Você está na página 1de 13

PENSAR O MUNDO, PENSAR A EDUCAÇÃO: os desafios da escola num mundo

desigual
Wilson Rufino da Silva – Mestre em Educação pela UFPE - wilson1971aq@gmail.com
Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Caruaru (FAFICA)

RESUMO
Desafiada pela complexidade do tempo presente, eivado de contradições e possibilidades, a
escola, enquanto instituição multifacetada, é chamada, forçosamente ou não, a se repensar a si
mesma. Primeiramente, porque se compreende diante do problema de sua inadequação face às
demandas da sociedade. Segundo, porquanto precisa repensar a prática cotidiana de sua
gestão. O objetivo do presente estudo é desenvolver uma reflexão sobre o direito à educação
num mundo desigual, com foco na discussão da escola crítico-democrática e reflexiva. Tal
estudo inscreve-se no rol das discussões acerca dos desafios da escola na atualidade. Trata-se
de uma elaboração de natureza teórica, mas que se vale da experiência acumulada de mais de
uma década no supervisionamento de atividades de estágio curricular.

Palavras-chave: Escola crítico-democrática. Educação hoje. Cultura escolar.

ABSTRACT
Challenged by the complexity of the present time, riddled with contradictions and
possibilities, the school as an institution multifaceted, is called, forcibly or otherwise, to
rethink itself. First, because we understand the problem before its inadequacy to the demands
of society. Second, because they need to rethink the everyday practice of management. The
aim of this study is to develop a reflection on the right to education in an unequal world,
focusing on critical discussion of school-democratic and reflective. This study forms part of
the roster of discussions about the challenges of school today. This is an elaboration of a
theoretical nature, but it is worth the experience of over a decade in supervising the activities
of traineeship.

Keywords: School-critical democratic. Education today. School culture.

I. INTRODUÇÃO

Qual o lugar da instituição escolar no projeto global da formação da hodierna


sociedade? Qual sua especificidade? Quais seus maiores desafios? Quais seus pressupostos e
fundamentos? Quais seus traços e retraços? São indagações como essas que nos instigam ao
debate histórico-crítico o qual se torna relevante na busca de uma sociedade cuja escola não é
pensada para as classes populares, mas gestada a partir da situação e das legítimas aspirações
dos empobrecidos. Nesta direção, a instituição escolar se constitui num espaço aberto e
dialético de construção e desconstrução do pensamento, desde que os princípios e práticas que
2

a sustentam caminhem numa perspectiva democrática, o que passa necessariamente para


questão do paradigma gestionário de sua gestão.
A perspectiva democrática da gestão escolar situa-se no enfrentamento da questão da
construção, apropriação, legitimação e distribuição do poder, que estabelece relações de
dominação e subalternidade. No cotidiano institucional escolar vemos a possibilidade de
vivenciar relações de respeito ao diferente numa prática coletiva de pensar e viver o mundo,
eticamente.
Nas linhas que se seguem, podemos trazer à tona elementos de discussão sobre
escola, democracia, prática gestionária escolar, entre outros.

II. PERFIL DA ESCOLA HOJE: ENTRE SABORES E DISSABORES

2.1. O direito à educação num mundo desigual


Assistimos, não de camarote, a dinâmica, complexa e sempre crescente
transformação pela qual vem passando a sociedade e a vida que nela se experencia. São
transformações gestadas e efetivadas na relação local/universal, ou seja, embora tendo sua
origem em determinado contexto ou situação circunscrita, social e geograficamente, têm um
alcance universal. Relações marcadas pela desigualdade de direitos.
Diante desse contexto desafiador, vemos a escola sendo levantada como bandeira
(por gregos e troianos) indispensável ao desenvolvimento humano, cultural, social e
econômico. Ademais, o direito à educação escolar se constitui um dos aspectos de “uma luta
mais ampla pelo modelo de sociedade que queremos, imaginamos e aspiramos construir”
(GENTILI, 2009, p. 1075). Duas concepções se nos apresentam quando da discussão desse
direito: uma privatista, de cunho economicista, e outra democratizante.
A concepção privatista restringe o direito à educação à oportunidade de acesso
escolar, sendo a permanência associada à possibilidade de emprego e aumento da renda
individual e social. Ou seja,
A educação aumenta a produtividade e as oportunidades educacionais aumentam as
possibilidades de competir pelo domínio dos conhecimentos técnicos e disciplinares
necessários pra competir no mercado, ocupando as melhores posições e apropriando-se dos
mais disputados benefícios. (GENTILI, 2009, p. 1073)

