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CAPÍTULO UM
As Raízes da Opressão LGBT
A opressão das pessoas lésbicas, gays, bissexuais e transgêneras (LGBT) nem sempre
existiu, e as pessoas LGBT não são um setor diferente da população. A opressão de
todas as minorias sexuais é uma das infnitas contradições do capitalismo moderno. O
capitalismo cria as condições materiais para que homens e mulheres tenham vidas
sexuais autônomas, mas simultaneamente busca impor normas heterossexuais na
sociedade para garantir a manutenção da ordem econômica, social e sexual.
Lésbicas famosas, como Melissa Etheridge enchem shows e a comediante Ellen
DeGeneres comanda um programa de entrevistas premiado com o Emmy, e ao
mesmo tempo leis homofóbicas defendem a discriminação no trabalho e no
casamento. As pessoas LGBT, como Matthew Shepard, são brutalmente espancadas
por extremistas, e ao mesmo tempo a opinião pública mudou radicalmente a favor
dos direitos civis LGBT.1 Esta situação aparentemente contraditória nos Estados
Unidos pode ser explicada.
A opressão LGBT, como a opressão às mulheres, está ligada à centralidade da família
nuclear como um dos meios do capitalismo para inculcar normas de gênero e
terceirizar o cuidado das gerações atuais e futuras de trabalhadores com pouco custo
para o estado, como explicado em detalhes abaixo. Além disso, a opressão às pessoas
LGBT sob o capitalismo, como o racismo e o sexismo, servem para dividir as pessoas
da classe trabalhadora, especialmente em suas batalhas por justiça econômica e
social. Enquanto a sociedade capitalista tenta encaixar as pessoas em certos papéis
de gênero e comportamentos sexuais, os socialistas rejeitam essas limitações. Em vez
disso, os socialistas lutam por um mundo em que a sexualidade é um assunto
puramente pessoal, sem restrições legais ou materiais de qualquer tipo. O direito à
autodeterminação para os indivíduos que os socialistas defendem deve incluir a
liberdade dos indivíduos de escolherem seu próprio comportamento sexual, aparência
e preferências eróticas.
A sexualidade, como muitos outros comportamentos, é um fenômeno fuidoonão é
fxo. A homossexualidade existe ao longo de um continuum. A expressão moderna
disso pode ser encontrada entre os milhões de homens e mulheres que se identifcam
como LGBTomuitas vezes identifcandoose diferentemente em momentos diferentes
em suas vidas. Não há dois tipos de pessoas no mundo, gay e heterossexuais. Até
onde os biólogos podem dizer, há apenas uma raça humana com uma multiplicidade
de possibilidades sexuais que podem ser frustradas ou liberadas, dependendo da
forma como a sociedade humana é organizada.
Muitas evidências históricas confrmam que o que defnimos hoje como
comportamento homossexual existe há pelo menos milhares de anos, e é lógico
assumir que os atos homossexuais têm ocorrido desde que os seres humanos
começaram a andar pela Terra. Mas foi necessária a Revolução Industrial do fnal do
século XIX para criar o potencial para um grande número de pessoas comuns viverem
fora da família nuclear, tornando possível que as modernas identidades gays, lésbicas
e bissexuais pudessem nascer. Apenas ao fnal do século XX algumas pessoas de
gênero variante começaram a se identifcar como transgêneras, embora as pessoas
que desafaram os conceitos Ocidentais modernos de comportamento apropriado ao
1
Matthew Shepard era um estudante gay na Universidade de Wyoming, em outubro de 1998, quando foi torturado e morto por
homens que o deixaram amarrado no poste de uma cerca em Laramie, Wyoming. A indignação pública levou a protestos em
muitas cidades ao redor do país e seu nome tornou-se sinônimo de brigas homosexuais. Para uma compilação de pesquisas
sobre as opiniões do público em relação às pessoas LGBT, consulte "Casamento do mesmo sexo/Direitos dos Gays" no
PollingReport.com.
gênero existissem ao longo da história em muitas culturas diferentes. A opressão
sistemática às pessoas LGBT, conforme está presente na maioria das sociedades
ocidentais contemporâneas, é, portanto, também um fenômeno bastante recente na
história humana. Isso não é para argumentar, no entanto, que, antes do capitalismo,
os seres humanos existiam em um paraíso sexual livre de repressão ou restrições de
qualquer tipo. Pelo contrário, as proibições legais e os tabus sociais existiram desde a
antiguidade até a era préocapitalista em muitas culturas com base em atos sexuais,
frequentemente denunciando o sexo não procriador, sem a condenação ou mesmo a
concepção de identidade sexual como um aspecto intrínseco ou saliente de uma
pessoa.
“Os gregos não viam o amor pelo próprio sexo e amor pelo outro sexo como opostos,
como duas escolhas exclusivas, dois tipos radicalmente diferentes de comportamento
[...] Os gregos eram então bissexuais? Sim, se queremos dizer com isso que um grego
[livre] poderia, simultaneamente ou cada um de uma vez, se apaixonar por um
menino ou uma menina [...] Mas se quisermos voltar nossa atenção para a maneira
como eles conceberam essa prática dupla, precisamos levar em consideração o fato
de que eles não reconheciam dois tipos de "desejo" [...] Seu modo de pensar, o que
possibilitava desejar um homem ou uma mulher era simplesmente o apetite que a
natureza implantou no coração do homem pelos "belos" seres humanos, seja qual for
o sexo deles.”8
As mudanças na família
A construção da homossexualidade
O capitalismo moderno criou o "espaço social" para uma identidade gay emergir. 34 Os
centros industriais e fnanceiros concentraram as pessoas em grande número, criando
assim o potencial de anonimato que nunca antes existiu nas sociedades humanas.
Tendo criado a possibilidade dos indivíduos viverem separados de suas famílias e
experimentarem práticas práticas sexuais alternativas longe da estreiteza da vida
rural, a sociedade capitalista procurou então defnir e reprimir esse novo "desvio"
sexual. Como D'Emilio explica,
CAPÍTULO SEIS
Em Defesa do Materialismo: Pós-modernismo, Políticas
Identitárias, e a Teoria Queer em Perspectiva
1995), 3.
