mulheres correspondeu ao surgimento da primeira divisão de classe
na sociedade e à criação da unidade familiar monogâmica. Antes da habilidade
humana de armazenar alimentos e outros bens como um excedente, não havia
"riqueza" a ser acumulada, impedindo a possibilidade de desigualdade de classes
entre diferentes grupos de pessoas. As classes surgiram quando os seres humanos
encontraram novas maneiras de sustentar as suas vidas. Novos métodos de produção
exigiam que algumas pessoas fossem necessárias para trabalhar, enquanto outras
precisavam ser libertadas do trabalho para coordenar a organização do grupo e
garantir o armazenamento de um excedente nos momentos em que as culturas
falhassem ou o grupo crescesse. Como o socialista Chris Harman descreveu "Os
'líderes' poderiam começar a se transformar em 'governantes', em pessoas que viram
seu controle sobre os recursos, como o interesse da sociedade como um todo [...] pela
primeira vez, o desenvolvimento social encorajou o desenvolvimento do motivo para
explorar e oprimir os outros."17
Como não havia riqueza excedente antes das classes, não havia nada a ser
transmitido de uma geração para outra. Mas com o desenvolvimento de um
excedente e das classes veio para aqueles que tinham controle sobre um excedente o
ímpeto de seguráolo e passáolo para seus próprios flhos. Com a aparência de classes
sociais e a possibilidade de passar a riqueza sob a forma de herança para a sua prole
14
Veja, por exemplo, Karen Sacks, “Engels Revisited: Women, the
Organization of Production, and Private Property,” em Rayna R.
Reiter, ed., Toward an Anthropology of Women (New York:
Monthly Review Press, 1976). Veja também Eleanor Burke Leacock,
Myths of Male Dominance: Collected Articles on Women Cross-
Culturally (Chicago: Haymarket Books, 2008).
15
Para uma explicação mais completa da teoria de Engels, veja Sharon Smith,
“Engels and the Origin of Women’s Oppression,” International
Socialist Review, Fall 1997, 37–46.
16
Leacock, Myths of Male Dominance, 140.
17
Chris Harman, A People’s History of the World (London: Bookmarks, 1999), 24–25.
surgiu o desejo de monogamia, pelo menos imposta às mulheres, para que os líderes
masculinos pudessem garantir a veracidade de sua própria linhagem. O surgimento
da família patriarcal foi uma consequência dessas mudanças.
O signifcado inicial da palavra "família" está muito longe das imagens de Norman
Rockwell de um paraíso doméstico. Os primeiros romanos usaram o termo famulus
para descrever os escravos domésticos e familia para se referir ao "número total de
escravos pertencentes a um homem."18 Para a aristocracia feudal inicial, o casamento
era um relacionamento econômico, não emocionaloum meio para transferir a riqueza
da terra ou garantir relações pacífcas entre territórios. Ao longo do tempo, os homens
foram cada vez mais atraídos para a produção e as mulheres foram cada vez mais
isoladas ao papel da reprodução, ou criação das crianças.
Até o surgimento do capitalismo, a família camponesa era uma unidade de produção
e reprodução. As mulheres camponesas não eram responsáveis apenas pela criação
das crianças, cozinhar e limpar, mas também se esperava que fzessem roupas,
preparassem a manteiga, tirassem leite das vacas, fzessem cerveja, tecessem, etc.;
ao contrário da família nuclear moderna, que é puramente uma unidade reprodutiva.
As mulheres eram desiguais aos homens e tinham empregos defnidos pelo gênero na
família feudal, mas com o surgimento dos mercados e da indústria que passaram a
dominar as sociedades ocidentais no século XIX, o trabalho produtivo como a
fabricação de cerveja e a fabricação de têxteis foi removido do âmbito da família.
A estrutura econômica em mudança da sociedade alterou drasticamente as atitudes
em relação às mulheres e à sexualidade. A imposição da monogamiaosomente para
mulheresoproporcionou os meios pelos quais a propriedade dos homens ricos poderia
ser herdada por crianças que poderia se ter certeza que eram dele. O casamento
monogâmico, em essência, desenvolveuose como a agência através da qual os
homens da classe dominante poderiam estabelecer uma paternidade indiscutível. 19
Como Engels escreveu,

“A primeira oposição de classe que apareceu na história coincide com o


desenvolvimento do antagonismo entre homem e mulher no casamento monogâmico,
e a primeira opressão de classe coincide com a do sexo feminino pelo homem. O
casamento monogâmico foi um grande passo histórico; no entanto, juntamente com a
escravidão e a riqueza privada, abre o período que dura até hoje, em que cada passo
para frente também é relativamente um passo para trás, em que a prosperidade e o
desenvolvimento para alguns são conquistados através da miséria e frustração de
outros.”20

Entre as classes médias e os camponeses possuídores de terra sob feudalismo


europeu, a família patriarcal dominou. Embora os camponeses sem terra não
possuíssem riqueza própria, a instituição da família era, no entanto, legalmente
estabelecida como norma para todos os setores da sociedade. As comunidades
feudais costumavam organizar casamentos entre camponeses pobres. A vida familiar
era preenchida pelo trabalho na terra para todos os membros da família, e o parto
frequentemente terminava na morte da mãe ou da criança, ou de ambos.
Nessas sociedades, a repressão sexual assumiu uma forma diferente da que
conhecemos hoje. Foram impostas sanções severas contra todos os comportamentos
sexuais que não eram procriadores. Em 1533, por exemplo, o Rei Henrique VIII da Grão
Bretanhaocuja obsessão por produzir um herdeiro masculino levou a seis casamentos
ointroduziu o Ato de Sodomia, que mataria os homens por "sodomia", o termo
popular para o sexo nãooprocriador que era considerado um crime contra a natureza. 21
18
Leacock, Myths of Male Dominance, 140.
19
Frederick Engels, The Origin of the Family, Private Property and
the State (New York: International Publishers, 2001), 125.
20
Ibid., 129.
21
Jeffrey Weeks, Sex, Politics and Society: The Regulation of Sexuality Since 1800, 2nd ed. (London: Longman Limited, 1989),
99.
O ato coincidiu com outras leis do mesmo período punindo "vagabundos", i.e.,
camponeses expulsos da terra com nenhum lugar para ir. A sodomia foi incluída nos
Artigos de Guerra, começando no século XVII na GrãoBretanha e era punida da mesma
forma que o motim e a deserção.
As famílias dos colonos europeus nos séculos XVII e XVIII eram unidades
independentes de produção e reprodução em que todos os membros da família
trabalhavam juntos em um terreno para atender praticamente todas as necessidades
da família. Nas colônias da Nova Inglaterra, a "vida solitária" era proibida. Servos e
aprendizes tinham que viver com as famílias para as quais trabalhavam, mas mesmo
sem restrições legais, a sobrevivência econômica na época colonial era inconcebível
fora da estrutura familiar.22
A necessidade de trabalho nas colônias alimentou os esforços das igrejas e tribunais
da Nova Inglaterra para proibir e punir adultério, sodomia, incesto e estupro. O sexo
extraoconjugal por mulheres, que eam consideradas incapazes de controlar suas
paixões, era punido com mais severidade do que o sexo extraoconjugal por homens.
Sodomia poderia signifcar qualquer sexo entre duas pessoas do mesmo gênero ou
quaisquer atos "não naturais", como relações sexuais anais ou orais que não
poderiam resultar em procriação, mesmo entre casados. Em uma sociedade que
venerava a produtividade, para os Puritanos a sodomia era desperdício de tempo.
Embora fosse ofcialmente punível com a morte de 1607 a 1740, a sodomia era mais
frequentemente punida por açoitamentos. Alguns casos de "comportamento obsceno"
entre as mulheres foram punidos por açoitamentos, embora ninguém tenha sido
executado por sodomia nas colônias durante o século XVIII, provavelmente devido ao
requerimento legal de prova de penetração e duas testemunhas oculares. 23 O domínio
da igreja e a falta de quaisquer meios de cuidar de crianças nascidas fora do
casamento levaram a vigilância cuidadosa dos vizinhos sobre os costumes sexuais de
sua comunidade.
Como o historiador Jonathan Ned Katz explica, "O contraste operacional nesta
sociedade foi entre fecundidade e esterilidade, não entre o erotismo do mesmo sexo e
do sexo diferente [...] Nessas colônias, o desejo erótico por membros do mesmo sexo
não era interpretado como desviante porque o desejo erótico por um sexo diferente
não foi interpretado como uma norma."24
Com o surgimento dos centros urbanos e dos métodos de produção industrial no fnal
do século XIX na Europa Ocidental e na América do Norte, o trabalho assalariado
tornouose muito mais comum. Em comparação com a vida da fazenda, houve uma
maior separação da casa do trabalho, então a família se tornou muito mais
exclusivamente um centro de reprodução. Ao longo das décadas, o crescimento da
indústria criou um novo tipo de ideal familiar, como o paraíso em um mundo em
mudança, muitas vezes hostil. Mas a relação entre a família e o capitalismo estava
repleta de contradições desde o início. O trabalho inovador de John D'Emilio,
"Capitalismo e Identidade Gay", usa o método materialista histórico desenvolvido por
Marx e Engels para analisar essas contradições. Ele escreve,

“Por um lado, o capitalismo enfraquece continuamente a base material da vida


familiar, permitindo que os indivíduos vivam fora da família e que uma identidade
lésbica e gay se desenvolvesse. Por outro lado, ele precisa empurrar homens e
mulheres para as famílias, pelo menos por tempo sufciente para reproduzir a próxima
geração de trabalhadores. A elevação da família à predominância ideológica garante
que uma sociedade capitalista reproduzirá não apenas crianças, mas heterosexismo e
homofobia. No sentido mais profundo, o capitalismo é o problema.”25
22
John D’Emilio and Estelle B. Freedman, eds., Intimate Matters:
A History of Sexuality in America (New York: Harper and Row
Publishers, 1988), 16.
23
Ibid., 30.
24
Katz, Invention of Heterosexuality, 38.
25
John D’Emilio, “Capitalism and Gay Identity,” in Making Trouble: Essays on Gay History, Politics, and the University (New
O modo de produção capitalista causou o surgimento de uma classe empresarialoe
com ela, a noção de realização pessoal e individualidade como um ideal social. Ao
mesmo tempo, a crescente prosperidade de uma nova classe média e a maior
acumulação de riqueza pessoal e heranças transferíveis exigiam uma moral sexual
estrita, especialmente para as mulheres. O historiador britânico Jefrey Weeks
descreve as contradições desta nova estrutura familiaru a família burguesa era "a
localização privilegiada da emoção e do amor [...] e simultaneamente um policial
efcaz do comportamento sexual."26
Em contraste com a classe média próspera, a vida industrial estava literalmente
matando a classe trabalhadora da Inglaterra do meio do século XIX. Os homens de
classe média na área rural de Rutland, Inglaterra, viveram até aos cinquenta e dois
anos, enquanto os "homens" da classe trabalhadora morriam em média com
dezessete anos em centros industriais como Manchester, aos dezesseis em Bethnal
Green e aos quinze em Liverpool.27 Os proprietários de fábricas têxteis empregavam
majoritariamente mulheres e crianças com salários muito menores do que ganhavam
os homens por longas horas de trabalho árduo, o que provocava taxas de doença e
mortalidade que ameaçavam reduzir os lucros dos proprietários.
Frederick Engels descreveu o quase colapso da vida familiar da classe trabalhadora
em A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra . Ele detalhou as condições
imundas e a falta de espaço em casas da classe trabalhadora e citou um relatório do
Ministério da Saúdeu "Em Leeds, irmãos e irmãs e inquilinos de ambos os sexos,
encontramose ocupando os mesmos quartos que os pais, a humanidade estremece só
de pensar nas consequências disso."28
Uma reinvenção da família da classe trabalhadora era urgentemente necessária. Os
reformistas vitorianos faziam campanhas por mudanças no trabalho na fábrica e na
moradia, o que levou à criação de um "salário familiar" para os homens, uma quantia
destinada a sustentar uma família e permitir que as mulheres fcassem em casa para
cuidar de seus flhos e limpar suas casas. Este salário raramente era sufciente e
muitas mulheres da classe trabalhadora continuavam a costurar e fazer outros
trabalhos. Apesar de a adaptação da família nuclear da classe média à classe
trabalhadora ter tido o impacto de aprisionar as mulheres da classe trabalhadora,
também as aliviou das horas de trabalho na fábrica. As crianças foram enviadas à
escola, não apenas para educáolas para futuros empregos, mas também para colocar
nelas a disciplina do trabalho. A moral sexual da classe média foi propagada
amplamente entre a classe trabalhadora para diminuir a taxa de prostituição e as
doenças mortais e nascimentos fora do casamento, que eram suas consequências.
Em A Construção da Homossexualidade, David Greenberg faz um argumento
convincente sobre o motivo pelo qual a crescente ordem capitalista agudizou os
papéis de gênero e fortaleceu a ideologia da família. 29 As sociedades agrícolas da
América do Norte colonial dos séculos XVII e XVIII exigiam obediência rigorosa em um
mundo de trabalho rigoroso, onde havia pouca mobilidade social. As prioridades do
mercado do século XIX, no entanto, impulsionaram mudanças no que a nova
sociedade mais valorizava no caráter masculinoocompetitividade e desejo de
realização pessoal. Neste ambiente, a emocionalidade, a afetividade e a dependência
de outros signifcavam fraqueza e vulnerabilidade. Em 1860, os homens já não
abraçavam, choravam ou beijavam outros homens em público por medo de
parecerem afeminados.30 À medida que os homens deixavam a casa a busca de

York: Routledge, 1992), 13.