Tal discurso é sedutor numa sociedade patrocinadora da exclusão social. Cria-se uma
pseudo-esperança nos “oprimidos”, ao passo que nos “opressores” gera-se um sentimento
piegas de dever cumprido, aplacando sua culpa paternalisticamente (FREIRE, 2005).
3

Outrossim, o direito à educação escolar, na perspectiva democratizante, rompe com a


linearidade entre educação e desenvolvimento econômico, educação e emprego, educação e
aumento de renda pessoal, e traz à tona a relação dialógica entre escola e cidadania, escola e
política, escola e luta pela igualdade.
Um outro elemento importante na discussão do direito à educação escolar diz
respeito a uma questão epistemológica. Young afirma ser preciso vincular ao cotidiano
escolar o que ele denominou de “conhecimento poderoso”:
Esse conceito não se refere a quem tem mais acesso ao conhecimento ou quem o legitima,
embora ambas sejam questões importantes, mas refere-se ao que o conhecimento pode fazer,
como, por exemplo, fornecer explicações confiáveis ou novas formas de se pensar a respeito do
mundo. (2007, p. 1294)
A escola deve garantir esse conhecimento a todos e todas, indistintamente. Assim, o
desafio para os adeptos da perspectiva democratizante do direito à educação escolar é
compreender que “a realidade social, [é] objetiva, que não existe por acaso, mas como
produto dos homens, também não se transforma por acaso” (FREIRE, 2005, p.41).
Concordamos com Freitas (2007) quando se reporta a urgência de uma práxis
transformadora e viável para a educação do novo milênio. Ao passo que corroboramos com o
pensamento de Esteban (2007) ao defender que precisamos passar de uma escola meramente
pensada para as classes populares para uma escola de educação popular. De fato, temos a
convicção de que a efetivação do direito à educação se dá no enfrentamento das dinâmicas de
exclusão que se recriam a cada momento histórico e, necessariamente, pelo protagonismo das
classes populares, aqueles e aquelas cujas pegadas marcam o chão de nossas escolas, posto
que a grande maioria das pessoas que fazem o cotidiano escolar público (discente, pais e
mães, comunidade, docentes, equipe gestora, demais funcionários) são advindos das classes
populares.
Tal protagonismo pode ser somado à participação de quem não se encontra nas
camadas populares, desde que, necessariamente, não se acheguem com “falsa caridade, da
qual decorre a mão estendida do demitido da vida, medroso e inseguro, esmagado e vencido”
(FREIRE, 2005, p. 33). E mais, a solidariedade exige “de quem se solidariza que „assuma‟ a
situação de com quem se solidarizou” (idem, p.39), numa práxis transformadora.
2.2. Traços e retraços da escola na contemporaneidade
Discutir a singularidade das instituições escolares, em seus traços e retraços, é
primeiramente, situá-las na tensão paradigmática de um novo que se anuncia e de um
tradicional que insiste em está presente, aliás, essa é a dinâmica que está no âmago da
mudança de paradigma pela qual passa a discussão sobre a escola; segundo, é reconhecer que
4

mudar a cara da escola é uma tarefa que só poderá acontecer de dentro para fora e não por
decreto, de cima para baixo, de fora para dentro (DEMO, 2005). Para Freire,
Numa perspectiva realmente progressista, democrática e não-autoritária, não se muda a cara da
escola por portaria. Não se decreta que, de hoje em diante, a escola será competente, séria e
alegre. Não se democratiza a escola autoritariamente (1991, p.25)

Assim sendo, a fim de que se dê a desconstrução/reconstrução da escola, imperativo


se faz uma práxis transformadora que comporta impreterivelmente uma “pedagogia da
conscientização”. Para Freitas,
A conscientização – concebida como tarefa histórica necessária ao desenvolvimento de uma
resistência crítica à lógica social hegemônica excludente – é conceito fundante da natureza
política da educação que caracteriza a obra de Paulo Freire. (2007, p.10).

