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Fuzilamento no Rio de

Janeiro. Racismo?
Paulo Cruz Follow
Apr 10 · 6 min read

Foto: Fabio Teixeira/AP

“Não me peças sorrisos

que ainda transpiro

os ais

dos feridos nas batalhas

Não me exijas glórias

que sou eu o soldado desconhecido


da Humanidade”.

(Agostinho Neto, Certeza)

Evidente que não há o que tergiversar aqui: foi um extermínio, um


assassinato brutal, por fuzilamento, provocado por militares
irresponsáveis que não sabem fazer o seu trabalho — como tantos maus
pro ssionais que existem por aí. O problema é que há pro ssões em que
o pro ssionalismo — o cumprimento do trabalho com seriedade — não
pode ser um atributo relativo; a excelência absoluta tem de ser a
norma. Há pro ssões de risco, nas quais as falhas podem causar
grandes males. Saúde e segurança, provavelmente, são as áreas mais
sensíveis nesse caso; um erro pode ser fatal. Minha pro ssão, a
docência, pode causar grandes estragos, mas a longo prazo. Um
professor que ensina mal pode gerar um policial que trabalha mal; um
policial que trabalha mal pode matar um professor, um músico.

Evaldo do Santos Rosa foi brutalmente assassinado quando ia a uma


festa com seus familiares. Um lho de 7 anos — que, graças a Deus,
sobreviveu — presenciou tudo. Outras pessoas foram baleadas, dentre
elas, seu sogro. Não há desculpa para essa terrível ação do exército. Sua
esposa saiu do carro, com as mãos para cima, enquanto os militares
ainda atiravam, mas eles não pararam. O horror!

Racismo? Bom, aí é preciso pensar um pouco. Num país de maioria


negra (fazendo a conta do IBGE, somos 54%), no qual, infelizmente, a
maioria esmagadora dessa população ainda vive nas periferias e nos
locais mais violentos, aumenta a probabilidade dela se tornar alvo fácil
de policiais e de bandidos. Um agravante é que a maioria dos
criminosos também é negra, aumentando, portanto, o número de
suspeitos, encarcerados e mortos com estas características.

Porem, há que se fazer uma ressalva: tal constatação tem sido usada,
principalmente pelos a ccionados pela ideologia da luta de classes,
fatalisticamente; como se o negro tendesse à criminalidade por sua
condição social. Mas não é. No entanto, o sociólogo Alberto Guerreiro
Ramos (1915–1982), um dos maiores intelectuais desse país e um
ferrenho ativista do movimento negro, já havia percebido esse erro na
década de 1950. Vejam:

“A maior freqüência de indivíduos pigmentados na estatística de certos


crimes decorre necessariamente de sua predominância em determinadas
camadas sociais. Assinala um fenômeno quantitativo e não qualitativo.
Por outro lado, careceria de base objetiva a a rmação de que o negro no
Brasil manifestasse tendências especí cas essenciais na vida associativa,
na vida conjugal, na vida pro ssional, na vida moral, na utilização de
processos de competição econômica e política. O fato é que o negro se
comporta sempre essencialmente como brasileiro, embora, como o dos
brancos, esse comportamento se diferencie segundo as contingências de
região e estrato social”. (Guerreiro Ramos, O problema do negro na
sociologia brasileira. Grifo meu)

O problema é a in uência e a vulnerabilidade que ocorrem em


determinadas regiões. A esse respeito, gosto sempre se repetir o verso
da música Mágico de Oz, do Racionais: “ele se espelha em quem tá mais
perto”.

Agora, não há qualquer evidência para a rmarmos que os policiais que


assassinaram Evaldo tenham agido por racismo. Inclusive, sua esposa,
num depoimento à Agência Brasil, disse: “Eu coloquei a mão na cabeça
e disse: ‘Moço, socorre meu esposo’. Eles não zeram nada. Ficaram de
deboche. Tem um morenoque cou de deboche e rindo” (grifo meu). O
que seria esse “moreno”? Provavelmente um militar negro. Um militar
negro pode ser racista? Até pode, mas sua atitude, ainda que
detestável, não prova isso. Quando a polícia diz que confundiu o carro
— e, consequentemente, seus ocupantes — com suspeitos, não há por
que duvidar de suas palavras, pois a cor da pele, por tudo o que eu disse
acima, é um elemento quase indissociável da maioria dos suspeitos — e
criminosos. É lamentável que ainda seja assim, mas é. Some-se a isso o
nosso, ainda, grave defeito de imaginação moral, que nos leva a ver a
população negra com certa descon ança em relação às suas
qualidades, seu caráter e sua capacidade de prosperar, o que torna tudo
muito mais complicado.