26
Weeks, Sex, Politics and Society, 29.
27
Colin Wilson, Socialists and Gay Liberation (London: Socialist
Workers Party, 1994), 11.
28
Quoted in Frederick Engels, The Condition of the Working Class
in England (New York: Penguin Books, 2005), 81.
29
Greenberg, Construction of Homosexuality, 356–58.
30
Ibid., 388.
emprego em fábricas e escritórios, o papel das mulheres em educar as crianças e
cuidar da casa moldava o novo ideal de gênero da mulher como afetiva e dependente
dos homens para sustento material e social.
A sociedade capitalista continua se debatendo com as contradições entre a
privatização do cuidado das crianças e da casa e as forças que destroem a família. A
família nuclear oferece hoje à classe dominante um meio barato para a alimentação e
preservação da força de trabalho atual e para a criar e disciplinar a próxima geração
de trabalhadores.
A família também tem uma função sociológica. Ao treinar os jovens a aceitar os
papéis sexuais tradicionaisoos homens são os inteligentes ou fortes provedores da
família, enquanto as mulheres são as companheiras afetivas e criadoras das crianças
oas famílias são incubadoras ideais de normas rígidas de sexo. Os comportamentos
homossexuais e transgêneros são um desafo a essa norma ideológica. Afnal, se as
mulheres podem parecer e agir "como homens" e os homens podem parecer e agir
"como mulheres" e/ou se homens e mulheres podem viver em relações com o mesmo
sexo e cada um possui atributos convencionalmente atribuídos exclusivamente a
homens ou mulheres, o gênero e as normas familiares são questionados. O
comportamento das minorias sexuais e genderobenders 31 enfraquece e até desafa
esses papéis sexuais e de gênero, atacando as atitudes mais desejáveis para o bom
funcionamento da sociedade capitalista.
Metade de todas as crianças americanas vivem em uma família monoparental em
algum momento, e metade de todos os casamentos terminam em divórcio. À medida
que as mulheres nas sociedades industrializadas se tornaram completamente
integradasoembora desigualmente pagasona força de trabalho, a capacidade das
mulheres de dissolver os casamentos e viver independentemente dos homens se
fortaleceu. Isso criou tensões entre a ideologia da família e a realidade da vida das
pessoas. Mesmo a dura batalha pelo aborto é uma expressão dessa contradiçãou
como as mulheres se tornaram fundamentais para a força de trabalho, o aborto é
economicamente necessário e socialmente desejável para muitas. Mas, apesar das
necessidades do capital de que as trabalhadoras tenham menos flhos e tenham
controle sobre se e quando engravidar, a direita continua a se opor ao aborto legal e a
reforçar a ideologia que fortalece a família nuclear e o ideal das mulheres como mães.
Atualmente a classe dominante norteoamericana está dividida na questão de legalizar
o casamento homossexual, porque, enquanto o casamento serve para legitimar ainda
mais os valores tradicionais da família, o casamento gay normalizaria a
homossexualidade e quebraria as divisões de gênero na classe trabalhadora. Assim, o
direito cristão não vê nenhuma contradição em venerar os valores familiares,
enquanto descreve o direito ao casamento entre pessoas do mesmo sexo como o
presságio do fm de tudo o que é sagrado. O incentivo de US$ 1,5 bilhões de George
W. Bush para incitar as mulheres pobres (heterossexuais) a se casarem e a
permanecerem casadas também foi alimentado pelo desejo da classe dominante de
descarregar qualquer responsabilidade de cuidar dos flhos de seus trabalhadores,
que têm cinco vezes mais chance de viver na pobreza e duas vezes mais risco de
abandonar a escola do que crianças com dois pais.32
A batalha por direitos matrimoniais iguaisoMassachusetts, Connecticut, Iowa,
Vermont e Maine são os únicos estados dos EUA em que o casamento do mesmo sexo
foi legalizado33oé sobre mais do que os 1.049 direitos e benefícios federais que
existem para aqueles que são casados. Os fanáticos da classe dominante que se
opõem aos direitos matrimoniais iguais entendem que esta batalha por direitos civis
31
NT: Pessoas que não seguem os papéis de gênero ou não se encaixam neles.
32
Sharon Lerner, “Bush’s Marriage Proposal,” Village Voice, May
1–7, 2002.
33
O Supremo Tribunal da Califórnia derrubou a proibição do casamento gay, mas em 4 de novembro de 2008, os eleitores
aprovaram a Proposição 8 que reverte esse direito e desencadeia uma nova onda de ativismo por direitos de casamento iguais
nos Estados Unidos. No momento em que o livro está sendo escrito, janeiro de 2009, não está claro como essa questão na
Califórnia será resolvida.
poderia abrir a porta ao fm de toda discriminação legal contra gays e lésbicas, do
mesmo jeito que a decisão do Tribunal Supremo da Califórnia de 1947 que derrubou a
proibição do casamento interoracial em Esse estado abriu o caminho para novas lutas.
O casamento gay também desafa a noção tradicional de como uma família deveria
ser. Sua legalização cria um confronto óbvio com a própria ideia de que existe algo
natural sobre a família nuclear heterossexual.

A construção da homossexualidade

O capitalismo moderno criou o "espaço social" para uma identidade gay emergir. 34 Os
centros industriais e fnanceiros concentraram as pessoas em grande número, criando
assim o potencial de anonimato que nunca antes existiu nas sociedades humanas.
Tendo criado a possibilidade dos indivíduos viverem separados de suas famílias e
experimentarem práticas práticas sexuais alternativas longe da estreiteza da vida
rural, a sociedade capitalista procurou então defnir e reprimir esse novo "desvio"
sexual. Como D'Emilio explica,

“À medida que o trabalho assalariado se espalhou e a produção se tornou socializada,


então, tornouose possível libertar a sexualidade do "imperativo" de procriar [...] Ao
tirar da família a sua independência econômica e promover a separação da
sexualidade da procriação, o capitalismo criou condições que permitem que alguns
homens e mulheres organizem uma vida pessoal em torno de sua atração
erótica/emocional com o seu próprio sexo.”35

A hostilidade do capitalismo industrial com a homossexualidade é única em


comparação com as leis das sociedades anteriores que puniam as práticas sexuais
alternativas. Enquanto as velhas leis condenavam atos homossexuais que
ameaçavam a procriação, novas proscrições foram promulgadas contra uma pequena
classe de pessoas cujo comportamento as distingue da maioria. Como o socialista
britânico Noel Halifax dizu "Sob o capitalismo, a sexualidade não era mais uma
'questão privada regulada pelas [...] tradições e preconceitos da comunidade', mas se
tornou 'uma questão pública para o estado.'"36
A estigmatização de homossexuais e lésbicas foi sistematizada como o "tipo
homossexual" sob a forma de uma pequena minoria de homens e mulheres cujos
interesses eróticos em outros do mesmo sexo chamavam a atenção das autoridades
legais e médicas nas grandes cidades na segunda metade da século XIX. Na Grão
Bretanha, as leis começaram a distinguir entre bestialidade e homossexualidade e,
pela primeira vez, a punir homens gays capturados buscando outros como eles em
locais públicos. Em 1861, a pena de morte para a sodomia foi encerrada e uma
sentença de dez anos de prisão, posteriormente alterada para dois anos de trabalho
forçado, foi promulgada porque as autoridades discerniram que uma sentença menos
dura que morte provavelmente seria aplicada com mais frequência.
Existem alguns historiadores que se opõem ao quadro construtivista social e, em vez
disso, argumentam que a homossexualidade é parte da essência dos povos e que
existiu ao longo da história. Este ponto de vista "essencialista" afrmau "o desejo gay é
congênito e depois é constituído em uma identidade gay signifcativa na infância". 37 O
Capítulo 7 abordará as reivindicações deterministas biológicas; no entanto, é
importante afrmar aqui a centralidade das forças econômicas e sociais em permitir a
possibilidade da existência de identidades LGBT como as entendemos hoje. Uma coisa
é argumentar que ocorreram atos sexuais entre indivíduos do mesmo sexo, uma vez
34
D’Emilio, “Capitalism and Gay Identity,” 7.
35
Ibid.
36
Noel Halifax, Out Proud and Fighting: Gay Liberation and the
Struggle for Socialism (London: Socialist Workers Party, 1988), 11.
37
Rictor Norton, The Myth of the Male Homosexual: Queer History
and the Search for Cultural Unity (London: Cassell, 1997), 14–15.
que havia humanos, e outra bem diferente é assumir uma identidade homossexual
supraohistórica.
O construtivismo social para os marxistas é materialista e dialético. 38 Em outras
palavras, baseiaose numa compreensão da história que vê os seres humanos tanto
como produtos do mundo natural como capazes de interagir com seus arredores
naturais; no decorrer de suas ações, os humanos mudam a si mesmos e o mundo ao
seu redor. Vários processos se desenvolveram ao longo do tempo para criar o
seguinteu 1) os espaços sociais para forescer o desejo pelo mesmo sexo; 2) a
formação através da repressão, resistência e acomodação de homossexuais autoo
identifcados com subculturas próprias; e 3) a regulamentação legal desses espaços
sociais que as autoridades defniram como "desviantes". Como o desenvolvimento da
identidade sexual ocorreu ao longo de muitos anos à medida que as mudanças sociais
permitiram que ela evoluísse, havia elementos da subcultura homossexual posterior
na era que precedeu a Revolução Industrial. Por exemplo, homens que faziam sexo
com homens em lugares conhecidos como Molly Houses no início do século XVIII em
Londres e Paris geralmente tinham esposas e flhos e abandonavam todas as afeições
afeminadas e tinham maneirismos masculinos quando deixavam esses locais para
trabalhar ou para ir para suas casas. Quando a Sociedade para Reforma dos Costumes
lutou para fechar essas Molly Houses em 1726 e fechou mais de vinte, era parte de
sua campanha contra sodomitas, prostitutas e aqueles que não honravam o sábadoo
não contra homossexuais.39
Quando essencialistas como Rictor Norton desafam construcionistas, argumentam
que alguns artistas e monges do Renascimento italiano eram homens gays, mas essa
afrmação também serve para destruir sua argumentação. A organização econômica e
social da vida forentina e monástica possibilitava que alguns homens nessas seções
do Velho Mundo expressassem seu desejo homossexualoprecisamente o que os
construcionistas argumentam. As condições, no entanto, ainda não haviam
amadurecido para que muitos fora das artes ou dos mosteiros expressassem esse
desejo ou para que aqueles que o fzessem se vissem ou fossem vistos por outros
como uma identidade sexual separada, distinta da heterossexualidade. Como um
historiador explica, "O homossexual, no entanto, não é simplesmente um 'sodomita'
que acidentalmente caiu em novas condições capitalistas." 40 O processo de
desenvolvimento de identidades gays, lésbicas ou bissexuais ocorreu ao longo do
tempo, com alguns elementos das novas relações sociais nas antigas e viceoversa.
Sem a capacidade de viver de forma autônoma, sem os esforços da sociedade de
limitar o potencial erótico de alguns seres humanos, e sem o desenvolvimento de uma
subcultura dessas novas categorias sociais, é provável que aqueles que se envolviam
com o que a sociedade moderna se refere como sexo gay tenham permanecido como
sodomitas.
Em Paris e Berlim, especialistas em medicina e direito na década de 1870
examinaram um novo tipo de "degenerado" para determinar se essas pessoas
deveriam ou não ser responsabilizadas por suas ações. A palavra "homossexualidade"
foi primeiramente cunhada em 1869 por um médico alemãoohúngaro chamado Karl
Maria Benkert (ele passou a ter o sobrenome Kertbeny depois de 1847). Benkert
escreveu uma carta aberta, questionando o desenvolvimento da ilegalidade da
homossexualidade em alguns estados alemães (a unifcação da Alemanha não
ocorreu até 1871). Benkert argumentou que a homossexualidade era "inata, não
adquirida" e, portanto, não deveria ser punida pelo estado.41
38
Aqui enfatizo que o construcionismo marxista é materialista e dialético porque existem outros, como os teóricos queer
discutidos no capítulo 6, que também são construcionistas e idealistas filosóficos, para os quais não há determinantes
materiais (biológicos ou não) para o comportamento sexual ou de gênero.
39
Allan Bray, Homosexuality in Renaissance England (London: Gay
Men’s Press, 1982), 81–114.
40
Gary Kinsman, The Regulation of Desire: Homo and Hetero Sexualities (New York: Black Rose Books, 1996), 49.
41
John Lauritsen and David Thorstad, The Early Homosexual
Rights Movement (1864–1935) (Ojai, CA: Times Change Press,
A homossexualidade como um "tipo" moderno evoluiu nos círculos científcos de um
"pecado contra a natureza" para uma doença mental. O primeiro estudo popular sobre
homossexualidade, Inversão Sexual por Havelock Ellis, em 1897, propôs a idéia de
que a homossexualidade era uma doença congênita que não deve ser punida, mas
tratada. Os sexólogos do século XIX desenvolveram ideias sobre a homossexualidade
como uma forma de insanidade. Uma teoria famosa afrmava que a
homossexualidade era o resultado de "aprisionamento"oa mente feminina estava
presa em um corpo masculino (ou viceoversa). Esta teoria amplamente disseminada
de "inversão" sexual pelo colega e amigo de Benkert, Karl Heinrich Ulrichs, referiaose
aos homossexuais como um terceiro sexo.42 Ulrichs foi o primeiro homem
abertamente "invertido" a falar favoravelmente sobre a homossexualidade em fóruns
públicos a partir da década de 1860.
Na verdade, levou mais de duas décadas após o advento do "homossexual" para que
que os médicos começassem a escrever sobre o "heterossexual". A ideologia
burguesa moderna assume que não precisamos rastrear a genealogia da
heterossexualidade porque deve ser uma prática e um conceito atemporal. Mas,
assim como a homossexualidade foi inventada, também foi a heterossexualidade.
A primeira instância registrada da palavra "heterossexual" remonta a revistas médicas
do início da década de 1890. A publicação em inglês da Psychopathia Sexualis do
médico vienense Richard von KraftoEbing, em 1893, realmente introduz
heterossexuais não como seres sexuais "normais", mas como aqueles com apetites
sexuais mais variados que incluíam atos sexuais nãooprocriadores, embora não com
aqueles do mesmo sexo.43 Em 1905, os termos heterossexual e homossexual estavam
em uso sufcientemente amplo para Sigmund Freud empregáolos para se referir a
tipos de pessoas e sentimentos, e não apenas atos sexuais. Suas sessões com vários
pacientes de classe alta o levaram a concluir que os homossexuais devem ser
tratados por sua "fxação" sobre o que ele afrmava ser um estágio "imaturo" de seu
desenvolvimento sexual. Curiosamente, a primeira entrada do dicionário Merriamo
Webster para a homossexualidade em 1909 descreveoa como "paixão sexual mórbida
por alguém do mesmo sexo", enquanto a heterossexualidade não foi defnida até
1923.44
Como materialistas históricos que acreditam que o comportamento e as atitudes das
pessoas são moldadas pelo seu ambiente material, segueose que os socialistas são
construcionistas quando se trata de questões de gênero e sexualidade. Em outras
palavras, a sexualidade é um comportamento fuido e não fxo, e suas várias
expressões foram historicamente determinadas.
A sociedade capitalista depende da família nuclear e da ideologia que a justifca. Entre
esses princípios ideológicos, há idéias sexuais reacionáriasoincluindo normas de
gênerooque não só reforçam a família, mas também são usadas para reforçar as
divisões entre os trabalhadores e os oprimidos, bem como para controlar nosso
comportamento. A criaçãooe a repressãoodo capitalismo das identidades sexuais
produziram divisões que muitas vezes se provaram letais. Em uma sociedade onde as
pessoas não fossem oprimidas, nem mesmo defnidas, pela sua identidade sexual, as
pessoas poderiam desenvolver uma sexualidade totalmente libertada.
(…)

CAPÍTULO SEIS
Em Defesa do Materialismo: Pós-modernismo, Políticas
Identitárias, e a Teoria Queer em Perspectiva