Neste sentido, propormo-nos a discutir aqui alguns traços/retraços da escola na


contemporaneidade. Convém salientar que o binômio traços/retraços remete-nos a
coexistência conflitante entre aspectos novos/tradicionais que retratam e dão identidade às
nossas escolas. Ademais, o novo não necessariamente está ligado a algo necessário, inovador,
viável e progressista, e, o tradicional não se refere, de forma linear, ao desnecessário,
ultrapassado, inviável e tradicionalista. Saviani distingue o tradicional, referindo-se ao
arcaico, ao ultrapassado, do clássico. Para ele “clássico é aquilo que resisti ao tempo, logo
sua validade extrapola o momento em que ele foi proposto” (1994, p. 101). Preferimos
entender o tradicional, como também o novo, como instâncias históricas que comportam a
contradição, conforme aludimos acima. Dito isso, vejamos algumas traços/retraços da escola
hodierna.
A) Uma escola com funções ampliadas e a especificidade da educação escolar
A função social da escola está em estreito diálogo com o contexto em que ela se
insere, no qual é forjada e do qual é também construtora. Noutras palavras, para cada tempo
histórico existem matizes próprios da expectativa social sobre a função da educação escolar.
Na atualidade, afirma Cavalieri
Surge a expectativa de que, além dos conhecimentos escolares convencionais, sejam também
incorporados aos currículos das escolas aspectos ligados a comportamento sexual, afetividade,
padrões de convivência social e cidadania, „conscientização política‟, parâmetros de higiene e
saúde, familiarização com novas tecnologias, consciência ecológica, uso de drogas e suas
respectivas implicações ético-morais e outros mais. (1999, p. 116).

Portanto, funções antes exercidas por outras instâncias formativas, hoje se encontram
sendo propostas/impostas pela demanda social à escola. Essa, por sua vez, vê-se despreparada
para atender a tamanha expectativa da sociedade. O que é pior, corre-se o risco de, face à
ampliação das funções da escola, acabar por convertê-la “numa agência de assistência social,
destinada a atenuar as contradições da sociedade capitalista” (SAVIANI, 2003, p. 99). Ao
5

defender a “pedagogia histórico-crítica”, Saviani é enfático em afirmar o específico da escola


que é a socialização do saber elaborado. A fim de salvaguardar o que é próprio da educação
escolar, o autor faz uma distinção entre atividades curriculares e extracurriculares:
(...) reservo para o termo currículo as atividades essenciais que a escola não pode deixar de
desenvolver, sob pena de se descaracterizar, de perder a sua especificidade. As demais
atividades, tais como as comemorações antes mencionadas [comemorações do calendário
cívico], não sendo essenciais, definem-se como extracurriculares. Nessa condição, elas só
fazem sentido quando enriquecem as atividades curriculares não devendo, em hipótese alguma,
prejudicá-las ou substituí-las (2004, p. 102).

Ao nosso ver, o saber escolar é dinâmico e construído na relação com os


conhecimentos científicos gerados fora da própria escola. Ou seja, é também no chão da
própria escola que se dá a construção de saberes. Neste sentido, não tem sentido acentuar
conhecimentos específicos, como é o caso de português, matemática, geografia etc. e colocar
em segundo plano elementos formativos como educação para o trânsito, educação sexual,
educação ambiental, novas tecnologias, afinal, à escola cumpri patrocinar uma formação
integral para as pessoas.
Entender a especificidade da educação escolar na perspectiva de um projeto mais
amplo de formação integral da pessoa é caminhar na direção defendida pro Freire de uma
educação problematizadora e libertadora, onde “ninguém educa ninguém, como tampouco
ninguém se educa a si mesmo: os homens se educam em comunhão, mediatizados pelo
mundo” (2005, p. 79).
Contrapondo-se à “educação bancária”, a escola constrói seu projeto educativo num
constante diálogo com o seu contexto, onde a transmissão dá lugar à construção coletiva em
que não há discência sem docência (FREIRE, 1996) nem conhecimento como instância
acabada, pontual, descontextualizada.
B) Espaço escolar como espaço educativo
Temos desenvolvido um trabalho de acompanhamento de estágio nos diversos cursos
de formação docente. A cada ano, com os primeiros períodos das licenciaturas, procuramos
fazer um diagnóstico da realidade das escolas campos de estágios, com o objetivo de conhecer
e analisar os espaços, tempos, contextos e relações que fazem parte do cotidiano institucional
escolar. Um dos itens desse diagnóstico diz respeito às estruturas físicas e materiais do espaço
educativo. Antes da entrada em campo para coleta de dados, que se dá através de um roteiro
orientador, construído com base em Libâneo (2004), procedemos uma discussão, em sala de
aula da instituição formadora, sobre arquitetura escolar (SALES, 2005). Os/as discentes vão
ao campo, amparados pelo referencial teórico, coletar os dados que depois serão analisados e
socializados.
6