42
Ibid., 7.
43
Ibid., 22.
44
Katz, Invention of Heterosexuality, 67.
Para os marxistas, a teoria é um guia para a ação, não um fm em si mesmo. "Os
flósofos apenas interpretaram o mundo de várias maneiras; o importante, no entanto,
é mudáolo,"45 como na famosa citação de Marx e Engels. Seu objetivo não era denigrar
a teoria ou os flósofos, mas desafáolos a enfrentar lutas da vida real para acabar com
a situação exploradora e opressiva que toda a classe trabalhadora enfrenta sob o
capitalismo.
Esse não é, infelizmente, o pensamento que dominou as discussões políticas e
teóricas sobre a libertação LGBT nas últimas décadas nos Estados Unidos. A política
LGBT centrouose na academia desde o declínio das lutas sociais nos países
industrializados ocidentais na década de 1970. Alguns dos participantes dos
movimentos do fnal da década de 1960 que foram para carreiras acadêmicas
perceberam os fracassos dessas lutas e dos estados pseudoosocialistas em alcançar a
libertação como indicadores de que a política Marxista e a estratégia de luta coletiva
eram, na melhor das hipóteses, anacronismos ou, na pior das hipóteses, fatalmente
falho. Em uma era de consumismo desenfreado e neoliberalismo que marcaram a
década de 1980 e além, muitos desses acadêmicos buscaram teorias alternativas ao
marxismo para a compreensão do mundo, incluindo a opressão LGBT. Eles
descobriram o pósomodernismo.
Apesar das intenções e das propensões radicais de muitos expoentes e adeptos do
pósomodernismo e seus desdobramentos políticosopolíticas identitárias e teoria
queeroessas ideias não armam pessoas com uma visão de mundo que pode derrubar
a opressão que as pessoas LGBT enfrentam. Na verdade, eles são uma negação não
apenas da política de classes, mas de uma análise materialista de como o mundo
funciona e como mudáolo. Enquanto as ideias pósomodernas parecem estar em
declínio nesta era política de desenvolvimento recente, eles dominaram o
pensamento acadêmico e o movimento LGBT por muito tempo e não desaparecerão
simplesmente sem que ativistas e teóricos encarem o desafo de substituíolos. O que
se segue é uma breve exposição do pósomodernismo, da política identitária e da
teoria queer e uma polêmica contra eles, porque a nossa compreensão desses
conceitos, muitas vezes abstratos, tem um impacto nas estratégias que os ativistas
desenvolvem para desafar o status quo. Afnal, "Sem teoria revolucionária não pode
haver movimento revolucionário", como V. I. Lenin argumentou em O que fazer?46
“Os héteros têm um privilégio que os permite fazer o que quiserem e foder sem medo
[...] Quero que haja uma moratória sobre o casamento hétero, sobre bebês, sobre
exibições públicas de afeto entre o sexo oposto e imagens da mídia que promovam
65
Quoted in Smith, “Mistaken Identity,” 16.
66
Cindy Patton, Sex and Germs: the Politics of AIDS (Cambridge,
MA: South End Press, 1985), 153.
67
Heidi Hartmann, “The Unhappy Marriage of Marxism and Feminism,” Capital and Class, no. 8 (Summer 1979): 14.
68
Veja o capítulo 1.
heterossexualidade. Até que eu possa desfrutar da mesma liberdade de movimento e
sexualidade, como os héteros, [sic] seu privilégio deve parar e deve ser entregue a
mim e minhas irmãs e irmãos queer. Os héteros não irão fazer isso de forma
voluntária e, portanto, devem ser forçadas a isso. Os héteros deve estar com medo
disso. Terrorizados [...] É mais fácil lutar quando você sabe quem é seu inimigo. Os
héteros são seu inimigo.”69
Esse sectarismo hostil contra a maioria da população difcilmente pode ser um modelo
de luta coletiva em uma sociedade na qual as pessoas LGBT provavelmente devem
ser uma minoria. A rejeição de héteros, como uma rebelião contra o status quo, é
como um grito primordial, e não a estratégia política de uma organização que quer
desafar a homofobia. Uma ativista lésbica negra veterana dos movimentos dos anos
1970, Barbara Smith, respondeu a este manifesto em uma carta à Outweek
"sugerindo que se os queers de cor seguissem sua política, em breve estaríamos
emitindo uma declaração intitulada 'Eu Odeio os Branquelos', incluindo queers
brancas de origem europeia."70 Para os Marxistas, a consciência sob o capitalismo é
misturada, às vezes contraditória e capaz de ser mudada pela experiência, argumento
e luta. A mudança positiva nas atitudes em relação às pessoas LGBT na mídia e
refetida nas pesquisas de opiniões desde os anos 1980 mostra que a hostilidade com
as pessoas devido à sua orientação sexualoou raça e gêneroonão é estática.71
Além disso, como diz D'Emilio, "os movimentos baseados na identidade
provavelmente atuam como uma barreira para a solução de injustiças baseadas em
classes, porque colocam num pedestal a lealdade grupal entre as linhas de classe." 72
Como em qualquer aliança de classes diferentes, aqueles com a maior confança,
tempo e conexõesogeralmente aqueles que são de classe média ou altaodirigem as
demandas e a perspectiva de novos movimentos sociais para atender às suas
próprias aspirações e não às da classe trabalhadora e dos pobres. "Em todos os casos,
os principais benefciários foram membros da classe média, aqueles com acesso a
educação e treinamento e privilégio que lhes permitiram aproveitar ao máximo a
igualdade de direitos e igualdade de oportunidades", explica D'Emilio. 73 Sua crítica
aqui não é de ativistas ou acadêmicos de classe média individuais, mas uma
avaliação precisa da classe média como força social. A proliferação de departamentos
de estudos queer e de gênero nas principais universidades e da mídia focada em
LGBTs e outros mercados culturais são alguns dos resultados desses movimentos
políticos identitários e são avanços bem vindos. No entanto, eles realmente não
atendem as necessidades materiais da maioria das minorias sexuais, nem enfrentam
os problemas fundamentais enfrentados pela maioria das pessoas LGBT que são da
classe trabalhadora.