1995), 3.
42
Ibid., 7.
43
Ibid., 22.
44
Katz, Invention of Heterosexuality, 67.
Para os marxistas, a teoria é um guia para a ação, não um fm em si mesmo. "Os
flósofos apenas interpretaram o mundo de várias maneiras; o importante, no entanto,
é mudáolo,"45 como na famosa citação de Marx e Engels. Seu objetivo não era denigrar
a teoria ou os flósofos, mas desafáolos a enfrentar lutas da vida real para acabar com
a situação exploradora e opressiva que toda a classe trabalhadora enfrenta sob o
capitalismo.
Esse não é, infelizmente, o pensamento que dominou as discussões políticas e
teóricas sobre a libertação LGBT nas últimas décadas nos Estados Unidos. A política
LGBT centrouose na academia desde o declínio das lutas sociais nos países
industrializados ocidentais na década de 1970. Alguns dos participantes dos
movimentos do fnal da década de 1960 que foram para carreiras acadêmicas
perceberam os fracassos dessas lutas e dos estados pseudoosocialistas em alcançar a
libertação como indicadores de que a política Marxista e a estratégia de luta coletiva
eram, na melhor das hipóteses, anacronismos ou, na pior das hipóteses, fatalmente
falho. Em uma era de consumismo desenfreado e neoliberalismo que marcaram a
década de 1980 e além, muitos desses acadêmicos buscaram teorias alternativas ao
marxismo para a compreensão do mundo, incluindo a opressão LGBT. Eles
descobriram o pósomodernismo.
Apesar das intenções e das propensões radicais de muitos expoentes e adeptos do
pósomodernismo e seus desdobramentos políticosopolíticas identitárias e teoria
queeroessas ideias não armam pessoas com uma visão de mundo que pode derrubar
a opressão que as pessoas LGBT enfrentam. Na verdade, eles são uma negação não
apenas da política de classes, mas de uma análise materialista de como o mundo
funciona e como mudáolo. Enquanto as ideias pósomodernas parecem estar em
declínio nesta era política de desenvolvimento recente, eles dominaram o
pensamento acadêmico e o movimento LGBT por muito tempo e não desaparecerão
simplesmente sem que ativistas e teóricos encarem o desafo de substituíolos. O que
se segue é uma breve exposição do pósomodernismo, da política identitária e da
teoria queer e uma polêmica contra eles, porque a nossa compreensão desses
conceitos, muitas vezes abstratos, tem um impacto nas estratégias que os ativistas
desenvolvem para desafar o status quo. Afnal, "Sem teoria revolucionária não pode
haver movimento revolucionário", como V. I. Lenin argumentou em O que fazer?46

Pósomodernismo e as políticas identitárias

O crítico literário marxista Terry Eagleton defne o pósomodernismo comou

“[O] movimento contemporâneo do pensamento que rejeita totalidades, valores


universais, grandes narrativas históricas, bases sólidas para a existência humana e a
possibilidade de conhecimento objetivo. O pósomodernismo é cético quanto à
verdade, unidade e progresso, opõeose ao que vê como elitismo na cultura, tende ao
relativismo cultural e celebra o pluralismo, a descontinuidade e a heterogeneidade.”47

Este conjunto de ideias sofsticadasomuitas vezes escritas com palavras altamente


complexas e ininteligíveisoescondem uma visão profundamente antiomaterialista e
pessimista sobre a possibilidade de mudança. Considerando que o modernismo era
uma tendência intelectual marcada pela adesão ao pensamento racional e à
investigação científca, o pósomodernismo é uma crítica flosófca do conhecimento
objetivo. Os pósomodernistas argumentam que o conhecimento objetivo é uma ilusão
porque o que chamamos de "verdade" ou "conhecimento" só é particular a nossa
cultura e a linguagem ou "discurso" que vem até nós daqueles em posição de poder.
Seja criticando sistemas políticos, literatura ou artes plásticas, o pósomodernismo
45
Marx and Engels, MECW, vol. 5, 5.
46
Lenin, What Is to Be Done?, 25.
47
Terry Eagleton, After Theory (New York, Penguin Books, 2003), 13.
questiona todas as suposições teóricas e considera todas as afrmações como
contingentes e culturalmente relativas.
Muitos progressistas e radicais, incluindo alguns socialistas, chegaram a abraçar o
pósomodernismo e o pósoestruturalismo48ouma variante do pósomodernismoona
década de 1970, após os aparentes fracassos dos partidos e estados Stalinistas e
Maoístas nas transformações sociais que eles diziam defender. Vários dos precursores,
Jean Baudrillard, Jacques Derrida e Michel Foucault, eram intelectuais franceses
nascidos no início do século XX que foram profundamente infuenciados pelos horrores
do fascismo e a traição do massivamente infuente Partido Comunista Francês (PC).
Um evento que moldou seu pensamento sobre o mundo foi a traição do PC Francês no
meio da maior greve geral de todas, em 1968, quando dez milhões de trabalhadores
se ligaram a lutas estudantis de massas para levantar demandas radicais. O que
começou como uma revolta estudantil contra a Guerra do Vietnã em Nanterre, uma
universidade no subúrbio do oeste de Paris, tornouose um grande levante econômico e
social que expressou o descontentamento da classe trabalhadora francesa com a
repressão policial e a miragem da gratifcação consumista do pósoguerra para alguns
e com a pobreza para muitos. 49 Uma mistura de indignação antioautoritária e visões
socialistas para a transformação econômica e social total foram expressas através de
graffiti e banners em todos os cantos com slogans como "Seja Realista, Peça pelo
Impossível"50 e "O Chefe Precisa De Você, Você Não Precisa Dele." 51 No entanto, o PC
Francês, liderado por Moscou, traiu as aspirações de milhões de trabalhadores e
estudantes quando fez um acordo com o regime de Charles de Gaulle, assim dando
curtoocircuito à massiva rebelião econômica e social, canalizando demandas mais
amplas para reformas básicas e fnalizando as greves de semanas e as ocupações de
fábrica que ameaçaram o governo do General de Gaulle. Como o historiador socialista
Daniel Singer resumiuu "A liderança Comunista optou pela segurança de 'batalhas
parlamentares entre sapos e ratos.' Escolheu o caminho da derrota eleitoral."52
Enquanto os primeiros pósomodernistas se envolveram com os princípios marxistas
para buscar uma saída para a crise, inicialmente sem uma rejeição generalizada da
luta de classes, descartar a política de classes foi precisamente o resultado fnal já
que seguidores de Foucault e outros abandonaram qualquer crença na possibilidade
de uma nova ordem social. O próprio Foucault, que já tinha sido membro do PC
Francês, foi um oponente vitalício da ideologia burguesa ocidental e dos partidos
comunistas dominados por Moscou, que ele identifcava com o Marxismo. Como
homem gay que morreu em 1984 de AIDS, Foucault tem um status quase icônico
entre muitos intelectuais LGBT por suas contribuições teóricas para a compreensão da
sexualidade. Os marxistas concordam com o ponto de vista construcionista sobre as
identidades sexuais, como discutido no primeiro capítulo. No entanto, sua
equiparação do Stalinismo com o socialismo, bem como suas excursões teóricas
distantes das raízes materiais e sociais do poder e da opressão, discutidas abaixo,
tornam seu legado contraditório para a esquerda. "Foucault não usou habilidade
alguma para explicar a causalidade histórica", escreve William B. Turner. "Todas as
principais obras de Foucault contêm numerosas declarações causais. No entanto, eles
não contêm tentativas de explicar causalmente as principais mudanças de um
período ou episteme para outro,"53 explica Turner. Assim, sem uma compreensão
48
O estruturalismo é uma teoria da linguagem, associada a linguistas como Ferdinand de Saussure, e da cultura, associada ao
antropólogo Claude Levi-Strauss, que examina esses fenômenos como partes de sistemas complexos que têm uma relação
estrutural entre si. O pós-estruturalismo busca desestabilizar, "descentralizar" e subverter os pressupostos fundamentais,
questionando as visões tradicionais dos indivíduos na sociedade e rejeitando ou "desconstruindo" determinados significados
dos textos. Tal como no pós-modernismo, o pós-estruturalismo questiona a noção de universalidade e verdades objetivas no
domínio da teoria literária e cultural.
49
Veja Daniel Singer, Prelude to Revolution: France in May 1968
(Cambridge, MA: South End Press, 2002), xvi–xxvi.
50
Ibid., xv
51
Ibid., 69.
52
Ibid., 205.
53
William B. Turner, A Genealogy of Queer Theory (Philadelphia:
materialista de onde a opressão sexual surgiu, Foucault poderia oferecer poucas
ideias para combatêola. De acordo com o autor de Saint Foucault, "Foucault negava os
esforços ocasionais de intelectuais gays de esquerda de creditar seus escritos como
contribuição para o movimento de libertação gayu 'Meu trabalho não teve nada a ver
com a libertação gay', há relatos que ele disse isso a um admirador em 1975."54
A rejeição pelos pósomodernistas da luta de classes como um meio para libertar os
oprimidos se baseia não apenas na sua desilusão com a década de 1960, mas
também na avaliação das mudanças que ocorrem no capitalismo mundial. Os avanços
na globalização da produção em massa e a vinda da era da informação levaram
alguns a argumentar que os Estados Unidos e a Europa Ocidental se tornaram
sociedades "pósoindustriais". Como o jornal Britânico Marxism Today argumentouu

“Nosso mundo está sendo refeito. A produção em massa, o consumidor em massa, a


cidade grande, o big brother state55, o mercado imobiliário, e os estados nacionais
estão em declínio; fexibilidade, diversidade, diferenciação, mobilidade, comunicação,
descentralização e internacionalismo estão em ascensão. No processo, nossas
próprias identidades, nosso senso de si, nossas próprias subjetividades estão sendo
transformadas. Estamos em transição para uma nova era.”56

Embora o capitalismo, sem dúvida, tenha sofrido mudanças massivas na era


moderna, incluindo mudanças em como e onde a produção ocorre, a produção de
bens nunca deixou de ser uma característica central do capitalismo, mesmo no
Ocidente. Durante o período em que as ideias pósomodernas triunfaram, os anos
oitenta e noventa, o tamanho da força de trabalho manufatureira só dos EUA
aumentou em cinco milhões, apesar da diminuição do número de trabalhadores
industriais americanos em relação à força de trabalho geral. 57 Além disso, esses
pensadores pósoindustriais dizem que o setor de serviços em alta expansão dentro
das economias ocidentais é formado por trabalhadores cujo poder é de alguma forma
diminuído pelo caráter não industrial de seu trabalho. De fato, os professores,
enfermeiros, baristas, processadores de dados, trabalhadores de fastofood e caixas
são de fato trabalhadores explorados no sentido marxista clássico do termoovendem
sua força de trabalho aos capitalistas que se benefciam da diferença entre o valor do
serviço ou produto e o salário pago ao empregado. Apesar das mudanças estruturais
na força de trabalho, os trabalhadores de colarinho azul e branco da indústria e do
setor de serviços ainda possuem o poder central que Marx e Engels atribuíram a eles
em O Manifesto Comunista. Simplifcando, como a classe que produz riqueza na
sociedade capitalista, os trabalhadores têm o potencial de transformáola.
As origens de classe média de muitos dos exoradicais que desenvolveram e
promoveram ideias pósomodernas moldaram suas visões. Criados durante o maior
boom econômico da história do capitalismo, em particular nos Estados Unidos, onde a
educação superior era mais acessível do que nunca e o nível da luta de classes era
baixo, esses pensadores muitas vezes viam os trabalhadores como atrasados. O fato
de que a Guerra do Vietnã, que radicalizou a geração dos anos sessenta, foi apoiada
por muitos anos pela maioria dos trabalhadores brancos, apenas estimulou a noção
de que os trabalhadores estavam "comprados".58 Como o flósofo radical Herbert

Temple University Press, 2000), 18.


54
David M. Halperin, Saint Foucault: Towards a Gay Hagiography
(New York: Oxford University Press, 1995), 31.
55
NT: O Big Brother State (Estado do Grande Irmão ou Estado de Big Brother) é o nome dado a uma situação de vigilância
constante e de monitoramento pelo estado de todas as informações das pessoas, inclusive as pessoais. O nome é uma
referência ao livro O Grande Irmão de George Orwell.
56
“New Times,” Marxism Today, October 1988.
57
C. H. Feinstein, “Structural Change in the Developed Countries
in the 20th Century,” Oxford Review of Economic Policy 15, no. 4
(Winter 1999): table A1.
58
Sharon Smith, “Mistaken Identity—or Can Identity Politics Liberate the Oppressed?” International Socialism 62, (Spring
1994): 7.
Marcuse disse uma vezu "Por que a derrubada da ordem existente deveria ser de
necessidade vital para as pessoas que possuem ou podem desejar possuir roupas
boas, uma despensa bem abastecida, uma TV, um carro, uma casa e assim por
diante, tudo dentro da ordem existente?"59 No entanto, o declínio dos padrões de vida
da classe trabalhadora dos EUA nos últimos trinta anos revela as limitações de fazer
um retrato das condições e consciência de alguns trabalhadores em um ponto da
história. Uma ofensiva de décadas dos patrões que deixou dezenas de milhões sem
saúde e em empregos precários ou desempregados expõe como os trabalhadores,
mesmo na nação mais rica, continuam sendo uma classe explorada e oprimida.
Teorizando que está fora da existência a força humana que os Marxistas colocam no
centro das lutasoi.e., trabalhadoresopósomodernistas buscaram agentes alternativos
para mudar o mundo e alguns questionaram se a mudança fundamental é mesmo
possível ou desejável. Dois principais pósomodernistas, Ernesto Laclau e Chantal
Moufe, na sua obra Hegemonia e Estratégia Socialista, propuseram que "novos
movimentos sociais" poderiam substituir a classe trabalhadora "em
desaparecimento". Cada grupo oprimido, de acordo com essa noção, poderia formar
60