Baseados nesta experiência de acompanhamento ao estágio supervisionado, que já


passa de uma década, podemos fazer um passeio pelos espaços da escola procurando perceber
as deficiências neles encontradas. Salientamos, entretanto que as deficiências apontadas não
são generalizáveis, posto que, existem realidades, inclusive, que se contrapõem frontalmente
às indicações aqui postas. Comecemos, pois, fotografando o espaço educativo:
- o entorno da escola é marcado pela sujeira nos muros, papéis, plásticos e uma série de
material jogado ao chão, cuja fonte, não só, é os “carros de confeito” que estão situados logo à
entrada da instituição escola, quando não dentro dos recinto da própria escola; fachadas
escolares que lembram uma fortaleza, com muitas grades e muros altos;
- adentrando à unidade escolar num relance não é difícil perceber a inexistência de áreas
verdes, de local para estacionamento de veículos (motos que dividem espaço com os/as
discentes) e a existência de muitos degraus, com rampas muito íngremes impossibilitando o
acesso de portadores de necessidades especiais, idosos e mesmo das crianças pequeninas;
espaços de convivência, recreação e lazer mal cuidados, além de salas de aula cujo acesso é
por um corredor que mal dar para passar duas pessoas ao mesmo tempo;
- em um lugar estratégico fica a secretaria, cujo atendimento ao público se dá através de uma
grade ou de um balcão; lugar pequeno para comportar arquivos, birôs, estantes etc.; próximo à
secretaria fica a sala da diretoria, único lugar climatizado, com um relativo conforto; a sala
dos professores e das professoras, também localizada próxima à secretaria, é pequena
dificultando a convivência e/a ambiência pedagógica antes do início das aulas, sem contar,
muitas vezes, com um bebedouro, cafezinho e mesmo com suportes pedagógicos (acesso a
computadores com internet, por exemplo);
- a biblioteca fica num lugar recuado, não é equipada suficientemente para receber,
proporcionalmente, o quantitativo discente; poucas mesas de estudo, acervo desatualizado e
pequeno, ambiente mal ventilado e mal iluminado, com cadeiras desconfortáveis;
- laboratórios mal equipados ou equipados e fechados por falta de profissionais qualificados;
- salas de aula muito quentes, pequenas, divididas por paredes de madeira, bancas duras, mal
conservadas, pintura e reboco das paredes caindo;
- instalações sanitárias com banheiros insuficientes, sujas, inadaptadas às crianças menores;
bebedouros também insuficientes e sem oferecer condições higiênicas propícias;
- pequeno espaço destinado à representatividade estudantil embaixo de uma escada, no final
de um corredor ou no porão da escola;
- cozinha, despensa e refeitórios que mal comportam o equipamento, os/as profissionais e
demais transeuntes;
7

- inexistência de salas específicas para coordenação pedagógica e orientação psicológica;


Esse pequeno retrato da realidade espacial e física das instituições escolares não
deseja ser mais uma investida pessimista contra a educação pública. Outrossim, objetiva
chamar à atenção para o fato de que as instalações físicas, a organização e articulação dos
vários ambientes, as condições materiais, enquanto ambiência pedagógica, incidem,
favoravelmente ou não, no trabalho realizado nas escolas, afinal, “como não existem espaços
neutros, estes tanto podem propiciar, como dificultar os processos educativos” (SALES,
2005, p. 85).
É verdade que existem esforços tanto da equipe gestora, do corpo funcional e
docente, tanto das instâncias governamentais no sentido de melhorar os espaços escolares
como um todo. Contudo, de modo geral, vários desses elementos apontados acima encontram-
se presentes nos edifícios escolares.
Um espaço configurado com tais limitações não é, definitivamente não é,
convidativo para nele se estar. Parafraseando Freire (1996) que trata, em seu livro Pedagogia
da Autonomia, dos saberes/exigências necessários à prática educativa, podemos dizer que um
projeto educativo escolar, construído pela coletividade, cujo direito à educação não é reduzido
ao acesso, mas configura-se pela igualdade de condições educativas a todos e a todas,
mediante luta contra qualquer segregação e injustiça social:
- exige uma arquitetura escolar prazerosa, onde a estadia não é enfadonha, onde o trabalho
pedagógico, enquanto esforço criativo da existência humana (SAVIANI, 2003), dado o
inacabamento de nosso ser (FREIRE, 1996), é favorecido pelas condições físicas e materiais;
- exige uma arquitetura respeitosa da diferença, com rampas, vasos sanitários, carteiras
escolares, equipamentos etc. adequados;
- exige uma arquitetura cuja estética não se curva às leis do mercado imobiliário, nem à
mesquinhez de determinadas políticas educacionais, que põem, não raras vezes, o interesse
econômico acima do fim específico das instituições escolares;
- exige uma arquitetura em que a distribuição do espaço possa favorecer a uma ambiência
pedagógica multidisciplinar, democratizadora e ética;
É preciso trazer à tona a discussão sobre a arquitetura escolar que temos e a que
queremos a fim de que o espaço escolar, como espaço educativo venha a ser prazeroso,
adequado a atender às novas concepções formativas de inclusão e respeito ao diferente,
possibilitando a vivência de uma gestão democrática.
C) Escola como espaço/tempo de relações interpessoais
8