Por que "discurso"? Após a derrota da greve geral francesa em 1968, alguns foram
buscar teorias alternativas para explicar suas decepções. Foucault colocou o discurso
como o meio através do qual a interação humana é regulada e o pensamento é
derivado. Para Foucault e outros, o discurso era "um grupo de declarações que
fornecem uma linguagem para falar sobre [...] um tópico em particular em um
momento histórico particular." "Nada", argumentou, "tem signifcado fora do
discurso".77 Foucault não estava negando a realidade material, mas colocando a
noção de que os objetos só têm signifcado através do discurso, que rege o modo
como a realidade pode e não pode ser discutida. "Através dos vários discursos",
escreveu, "as sanções legais contra perversões menores foram multiplicadas; a
irregularidade sexual foi anexada à doença mental; desde a infância até a velhice,
uma norma de desenvolvimento sexual foi defnida e todos os desvios foram
cuidadosamente descritos."78 Em vez de ser parte da sociedade, Foucault acreditava
que a linguagem constrói a sociedade, dando assim "à linguagem poderes de criação
de realidade tão formidáveis quanto aqueles presentes em afrmações de que a
linguagem é livre da sociedade [...] Para ele, o próprio discurso constituiu e reproduziu
relações de poder na sociedade."79
Esta forma de idealismo linguístico em que a linguagem molda a realidade ao invés de
ser um meio de relações sociais que refete e é um produto da realidade foi refnada
pelo flósofo Jacques Derrida. Ele escreveuu "Não há texto externo," 80 o que signifca
que não podemos realmente conhecer objetos fora do que pode ser falado ou escrito
sobre, não que não exista realidade. Este é um enorme poder com o qual imbuir
conceitos e palavras; na verdade, equivale a virar a realidade de cabeça para baixo. A
visão do mundo do pósomodernismootodos os protestos contra as metanarrativas de
ladooé que nossa consciência expressa através do discurso determina nosso mundo
material. No entanto, nosso idioma descreve o mundo exterior de forma mais ou
menos acurada, e nossas ideias e a linguagem que usamos para expressáolos são
74
Retirado de Alex Callinicos, Against Postmodernism: A Marxist
Critique (Cambridge, MA: Polity Press, 1989), 3.
75
Ibid.
76
Ellen Meiksins Wood, The Retreat from Class: A New “True” Socialism (New York: Verso, 1986), 54.
77
Stuart Hall, “The West and the Rest: Discourse and Power,” em Stuart Hall and Bram Gieben, eds., Formations of Modernity
(Open University/Polity Press, 1992), 275–330.
78
Michel Foucault, History of Sexuality, vol. I (New York: Pantheon Books, 1976), 36.
79
Marnie Holborow, “Putting the Social Back into Language:
Marx, Volosinov and Vygotsky Reexamined,” Studies in Language and Capitalism 1 (2006): 2.
80
Retirado de Callinicos, Against Postmodernism, 76.
moldados e, por sua vez, ajudam a moldar esse mundo externooo processo é
dinâmico. Como Marx e Engels escreveramu
“Em contraste direto com a flosofa alemã que desce do céu para a terra, aqui nós
ascendemos da terra ao céu. Ou seja, não partimos do que os homens dizem,
imaginam, concebem, nem dos homens como narrados, pensados, imaginados,
concebidos, para chegar aos homens na carne. Nós partimos de homens reais e
ativos e, com base em seu processo de vida real, demonstramos o desenvolvimento
dos refexos ideológicos e dos ecos desse processo de vida [...] Moralidade, religião,
metafísica, todo o resto da ideologia e suas formas correspondentes de consciência,
portanto, não mais conservam a aparência da independência. Eles não têm história,
não têm desenvolvimento; mas os homens, desenvolvendo sua produção material e
sua relação material, alteram, junto com a existência real deles, seus pensamentos e
os produtos de seus pensamentos. A vida não é determinada pela consciência, mas
pela consciência pela vida.”81
“O poder não é uma substância, mas uma relação. O poder não é, portanto, possuído,
mas exercido. Isso signifca que o poder não deve ser conceitualizado como
propriedade de alguém que possa ser identifcado e confrontado, nem deve ser
pensado (pelo menos em primeira instância) como incorporado em agentes ou
instituições particulares. O poder não é uma possessão do Monarca ou do Pai ou do
Estado, e as pessoas não podem ser divididas entre aqueles que "têm" e aqueles que
não têm. Em vez disso, o poder é o que caracteriza as relações complexas entre as
partes de uma sociedadeoe as interações entre os indivíduos nessa sociedadeocomo
relações de poder contínuas [...] O poder, então, não deve ser entendido de acordo
com o modelo de um vetor unidirecional do opressor ao oprimido. Em vez disso, é um
meio fuido, abrangente, imanente em todos os tipos de relação social [...]”87
Desvinculado de sua base de classe, o poder tornouose uma noção sem raízes,
onipresente e vaga. Se o poder está em todo lugar (e em lugar nenhum), a mudança
social fundamental é uma ilusão. Usando conceitos semelhantes, o popular livro de
2002 de John Holloway convocou o movimento de justiça global para Mudar o Mundo
Sem Tomar o Poder, dissolvendo o poder e criando o "antiopoder" dentro de nós
mesmos. A revolução para os pósomodernos deixou de signifcar transformar o
mundo; Em vez disso, o mundo deve ser modifcado metafsicamente. Ou, como é
explicado em Saint Foucault, "O objetivo de uma política de oposição não é, portanto,
a libertação, mas a resistência." 88 O objetivo da resistência tornaose a sobrevivência,
"encontrando a melhor maneira de lidar [...] dentro dos arranjos sociais existentes" 89
não a vitória sobre poderes opressivos.