seu próprio movimento separado ou "autônomo", que se tornou conhecido na década


de 1980 como política identitária, também conhecida como política ID. Ativistas e
estudiosos das políticas identitárias defendem autonomia, isto é, separação de outros
em oposição à unidade, como seu principal princípio organizador. "A política
identitária também deve ser uma política de diferença," 61 argumenta o proponente
Jefrey Escoffier. Em vez da classe trabalhadora, os defensores da política de
identidade argumentam que mulheres, Negros, pessoas LGBT e outras minorias
oprimidas são unicamente capazes de defnir e combater sua própria opressão. A
professora lésbica Dana Cloud explica, "A chave para a política identitária é a ideia de
que de alguém pode de algum jeito explicar a opressão simplesmente se referindo a
sua experiência pessoal. Na política identitária, não há tentativa de explicar as
origens e as estratégias contra o racismo e o machismo, já que esses fenômenos são
teorizados como eventos psicológicos e experimentais e não como sistemas
ideológicos com base na realidade material."62
É óbvio que aqueles que experimentam o racismo, o machismo e/ou a homofobia têm
interesse em acabar com elesoe devem e geralmente desempenham papéis
fundamentais na organização de qualquer movimento contra eles. Mas a política
identitária vai muito mais longe. Ela exalta o pensamento "pessoal é político" que
afrma que o estilo de vida, as relações pessoais e as escolhas dos consumidores são
formas centrais de resistência política, muitas vezes levando a noções moralistas e
individualistas de desafar o sistema. "A política identitária dos grupos minoritários é
uma tentativa de ganhar acesso ao poder fora da arena pública (i.e., em particular, na
cultura),"63 explica a historiadora da AIDS, Cindy Patton. E faz isso "não só articulando
a experiência 'autêntica' subjetiva da opressãoofalando, saindo", dizendo como é ",
mas também usando a comunidade construída sobre essa identidade como base de
poder de bloco."64 O objetivo, de acordo com Patton e seus coopensadores, não é a
libertação humana nem mesmo o fm da opressão, mas a criação de espaços culturais
onde os grupos oprimidos possam se expressar livremente.
Os ativistas das políticas identitárias e a adesão da academia aos blocos de poder
baseados na identidade equivalem a uma rejeição da noção de que a classe é uma
divisão fundamental na sociedade, e assim negam a conexão entre exploração e
opressão. Escoffier é franco sobre como seu pessimismo com a oposição da classe
trabalhadora o levou a abraçar a identidade como alternativau "Nós estamos agora em
59
Herbert Marcuse, “Socialism in the Developed Countries,” International Socialist Journal, no. 8 (April 1965): 150–51.
60
Ernesto Laclau e Chantal Mouffe, Hegemony and Socialist Strategy: Towards a Radical Democratic Politics (London: Verso,
1985).
61
Retirado de Smith, “Mistaken Identity,” 16.
62
Cloud, “Queer Theory and ‘Family Values,’” 90.
63
Cindy Patton, Inventing AIDS (New York: Routledge, 1990), 124.
64
Ibid.
um período de declínio e desânimo. [...] A história recente da classe trabalhadora
americana mostra claramente que falta a ela a capacidade organizativa e política
para lutar de maneira efcaz pela transformação fundamental da sociedade." 65 Na
medida em que a classe é reconhecida neste esquema, é o "classismo" ou o
esnobismo que são condenados, ao invés da divisão real da sociedade em classes.
Quando acadêmicos tiraram a causa da opressão LGBT da sociedade de classesose é
que eles buscaram a fonte da opressãooencontraram ela no domínio das idéias, e
não no mundo material. O problema, para esses acadêmicos, são as ideias
reacionárias de pessoas heterossexuais, popularizadas pela mídia heterossexual e
aplicadas por um estado dominado por pessoas heterossexuais. Patton, como muitos
outros, argumenta que a homofobia é o resultado de uma "má atitude" ou "estado de
espírito" de alguns indivíduos, não o resultado de qualquer desigualdade estrutural
produzida pelo capitalismo.66 Essa noção de senso comum é credível através da
experiência real vivida pelas pessoas LGBT com a homofobia a partir de interações
pessoais com algumas pessoas heterossexuais que foram teorizadas como parte do
problema e, de certo modo, como benefciárias da opressão dos outros.
A teoria da opressão sexual como baseada ideologicamente, tirada de escritores como
Foucault, compartilha muitas das mesmas conclusões que a teoria do patriarcado. A
teoria do patriarcado chegou a ser quase hegemônica no movimento feminista e seus
expoentes radicais, como Heidi Hartmann, argumentam que a dominação masculina
não é um produto da sociedade de classes, mas é uma característica universal da
sociedade humana. O sexo, não a classe, é a divisão chave na sociedade, de acordo
com a teoria do patriarcado, e todos os homens se benefciam da opressão de todas
as mulheres. Hartmann defne o patriarcado como "um conjunto de relações sociais
entre os homens, que possuem uma base material e que, embora hierárquica,
estabelecem ou criam interdependência ou solidariedade entre os homens que lhes
permitem dominar as mulheres". Além disso, "a base material sobre a qual o
patriarcado se sustenta está fundamentalmente no controle do homem sobre a força
de trabalho das mulheres [...] O controle é mantido ao negar o acesso das mulheres
aos recursos econômicos produtivos necessários e ao restringir a sexualidade das
mulheres."67 O principal problema dessa teoria é que ela nega provas históricas de
que o domínio masculino não é uma característica universal de todas as sociedades
humanas, mas surgiu com as divisões de classe, como mostram evidências
antropológicas em Mitos da Dominação Masculina de Leacock.68 Outro problema é que
a teoria do patriarcado tenta agrupar todos os homens, incluindo os homens pobres e
da classe trabalhadora, na mesma categoria, concluindo, essencialmente, que os
homens semoteto oprimem pessoas como Hillary Clinton, por exemplo. Apesar da
alusão de Hartmann a uma base material, como teoria ela substitui a análise
materialista da opressão feminina enraizada na família nuclear com a noção de que a
ideologia é a base da opressão e da exploração.
A teoria do patriarcado encontrou um paralelo nas concepções da políticas ID sobre a
libertação gay na ideia de que as pessoas heterossexuais se benefciam da opressão
dos gays. A ideia de que as pessoas heterossexuais são o problema é argumentada
agressivamente no manifesto "Eu Odeio Héteros", distribuído pela primeira vez por
membros anônimos da Queer Nation na celebração do Orgulho Gay de Nova York em
junho de 1990. Diz em parteu

“Os héteros têm um privilégio que os permite fazer o que quiserem e foder sem medo
[...] Quero que haja uma moratória sobre o casamento hétero, sobre bebês, sobre
exibições públicas de afeto entre o sexo oposto e imagens da mídia que promovam
65
Quoted in Smith, “Mistaken Identity,” 16.
66
Cindy Patton, Sex and Germs: the Politics of AIDS (Cambridge,
MA: South End Press, 1985), 153.
67
Heidi Hartmann, “The Unhappy Marriage of Marxism and Feminism,” Capital and Class, no. 8 (Summer 1979): 14.
68
Veja o capítulo 1.
heterossexualidade. Até que eu possa desfrutar da mesma liberdade de movimento e
sexualidade, como os héteros, [sic] seu privilégio deve parar e deve ser entregue a
mim e minhas irmãs e irmãos queer. Os héteros não irão fazer isso de forma
voluntária e, portanto, devem ser forçadas a isso. Os héteros deve estar com medo
disso. Terrorizados [...] É mais fácil lutar quando você sabe quem é seu inimigo. Os
héteros são seu inimigo.”69

Esse sectarismo hostil contra a maioria da população difcilmente pode ser um modelo
de luta coletiva em uma sociedade na qual as pessoas LGBT provavelmente devem
ser uma minoria. A rejeição de héteros, como uma rebelião contra o status quo, é
como um grito primordial, e não a estratégia política de uma organização que quer
desafar a homofobia. Uma ativista lésbica negra veterana dos movimentos dos anos
1970, Barbara Smith, respondeu a este manifesto em uma carta à Outweek
"sugerindo que se os queers de cor seguissem sua política, em breve estaríamos
emitindo uma declaração intitulada 'Eu Odeio os Branquelos', incluindo queers
brancas de origem europeia."70 Para os Marxistas, a consciência sob o capitalismo é
misturada, às vezes contraditória e capaz de ser mudada pela experiência, argumento
e luta. A mudança positiva nas atitudes em relação às pessoas LGBT na mídia e
refetida nas pesquisas de opiniões desde os anos 1980 mostra que a hostilidade com
as pessoas devido à sua orientação sexualoou raça e gêneroonão é estática.71
Além disso, como diz D'Emilio, "os movimentos baseados na identidade
provavelmente atuam como uma barreira para a solução de injustiças baseadas em
classes, porque colocam num pedestal a lealdade grupal entre as linhas de classe." 72
Como em qualquer aliança de classes diferentes, aqueles com a maior confança,
tempo e conexõesogeralmente aqueles que são de classe média ou altaodirigem as
demandas e a perspectiva de novos movimentos sociais para atender às suas
próprias aspirações e não às da classe trabalhadora e dos pobres. "Em todos os casos,
os principais benefciários foram membros da classe média, aqueles com acesso a
educação e treinamento e privilégio que lhes permitiram aproveitar ao máximo a
igualdade de direitos e igualdade de oportunidades", explica D'Emilio. 73 Sua crítica
aqui não é de ativistas ou acadêmicos de classe média individuais, mas uma
avaliação precisa da classe média como força social. A proliferação de departamentos
de estudos queer e de gênero nas principais universidades e da mídia focada em
LGBTs e outros mercados culturais são alguns dos resultados desses movimentos
políticos identitários e são avanços bem vindos. No entanto, eles realmente não
atendem as necessidades materiais da maioria das minorias sexuais, nem enfrentam
os problemas fundamentais enfrentados pela maioria das pessoas LGBT que são da
classe trabalhadora.

Discursoolutando frases com frases

Um dos preceitos básicos do pósomodernismo, no qual as políticas identitárias e a


teoria queer se inspiram, é que não há verdades objetivas, pelo menos nenhuma que
possamos saber com certeza. A verdade ou a realidade para os pósomodernos é uma
questão de percepção, já que não podemos realmente conhecer a realidade porque é
mediada pela linguagem. Este é um conceito incrivelmente oxímoro, pois se já houve
uma alegação de verdade posando como uma antioverdade, então não há uma
verdade objetivaoou se ela existe, não podemos realmente conhecêola.
Os pósomodernos desafam a validade de todas e quaisquer visões mundiais
69
Texto do panfleto original foi postado em http://www.qrd.org/qrd/
misc/text/queers.read.this.
70
Retirado de Smith, “Mistaken Identity,” 19.
71
Veja as pesquisas citadas no capítulo 1.
72
John D’Emilio, The World Turned: Essays on Gay History, Politics
and Culture (Durham, NC: Duke University Press, 2002), 143.
73
Ibid.
universalizantes, que muitas vezes chamam de "metanarrativas". Como Jean François
Lyotard explica, "eu defno o pósomoderno como a incredulidade com as
metanarrativas,"74 isto é, o ceticismo em relação à "existência de qualquer padrão
geral sobre o qual basear nossa concepção de uma teoria da verdade ou de uma
sociedade justa."75 Com o marxismo percebido como "o deus que falhou," não só os
acadêmicos rejeitaram os modelos existentes de "socialismo", mas também tornaram
desprezíveis os interesses de classe, a luta de classes e, junto com a classe
trabalhadora, todos os agentes materiais de mudança. Alguns desses pensadores póso
modernos, como Ernesto Laclau e Chantal Moufe, chamam a si mesmos de "póso
marxistas", que, embora seja verdadeiro cronologicamente, seria melhor descrito
como antiomarxistas. Ellen Meiksins Wood explica em seu trabalho apropriadamente
chamado de Retreat from Class/Fuga das Classes, que Laclau e Moufeu

“minaram os próprios fundamentos da visão Marxista de que a classe trabalhadora


será o agente da transformação socialista e substituiram ela por um projeto político
cujo tema é "democracia radical" e cujo sujeito é uma aliança popular constituída não
por relações de classe, nem mesmo por quaisquer relações sociais determinadas, mas
sim por meio de discursos.”76

Por que "discurso"? Após a derrota da greve geral francesa em 1968, alguns foram
buscar teorias alternativas para explicar suas decepções. Foucault colocou o discurso
como o meio através do qual a interação humana é regulada e o pensamento é
derivado. Para Foucault e outros, o discurso era "um grupo de declarações que
fornecem uma linguagem para falar sobre [...] um tópico em particular em um
momento histórico particular." "Nada", argumentou, "tem signifcado fora do
discurso".77 Foucault não estava negando a realidade material, mas colocando a
noção de que os objetos só têm signifcado através do discurso, que rege o modo
como a realidade pode e não pode ser discutida. "Através dos vários discursos",
escreveu, "as sanções legais contra perversões menores foram multiplicadas; a
irregularidade sexual foi anexada à doença mental; desde a infância até a velhice,
uma norma de desenvolvimento sexual foi defnida e todos os desvios foram
cuidadosamente descritos."78 Em vez de ser parte da sociedade, Foucault acreditava
que a linguagem constrói a sociedade, dando assim "à linguagem poderes de criação
de realidade tão formidáveis quanto aqueles presentes em afrmações de que a
linguagem é livre da sociedade [...] Para ele, o próprio discurso constituiu e reproduziu
relações de poder na sociedade."79
Esta forma de idealismo linguístico em que a linguagem molda a realidade ao invés de
ser um meio de relações sociais que refete e é um produto da realidade foi refnada
pelo flósofo Jacques Derrida. Ele escreveuu "Não há texto externo," 80 o que signifca
que não podemos realmente conhecer objetos fora do que pode ser falado ou escrito
sobre, não que não exista realidade. Este é um enorme poder com o qual imbuir
conceitos e palavras; na verdade, equivale a virar a realidade de cabeça para baixo. A
visão do mundo do pósomodernismootodos os protestos contra as metanarrativas de
ladooé que nossa consciência expressa através do discurso determina nosso mundo
material. No entanto, nosso idioma descreve o mundo exterior de forma mais ou
menos acurada, e nossas ideias e a linguagem que usamos para expressáolos são

74
Retirado de Alex Callinicos, Against Postmodernism: A Marxist
Critique (Cambridge, MA: Polity Press, 1989), 3.
75
Ibid.
76
Ellen Meiksins Wood, The Retreat from Class: A New “True” Socialism (New York: Verso, 1986), 54.
77
Stuart Hall, “The West and the Rest: Discourse and Power,” em Stuart Hall and Bram Gieben, eds., Formations of Modernity
(Open University/Polity Press, 1992), 275–330.
78
Michel Foucault, History of Sexuality, vol. I (New York: Pantheon Books, 1976), 36.
79
Marnie Holborow, “Putting the Social Back into Language:
Marx, Volosinov and Vygotsky Reexamined,” Studies in Language and Capitalism 1 (2006): 2.
80
Retirado de Callinicos, Against Postmodernism, 76.
moldados e, por sua vez, ajudam a moldar esse mundo externooo processo é
dinâmico. Como Marx e Engels escreveramu

“Em contraste direto com a flosofa alemã que desce do céu para a terra, aqui nós
ascendemos da terra ao céu. Ou seja, não partimos do que os homens dizem,
imaginam, concebem, nem dos homens como narrados, pensados, imaginados,
concebidos, para chegar aos homens na carne. Nós partimos de homens reais e
ativos e, com base em seu processo de vida real, demonstramos o desenvolvimento
dos refexos ideológicos e dos ecos desse processo de vida [...] Moralidade, religião,
metafísica, todo o resto da ideologia e suas formas correspondentes de consciência,
portanto, não mais conservam a aparência da independência. Eles não têm história,
não têm desenvolvimento; mas os homens, desenvolvendo sua produção material e
sua relação material, alteram, junto com a existência real deles, seus pensamentos e
os produtos de seus pensamentos. A vida não é determinada pela consciência, mas
pela consciência pela vida.”81

A lógica pósomoderna levou alguns a tirar conclusões reaccionárias. Imagens, para