No âmbito escolar as relações interpessoais vêm demonstrando-se como fator


importante para o desenvolvimento cognitivo, social e emocional dos indivíduos, uma vez que
tais relações podem ser refletidas na produtividade deste sujeito dentro do espaço educativo.
Atento a fundamental importância de criar um clima de escola baseado no respeito às
diferenças, no senso de coletividade, no gosto de ser e conviver, Freire assim afirma: “Escola
é o lugar onde se faz amigos, não se trata só de prédios, salas, quadros, programas, horários,
conceitos...(...) Numa escola assim vai ser fácil estudar, trabalhar, crescer, fazer amigos,
educar-se, ser feliz” (2003, p. 66).
O reconhecimento da diversidade cultural, da pluralidade de sentidos e valores
presentes no cotidiano das escolas pode vir a ser uma grande fonte de enriquecimento na
formação pessoal e coletivo dos e das que fazem a escola. Há de ser ter também consciência
sobre as heterogeneidades estruturais que vêm forjando relações sociais de sulbaternidade
inclusive no chão das unidades educacionais. Portanto,
Pretender uma escola crítica, democrática e de qualidade, exige inexoravelmente imaginá-la
em um a sociedade mais igualitária e justa, com um importante papel do Estado na geração de
uma maior equidade na distribuição dos bens econômicos, sociais e culturais e com uma ativa e
interessada participação cidadã na vida pública (HIGAL, 2000, p. 188)

Tornar a escola um espaço/tempo de prazer é um compromisso que deve ser


assumido por cada pessoa em particular e por todas elas em conjunto. Como afirma Assmann,
“precisamos reintroduzir na escola o princípio de que toda a morfogênese do conhecimento
tem algo a ver com a experiência do prazer” (2001, p. 29).
III. ESCOLA CRÍTICO-DEMOCRÁTICA E REFLEXIVA
3.1. Fundamentos e pressupostos da escola crítico-democrática e reflexiva
No atual contexto social em que a escola está inserida, marcado pelas inovações
tecnológicas por um lado e, por outro, pela desigualdade social, crescem as expectativas sobre
a função que deve exercer a instituição escolar nesta época de mudanças. Aliás, a própria
escola vê-se levada a metamorforsear-se em suas formas organizativo-relacionais, como
mostramos na primeira parte deste estudo, mas também nos seus pressupostos e fundamentos,
como veremos a seguir.
A transformação na instituição escolar processa-se no envolvimento participativo de
todos e todas: docentes, discentes, equipe gestora e demais funcionários, família e outras
pessoas do entorno social em que a escola se constrói. Processa-se, ainda, num permanente
diálogo com a institucionalização a qual a escola está vinculada, seja na instância municipal,
estadual ou federal.
9

Pensando-se a si própria e implementando ações ousadas e inovadoras, a escola vai


mudando o seu perfil na interação crítica com a necessária mudança do mundo em que ela se
faz e do qual é também protagonista, exercitando-se na perspectiva apontada por Alarcão
(2001), “escola reflexiva”. Para tanto, a instituição escola há que se constituir no
desenvolvimento de um olhar crítico sobre a realidade. Para Gandin,
É fundamental que investigue, no seu trabalho com os alunos e com a comunidade, quais os
traços culturais básicos e quais os elementos de arbítrio cultural presentes na vida do grupo, da
comunidade, do Estado, do país, do continente. E que reflita e sublinhe o essencial, critique o
desumano e, mais do que tudo, imprima a seus trabalhos um sentido de reconstrução
permanente, numa constante busca de vivência de valores. (2000, p.45)