Com essa noção, a própria linguagem tornaose o local da luta, não apenas uma
ferramenta que as pessoas podem usar para desafar sua opressão. As palavras
"queer", "sapatão" e "bicha"oxingamentos que gerações de homens afeminados e
mulheres masculinas encontraram rabiscados nos armários do ensino médiootornamo
se armas para combater o poder. Em 1990, um novo grupo LGBT que se chamava de
Queer Nation foi fundado para combater a homofobia, muitas vezes através de
pequenas ações diretas, chamadas "zaps", voltadas para chocar as pessoas héteros,
como vestirose de maneiras estereotipadas e fazer beijaços em shoppings
suburbanos. Os membros fundadores da Queer Nation explicaram o nome do grupo
desta formau "É a ideia de reapropriar as palavras de nossos opressores e realmente
reocontextualizar o termo 'queer' e usáolo de forma positiva para nos empoderar [...]
Agora podemos realmente nos juntar em torno da palavra, e isso confunde nossos
opressores. Isso nos faz sentir mais fortes." O outro ativista acrescentou, "Nós os
privamos de poder usar esse termo." 90 Como Sharon Smith argumenta, "Isso refete a
crença de que usar certas linguagens 'politicamente corretas' pode afetar as
condições que massas de gays e lésbicas enfrentam na sociedade. Isso não é
verdade. Se os ativistas da Nação Queer se sentiram ou não pessoalmente
'empoderados' usando o termo 'queer', a grande maioria das pessoas continuará a
consideráolo como uma ofensa."91
Na reunião de lançamento do grupo na cidade de Nova York, uma disputa sobre o
nome revelou a mentalidade de muitos que defendiam o 'queer' como uma
celebração da marginalização e expressaram o desejo de usar o status de excluídos
como um emblema de honra. Como um defensor explicou seu uso de queer, signifca
87
Quoted in Colin Gordon, ed., Power/Knowledge: Selected Interviews and Other Writings (New York: Pantheon Press, 1980),
98.
88
Halperin, Saint Foucault, 16–17.
89
Ibid., 18.
90
Retirado de Smith, “Mistaken Identity,” 18.
91
Ibid.
que "Não somos patológicos, mas não pense que por isso queremos ser normais." 92
Embora a palavra queer tenha se transformado nos últimos anos em um termo mais
amplo para a rebeldia de gênero e sexualidade, refetiu para muitos naquela época
uma rejeição do poder e uma aceitação do exílio social. A proeminente teórica queer,
Eve Sedgwick, parece realmente manter a irreparabilidade do "queer" como algo
bomu "Se queer é um termo politicamente potente, o que é, é porque, longe de se
afastar da vergonha da infância, ele usa essa cena como uma fonte quase inesgotável
de energia transformativa."93 A marca de nascença da Nação Queer foi, então, um
derrotismo militanteoa militância retórica substituiu a luta coletiva. O objetivo desses
novos movimentos sociais pósomodernos, como explica um advogado, era "menos 'o
fm da dominação' ou 'libertação humana' e mais a criação de espaços sociais que
incentivem a proliferação de prazeres, desejos, vozes, interesses, modos de
individualização e democratização."94
O fascínio dos pósomodernos com o discurso como determinante lembra uma geração
anterior de flósofos de quem Marx e Engels se separaram, os Jovens Hegelianos, que
também acreditavam que "o progresso humano é retido principalmente por ilusões,
ideias equivocadas e falsas consciências." 95 Em uma crítica que pode ser aplicada
mais de 150 anos depois, Marx e Engels argumentaramu
A ativista e autora transgênero Riki Wilchins captura esse dilema com um toque mais
contemporâneou "se o discurso é tão poderoso, a liberdade é impossível. Não
podemos escapar do poder discursivo como não podemos da nossa própria
subjetividade [...] O discurso vira o Borg do Star Treku 'A resistência é inútil.'"97
O discurso como determinante está em contraste com os movimentos anteriores do
Black Power e da libertação das mulheres e dos gays, onde termos como "colorido",
"Negro", "menina" e "queer" foram rejeitados através de lutas de massa para
reivindicar os nomes que exigiam poder, que se encaixavam na era combativa. É
importante ver que essas lutas iniciais para ampliar e expandir sua infuência nunca
se chamaram usando ofensas raciais ou sexuais. Mas enquanto Marx e Engels
criticaram os Jovens Hegelianos pela inaplicabilidade de suas ideias no mundo
exterior, uma tempestade perfeita de circunstâncias no fnal do século XX colocou em
ação muitos que olhavam para os conceitos desses neooidealistas como orientação. O
casamento do antiomaterialismo e do ativismo nem sempre foi feliz.
"Silêncio=Morte" não era apenas um mote pungente para o novo movimento da AIDS;
era perfeitamente adequado à era política que o gerava. Este slogan, em impressão
branca em cartazes pretos com um triângulo rosa invertido que lembra os emblemas
92
A autora esteve nas reuniões iniciais do Queer Nation (Nação Queer) na cidade de Nova York na primavera e no verão de
1990.
93
Eve Kosofsky Sedgwick, Tendencies (Durham NC: Duke University Press, 1993), 4.
94
Retirado de Cloud, “Queer Theory and ‘Family Values,’” 90.
95
Phil Gasper, “The German Ideology,” International Socialist Review, January–February 2004, 84.
96
Marx and Engels, MECW, vol. 5, 30.