Baudrillard e seus coopensadores, não representam o mundo; em vez disso, "temos
um mundo de imagens, de evocações alucinantes de um real inexistente." 82 Esta
distopia pósomoderna leva a uma sensação de fatalismo e passividade diante de um
mundo em que não podemos assumir a realidade sob a aparência superfcial das
coisas. Se a verdade é simplesmente percepção, mesmo a opressão das pessoas
LGBT deve ser questionada como meramente a assombração de uma minoria sexual
e não uma força sistemática, institucional e cultural que pode esmagar a vida das
pessoas. O Eagleton localiza perceptivamente o caráter de classe desta postura
teórica na academiau "Aqueles que são privilegiados o sufciente para não precisar
saber, para quem não há nada politicamente em jogo numa cognição razoavelmente
precisa, têm pouco a perder proclamando as virtudes da indecidibilidade." 83
Para os marxistas, as ideias do senso comum são moldadas em parte pelas "ideias
dominantes" na sociedade. Como Marx e Engels afrmamu "As ideias da classe
dominante são em todas as épocas as ideias dominantes, ou seja, a classe que é a
força material dominante da sociedade, é ao mesmo tempo sua força intelectual
dominante."84 Por exemplo, a mudança do fnal do século XIX de certas práticas
sexuais evoluindo para o conceito de sexualidades fxas surgiu das necessidades
materiais do capitalismo industrial. A necessidade dos capitalistas de garantir a
reprodução dos trabalhadores mantendo de forma barata a eles desenvolveuose na
defesa ideológica da classe dominante da família nuclear, e com eles os papéis de
gênero "naturais" e o que pode e não pode sexualmente. Mudanças no mundo
material moldam as necessidades ideológicas da classe no poder para alterar e limitar
nossas vidas sexuais.
Entre os conceitos mais desorientadores do pósomodernismo está a compreensão do
que é o poder e como desafáolo. Os Marxistas localizam relações estruturais de poder
entre a vasta classe de trabalhadores que vendem sua força de trabalho e a pequena
classe de empregadores que os exploram e em cujo interesse o Estado e sua polícia,
tribunais, militares, etc., servem. Em contraste, os pósomodernos localizam o poder ao
redor deles. Foucault explicouu "O poder está em toda parte; não porque envolvr tudo,
mas porque ele vem de todos os lugares [...] o poder não é uma instituição, nem uma
estrutura."85 Ele seguiu argumentandou" O indivíduo que o poder constituiu é ao
mesmo tempo seu veículo."86 Apesar de fornecer exemplos elaborados de como o
81
Marx and Engels, MECW, vol. 5, 36–37.
82
Callinicos, Against Postmodernism, 145.
83
Terr y Eagleton, The Illusions of Postmodernism (Malden, MA:
Blackwell Publishers, 1996), 5.
84
Marx and Engels, MECW, vol. 5, 36–37.
85
Foucault, History of Sexuality, 93.
86
Ibid.
sistema penal e a sistema médico são utilizados como ferramentas de controle social,
não há explicação de como e por que esses sistemas vieram a ser e a serviço de
quem eles funcionam. Para Foucault

“O poder não é uma substância, mas uma relação. O poder não é, portanto, possuído,
mas exercido. Isso signifca que o poder não deve ser conceitualizado como
propriedade de alguém que possa ser identifcado e confrontado, nem deve ser
pensado (pelo menos em primeira instância) como incorporado em agentes ou
instituições particulares. O poder não é uma possessão do Monarca ou do Pai ou do
Estado, e as pessoas não podem ser divididas entre aqueles que "têm" e aqueles que
não têm. Em vez disso, o poder é o que caracteriza as relações complexas entre as
partes de uma sociedadeoe as interações entre os indivíduos nessa sociedadeocomo
relações de poder contínuas [...] O poder, então, não deve ser entendido de acordo
com o modelo de um vetor unidirecional do opressor ao oprimido. Em vez disso, é um
meio fuido, abrangente, imanente em todos os tipos de relação social [...]”87

Desvinculado de sua base de classe, o poder tornouose uma noção sem raízes,
onipresente e vaga. Se o poder está em todo lugar (e em lugar nenhum), a mudança
social fundamental é uma ilusão. Usando conceitos semelhantes, o popular livro de
2002 de John Holloway convocou o movimento de justiça global para Mudar o Mundo
Sem Tomar o Poder, dissolvendo o poder e criando o "antiopoder" dentro de nós
mesmos. A revolução para os pósomodernos deixou de signifcar transformar o
mundo; Em vez disso, o mundo deve ser modifcado metafsicamente. Ou, como é
explicado em Saint Foucault, "O objetivo de uma política de oposição não é, portanto,
a libertação, mas a resistência." 88 O objetivo da resistência tornaose a sobrevivência,
"encontrando a melhor maneira de lidar [...] dentro dos arranjos sociais existentes" 89
não a vitória sobre poderes opressivos.
Com essa noção, a própria linguagem tornaose o local da luta, não apenas uma
ferramenta que as pessoas podem usar para desafar sua opressão. As palavras
"queer", "sapatão" e "bicha"oxingamentos que gerações de homens afeminados e
mulheres masculinas encontraram rabiscados nos armários do ensino médiootornamo
se armas para combater o poder. Em 1990, um novo grupo LGBT que se chamava de
Queer Nation foi fundado para combater a homofobia, muitas vezes através de
pequenas ações diretas, chamadas "zaps", voltadas para chocar as pessoas héteros,
como vestirose de maneiras estereotipadas e fazer beijaços em shoppings
suburbanos. Os membros fundadores da Queer Nation explicaram o nome do grupo
desta formau "É a ideia de reapropriar as palavras de nossos opressores e realmente
reocontextualizar o termo 'queer' e usáolo de forma positiva para nos empoderar [...]
Agora podemos realmente nos juntar em torno da palavra, e isso confunde nossos
opressores. Isso nos faz sentir mais fortes." O outro ativista acrescentou, "Nós os
privamos de poder usar esse termo." 90 Como Sharon Smith argumenta, "Isso refete a
crença de que usar certas linguagens 'politicamente corretas' pode afetar as
condições que massas de gays e lésbicas enfrentam na sociedade. Isso não é
verdade. Se os ativistas da Nação Queer se sentiram ou não pessoalmente
'empoderados' usando o termo 'queer', a grande maioria das pessoas continuará a
consideráolo como uma ofensa."91
Na reunião de lançamento do grupo na cidade de Nova York, uma disputa sobre o
nome revelou a mentalidade de muitos que defendiam o 'queer' como uma
celebração da marginalização e expressaram o desejo de usar o status de excluídos
como um emblema de honra. Como um defensor explicou seu uso de queer, signifca
87
Quoted in Colin Gordon, ed., Power/Knowledge: Selected Interviews and Other Writings (New York: Pantheon Press, 1980),
98.
88
Halperin, Saint Foucault, 16–17.
89
Ibid., 18.
90
Retirado de Smith, “Mistaken Identity,” 18.
91
Ibid.
que "Não somos patológicos, mas não pense que por isso queremos ser normais." 92
Embora a palavra queer tenha se transformado nos últimos anos em um termo mais
amplo para a rebeldia de gênero e sexualidade, refetiu para muitos naquela época
uma rejeição do poder e uma aceitação do exílio social. A proeminente teórica queer,
Eve Sedgwick, parece realmente manter a irreparabilidade do "queer" como algo
bomu "Se queer é um termo politicamente potente, o que é, é porque, longe de se
afastar da vergonha da infância, ele usa essa cena como uma fonte quase inesgotável
de energia transformativa."93 A marca de nascença da Nação Queer foi, então, um
derrotismo militanteoa militância retórica substituiu a luta coletiva. O objetivo desses
novos movimentos sociais pósomodernos, como explica um advogado, era "menos 'o
fm da dominação' ou 'libertação humana' e mais a criação de espaços sociais que
incentivem a proliferação de prazeres, desejos, vozes, interesses, modos de
individualização e democratização."94
O fascínio dos pósomodernos com o discurso como determinante lembra uma geração
anterior de flósofos de quem Marx e Engels se separaram, os Jovens Hegelianos, que
também acreditavam que "o progresso humano é retido principalmente por ilusões,
ideias equivocadas e falsas consciências." 95 Em uma crítica que pode ser aplicada
mais de 150 anos depois, Marx e Engels argumentaramu

“Essa demanda de mudança de consciência equivale a uma demanda para interpretar


o mundo existente de maneira diferente, i.e., reconhecêolo por meio de uma
interpretação diferente. Os ideólogos JovensoHegelianos, apesar de suas frases
supostamente "que abalam o mundo", são os conservadores mais frmes. A mais
recente deles foi encontrar a expressão correta de sua atividade quando eles
declararam que estão apenas lutando contra "frases". Eles esquecem, no entanto,
que eles mesmos opõem frases a estas frases e que não estão de forma alguma a
combater o mundo real existente quando estão combatendo apenas as frases deste
mundo.”96

A ativista e autora transgênero Riki Wilchins captura esse dilema com um toque mais
contemporâneou "se o discurso é tão poderoso, a liberdade é impossível. Não
podemos escapar do poder discursivo como não podemos da nossa própria
subjetividade [...] O discurso vira o Borg do Star Treku 'A resistência é inútil.'"97
O discurso como determinante está em contraste com os movimentos anteriores do
Black Power e da libertação das mulheres e dos gays, onde termos como "colorido",
"Negro", "menina" e "queer" foram rejeitados através de lutas de massa para
reivindicar os nomes que exigiam poder, que se encaixavam na era combativa. É
importante ver que essas lutas iniciais para ampliar e expandir sua infuência nunca
se chamaram usando ofensas raciais ou sexuais. Mas enquanto Marx e Engels
criticaram os Jovens Hegelianos pela inaplicabilidade de suas ideias no mundo
exterior, uma tempestade perfeita de circunstâncias no fnal do século XX colocou em
ação muitos que olhavam para os conceitos desses neooidealistas como orientação. O
casamento do antiomaterialismo e do ativismo nem sempre foi feliz.

Políticas identitárias em ação

"Silêncio=Morte" não era apenas um mote pungente para o novo movimento da AIDS;
era perfeitamente adequado à era política que o gerava. Este slogan, em impressão
branca em cartazes pretos com um triângulo rosa invertido que lembra os emblemas
92
A autora esteve nas reuniões iniciais do Queer Nation (Nação Queer) na cidade de Nova York na primavera e no verão de
1990.
93
Eve Kosofsky Sedgwick, Tendencies (Durham NC: Duke University Press, 1993), 4.
94
Retirado de Cloud, “Queer Theory and ‘Family Values,’” 90.
95
Phil Gasper, “The German Ideology,” International Socialist Review, January–February 2004, 84.
96
Marx and Engels, MECW, vol. 5, 30.
97
Riki Wilchins, Queer Theory, Gender Theory: An Instant Primer (Los Angeles: Alyson Publications, 2004), 103.
da era Nazista para homossexuais, apareceu pela primeira vez nos faróis e paredes do
baixo Manhattan em 1986.98 Até os últimos dias do segundo mandato de Ronald
Reagan em 1987, o presidente não se importou nem em pronunciar a palavra "AIDS",
uma doença que, naquele momento, matou mais de 20 mil americanos e infectou
mais de 50 mil pessoas em 113 países nos seis anos desde que foi diagnosticada. 99
Naquele ano, três de quatro casos de AIDS na cidade de Nova York foram
diagnosticados em homens gays, de acordo com o dramaturgo Larry Kramer, o que
ajudou a iniciar a organização de serviços Gay Men's Health Crisis (GMHC) e o grupo
de ação direta ACT UP.100 A demanda urgente de Kramer por ação apareceu pela
primeira vez no New York Native na peça "1.112 e Contando" de 1983, que começou,
"Se este artigo não assustar muito vocês, estamos com problemas reais. Se este
artigo não o deixar com raiva, fúria, ódio e ação, os homens gays podem não ter
futuro nesta terra. Nossa existência contínua depende do quanto de raiva você
conseguir ter."101
Tanto quanto a própria doença, foi o clima político sujo que alimentou o
desenvolvimento da crise que levou Kramer a soar o alarme. O diretor de
comunicações de Reagan, Pat Buchanan, disse que a AIDS era a "vingança da
natureza contra homens gays", enquanto o extremista de direita Cristão Jerry Falwell
disse, "a AIDS é a ira de Deus contra os homossexuais". 102 O Moral Majority (Maioria
Moral), um dos grupos mais proeminentes de direita da época, fez um chamado
massivo para arrecadar fundos que dizia, "Por que os contribuintes devem gastar
dinheiro para curar doenças que não deveriam nem começar em primeiro lugar? [...]
Mas vamos deixar a comunidade homossexual fazer sua própria pesquisa. Por que o
contribuinte americano deve resgatar essas pessoas pervertidas?" 103 As leis antio
sodomia no Texas e na Georgia em 1983 foram justifcadas com base no fato de que a
homossexualidade "causou" a doença.104 E o Charles Krauthammer da New Republic
(Nova República) argumentou nesse ano, "Assim como a sociedade estava pronta
para conceder que a homossexualidade não é uma doença, vem com isso a ideia de
que a homossexualidade causa doenças."105 Todos eles, por meio de indiferença e/ou
ofensas, expressaram a cruel homofobia que dominou a mídia dos EUA na década de
1980.
Qualquer crítica aqui dos movimentos que surgiram para desafar esse estado de
coisas é solidária com seus objetivos como ponto de partida. Grupos como o ACT UP
tiveram vitórias signifcativas, incluindo ensaios clínicos de medicamentos sem
precedentes, escalada de tratamentos experimentais e atenção generalizada,
simpatia e aceitação de pessoas com AIDS. No entanto, as perspectivas políticas que
guiaram muitos desses ativistas muitas vezes levaram a divisões amargas e
desnecessárias e muitas vezes rejeitaram os aliados diretos de todas as raças, criando
um clima inóspito para ativistas comprometidos da esquerda organizada, inclusive
aqueles que eram LGBT e eles próprios tinham HIV/AIDS.
Grupos como o ACT UP, que entraram em cena em março de 1987, e Queer Nation
(Nação Queer), que vieram do ACT UP em 1990 para combater a homofobia, aderiram
ao conceito de políticas identitárias, que considerava apenas aqueles que

98
Patton, Inventing AIDS, 161.
99
Allen White, “Reagan’s AIDS Legacy: Silence Equals Death,”
San Francisco Chronicle, June 8, 2004.
100
Larry Kramer, “The Beginning of ACTing Up,” (1987) in We Are
Everywhere: A Historical Sourcebook of Gay and Lesbian Politics,
ed., Mark Blasius and Shane Phelan, (New York: Routledge,
1997), 609.
101
Kramer, “1,112 and Counting,” in ibid., 578.
102
Retirado de White, “Reagan’s AIDS Legacy.”
103
Retirado de John-Manuel Andriote, Victory Deferred: How AIDS
Changed Gay Life in America (Chicago: University of Chicago
Press, 1999), 67–68.
104
Ibid., 69.
105
Retirado de ibid.
compartilhavam uma identidade comum e que diretamente experimentam uma forma
de opressão como capazes de lutar contra essa opressão. Muitos dos fundadores do
ACT UP, que eram HIV positivo, eram executivos, cineastas, produtores de TV,
dramaturgos e outros profssionais que tinham meios fnanceiros, educação e
confança para criar uma rede de ativistas em todo o país na época antes da
Internet.106 Um consultor de negócios de Manhattan de trinta e cinco anos que se
juntou ao ACT UP depois que seu amante morreu de AIDS explicou sua vida antes do
ativismou "Eu estava em uma típica viagem materialista yuppie 107."108 As reuniões
começaram toda semana com a homenagem a um membro, amigo ou amante que
morreu naquela semana, aumentando a sensação de urgência e sobriedade ao
processo muitas vezes caótico em que ações múltiplas eram debatidas e planejadas.
Mas a militância superfcial impulsionada pela letalidade da doença mascarou uma
perspectiva política que era extremamente estreita e de classe média em sua
orientação. Como um jornalista com AIDS descreveu isso, "o ACT UP sempre em parte
um teatro, em parte terapia em grupo."109
Coerente com as suspeitas pósomodernas da unidade e da luta coletiva, as ações zap
opequenos eventos direcionados organizados por grupos de afnidade, muitas vezes
constituídos por amizadeoganharam de propostas por atos e marchas mais amplas
que poderiam atrair aliados e mobilizar os outros. Um dos principais membros do
Comitê de Tratamento e Dados do ACT UP New York descreve como algumas ações
zap, apesar das boas intenções, poderiam ser contraproducentesu