Neste sentido, o cotidiano escolar, prenhe de cultura, precisa esta prenhe também de
criticidade, essa forjada na superação da “curiosidade ingênua” pela “curiosidade
epistemológica” (FREIRE, 1996). E, assim, a escola vai tecendo um olhar crítico sobre a
realidade desvelador das possibilidades do fazer humano naquilo que se tem de progresso, ao
passo que também desnuda a distância abismal e anti-ética existente entre os enriquecidos e
empobrecidos. No dizer de Higal,
Embora a escola dificilmente possa corrigir, mesmo que seja de forma parcial, tais iniqüidades,
pode sim criar consciência sob re elas e fomentar o desenvolvimento de um pensamento
autônomo, capaz de processar criticamente tal conhecimento de acordo com as necessidades e
os interesses de formações sociais concretas (2000, p. 189).

Ou seja, uma escola instigadora da criticidade vai forjando a formação de pessoas


capazes de buscar e fazer uso de conhecimentos necessários à transformação de realidade.
Um outro pressuposto da escola crítico-democrática e reflexiva, ligado ao olhar
crítico sobre a realidade, é a destreza ética. O crítico sem o ético pode servir a perpetuação da
desigualdade, ou seja, o entendimento crítico da realidade não garante por si só um mergulhar
na luta por transformação, podendo servir ao reforçamento do já instituído.
Um olhar crítico e ético aqui defendido envolve reflexão, intencionalidade,
temporalidade e transcendência no sentido empregado por Freire (1976). Assim, “consciência
e ação sobre a realidade são inseparáveis constituintes do ato transformador pelo qual
homens e mulheres se fazem seres de relação” (idem, p. 66). Nesta relação, o ser humano
pela ação criadora, recriadora e proativa vai dando dinamicidade ao seu mundo (FREIRE,
1980).
A centralidade das pessoas constitui mais um fundamento da perspectiva de escola
aqui defendida. As pessoas não fazem parte somente da vida produtiva da escola, mas
constituem a essência de sua dinâmica. Neste sentido, passamos a atribuir-lhes um valor
verdadeiro a suas capacidades e qualidades que são insubstituíveis para o alcance dos
resultados desejados. Assim sendo, há que se facilitar para que, nas instituições educativas,
10

tenham lugar e reconhecimento todas as diferentes capacidades, ritmos de trabalho,


expectativas, estilos cognoscitivos e de aprendizagem, motivações, etnias, valores culturais de
todos e todas que formam o cotidiano institucional (Imbernón, 2000).
3.2. Gestão escolar na perspectiva crítico-democrática
O debate sobre as possibilidades e desafios da gestão democrática escolar está na
esteira de um debate muito mais amplo, qual seja a construção da democracia.
Silva (2005) aponta duas visões sobre democracia que se constituíram no desenrolar
da história: a visão socialista e a visão liberal-democrática. Enquanto a primeira, a socialista,
aponta “a democracia como substância, isto é, como uma teoria de meios e fins,por isso
normativa, identificando a participação como soberania e a vontade popular absoluta”
(idem, p.34), a segunda, por seu turno, põe acento nas liberdades individuais, sendo o
momento eleitoral o ápice da participação política.
Uma terceira visão veio à tona na época cognominada de pós-moderna, ou seja, a
democracia radical. Essa, a democracia radical, surge com a pretensão de unir, de um lado, os
fundamentos individualistas propugnados pela visão liberal democrática, e, de outro, os
pressupostos coletivistas da concepção socialista (ibidem). Tal intento se mostrou, ao nosso
ver, impraticável, posto que se deseja conciliar o inconciliável: participação como integração
e participação como debate, discussão, diálogo. Aliás, também Freire (1980) propõe a
construção de uma democracia radical. Entretanto, sua perspectiva dista da concepção pós-
moderna aqui apresentada, exatamente pelo fato de não conceber participação como
integração e sim como um processo dinâmico de conscientização histórico-crítica de se estar
no e com o mundo. O binômio democracia-participação, como se vê, constitui-se numa
dinâmica inseparável, ainda que tomem conotações tão díspares.
A participação como integração está na base de práticas que não têm como meta a
transformação do ser, do mundo, cujo fundamento não é a ruptura, mas o “integrar”, sem
modificar. Com isso, nutri-se a pseudo-participação, ou seja, “a ilusão de que o povo
participa mas que, no fundo, apenas legitima o sistema à medida que autoriza as elites e a
classe dirigente a montarem sua dominação” (SILVA, 2005, p.35).
A participação como debate, discussão, diálogo, que provocam rupturas teórico-
práticas no ser e nas estruturas, encontra na Teologia da Libertação e na concepção de
Educação Libertadora de Freire os seus fundamentos sócio-filosóficos. Na realidade, trata-se
de uma concepção contra-hegemônica.
No âmbito escolar, a participação enquanto debate, discussão e diálogo se impõe
naquilo que se denomina gestão democrática da escola. Se impõe na medida em que, de fato,
11