97
Riki Wilchins, Queer Theory, Gender Theory: An Instant Primer (Los Angeles: Alyson Publications, 2004), 103.
da era Nazista para homossexuais, apareceu pela primeira vez nos faróis e paredes do
baixo Manhattan em 1986.98 Até os últimos dias do segundo mandato de Ronald
Reagan em 1987, o presidente não se importou nem em pronunciar a palavra "AIDS",
uma doença que, naquele momento, matou mais de 20 mil americanos e infectou
mais de 50 mil pessoas em 113 países nos seis anos desde que foi diagnosticada. 99
Naquele ano, três de quatro casos de AIDS na cidade de Nova York foram
diagnosticados em homens gays, de acordo com o dramaturgo Larry Kramer, o que
ajudou a iniciar a organização de serviços Gay Men's Health Crisis (GMHC) e o grupo
de ação direta ACT UP.100 A demanda urgente de Kramer por ação apareceu pela
primeira vez no New York Native na peça "1.112 e Contando" de 1983, que começou,
"Se este artigo não assustar muito vocês, estamos com problemas reais. Se este
artigo não o deixar com raiva, fúria, ódio e ação, os homens gays podem não ter
futuro nesta terra. Nossa existência contínua depende do quanto de raiva você
conseguir ter."101
Tanto quanto a própria doença, foi o clima político sujo que alimentou o
desenvolvimento da crise que levou Kramer a soar o alarme. O diretor de
comunicações de Reagan, Pat Buchanan, disse que a AIDS era a "vingança da
natureza contra homens gays", enquanto o extremista de direita Cristão Jerry Falwell
disse, "a AIDS é a ira de Deus contra os homossexuais". 102 O Moral Majority (Maioria
Moral), um dos grupos mais proeminentes de direita da época, fez um chamado
massivo para arrecadar fundos que dizia, "Por que os contribuintes devem gastar
dinheiro para curar doenças que não deveriam nem começar em primeiro lugar? [...]
Mas vamos deixar a comunidade homossexual fazer sua própria pesquisa. Por que o
contribuinte americano deve resgatar essas pessoas pervertidas?" 103 As leis antio
sodomia no Texas e na Georgia em 1983 foram justifcadas com base no fato de que a
homossexualidade "causou" a doença.104 E o Charles Krauthammer da New Republic
(Nova República) argumentou nesse ano, "Assim como a sociedade estava pronta
para conceder que a homossexualidade não é uma doença, vem com isso a ideia de
que a homossexualidade causa doenças."105 Todos eles, por meio de indiferença e/ou
ofensas, expressaram a cruel homofobia que dominou a mídia dos EUA na década de
1980.
Qualquer crítica aqui dos movimentos que surgiram para desafar esse estado de
coisas é solidária com seus objetivos como ponto de partida. Grupos como o ACT UP
tiveram vitórias signifcativas, incluindo ensaios clínicos de medicamentos sem
precedentes, escalada de tratamentos experimentais e atenção generalizada,
simpatia e aceitação de pessoas com AIDS. No entanto, as perspectivas políticas que
guiaram muitos desses ativistas muitas vezes levaram a divisões amargas e
desnecessárias e muitas vezes rejeitaram os aliados diretos de todas as raças, criando
um clima inóspito para ativistas comprometidos da esquerda organizada, inclusive
aqueles que eram LGBT e eles próprios tinham HIV/AIDS.
Grupos como o ACT UP, que entraram em cena em março de 1987, e Queer Nation
(Nação Queer), que vieram do ACT UP em 1990 para combater a homofobia, aderiram
ao conceito de políticas identitárias, que considerava apenas aqueles que
98
Patton, Inventing AIDS, 161.
99
Allen White, “Reagan’s AIDS Legacy: Silence Equals Death,”
San Francisco Chronicle, June 8, 2004.
100
Larry Kramer, “The Beginning of ACTing Up,” (1987) in We Are
Everywhere: A Historical Sourcebook of Gay and Lesbian Politics,
ed., Mark Blasius and Shane Phelan, (New York: Routledge,
1997), 609.
101
Kramer, “1,112 and Counting,” in ibid., 578.
102
Retirado de White, “Reagan’s AIDS Legacy.”
103
Retirado de John-Manuel Andriote, Victory Deferred: How AIDS
Changed Gay Life in America (Chicago: University of Chicago
Press, 1999), 67–68.
104
Ibid., 69.
105
Retirado de ibid.
compartilhavam uma identidade comum e que diretamente experimentam uma forma
de opressão como capazes de lutar contra essa opressão. Muitos dos fundadores do
ACT UP, que eram HIV positivo, eram executivos, cineastas, produtores de TV,
dramaturgos e outros profssionais que tinham meios fnanceiros, educação e
confança para criar uma rede de ativistas em todo o país na época antes da
Internet.106 Um consultor de negócios de Manhattan de trinta e cinco anos que se
juntou ao ACT UP depois que seu amante morreu de AIDS explicou sua vida antes do
ativismou "Eu estava em uma típica viagem materialista yuppie 107."108 As reuniões
começaram toda semana com a homenagem a um membro, amigo ou amante que
morreu naquela semana, aumentando a sensação de urgência e sobriedade ao
processo muitas vezes caótico em que ações múltiplas eram debatidas e planejadas.
Mas a militância superfcial impulsionada pela letalidade da doença mascarou uma
perspectiva política que era extremamente estreita e de classe média em sua
orientação. Como um jornalista com AIDS descreveu isso, "o ACT UP sempre em parte
um teatro, em parte terapia em grupo."109
Coerente com as suspeitas pósomodernas da unidade e da luta coletiva, as ações zap
opequenos eventos direcionados organizados por grupos de afnidade, muitas vezes
constituídos por amizadeoganharam de propostas por atos e marchas mais amplas
que poderiam atrair aliados e mobilizar os outros. Um dos principais membros do
Comitê de Tratamento e Dados do ACT UP New York descreve como algumas ações
zap, apesar das boas intenções, poderiam ser contraproducentesu
119
Andriote, Victory Deferred, 250.
120
Christopher Heredia, “S.F.’s ACT UP Ordered to Back Off,” San
Francisco Chronicle, November 11, 2000.
121
Tara Shioya, “Men Behaving Viciously,” San Francisco Weekly,
March 19, 1997.
122
Craig A. Rimmerman, “ACT UP,” TheBody.com, 1998,
http://www.thebody.com/content/art14001.html.
123
Contents of the Women’s Action Coalition records from 1992–1997
can be found at the New York Public Library, http://www.nypl.
org/research/chss/spe/rbk/faids/wac.html. The author attended New York WAC’s weekly organizing meetings.