“Algumas frações do ACT UP queriam se desvincular das reuniões de pesquisa e não


queriam trabalhar com outros grupos comunitários e ativistas. Eles interromperam
conferências para protestar contra dois estudos, o ACTG 076 e o ACTG 175. Em vez
de propor melhorias a esses testes, eles queriam "Parem o 076!" E "Parem o 175!" Se
tivessem conseguido, duas das descobertas mais dramáticas dos anos 1990 nunca
teriam ocorrido. Os ativistas podem impedir a pesquisa ou também podem melhoráo
la.”110

Um funcionário da GMHC sugere que algumas ações do ACT UP foram


contraproducentes porque "O objetivo tornouose mais a expressão pessoal e menos a
mudança".111 Por exemplo, um pequeno grupo de membros do ACT UP de Washington,
D.C., se algemaram com lobistas da AIDS em 1992 devido a um desacordo sobre a
reunião dos lobistas com os Centros de Controle de Doenças (CDC). A advogado
lésbica e ativista Urvashi Vaid argumenta, "O declínio do ACT UP e da ação direta
começou, na minha opinião, no instante que a cobertura da mídia das ações distorceu
o cálculo político do certo e do errado."112
Enquanto os funcionários governamentais criaram rapidamente uma hierarquia de
pacientes e colocaram vítimas "dignas" de câncer de mama contra os "indignos"
sofredores de AIDS, em seus primeiros anos o ACT UP recusouose a defender um
sistema de saúde universal, apesar de um número crescente de americanos
enfrentando a falta de um sistema de saúde. 113 (Na sua vigésima marcha de
106
Andriote, Victory Deferred, 161.
107
NT: Yuppies são jovens profissionais entre os 20 e os 40 anos de idade, geralmente de situação financeira intermediária entre
a classe média e a classe alta.
108
Retirado de Jason Deparle, “Rude, Rash, Effective, Act Up Shifts
AIDS Policy,” New York Times, January 3, 1990.
109
Jeffrey Schmalz, “Whatever Happened to AIDS?” em Blasius e
Phelan, We Are Everywhere, 694.
110
Mark Harrington, “From Therapeutic Utopianism to Pragmatic
Praxis: Some Transitions in the History of AIDS Treatment Activism,” May 1996, excerpts from this speech given at the “Acting
on AIDS” conference, Institute for Contemporary Art in London,
TheBody.com, http://thebody.com/content/art1461.html.
111
Retirado de Andriote, Victory Deferred, 252.
112
Ibid.
113
A autora foi uma participante ativa na unidade de Nova York do ACT UP de 1988 até o começo dos anos 1990. Para
documentação sobre a composição, alguns debates e o caráter das reuniões e ações do ACT UP, veja Deparle, “Rude, Rash,
aniversário no baixo Manhattan em 2007, no entanto, o ACT UP anunciou o
lançamento de uma campanha de dois anos para lutar ao lado dos aliados por um
sistema público de saúde universal.114) Como Bob Nowlan supõe com razão, quando o
movimento gay aceitou o tratamento médico da AIDS como um problema de saúde
separado que só afetava certas populações marginais da sociedade, caiu no jogo dos
que estavam no poder, que estavam satisfeitos em não ter que investir para resolver
uma doença que inicialmente afetava principalmente homens gays e usuários de
drogas intravenosas.115 As estratégias para o movimento eram determinadas com
base na experiência pessoal, ao invés de usar lições da história ou através da
colaboração com aqueles que não são afetados pela AIDS. Ativistas com uma
estratégia política mais ampla, como os Marxistas, eram vistos com suspeita por
escritores da AIDS como Cindy Patton e Simon Watney. Por exemplo, em Policing
Desireu Pornography, AIDS and the Media (Policiando o Desejou Pornografa, AIDS e a
Mídia), Watney denuncia os Marxistas como "separatistas puritanos" e rejeita qualquer
teoria unifcada de como se aproximar da crise da Aids, optando por estratégias
"pragmáticas" como lobby e procurando a Princesa Diana, que ocasionalmente
interrompeu seus deveres monárquicos para segurar bebês com AIDS ou participar de
um concerto benéfco.116
Coerente com as políticas ID, o ACT UP sempre defendeu a participação ativa das
lésbicas através da insistência de que as mulheres que fazem sexo com outras
mulheres eram tão propensas quanto os homens a contrair HIV/AIDS e, portanto,
tinham uma participação direta na luta.117 No entanto, enquanto muitas ativistas
proeminentes da AIDS de então e de hoje são lésbicas, os estudos não confrmam a
afrmação de que as mulheres que fazem sexo exclusivamente com mulheres são
muito propensas a contrair HIV/AIDS. Qualquer pessoa que seja sexualmente ativa
pode contrair AIDS, e há fatores de risco para profssionais do sexoomuitas, se não a
maioria, são mulheres. Mas de acordo com os últimos dados do CDC sobre aqueles
que apresentaram resultados positivos para o HIV/AIDS, "Das 534 (de 7.381) mulheres
que fzeram sexo apenas com mulheres, 91 por cento também tinham outro fator de
riscootipicamente, uso de drogas injetáveis."118 O ponto aqui não é espalhar uma
falsidade sobre a imunidade lésbica à AIDS, mas sim questionar a estreiteza de uma
visão política que começa com o pressuposto de que as pessoas devem ser
convencidas a acreditar que elas provavelmente irão contrair a AIDS para se envolver
em um movimento para lutar pela cura e contra a indiferença institucional.
A prevalência de conceitos pósomodernos na Queer Nation (Nação Queer) e outros
movimentos LGBT no fnal do século XX correspondeu não apenas aos antecedentes
educacionais e de classe de muitos dos principais ativistas, mas também com uma
noção comum de que em uma sociedade pósoindustrial a classe trabalhadora não
poderia ser vista como agente de mudança. E mesmo que pudesse, o ressurgimento
da hostilidade com as pessoas LGBT no início da epidemia americana de AIDS
certamente signifcou na mente de muitos ativistas que as pessoas héteros da classe
trabalhadora não eram aliadas. Os trabalhadores da saúde e farmacêuticos (e seus
sindicatos) empregados pelas corporações gigantes, que muitas vezes eram alvo de
ações, não foram percebidos como potenciais apoiadores a serem conquistados para
a luta pelo fnanciamento e desenvolvimento da pesquisa. Essa mentalidade de
nós/eles ditou as ações dos grupos. Uma das atividades frequentes da Queer Nation

Effective,” e “ACT UP Capsule History,” http://www.actupny.org/documents/capsule-home.html.


114
Emily Douglas, “ACT UP’s New Urgency,” Nation, April 3, 2007.
115
Bob Nowlan, “Post-Marxist Queer Theor y and the ‘Politics of
AIDS,’” in Zavarzadeh, Ebert, and Morton, Marxism, Queer Theory, and Gender, 115–54.
116
Ibid., 130–32.
117
Veja Zoe Leonard, “Lesbians in the AIDS Crisis,” em The ACT UP
New York Women and AIDS Book Group, Women, AIDS and Activism (Boston: South End Press, 1990).
118
Centers for Disease Control and Prevention, “HIV/AIDS among
Women Who Have Sex with Women,” June 2006, http://www.cdc.
gov/hiv/topics/women/resources/factsheets/wsw.htm.
(Nação Queer) era reunir membros e ir para shoppings suburbanos, onde a Rede de
Produtos Queer iria se vestir e atuar de maneira a intrigar as pessoas e fazer beijaços
para "chocar" compradores héteros no shopping. O canto dominante nos protestos foi
"Estamos aqui, somos queer, se acostumem!"ouma afrmação de identidade
desafadora que também pode repelir todos aqueles que não se identifcam como
queers.
As divisões em unidades locais eram endêmicas nesta atmosfera divisória. As
unidades da ACT UP geralmente eram divididos em miniogrupos sobre diferenças de
foco ou se eram permitidos que republicanos, policiais ou socialistas se juntassem. Em
1990, por exemplo, a unidade do ACT UP de São Francisco se dividiu em dois grupos,
um dedicado ao tratamento da AIDS.119 Quatro anos depois, uma das unidades de São
Francisco se separou do resto do grupo quando alguns membros discordaram da
estratégia de lutar por mais medicamentos antioretrovirais e mais baratos, que eles
alegaram serem letais. O grupo que rompeu optou por administrar um dispensário de
maconha em vez disso.120 Alguns se engajaram em "atacar extremistas", uma
campanha de cuspir nos Mórmons pelos seus ensinamentos religiosos antigos. 121 De
acordo com o Village Voice, em 1992, dicussões internas na unidade de Nova York
sobre a efcácia da ação direta, que eram frequentes durante alguns anos, levaram
alguns a se separarem no Treatment Action Group/Grupo de Tratamento e Ação (TAG).
A TAG aceitou US$ 1 milhão do gigante farmacêutico Burroughs Wellcome, a lucrativa
empresa de medicamentos que tinha sido alvo da ira da ACT UP desde a sua
fundação.122
O Queer Nation começou como um fragmento da ACT UP para combater a homofobia;
algumas lésbicas deixaram os homens gays para formar as Vingadoras Lésbicas; os
debates sobre ampliar a adesão a pessoas bissexuais e transgêneros levaram a suas
divisões; e Women’s Health Action Mobilization/Mobilização de Ação da Saúde da
Mulher (WHAM!) formada para defender o direito ao aborto, e assim por diante.
Women's Action Coalition/Coalizão da Ação de Mulheres (WAC), um grupo de mulheres
que defende "demolição patriarcal", atraiu centenas para reuniões semanais no início
dos anos 90, mas sua unidade de Nova York logo implodiu em uma batalha frágil
sobre se uma lésbica butch poderia representar adequadamente o grupo na CNN. 123
Uma diminuição semelhante ocorreu em outros grupos, as reuniões semanais que
originalmente tinham centenas diminuíram para dezenas e, em seguida, alguns
participantes. Ironicamente, talvez, a maioria dos membros desses grupos eram
suportadores da campanha de Bill Clinton em 1992, mesmo que alguns grupos
negassem o apoio formal. O ACT UP não endossou ofcialmente os candidatos e
milhões viram quando um membro da unidade de Nova York, Bob Rafsky, confrontou
agressivamente o candidato Bill Clinton, em abril de 1992. Em um clipe exibido na
Nightline, Rafsky argumentou, "Nós não estamos morrendo de AIDS tanto quanto
morremos de onze anos de negligência do governo", ao que Clintou respondeu, "Eu
sinto seu dor."124 No entanto, como o site ACT UP Capsule History mostra para 1992,
seu cartaz para esse ano diz, "Campanha de 1992u Vote como se sua vida dependesse
disso!"125 O sinal claro era que um voto para Bill Clinton (contra George H. W. Bush)

119
Andriote, Victory Deferred, 250.
120
Christopher Heredia, “S.F.’s ACT UP Ordered to Back Off,” San
Francisco Chronicle, November 11, 2000.
121
Tara Shioya, “Men Behaving Viciously,” San Francisco Weekly,
March 19, 1997.
122
Craig A. Rimmerman, “ACT UP,” TheBody.com, 1998,
http://www.thebody.com/content/art14001.html.
123
Contents of the Women’s Action Coalition records from 1992–1997
can be found at the New York Public Library, http://www.nypl.
org/research/chss/spe/rbk/faids/wac.html. The author attended New York WAC’s weekly organizing meetings.
124
“Historical Presidential Zap,” ACT UP New York, http://
www.actupny.org/campaign96/rafsky-clinton.html.
125
“ACT UP Capsule History for 1992,” http://www.actupny.org/
documents/cron-92.html.
era uma escolha pela vida.
Apesar das limitações teóricas da política ID das estratégias dos líderes do
movimento, muitas ações foram tremendamente bem sucedidas em trazer aliados
que não eram diretamente afetados pelas lutas individuais.
Algumas das ações mais bemosucedidas e proeminentes desafavam os princípios de
identidade separatistas. Milhares de LGBT e pessoas héteros protestaram contra a
mensagem anti sexo seguro da Igreja Católica na Catedral de São Patrício, em
dezembro de 1989. Números similares compareceram em ações bem divulgadas a
partir de março de 1987 e a cada março por muitos anos para protestar contra as
empresas farmacêuticas e a escandalosa especulação de Wall Street sobre
medicamentos contra a AIDS.126 As ações de massa para defender as clínicas de
aborto de extremistas da direita foram frequentemente lideradas por jovens lésbicas
no WHAM! e um ensaio exagerado e sagaz politicamente de drag queens gays,
conhecido como Church Ladies for Choice, onde apareciam vestindo vestidos de
mulheres velhas, perucas e sapatos, cantando "This Womb Is My Womb" (Esse Útero é
o meu Útero) (ao som de "This Land is Your Land") e outros clássicos americanos. 127
Mas, na maioria das vezes, as estratégias eram ações zap, impulsionadas por uma
irreverência naosuaocara para a autoridade que ignorava os pontos de apoio reais do
poder e não conseguia envolver a classe trabalhadora negra, marrom e branca de
todas as orientações sexuais, que logo se tornariam o rosto da AIDS nos Estados
Unidos e em todo o mundo. Ao invés de construir alianças com lideranças de
trabalhadores, e de comunidades negras e latinas, além de desafar os democratas
que controlavam o Congresso até 1994, os zaps expressaram rebeldia sem oferecer
um caminho a seguir na luta. Hoje, a AIDS nos Estados Unidos está infectando cada
vez mais afrooamericanos. Os últimos dados do CDC sobre HIV/AIDS nos Estados
Unidos mostram que, apesar de os negros terem representado menos de 13% da
população dos EUA, desde 2005 representam 49% de todos os que foram
diagnosticados com HIV/AIDS128. É por isso que a organização futura da AIDS deve
orientarose por todas as pessoas da classe trabalhadoraoLGBT, héteros, negros e de
todas as raças.