se deseje romper com o paradigma administrativo, funcionalista, burocrático e positivista de


gestar as instituições escolares. O desafio de tal rompimento é grandioso, principalmente, no
limiar de um outro processo de ruptura: da educação bancária para a educação libertadora:
Ditamos idéias. Não trocamos idéias. Discursamos aulas. Não debatemos ou discutimos temas.
Trabalhamos sobre o educando. Não trabalhamos com ele. Impomos-lhe uma ordem a que ele
não adere, mas se acomoda. Não lhe propiciamos meios para o pensar autêntico, porque
recebendo as fórmulas que lhe damos, simplesmente as guarda. Não as incorpora porque a
incorporação é o resultado de busca de algo que exige, de quem o tenta, esforço de recriação e
de procura. Exige reinvenção. (FREIRE, 1980, p. 96-97)

Reinventar a escola e sua gestão: eis o nosso desafio. Reinventá-la em suas bases
teóricas, no cotidiano de suas práticas, sobretudo promovendo-a em um espaço-tempo de
vivência participativo-crítico, onde equipe gestora, docentes, discentes, equipe de apoio
administrativo, funcional, pedagógico, comunidade sejam protagonistas na definição de seu
modelo de participação e de gestão, de sua prática educativa, de seu currículo, de sua
concepção de pessoa, de educação, de escola, de sociedade que desejem ver construídos.
Silva afirma que
A participação de todos é importante, pois garante a demodiversidade e o pluralismo,
contemplando as diferenças (o multiculturalismo). Assim a participação tomada enquanto
substância da escola, mexe com todos os seus setores, do administrativo ao pedagógico,
definindo a sua direção e a sua prática. (2005, p.38)

A demodiversidade traz como base a igualdade e o direito à diferença, pensados na


dinâmica de sujeitos sociais ativos, sendo requeridas condições para o exercício cidadão, onde
democracia, cidadania e participação formam um tripé indissociável.
Outrossim, o instituído na escola não é negado: sua história, seus valores, seu
currículo, sua gestão, suas práticas e construções teóricas. Entretanto, a escola exercita-se em
sua proatividade, implementando pequenas, embora também significativas, rupturas
sistêmicas no seu processo gestacionário. Não é fácil viver a democracia,
É difícil, realmente, fazer democracia. É que a democracia, como qualquer sonho, não se faz
com palavras desencarnadas, mas com reflexão e prática. Não é o que digo o que diz que eu
sou democrata, que não sou racista ou machista, mas o que faço. É preciso que o que eu diga
não seja contraditado pelo que faço. É o que faço que diz de minha lealdade ou não ao que
digo. (FREIRE, 2002, p. 91)

Freire (1996) ao rejeitar as teorias elitistas de participação, propõe a aprendizagem da


democracia pela prática da participação em que liderança competitivista, organização
oligárquica dão lugar à liderança compartilhada, dialógica e à organização libertadora.
Assim, é preciso implementar uma discussão crítica acerca da instituição escolar,
particularmente no que diz respeito aos seus processos organizativos, aos limites,
possibilidades e condições da gestão democrática escolar face aos desafios que se colocam
hoje no cenário socioeconômico e educacional nacional.
12