124
“Historical Presidential Zap,” ACT UP New York, http://
www.actupny.org/campaign96/rafsky-clinton.html.
125
“ACT UP Capsule History for 1992,” http://www.actupny.org/
documents/cron-92.html.
era uma escolha pela vida.
Apesar das limitações teóricas da política ID das estratégias dos líderes do
movimento, muitas ações foram tremendamente bem sucedidas em trazer aliados
que não eram diretamente afetados pelas lutas individuais.
Algumas das ações mais bemosucedidas e proeminentes desafavam os princípios de
identidade separatistas. Milhares de LGBT e pessoas héteros protestaram contra a
mensagem anti sexo seguro da Igreja Católica na Catedral de São Patrício, em
dezembro de 1989. Números similares compareceram em ações bem divulgadas a
partir de março de 1987 e a cada março por muitos anos para protestar contra as
empresas farmacêuticas e a escandalosa especulação de Wall Street sobre
medicamentos contra a AIDS.126 As ações de massa para defender as clínicas de
aborto de extremistas da direita foram frequentemente lideradas por jovens lésbicas
no WHAM! e um ensaio exagerado e sagaz politicamente de drag queens gays,
conhecido como Church Ladies for Choice, onde apareciam vestindo vestidos de
mulheres velhas, perucas e sapatos, cantando "This Womb Is My Womb" (Esse Útero é
o meu Útero) (ao som de "This Land is Your Land") e outros clássicos americanos. 127
Mas, na maioria das vezes, as estratégias eram ações zap, impulsionadas por uma
irreverência naosuaocara para a autoridade que ignorava os pontos de apoio reais do
poder e não conseguia envolver a classe trabalhadora negra, marrom e branca de
todas as orientações sexuais, que logo se tornariam o rosto da AIDS nos Estados
Unidos e em todo o mundo. Ao invés de construir alianças com lideranças de
trabalhadores, e de comunidades negras e latinas, além de desafar os democratas
que controlavam o Congresso até 1994, os zaps expressaram rebeldia sem oferecer
um caminho a seguir na luta. Hoje, a AIDS nos Estados Unidos está infectando cada
vez mais afrooamericanos. Os últimos dados do CDC sobre HIV/AIDS nos Estados
Unidos mostram que, apesar de os negros terem representado menos de 13% da
população dos EUA, desde 2005 representam 49% de todos os que foram
diagnosticados com HIV/AIDS128. É por isso que a organização futura da AIDS deve
orientarose por todas as pessoas da classe trabalhadoraoLGBT, héteros, negros e de
todas as raças.
Queerizando a Identidade
“[A] perspectiva de ser qualquer coisa, mesmo por pagamento, sempre produziu em
mim uma certa ansiedade, porque "ser" gay, "ser" lésbica parece ser mais do que
uma injunção simples para se tornar quem ou o que eu já sou.”
131
“Judith Butler,” entrevista por Jill Stauffer, Believer, Maio de 2003.
132
Max H. Kirsch, Queer Theory and Social Change (New York:
Routledge, 2000), 8.
133
Turner, Genealogy of Queer Theory, 16.
134
Halperin, Saint Foucault, 61–62.
135
Turner, Genealogy of Queer Theory, 10.
136
Retirado de Annamarie Jagose, Queer Theory, An Introduction
(New York: NYU Press, 1996), 1.
Ela está, então,
“não à vontade com teorias lésbicas, teorias gay, pois, como discuti em outro lugar,
as categorias de identidade tendem a ser instrumentos de regimes regulatórios, seja
como normalização de categorias de estruturas opressivas ou como pontos de partida
para uma contestação libertadora dessa opressão.”137
2000), 59.
144
Retirado de Piontek, Queering Gay and Lesbian Studies, 90.
145
Rona Marech, “Radical Transformation: Writer Patrick Califia-Rice Has Long Explored the Fringes. Now the Former Lesbian
S/M Activist Is Exploring Life as a Man,” San Francisco Chronicle, 27 de Outubro de 2005,
http://www.sfgate.com/cgi-bin/article.cgi?
file=/chronicle/archive/2000/10/27/WB78665.DTL.
146
Retirado de Piontek, Queering Gay and Lesbian Studies, 84.
147
Pat Califia, Public Sex: The Culture of Radical Sex (San Francisco,
CA: Cleiss Press, 2000), 158.
148
Cloud, “Queer Theory and ‘Family Values,’” 87.
149
Retirado de Nowlan, “Post-Marxist Queer Theory,’” 136.
150
“Sexual Relations and the Class Struggle,” Selected Writings of
Alexandra Kollontai (Westport, CT: Lawrence Hill, 1977), 237.
O ponto da Kollontai é simplesmente que a verdadeira liberdade no domínio da
moralidade sexual só pode ser alcançada através de uma luta maior contra todas as
formas de opressão e exploração. A política sexual da teoria queer é essencialmente a
política do individualismo burguês. Como Califa admite, realmente não podemos
"foder nosso caminho para a liberdade".
A oposição a todas as convenções apresenta alguns outros problemas óbvios. Antes
de tudo, existem todos os tipos de convenções sociais às quais aderimos não porque
somos obrigados pela força ou pela tradição, mas porque nos permitem viver em
harmonia com outros seres humanos. Esperar sua vez na fla e abrir a porta para a
próxima pessoa são convenções sociais que a maioria das pessoas adotam facilmente
porque elas fazem sentido e nos permitem viver em um mundo em cooperação com
os outros. Não há nada inerentemente ruim em convenções. Na verdade, poucos de
nós desejariam ou seriam capazes de viver na sociedade sem muitas delas. Separar
aquelas que servem para estender a opressão daquelas que nos permitem viver como
seres sociais colaborativos podem dar origem a debates úteis, mas estes são
resolvíveis na prática, não no âmbito da abstração. A maioria dos ataques retóricos a
todas as convenções tem pouco a oferecer na esfera da prática.