Queerizando a Identidade

Enquanto a política identitária defende a autonomia de grupos oprimidos e lutas


separadas, a teoria queer desafa completamente as categorias de identidade.
Ostensivamente, é uma rejeição aberta da política identitária, embora o teórico queer
David Halperin admita que ainda é uma "marca de política identitária." 129 A teoria
queer afrma ser capaz de incluir pessoas que não são apenas gays, lésbicas,
bissexuais ou transgêneros, mas poderiam incluir pessoas héteros que se comportam
ou pensam "queer", enquanto exclui alguns gays, especialmente aqueles homens
gays brancos que aspiram a ideais como monogamia ou casamento. Como diz Lisa
Duggan, "Podemos começar a pensar sobre a diferença sexual não em termos de
identidades naturalizadas, mas como uma forma de dissenso, entendida não
simplesmente como discurso, mas como uma constelação de práticas, expressões e
crenças não conformes."130 A teoria Queer é muitas vezes invocada para proporcionar
um espaço para mulheres e pessoas de cor que foram excluídas da política LGBT. É
visto como um questionamento aos binários de gênero e sexual, que são concebidos
como construídos e mutáveis ao longo do tempo e da geografa.
Nos anos 1990, a teoria queer surgiu do descontentamento de alguns acadêmicos de
126
Veja em “ACT UP Capsule History” uma linha do tempo das ações.
127
Church Ladies for Choice, página do MySpace, profile.myspace.com/
index.cfm?fuseaction=user.viewprofile&friendID=110549818.
128
Centers for Disease Control and Prevention, “HIV/AIDS and
African Americans,” 2005, http://www.cdc.gov/hiv/topics/aa/.
129
Halperin, Saint Foucault, 67.
130
Lisa Duggan, “Queering the State,” Social Text 39 (Verão de 1994): 11.
esquerda com a assimilação de gays e lésbicas da classe média no mainstream da
sociedade americana. Muitos dos principais teóricos da teoria queer e seguidores
ativistas são esquerdistas que rejeitam a política identitária e a direção conservadora
em que muitos de seus líderes levaram o movimento LGBT, principalmente nos
corredores do poder político e corporativo. No entanto, eles fazem isso de um jeito
que não desafa a base do conservadorismo da política identitáriaoseu caráter de
classe transversal. Uma das teóricas mais proeminentes da teoria queer, Judith Butler,
é inegavelmente uma esquerdista que se opõe infexivelmente à guerra no Iraque e
se reivindica internacionalista.131 No entanto, a teoria queer coloca uma visão de
mundo profundamente pessimista, paralisante, na qual as pessoas são apenas seres
atomizados para os quais a identidade de grupo comum atua como uma espécie de
kriptonita social ou tendão de Aquiles que de alguma forma nos enfraquece ou nos
diminui. Assim, seguindo da política identitária e levada ao extremo lógico do póso
modernismo, baseiaose na ideia da classe média de que todos somos oprimidos
primeiramente como indivíduos por outros indivíduos e, portanto, qualquer resistência
à opressão deve ser individual. A teoria queer afrma, "a resistência se dá através da
recusa de se identifcar com o outro." 132 Efetivamente, queer é uma (nãoo)identidade
supostamente única para cada indivíduo. A Genealogia da Teoria Queer explicau "O
trabalho dos teóricos queer [...] tende para a seguinte suspeiçãou Se os nossos
direitos dependerem da nossa identidade comum como seres humanos, então todos
nós temos que parecer iguais, agir iguais, ser iguais para ter direitos. É claro que não
é assim que o sistema deveria funcionar, mas as experiências de mulheres e minorias
nos Estados Unidos indicam que, na verdade, funciona assim."133
Enquanto a política identitária tende a fortalecer as divisões entre os grupos
oprimidos, a teoria queer se presta involuntariamente a desautorizar a validade da
opressão inteiramente negando os pontos comuns de identidade entre membros de
grupos subjugados. Por exemplo, Halperin argumenta que "A reversão mais radical
dos discursos homofóbicos não consiste em afrmar, como a Frente de Libertação Gay
de 1968, que 'gay é bom' (analogia de 'preto é bonito'), mas em assumir e empoderar
uma posição marginal [...] Aqueles que conscientemente ocupam tal localização
marginal, que assumem uma identidade desessencializada que tem caráter
puramente posicional, propriamente falando não são gays, mas queer."134 Portanto,
"queerizar" alguma coisa, incluindo queerizar as políticas identitárias, equivale a
subverter ela como a teoria sugere. Em outras palavras, "a teoria Queer é
opositora."135
Ao defnir a teoria queer se cai imediatamente em um enigma teórico. Os principais
pensadores advertem contra a precisãou Judith Butler escreve, "normalizar o queer
seria, afnal, seu triste fm", Lauren Berlant e Michael Warner insistem, "porque quase
tudo o que pode ser chamado de teoria queer tem sido radicalmente antecipador,
tentando trazer um mundo a realidade, qualquer tentativa de resumir isso agora será
violentamente parcial."136 É a teoria que não se atreve a se defnir.

Judith Butler explica a aversão da teoria queer à identidade dessa maneirau

“[A] perspectiva de ser qualquer coisa, mesmo por pagamento, sempre produziu em
mim uma certa ansiedade, porque "ser" gay, "ser" lésbica parece ser mais do que
uma injunção simples para se tornar quem ou o que eu já sou.”

131
“Judith Butler,” entrevista por Jill Stauffer, Believer, Maio de 2003.
132
Max H. Kirsch, Queer Theory and Social Change (New York:
Routledge, 2000), 8.
133
Turner, Genealogy of Queer Theory, 16.
134
Halperin, Saint Foucault, 61–62.
135
Turner, Genealogy of Queer Theory, 10.
136
Retirado de Annamarie Jagose, Queer Theory, An Introduction
(New York: NYU Press, 1996), 1.
Ela está, então,

“não à vontade com teorias lésbicas, teorias gay, pois, como discuti em outro lugar,
as categorias de identidade tendem a ser instrumentos de regimes regulatórios, seja
como normalização de categorias de estruturas opressivas ou como pontos de partida
para uma contestação libertadora dessa opressão.”137

O que signifca argumentar que "as categorias de identidade tendem a ser


instrumentos de regimes regulatórios"? Simplesmente porque a identidade sexual é
construída pelo capitalismo não signifca que a categoria de lesbianismo, por
exemplo, seja uma ferramenta de opressão ou desigualdade mais do que é classifcar
pessoas que vivem em uma determinada região da América do Sul como
venezuelanas (uma identidade que também é uma criação histórica). Defnir ou
rotular alguém não cria a opressão; da mesma forma, mudar como chamamos
alguém, como queer, não desafa nem um pouco a opressão. Mais uma vez, as
palavras de Marx e Engels aos Jovens Hegelianos parecem aplicáveisu "Com base na
crença flosófca no poder dos conceitos para fazer ou destruir o mundo, eles também
podem imaginar que algum indivíduo 'abolisse a divisão da vida' ao 'abolir' conceitos
de alguma forma ou de outra". 138 Mesmo Wilchins, um fundador dos Hermafroditas
com Atitude e Ameaça Transsexualotalvez a quintessência de categorias não
normalizadasoargumenta, "os grupos sociais não podem existir sem normas comuns
de estrutura e signifcado [...] Assim, [o pósomodernismo] é incapaz de propor
qualquer noção de ação grupal positiva e gratifcante."139
Uma das objeções à identidade por teóricos queer é que sua ênfase serve para excluir
outros, o que é verdade. Se alguém é lésbica, então, por defnição, não pode também
ser um homem. Mas, historicamente, classifcar as pessoas pela identidadeoe, no
caso das pessoas LGBT, sair do armário para abraçar a identidadeotambém permitiu
pessoas igualmente oprimidas se encontrarem, se organizarem e lutarem pelos
direitos civis. Em sua oposição às lutas dos direitos civis para "normalizar" e
"assimilar" os povos LGBT na sociedade em geral, lutando por reformas como o
casamento entre pessoas do mesmo sexo ou os direitos de igualdade de emprego, o
conservadorismo fundamental dos teóricos queer é exposto.
Sob um revestimento de radicalismo, há uma agenda profundamente antioclasse
trabalhadora. Butler, ao se opor a ataques homofóbicos contra o casamento gay, faz
um argumento contra o foco dos ativistas nesta questão, porque supostamente os tira
da luta contra a AIDS, de alguma forma diminui os estilos de vida alternativos das
pessoas LGBT sem parceiro ou com múltiplos parceiros e tenta promover uma
imagem de gays como "um conjunto religioso ou sancionado pelo estado de casais
íntegros."140 Em outras palavras, os teóricos queer se opõem a reformas como o
casamento gay que proporcionariam benefícios materiais aos casais LGBT com base
de que isso colocaria minorias sexuais em estilos de vida "heteronormativos",
essencialmente signifcando assimilação à "sociedade hétero". A noção de que existe
tal coisa como a "sociedade hétero" é um conceito confuso. Isso signifca que todas as
pessoas hétero, independentemente da classe, raça, nacionalidade, etc.,
compartilham perspectivas e estilos de vida comuns; Isso é completamente falso. Se
o que se entende por "heteronormativo" é o estilo de vida de classe média retratado
na mídia, então Butler e outros estão combinando a ladainha de valores familiares
promovida por instituições poderosas e ideólogos direitistas que os defendem com a
visão de pessoas héteros da classe trabalhadora. Por exemplo, Martin Manalansan IV
cita a crítica de Lisa Duggan sobre a "homonormatividade" e as lutas pelo casamento
137
Sarah Salih e Judith Butler, eds., The Judith Butler Reader
(Hoboken, NJ: Wiley-Blackwell, 2004), 120–21.
138
Marx and Engels, MECW, vol. 5, 467.
139
Wilchins, Queer Theory, Gender Theory, 100.
140
“There Is a Person Here: Interview with Judith Butler,” International Journal of Sexuality and Gender Studies 6, nos. 1/2,
2001.
gay dessa maneirau

“A homonormatividade é uma ideologia "camaleão" que pretende impulsionar causas


progressivas, como o direito ao casamento gay e outros "ativismos", mas, ao mesmo
tempo, cria um efeito de despolitização nas comunidades queer ao retoricamente
remapear e redefnir a liberdade e libertação em termos de privacidade,
domesticidade e consumo. Em outras palavras, a homonormatividade anestesia
comunidades queer na aceitação passiva de formas alternativas de desigualdade em
troca da privacidade doméstica e da liberdade de consumir.”141

Além da caricatura incorreta e moralista dos heterossexuais, essa concepção de


pessoas LGBT parece com gays e lésbicas da fantasia de Hollywood, e não à maioria
da classe trabalhadora. Qualquer política verdadeiramente oposicionista deve
permanecer sem ressalvas em defesa do direito ao casamento entre pessoas do
mesmo sexoocomo os esquerdistas fzeram há sessenta anos com o casamento entre
raças diferentesoapesar das críticas ao estado, à religião e à monogamia. Contrapor
a reestruturação radical da sociedade, onde os benefícios não estão ligados aos
relacionamentosohétero ou gayoàs reformas no aqui e agora é uma receita para a
passividade.
Em primeiro lugar, o casamento gay é uma reforma. Como todas as reformas sob o
capitalismo, deixa a estrutura do sistema intacta enquanto alivia um problemaoneste
caso, a negação dos benefícios materiais e o desejo de ter relações LGBT
reconhecidas como iguais às dos heterossexuais. Como a demanda por sindicalização,
sob a qual os termos da exploração dos trabalhadores são renegociadosocom os
trabalhadores ganhando salários e benefícios mais altos, mas sem eliminar o poder
dos chefesoo casamento igual acabaria com alguma discriminação sem eliminar
completamente a opressão.
Em segundo lugar, questionar a demanda pelo casamento do mesmo sexo por não
dar libertação sexual é um pouco como desprezar os protestos sentados por direitos
civis para acabar com os contadores de almoço no início da década de 1960 por não
eliminarem o racismo. Ele gera uma falsa expectativa para uma demanda reformista e
depois a ataca por não entregar uma transformação revolucionária.
Alguns teóricos queer conseguiram afogar até mesmo a rebelião de Stonewall nas
águas turvas do relativismo histórico, nas quais, supostamente, nem podemos estar
certos do signifcado de um evento central na história gay moderna. Em Queering Gay
and Lesbian Studies Thomas Piontek desconstrói os protestos de Greenwich Village
em 1969 que deram origem ao movimento gay moderno, concluindo que Stonewall foi
“um evento histórico confuso e ambíguo.”142 Em seu capítulo "Esqueça Stonewall",
Piontek só vê uma narrativa fuida entre o movimento homóflo dos primeiros
conservadores da era McCarthy e o levante de massas que originou a Frente de
Libertação Gay. Além de algumas observações indiscutíveis apresentadas como idéias
visionárias sobre a continuidade histórica, esse argumento serve apenas para
minimizar o protesto, a luta e a organização política. O leitor fca se perguntando se
seu ponto é que nada que fazemos realmente importa ou se qualquer coisa que
fazemos, não importa o que seja, importa igualmente.
A resistência à convenção e a hostilidade à assimilação são duas das características
da teoria queer. Michael Warner explica que o problema com o normal, em seu livro
com esse nome, é que é "um tipo de suicídio social." 143 Ir ao trabalho, pagar o aluguel,
141
Retirado de Martin Manalansan IV, “Queer Love in the Time of
War and Shopping,” em A Companion to Lesbian, Gay, Bisexual,
Transgender, and Queer Studies, Blackwell Companions in Cultural Studies, ed. George E. Hagger ty e Molly McGarry, (Malden,
MA: Blackwell, 2007) 82.
142
Thomas Piontek, Queering Gay and Lesbian Studies (Chicago:
University of Illinois Press, 2006), 23.
143
Michael Warner, The Trouble with Normal: Sex, Politics and the
Ethics of Queer Life (Cambridge, MA: Harvard University Press,
criar flhos, etc., não são simplesmente atos inglórios da normalidade, mas que tipo
de sexo e quanto se faz são julgados como árbitro da resistência e do radicalismo. Os
teóricos queer colocam um foco exaustivo nas práticas sexuais "não normativas",
como o sadomasoquismo e o fstofucking, porque são concebidas como formas de
superar a "construção tradicional do prazer." 144 Enquanto o transgênero queer Patrick
Califa, anteriormente uma lésbica ativista S/M e que agora vive como um homem, 145
"não acredita que podemos foder o nosso caminho para a liberdade," 146 a
condescendência que ele e outros escritores da teoria queer expressam contra o sexo
"baunilha" e aqueles que são monogâmicos cria uma hierarquia de atos sexuais e
privilegia o polioamor, isto é, múltiplos parceiros sexuais. Além do seu moralismo, o
problema maior de estabelecer uma hierarquia de gostos sexuais em que quanto mais
além é melhor é que não representa um desafo à opressão e simplesmente refete as
normas sexuais burguesas. Os promotores da propriedade sexual burguesa promovem
a posição missionária, enquanto os teóricos queer "se opõem" com o fstingomas
ambos tentam colocar padrões morais sobre atividades íntimas; eles apenas
discordam sobre quais são melhores. O Califa explica que ele prefere naufragar com
um "masoquista masculino" do que com uma "lésbica baunilha." 147 O tédio de Califa
com lésbicas que preferem o sexo convencional (presumindo que existe um sexo
lesbiano convencional) é colocado como um enfrentamento com a ordem dominante,
enquanto na verdade é meramente uma preferência pessoal. Um passeio casual por
qualquer um dos red light districts do país ou uma olhada na variedade sexual
incomum da internet prova que o capitalismo é perfeitamente capaz de acomodar
gostos sexuais não convencionais e os empresários estão muito felizes em fazer
bilhões com qualquer tipo de apetite sexual e fetiche. As tentativas de teóricos queer
de colocar o sexo como uma frente para a oposição representam o que Cloud chama
corretamente de "uma antiopolítica da vida íntima."148
Não surpreendentemente, os teóricos queer atacam o Marxismo por se recusar a
colocar os atos sexuais em par de igualdade com a classe na luta contra a opressão.
Patton argumenta que os marxistas têm "erotofobia", 149 signifcando presumivelmente
que os marxistas são antiosexo. Além de não haver provas disso, o fato é que o sexo é
uma necessidade reconhecida pelos marxistas, mas não da mesma forma que a
comida, a saúde ou a moradia são necessidades. É o mundo real que impõe à
sociedade a centralidade dessas necessidades econômicas em oposição às da vida
íntima, e não os marxistas. Isso não é devido à puritanismo; afnal, não há nada
implicitamente radical sobre o tipo de sexo que alguém tem ou quanto disso. A líder
bolchevique Alexandra Kollontai resumiu bem a questãou