Guerreiro Ramos também diz, muito acertadamente, no mesmo ensaio,


que o branco brasileiro é “sôfrego de identi cação com o padrão
estético europeu”. Apesar de ter sido dito há tanto tempo, novamente
creio que seja atualíssimo. Toda aquela mania de descendência que
insistimos em sustentar, e o modo como vemos o continente (que
alguns ainda confundem com um país) africano — um local desgraçado
–, in uencia, ainda hoje, no modo como vemos a população negra no
Brasil. Diante disso, ele assevera:

“[…] o problema efetivo do negro no Brasil é essencialmente psicológico e


secundariamente econômico. Explico-me. Desde que se de ne o negro
como um ingrediente normal da população do país, como povo brasileiro,
carece de signi cação falar de um problema do negro puramente
econômico, destacado do problema geral das classes desfavorecidas ou do
pauperismo. O negro é povo, no Brasil. Não é um componente estranho de
nossa demogra a. Ao contrário, é a sua mais importante matriz
demográ ca. E este fato tem de ser erigido à categoria de valor, como o
exige a nossa dignidade e o nosso orgulho de povo independente. O negro
no Brasil não é anedota, é um parâmetro da realidade nacional. A
condição do negro no Brasil só é sociologicamente problemática em
decorrência da alienação estética do próprio negro e da hipercorreção
estética do branco brasileiro, ávido de identi cação com o europeu”.
(Guerreiro Ramos, O Problema do negro na sociologia brasileira)

Creio que essa constatação de Guerreiro Ramos — que, como eu disse,


ainda é atual — serve de base para toda a percepção que se tem em
torno do “problema do negro” no Brasil; dessa “alienação estética do
próprio negro” — que diminuiu, mas ainda existe, sorrateiramente –, e
da “hipercorreção estética do branco brasileiro”, que insiste em ver o
negro como subalterno. E mais, isso repercute tanto da vitimização
inoculada pela in uência marxista quanto na inferiorização que vem
do senso comum. Tal estado de coisas, como diz Guerreiro Ramos, “é
uma forma sutil de agressão aos brasileiros de cor e, como tal,
constitui-se num obstáculo para a formação de uma consciência da
realidade étnica do país”. A nossa imaginação moral foi moldada por
essa visão.

Mas isso é, essencialmente, racismo? Creio que não. Pois, apesar dos
pesares, a convivência entre negros e brancos, no Brasil, é bastante
pací ca, amistosa e fraterna. O racismo de fato, consciente e perverso,
é um ponto fora da curva por aqui. Como disse Gilberto Freyre, numa
entrevista em 1980: “não há pura democracia no Brasil, nem racial,
nem social, nem política, mas, repito, aqui existe muito mais
aproximação a uma democracia racial do que em qualquer outra parte
do mundo”. Nossa imaginação moral, mal formada e débil, não podem
ser confundida com racismo. Se tudo é racismo até que se prove o
contrário — e a tese praticamente hegemônica do racismo estrutural
desemboca nisso — nada o é.

E uma última coisa, que, para mim, é a maior responsável pela situação
social da população negra (e pobre) desse país: a marginalização, o
descaso e o paternalismo produzidos pelo próprio Estado. Sofremos
com um Estado que se propõe a solucionar tudo, mas não ajuda em
nada; que toma dos mais pobres (via impostos) para oferecer aos mais
ricos; que trabalha na lógica de um capitalismo de compadrio, do
patrimonialismo descarado e da corrupção. Os paliativos que oferece —
o assistencialismo — geram ainda mais dependência e pobreza. Os
programas de inclusão são todos incapazes de cumprir a sua função
sociocultural, antes criam ainda mais separatismos e con itos.

O trabalho a ser realizado passa por criar uma cultura de integração, de


compreensão das idiossincrasias da vida e da história, e não num
ressentimento separatista, que exige reparação para males que são
irreparáveis, que encontre culpados em confrades, inimigos em
discordantes. Uma cultura que vislumbre os elementos fundamentais
de seu povo, ponderando as diferenças amalgamadas nas três tradições
que nos formaram — indígena, europeia e africana –, que reconheça o
valor desse conjunto sem demonizar ou discriminar qualquer um de
seus elementos sob perspectiva subjetiva ou supostamente elitista. É
um trabalho longo, que exige paciência, perseverança e amor —
sobretudo pelo país.

Minhas orações e minha solidariedade à família de Evaldo dos Santos


Rosa; que Deus console os vossos corações.

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