O projeto dos teóricos queer de deconstruir verdades dadas para revelar como elas
foram criadas pela sociedade também se traduz em negar gênero e categorias
sexuais. Eles argumentam que o gênero é "construído discursivamente," e, portanto,
pode ser "discursivamente" desconstruídoodefnir é "reifcar" ou fazer algo concreto
e, portanto, parte de nossa luta, eles argumentam, é rejeitar defnições. Os Marxistas,
pelo contrário, vêem gênero e categorias sexuais como construídas socialmente e,
portanto, só podem ser socialmente desconstruídas, com a linguagem vindo depois. A
mais famosa entre os teóricos queer, Butler escreve que o gênero é uma espécie de
"fcção cultural, um efeito performativo de atos reiterativos"u "O gênero é a estilização
repetida do corpo, um conjunto de atos repetidos dentro de um quadro regulatório
altamente rígido que congela ao longo do tempo para produzir a aparência da
substância, de um tipo natural de ser."151 Em seu livro Problemas de Gênero, Butler
argumenta que "não há identidade de gênero por trás das expressões de gênero," 152
e, portanto, feministas e também libertadores LGBT que tomam essas "fcções
culturais" como dadas caem numa armadilha. No entanto, parece que é Butler e
companhia que se aprisionaram em um enigma discursivo de sua própria criação.
Uma coisa é argumentar que a maneira como nos comportamos fsicamente, nos
vestimos, arrumamos nossos cabelos, etc., é pelo menos parcialmente uma
performance involuntária moldada pela cultura na qual somos criados. Não há dúvida
de que isso é verdade e o livro de 1942 de Simone de Beauvoir, O Segundo Sexo,
argumenta isso com eloquência, como Butler reconhece. É bem diferente concluir que
todo gênero é uma farsa que pode ser contestada através da paródia, como Butler
sugere. Ela escreveu "As práticas de paródia podem servir para reencontrar e
reconsiderar a própria distinção entre uma confguração de gênero privilegiada e
naturalizada e uma que aparece como derivada, fantasmática e miméticaouma cópia
falha, por assim dizer."153 Ela argumenta que mudanças políticas positivas podem
surgir da desestabilização da construção da sociedade e dos pressupostos de gênero
através de drags e outras formas de paródia. Cloud assume o utopismo de Butler ao
substituir a luta por um "teatro do eu onde a intimidade é encenada e as palavras são
separadas de seus referentes materiais. A teoria da performatividade localiza o
151
Judith Butler, Gender Trouble: Feminism and the Subversion of
Identity (New York: Routledge, 1990), 33.
152
Ibid.
153
Ibid., 200.
agente na "consciência" [...] dos indivíduos e não em enfrentar coletivamente o
capitalismo."154 Sim, o gênero e suas normas são socialmente construídos e
restritivos, e algumas pessoas, como as transgêneras, acham essas normas
asfxiantes. Mas o problema é que vivemos em uma sociedade machista em que a
maneira como se trata, quanto ganha, a vulnerabilidade física e outras considerações
são moldadas pelo gêneroonão que cada um de nós tenha um gênero. Como a
introdução ao ensaio de Butler no Transgender Studies Reader perguntau "se o gênero
não é real, quão real pode ser a sua opressão?"155 Naturalmente, qualquer política
libertadora deve abraçar a multiplicidade de comportamentos e maneirismos sexuais,
estilos de roupa, e expressões físicas que os seres humanos desejam expressar. Deve
rejeitar as normas legais que exigem que o sexo físico de uma pessoa seja compatível
com sua identidade de gênero. Mas argumentar que o gênero é uma categoria sem
sentido, ao invés de algo mais ambíguo do que alguns cientistas sociais acreditam,
levanta questões flosófcas interessantes, mas nos conduz a um beco sem saída
teórico e organizativo.
Se a mulher é uma fcção, isso levanta uma difculdade óbvia para lutar por seus
direitos. Butler argumenta, "a insistência prematura em um tema estável do
feminismo, entendido como uma categoria perfeita de mulheres, gera
inevitavelmente muitas recusas para aceitar a categoria." 156 Ela então conclui que o
feminismo em si, na luta por essa categoria de fcção, é "coercivo e regulatório." 157
Aqui, os conceitos estáveis e a clareza do signifcado são interpretados como
"regulatórios". Mas são os poderes coercivos da lei que impõem a noção de que os
genitais de uma pessoa devem necessariamente estar em conformidade com sua
identidade de gênero. Butler e Sedgwick enfrentam corretamente as feministas que
levantam argumentos essencialistasoque as mulheres são afetivas e mais passivas
como resultado de sua biologia, por exemploomas não entram nas questões do
mundo real que confnam a maioria das mulheres, e homens também, como a renda,
o acesso à educação, o acesso à saúde, e por aí vai. Na verdade, uma defciência
fagrante da teoria queer é quão pouco ela tenta se envolver com as realidades da
vida das pessoas. Enquanto os "corpos" são analisados por esses teóricos, seus
escritos assumem que o gênero e a sexualidade das pessoas são os aspectos mais
defnidores de suas vidas. Certamente, os corpos das pessoas são parcialmente
construídos pela sociedade, mais especifcamente por qual classe alguém nasceu. Um
deles é mais propenso a ser obeso, fumar, morrer jovem e ter maior estresse se
precisar trabalhar por muitas horas, sentarose em engarrafamentos horríveis, ter
pouco tempo de lazer e todos os outros aspectos infuenciados pela classe nas nossas
vidas. A fala do historiador Harriet Malinowitz sobre os teóricos queer é verdadeiro
aquiu "A rede teórica queer geralmente se assemelha a um clube social aberto aos
moradores de um bairro em que a maioria de nós não pode se dar ao luxo de viver." 158
Muitos que teorizaram sobre gênero e sexo conceberam uma distinção entre os dois
de uma maneira que Butler descreve como, "O sexo é para a natureza ou 'o cru' como
o gênero é para a cultura ou o 'cozinhado.'" 159 Enquanto alguns podem concordar que
a feminilidade e a masculinidade são criações sociais, o sexo biológico, geralmente se
diz, não éovocê nasceu com um conjunto de bits ou com outro. Pelo contrário, Butler
e outros questionam corretamente a noção limitada de um binário sexual
masculino/feminino dado a evidência de milhões de pessoas intersexuais com
genitália ambígua que não se encaixam perfeitamente em nenhuma das categorias. O
fato científco da variação anatômica que corre o espectro de possibilidades, no
154
Cloud, “Queer Theory and ‘Family Values,’” 92.
