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Parte 1 - Mudez
Lendo o capítulo livro Borderlands / La Frontera: The New Mestiza, de Gloria Anzaldua,
fui impactada pelo trecho inicial do capítulo “Como domar uma língua selvagem”, no qual ela
fala sobre o ditado “Em boca fechada não entra mosca”. Alzandua diz que sempre ouvia esse
ditado quando era criança [CITO]:
Ser faladeira era ser uma fofoqueira e uma mentirosa, falar demais. Muchachitas bien criadas,
garotas bem comportadas não respondem. É uma falta de respeito responder à mãe ou ao pai.
Eu me lembro de um dos pecados que eu tive que contar ao padre no confessionário numa das
poucas vezes que fui me confessar: responder à minha mãe, hablar pa’ ‘trás, repelar. Bocuda,
respondona, fofoqueira, boca-grande, questionadora, leva-e-traz são todos signos para quem é
malcriada. Na minha cultura, todas essas palavras são depreciativas se aplicadas a mulheres -
eu nunca as ouvi aplicadas a homens. (ANZALDUÁ, p. 306)
Fui lembrando de todo o meu percurso sendo criada e educada como uma jovem menina.
Eu era questionadora, curiosa, sempre tinha opiniões quando partilhava a mesa de adultos, e
eram sempre opiniões que fazia o restante da mesa prestar atenção, com espanto. Mas lembro
que minha mãe sempre repreendia a minha ousadia de falar, e eu era silenciada, ressaltando que
aquele não era um direito meu - enquanto criança, enquanto uma menina que se porta bem.
Nós, mulheres, fazemos parte de uma longa tradição de interdição do falar. Segundo Jane
Brox, no artigo “The Silence of Women” (2019), para as mulheres o silêncio [CITO]“tem a sua
própria e complexa história no mundo das punições judiciais. Do século XVI ao XIX, eram
comuns na Europa, punições por mulheres falarem demais em público, por “fazerem fofoca”,
resmungarem, ou tagarelarem demais. A punição para a fala, e a forma de silenciar
coercitivamente mulheres, era feita através da aplicação de um aparato chamado scold’s bridle,
uma máscara de ferro vazada, que envolvia a cabeça, apertava as narinas obrigando a respiração
ser mais lenta e curta, e uma outra parte que entrava na boca - se tentasse falar, espetos feriam a
língua. A aplicação dessa máscara de silenciamento era comum na Grã-Bretanha e Alemanha,
mas também nas mulheres que viviam nas colônias nas Américas. O castigo poderia ser
motivado inclusive por práticas anti-naturais ou comportamentos insubmissos - como ser
lésbicas, por exemplo. A mesma tortura era aplicada em pessoas escravizadas, mas sobretudo
mulheres escravizadas, por insubordinação, por falarem demais, tentarem se rebelar, ou por
terem se alimentado mais do que o limite permitido.
Onde eu quero chegar com isso? Como conectar esse silêncio imposto às mulheres com o
pensamento da precariedade em Butler?
Primeiro é necessário falar das noções levantadas por ela em seu livro Quadros de
Guerra: Quando a vida é passível de luto? (2017). Butler continua aqui a sua reflexão sobre
quais vidas que importam, iniciada em “Corpos que importam” e a sua reflexão sobre
vulnerabilidade, mas suplementando seu pensamento com a análise sobre a forma com que
nossas afetividades são reguladas de modo que não conseguimos apreender determinadas vidas
como passíveis de luto.
Ela está interessada em refletir sobre o que chama de “enquadramento seletivo e
diferenciado da violência” (BUTLER, p. 13). É um problema epistemológico. Segundo Butler,
“as molduras pelas quais apreendemos ou, na verdade, não conseguimos apreender a vida dos
outros como perdida ou lesada (suscetível de ser perdida ou lesada) estão politicamente
saturadas”. Esses enquadramentos organizam a nossa experiência visual, e geram ontologias
específicas do sujeito. São enquadramentos que necessitam de condições de reprodutibilidade,
precisam ser reiterados para que funcionem sobre nós. Essa reprodutibilidade faz com que sujeito
seja formado a partir de normas, é assim que as normas atuam, e determinam o que é um sujeito
passível de ser reconhecido como tal pela sociedade, e os que não são. Os que são passíveis de
luto e os que não são.