“A parte conservadora da humanidade argumenta que devemos retornar aos tempos


felizes do passado, devemos restabelecer os velhos fundamentos da família e
fortalecer as normas bemotestadas da moralidade sexual. Os campeões do
individualismo burguês dizem que devemos destruir todas as restrições hipócritas do
código obsoleto do comportamento sexual [...] Os socialistas, por outro lado, nos
asseguram que os problemas sexuais só serão resolvidos quando a reorganização
básica da estrutura econômica e social da sociedade for enfrentada.”150

2000), 59.
144
Retirado de Piontek, Queering Gay and Lesbian Studies, 90.
145
Rona Marech, “Radical Transformation: Writer Patrick Califia-Rice Has Long Explored the Fringes. Now the Former Lesbian
S/M Activist Is Exploring Life as a Man,” San Francisco Chronicle, 27 de Outubro de 2005,
http://www.sfgate.com/cgi-bin/article.cgi?
file=/chronicle/archive/2000/10/27/WB78665.DTL.
146
Retirado de Piontek, Queering Gay and Lesbian Studies, 84.
147
Pat Califia, Public Sex: The Culture of Radical Sex (San Francisco,
CA: Cleiss Press, 2000), 158.
148
Cloud, “Queer Theory and ‘Family Values,’” 87.
149
Retirado de Nowlan, “Post-Marxist Queer Theory,’” 136.
150
“Sexual Relations and the Class Struggle,” Selected Writings of
Alexandra Kollontai (Westport, CT: Lawrence Hill, 1977), 237.
O ponto da Kollontai é simplesmente que a verdadeira liberdade no domínio da
moralidade sexual só pode ser alcançada através de uma luta maior contra todas as
formas de opressão e exploração. A política sexual da teoria queer é essencialmente a
política do individualismo burguês. Como Califa admite, realmente não podemos
"foder nosso caminho para a liberdade".
A oposição a todas as convenções apresenta alguns outros problemas óbvios. Antes
de tudo, existem todos os tipos de convenções sociais às quais aderimos não porque
somos obrigados pela força ou pela tradição, mas porque nos permitem viver em
harmonia com outros seres humanos. Esperar sua vez na fla e abrir a porta para a
próxima pessoa são convenções sociais que a maioria das pessoas adotam facilmente
porque elas fazem sentido e nos permitem viver em um mundo em cooperação com
os outros. Não há nada inerentemente ruim em convenções. Na verdade, poucos de
nós desejariam ou seriam capazes de viver na sociedade sem muitas delas. Separar
aquelas que servem para estender a opressão daquelas que nos permitem viver como
seres sociais colaborativos podem dar origem a debates úteis, mas estes são
resolvíveis na prática, não no âmbito da abstração. A maioria dos ataques retóricos a
todas as convenções tem pouco a oferecer na esfera da prática.

O problema com o “problemas de gênero”

O projeto dos teóricos queer de deconstruir verdades dadas para revelar como elas
foram criadas pela sociedade também se traduz em negar gênero e categorias
sexuais. Eles argumentam que o gênero é "construído discursivamente," e, portanto,
pode ser "discursivamente" desconstruídoodefnir é "reifcar" ou fazer algo concreto
e, portanto, parte de nossa luta, eles argumentam, é rejeitar defnições. Os Marxistas,
pelo contrário, vêem gênero e categorias sexuais como construídas socialmente e,
portanto, só podem ser socialmente desconstruídas, com a linguagem vindo depois. A
mais famosa entre os teóricos queer, Butler escreve que o gênero é uma espécie de
"fcção cultural, um efeito performativo de atos reiterativos"u "O gênero é a estilização
repetida do corpo, um conjunto de atos repetidos dentro de um quadro regulatório
altamente rígido que congela ao longo do tempo para produzir a aparência da
substância, de um tipo natural de ser."151 Em seu livro Problemas de Gênero, Butler
argumenta que "não há identidade de gênero por trás das expressões de gênero," 152
e, portanto, feministas e também libertadores LGBT que tomam essas "fcções
culturais" como dadas caem numa armadilha. No entanto, parece que é Butler e
companhia que se aprisionaram em um enigma discursivo de sua própria criação.
Uma coisa é argumentar que a maneira como nos comportamos fsicamente, nos
vestimos, arrumamos nossos cabelos, etc., é pelo menos parcialmente uma
performance involuntária moldada pela cultura na qual somos criados. Não há dúvida
de que isso é verdade e o livro de 1942 de Simone de Beauvoir, O Segundo Sexo,
argumenta isso com eloquência, como Butler reconhece. É bem diferente concluir que
todo gênero é uma farsa que pode ser contestada através da paródia, como Butler
sugere. Ela escreveu "As práticas de paródia podem servir para reencontrar e
reconsiderar a própria distinção entre uma confguração de gênero privilegiada e
naturalizada e uma que aparece como derivada, fantasmática e miméticaouma cópia
falha, por assim dizer."153 Ela argumenta que mudanças políticas positivas podem
surgir da desestabilização da construção da sociedade e dos pressupostos de gênero
através de drags e outras formas de paródia. Cloud assume o utopismo de Butler ao
substituir a luta por um "teatro do eu onde a intimidade é encenada e as palavras são
separadas de seus referentes materiais. A teoria da performatividade localiza o
151
Judith Butler, Gender Trouble: Feminism and the Subversion of
Identity (New York: Routledge, 1990), 33.
152
Ibid.
153
Ibid., 200.
agente na "consciência" [...] dos indivíduos e não em enfrentar coletivamente o
capitalismo."154 Sim, o gênero e suas normas são socialmente construídos e
restritivos, e algumas pessoas, como as transgêneras, acham essas normas
asfxiantes. Mas o problema é que vivemos em uma sociedade machista em que a
maneira como se trata, quanto ganha, a vulnerabilidade física e outras considerações
são moldadas pelo gêneroonão que cada um de nós tenha um gênero. Como a
introdução ao ensaio de Butler no Transgender Studies Reader perguntau "se o gênero
não é real, quão real pode ser a sua opressão?"155 Naturalmente, qualquer política
libertadora deve abraçar a multiplicidade de comportamentos e maneirismos sexuais,
estilos de roupa, e expressões físicas que os seres humanos desejam expressar. Deve
rejeitar as normas legais que exigem que o sexo físico de uma pessoa seja compatível
com sua identidade de gênero. Mas argumentar que o gênero é uma categoria sem
sentido, ao invés de algo mais ambíguo do que alguns cientistas sociais acreditam,
levanta questões flosófcas interessantes, mas nos conduz a um beco sem saída
teórico e organizativo.
Se a mulher é uma fcção, isso levanta uma difculdade óbvia para lutar por seus
direitos. Butler argumenta, "a insistência prematura em um tema estável do
feminismo, entendido como uma categoria perfeita de mulheres, gera
inevitavelmente muitas recusas para aceitar a categoria." 156 Ela então conclui que o
feminismo em si, na luta por essa categoria de fcção, é "coercivo e regulatório." 157
Aqui, os conceitos estáveis e a clareza do signifcado são interpretados como
"regulatórios". Mas são os poderes coercivos da lei que impõem a noção de que os
genitais de uma pessoa devem necessariamente estar em conformidade com sua
identidade de gênero. Butler e Sedgwick enfrentam corretamente as feministas que
levantam argumentos essencialistasoque as mulheres são afetivas e mais passivas
como resultado de sua biologia, por exemploomas não entram nas questões do
mundo real que confnam a maioria das mulheres, e homens também, como a renda,
o acesso à educação, o acesso à saúde, e por aí vai. Na verdade, uma defciência
fagrante da teoria queer é quão pouco ela tenta se envolver com as realidades da
vida das pessoas. Enquanto os "corpos" são analisados por esses teóricos, seus
escritos assumem que o gênero e a sexualidade das pessoas são os aspectos mais
defnidores de suas vidas. Certamente, os corpos das pessoas são parcialmente
construídos pela sociedade, mais especifcamente por qual classe alguém nasceu. Um
deles é mais propenso a ser obeso, fumar, morrer jovem e ter maior estresse se
precisar trabalhar por muitas horas, sentarose em engarrafamentos horríveis, ter
pouco tempo de lazer e todos os outros aspectos infuenciados pela classe nas nossas
vidas. A fala do historiador Harriet Malinowitz sobre os teóricos queer é verdadeiro
aquiu "A rede teórica queer geralmente se assemelha a um clube social aberto aos
moradores de um bairro em que a maioria de nós não pode se dar ao luxo de viver." 158
Muitos que teorizaram sobre gênero e sexo conceberam uma distinção entre os dois
de uma maneira que Butler descreve como, "O sexo é para a natureza ou 'o cru' como
o gênero é para a cultura ou o 'cozinhado.'" 159 Enquanto alguns podem concordar que
a feminilidade e a masculinidade são criações sociais, o sexo biológico, geralmente se
diz, não éovocê nasceu com um conjunto de bits ou com outro. Pelo contrário, Butler
e outros questionam corretamente a noção limitada de um binário sexual
masculino/feminino dado a evidência de milhões de pessoas intersexuais com
genitália ambígua que não se encaixam perfeitamente em nenhuma das categorias. O
fato científco da variação anatômica que corre o espectro de possibilidades, no
154
Cloud, “Queer Theory and ‘Family Values,’” 92.
155
Judith Butler, “Doing Justice to Someone” em The Transgender
Studies Reader, ed. Susan Stryker e Stephen Whittle (New York: Routledge, 2006), 183.
156
Butler, Gender Trouble, 6.
157
Ibid.
158
Harriet Malinowitz, Textual Orientations: Lesbian and Gay Students and the Making of Discourse Communities (Portsmouth,
NH: Boynton/Cook Publishers, 1995), 12.
159
Butler, Gender Trouble, 50.
entanto, não é uma chamada de atenção para apagar masculino e feminino de nossos
vocabuláriosoessas palavras signifcam seres vivos reais no mundo, vários bilhões de
fato. Em vez disso, levanta o conceito de ambiguidade no domínio do sexo para uma
minoria de pessoas que não estão traumatizadas pelos termos "masculino" e
"feminino", mas por uma sociedade que não permitirá a fuidez sexual, incerteza e
diferença.
A Sociedade Intersex da América do Norte explica, "aprendemos que muitas pessoas
intersexuais estão perfeitamente confortáveis adotando uma identidade de gênero
masculina ou feminina e não estão buscando uma sociedade sem gênero ou querendo
se rotularem como membros de uma terceira classe de gênero." 160 Nas experiências
da vida real daqueles cujos interesses os teóricos queer nos dizem que suas ideias
servem, não são os rótulos que as pessoas transsexuais e intersexuais abominam,
mas sim a indústria médica e outras instituições que criam seu dilema. Os rótulos
apenas servem para descrever o que foi codifcado pela lei e a prática social. É
interessante notar que mesmo aqueles atraídos por essas ideias e que às vezes usam
o vocabulário contorcido da teoria queer precisam abandonáolos quando entram em
ação, por assim dizer, como o ativista transgênero e escritor Riki Wilchins faz em sua
organização do movimento. Tragicamente, devido à tradição distorcida do socialismo
e uma esquerda enfraquecida, as políticas ID e a teoria queer se alimentam em
alguns locais acadêmicos como em uma bolha hermeticamente fechada. No entanto,
nenhuma é capaz de dar libertação sexual, e suas suspeitas da verdade objetiva e
ceticismo sobre as possibilidades de mobilização comum levam a um impasse
interminável.
Ideias pósomodernas se desenvolveram e foresceram no período pós anos 1960,
quando uma geração de americanos cresceu sem participar de ou sequer
testemunhar lutas de classe de massas. Dezenas de milhões cresceram em uma
sociedade em que essas políticas de diferença e individualismo aparecem como senso
comum, o que talvez seja responsável pela aceitação contínua e generalizada da
linguagem dessas teorias, mesmo que sua relevância social tenha regredido. Como o
antropólogo Max Kirsch aponta,

“O destaque da teoria queer sobre a impossibilidade da identidade e a relatividade da


experiência seguem de perto o desenvolvimento das atuais relações de produção
capitalistas, onde o indivíduo isolado é central para o objetivo econômico de criar
lucros através da produção e seu subproduto, o consumo [...] É essa, portanto, minha
visão de que os princípios da teoria Queer se aproximam das características das
relações sociais que afrma rejeitar. Em vez de construir a resistência à produção
capitalista de desigualdade, ela, paradoxalmente, a refetiu.”161

Como Kirsch diz, "não estamos sozinhos." 162 Os seres humanos são animais sociais
que não podem existir ou prosperar sem o outro. Somos mais fracos como indivíduos.
Embora a ideologia da classe dominante promova um forte individualismo e o
desenvolvimento de atributos pessoais como meios para o sucesso, é como uma
classe coletiva que as pessoas comuns têm poder para fazer mudanças. Não porque
somos todos os mesmosoobviamente não somosomas porque todos nós temos um
inimigo comum no sistema e na pequena classe de parasitas que o governa.
Independentemente de nossas diferenças e como as experiências de opressão se
manifestam, os trabalhadores têm mais em comum do que têm de diferenças. O que
a sociedade de classes construiu, as forças organizadas em oposição a ela podem
derrubar. No entanto, o pósoestruturalismo flosófco da teoria queer é um obstáculo à
desconstrução física desse sistema opressivo.
160
April Herndon, “Why Doesn’t ISNA Want to Eradicate Gender?”
ISNA, February 17, 2006, http://www.isna.org/faq/not_eradicating_gender.
161
Kirsch, Queer Theory and Social Change, 17–18.
162
Ibid., 4.
A teoria queer pega alguns dos problemas criados pelos ativistas das políticas
identitárias, que muitas vezes criam barreiras entre grupos oprimidos, e tenta resolvêo
los teorizando a existência de grupos e barreiras. O que parecem não aceitar é que
simplesmente porque alguém não pode se identifcar como lésbica não quer dizer que
não possa se identifcar com as lésbicas. Ninguém pode refutar, é claro, que apenas
um homem gay com AIDS, por exemplo, pode saber como é passar por esse mundo
como uma minoria sexual, muitas vezes culpados pelos direitistas por terem trazido a
si mesmos um doença potencialmente fatal. Da mesma forma, apenas uma mulher
negra pode saber como é a vida em sua pele. No entanto, os teóricos queer elevam
as realidades das diferenças a obstáculos insuperáveis para a identidade comum e,
por extensão, a ação comum também é questionada.
As ideias que deram a expressão teórica a uma época de pouca luta, com uma
esquerda organizada pequena, e de políticas econômicas neoliberais que se estendem
à vida comum das pessoas não parecem mais ter a mesma presença nos movimentos
sociais. À medida que entramos em uma era em que as exigências estão sendo feitas
para uma nova administração e os primeiros brotos de luta estão surgindo ainda em
trabalho de parto e entre pessoas LGBT, ativistas vindo das fleiras de setores cada
vez mais baixos das classes médias e da classe trabalhadora estão buscando
estratégias práticas e políticas para alcançar mudanças reais. As grandes
possibilidades residem na consciência se deslocando a esquerda sobre a
homossexualidade na sociedade dos EUA e no crescente senso de que, na unidade, há
a força.

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