155
Judith Butler, “Doing Justice to Someone” em The Transgender
Studies Reader, ed. Susan Stryker e Stephen Whittle (New York: Routledge, 2006), 183.
156
Butler, Gender Trouble, 6.
157
Ibid.
158
Harriet Malinowitz, Textual Orientations: Lesbian and Gay Students and the Making of Discourse Communities (Portsmouth,
NH: Boynton/Cook Publishers, 1995), 12.
159
Butler, Gender Trouble, 50.
entanto, não é uma chamada de atenção para apagar masculino e feminino de nossos
vocabuláriosoessas palavras signifcam seres vivos reais no mundo, vários bilhões de
fato. Em vez disso, levanta o conceito de ambiguidade no domínio do sexo para uma
minoria de pessoas que não estão traumatizadas pelos termos "masculino" e
"feminino", mas por uma sociedade que não permitirá a fuidez sexual, incerteza e
diferença.
A Sociedade Intersex da América do Norte explica, "aprendemos que muitas pessoas
intersexuais estão perfeitamente confortáveis adotando uma identidade de gênero
masculina ou feminina e não estão buscando uma sociedade sem gênero ou querendo
se rotularem como membros de uma terceira classe de gênero." 160 Nas experiências
da vida real daqueles cujos interesses os teóricos queer nos dizem que suas ideias
servem, não são os rótulos que as pessoas transsexuais e intersexuais abominam,
mas sim a indústria médica e outras instituições que criam seu dilema. Os rótulos
apenas servem para descrever o que foi codifcado pela lei e a prática social. É
interessante notar que mesmo aqueles atraídos por essas ideias e que às vezes usam
o vocabulário contorcido da teoria queer precisam abandonáolos quando entram em
ação, por assim dizer, como o ativista transgênero e escritor Riki Wilchins faz em sua
organização do movimento. Tragicamente, devido à tradição distorcida do socialismo
e uma esquerda enfraquecida, as políticas ID e a teoria queer se alimentam em
alguns locais acadêmicos como em uma bolha hermeticamente fechada. No entanto,
nenhuma é capaz de dar libertação sexual, e suas suspeitas da verdade objetiva e
ceticismo sobre as possibilidades de mobilização comum levam a um impasse
interminável.
Ideias pósomodernas se desenvolveram e foresceram no período pós anos 1960,
quando uma geração de americanos cresceu sem participar de ou sequer
testemunhar lutas de classe de massas. Dezenas de milhões cresceram em uma
sociedade em que essas políticas de diferença e individualismo aparecem como senso
comum, o que talvez seja responsável pela aceitação contínua e generalizada da
linguagem dessas teorias, mesmo que sua relevância social tenha regredido. Como o
antropólogo Max Kirsch aponta,
Como Kirsch diz, "não estamos sozinhos." 162 Os seres humanos são animais sociais
que não podem existir ou prosperar sem o outro. Somos mais fracos como indivíduos.
Embora a ideologia da classe dominante promova um forte individualismo e o
desenvolvimento de atributos pessoais como meios para o sucesso, é como uma
classe coletiva que as pessoas comuns têm poder para fazer mudanças. Não porque
somos todos os mesmosoobviamente não somosomas porque todos nós temos um
inimigo comum no sistema e na pequena classe de parasitas que o governa.
Independentemente de nossas diferenças e como as experiências de opressão se
manifestam, os trabalhadores têm mais em comum do que têm de diferenças. O que
a sociedade de classes construiu, as forças organizadas em oposição a ela podem
derrubar. No entanto, o pósoestruturalismo flosófco da teoria queer é um obstáculo à
desconstrução física desse sistema opressivo.
160
April Herndon, “Why Doesn’t ISNA Want to Eradicate Gender?”
ISNA, February 17, 2006, http://www.isna.org/faq/not_eradicating_gender.
161
Kirsch, Queer Theory and Social Change, 17–18.
162
Ibid., 4.
A teoria queer pega alguns dos problemas criados pelos ativistas das políticas
identitárias, que muitas vezes criam barreiras entre grupos oprimidos, e tenta resolvêo
los teorizando a existência de grupos e barreiras. O que parecem não aceitar é que
simplesmente porque alguém não pode se identifcar como lésbica não quer dizer que
não possa se identifcar com as lésbicas. Ninguém pode refutar, é claro, que apenas
um homem gay com AIDS, por exemplo, pode saber como é passar por esse mundo
como uma minoria sexual, muitas vezes culpados pelos direitistas por terem trazido a
si mesmos um doença potencialmente fatal. Da mesma forma, apenas uma mulher
negra pode saber como é a vida em sua pele. No entanto, os teóricos queer elevam
as realidades das diferenças a obstáculos insuperáveis para a identidade comum e,
por extensão, a ação comum também é questionada.
As ideias que deram a expressão teórica a uma época de pouca luta, com uma
esquerda organizada pequena, e de políticas econômicas neoliberais que se estendem
à vida comum das pessoas não parecem mais ter a mesma presença nos movimentos
sociais. À medida que entramos em uma era em que as exigências estão sendo feitas
para uma nova administração e os primeiros brotos de luta estão surgindo ainda em
trabalho de parto e entre pessoas LGBT, ativistas vindo das fleiras de setores cada
vez mais baixos das classes médias e da classe trabalhadora estão buscando
estratégias práticas e políticas para alcançar mudanças reais. As grandes
possibilidades residem na consciência se deslocando a esquerda sobre a
homossexualidade na sociedade dos EUA e no crescente senso de que, na unidade, há
a força.