A questão da representatividade e da representação, bandeira dos movimentos
afirmativos e identitários, é uma tentativa de atuar na produção de novos enquadramentos.
Sujeitos são os que são vistos como sujeitos. O enquadramento tem geografia, tem cor, tem
gênero, tem sexualidade. Os sujeitos legitimados pelos enquadramentos são, retirando um pouco
a parcimônia da filósofa, brancos, cishétero, e de regiões geograficamente privilegiadas. São
sujeitos que, se morrem na esquina, se são alvejados pelo poderio militar, são prontamente
enlutados e provocam ondas de indignação social e cobertura incessante da mídia (mas isso não
acontece, né). Por outro lado, existem os sujeitos que ficam em uma zona exterior a esses
enquadramentos, e são vidas que não são passíveis de luto ou lamento.
É preciso destacar as relações que Butler estabelece entre a questão do enquadramento e
dimensão da precariedade. A precariedade é uma condição que compartilhamos, todos nós somos
seres precários. Butler ressalta que a precariedade precisa ser entendida como “uma condição
compartilhada da vida humana” (Idem, p. 30). Somos todos precários e todos estamos sujeitos a
perecer, seja por uma doença, seja por um acidente, seja por um fome, por falta de moradia, por
intempéries. E “é exatamente porque um ser vivo pode morrer que é necessário cuidar dele para
que possa viver” (Idem, p. 32). Se todos somos precários, precisamos de algumas condições para
que a nossa vida seja possível de ser vivida. [CITO]
[...] o que talvez seja mais importante é que teríamos de repensar ‘o direito à vida’ onde não
há nenhuma proteção definitiva contra a destruição e onde os laços sociais afirmativos e
necessários nos impelem a assegurar as condições para vidas vivíveis, e fazê-lo em bases
igualitárias. Isso implicaria compromissos positivos no sentido de oferecer os suportes básicos
que buscam minimizar a precariedade de maneira igualitária: alimentação, abrigo, trabalho,
cuidados médicos, educação, direito de ir e vir e direito de expressão, proteção contra os
maus-tratos e a opressão. (Butler, p. 41)
Os corpos em condição precária seriam justamente os que estão fora dessa zona dos
suportes básicos que visam minimizar a precariedade. Mulheres, por exemplo, o meu objeto
estratégico de análise nessa comunicação, estão passíveis de sofrerem abusos, assédio, estupro e
estão desprovidas de proteção mesmo em contexto familiar - como apontarei mais adiante -, não
usufruindo tampouco, do direito livre de ir e vir, o mesmo direito à expressão e à proteção contra
maus-tratos e opressão.
Para que os corpos em condição precária tenham direito à sobrevivência e prosperidade, é
necessário que ampliemos nossas reivindicações. Butler defende que devemos nos apoiar no que
ela chama de “uma nova ontologia corporal”, em suas palavras: “que implique repensar a
precariedade, a vulnerabilidade, a interdependência, a exposição, a subsistência corporal, o
desejo, o trabalho e as reivindicações sobre a linguagem e o pertencimento social.” (p. 15)
Interesso-me particularmente pelas “reivindicações sobre a linguagem” que, a meu ver,
não diz respeito a uma mera representatividade, que não está reduzida a uma política de
representação, mas que vai além: são interpelações de subjetividades e singularidades múltiplas,
excluídas desses enquadramentos e da ontologia normativa e cisheteropatriarcal. No que
concerne a questionar a moldura [CITO], “[...] significa mostrar que ela nunca conteve de fato a
cena a que se propunha ilustrar, que já havia algo de fora, que tornava o próprio sentido de
dentro possível, reconhecível.” (Butler, p. 24)