IV. CONSIDERAÇÕES FINAIS


A escola, enquanto espaço/tempo de formação, precisa ser reinventada, em suas
bases organizativas e relacionais, para que seja instância contestadora da exclusão que
acontece no seio da sociedade e da qual, não raras vezes, a própria escola é patrocinadora.
Reinventar a escola na perspectiva crítico-democrática é construí-la sobre o fundamento da
criticidade, essa última forjada na superação da “curiosidade ingênua” pela “curiosidade
epistemológica”, da destreza ética, que envolve reflexão, intensionalidade, temporalidade e
transcendência, e da centralidade das pessoas, assim entendidas como fazendo parte não
somente da vida produtiva da escola, mas constituindo a essência de sua dinâmica.
Na tela do presente estudo, quando da discussão do direito à educação num mundo
desigual, buscando discutir os desafios, possibilidades e fundamentos de uma escola crítico-
democrática e reflexiva, as conclusões apontam que a ampliação das funções escolares traz
consigo o desafio de, contrapondo-se à “educação bancária”, a escola construir seu projeto
educativo num constante diálogo com o seu contexto, onde a transmissão dá lugar à
construção coletiva. Percebemos, ainda, que a escola crítico-democrática e reflexiva traz
como fundamento a criticidade, a destreza ética e a pessoa como essência da dinâmica vivida
no cotidiano institucional escolar. Nesta perspectiva, há de se repensar as bases organizativas,
relacionais e a gestão da escola. Só assim teremos uma educação escolar que propicie
processos reflexivos construídos no respeito à pluralidade de culturas, sem negar a
ambivalência igualdade/diferença presente na dinâmica escolar, em vista da superação da
desigualdade de direitos. Os escritos de Freire nos instigam a prosseguir abrindo novas
fronteiras de debate na busca de ver acontecer a construção de uma sociedade melhor, de uma
escola melhor e, sobretudo, ver o transitar em nós de uma “consciência ingênua” para o
processo de “participação crítica” nos meandros da história nossa no mundo.

REFERÊNCIAS

ALARCÃO, Isabel (org.) Escola reflexiva e nova racionalidade. Porto Alegre: ArtMed, 2001.
ASSMANN, Hugo. Reencantar a educação: rumo à sociedade aprendente. 5ed. Petrópolis, RJ:
Vozes, 2001.
CAVALIÉRI, Ana Maria Villela. Uma escola para a modernidade em crise: considerações sobre a
ampliação das funções da escola fundamental. In. MOREIRA, Antonio Flavio Barbosa. Currículo:
políticas e práticas. 8 ed. Campinas, SP: Papirus, 1999. p. 115-129
DEMO, Pedro. Desafio de mudar a escola: des-construir e re-construir a teoria e a prática. In. AEC
Revista de Educação. Ano 34, n. 135, abr./jun., 2005. p. 41-66
13

ESTEBAN, Maria Teresa. Educação popular desafios à democratização da escola pública. In.
Cadernos CEDES, Campinas, vol. 27, n. 71, jan./abr., 2007. p. 9-17
FREIRE, Paulo. Ação cultural para a liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976.
_________. Educação como prática da liberdade. 11 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980.
_________. A educação na cidade. São Paulo: Cortez, 1991.
_________. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e
Terra, 1996.
_________. Professora sim tia não. Cartas a quem oura ensinar. 11. ed. São Paulo: Olho Dágua,
2002.
________. A escola é. In. NOVA ESCOLA. Ano XVII, nº 163, jun./jul., 2003. p. 66
________. Pedagogia do oprimido. 47 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005.
FREITAS, Ana Lúcia Souza de. A urgência de uma práxis transformadora e viável na educação do
século XXI. In. AEC Revista de Educação. Ano 36, n. 143, abr./jun., 2007.
GANDIN, Danilo. Escola e transformação social. 6 ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2000.
GENTILI, Pablo. O direito à educação e as dinâmicas de exclusão na América Latina. In. Educação e
Sociedade. Campinas, vol. 30, n. 109, set./dez., 2009. p. 1059-1079
HIGAL, Luis. A escola crítico-democrática: uma matéria pendente no limiar do século XXI. In.
IMBERNÓN, Francisco (org.). A educação no século XXI: os desafios do futuro imediato. Trad.
Ernani Rosa, 2ª. ed., Porto Alegre: Artes Médicas, 2000. p. 171-194
IMBERNÓN, Francisco. Amplitude e profundidade do olhar: a educação ontem, hoje e amanhã. In.
_________. A educação no século XXI: os desafios do futuro imediato. Trad. Ernani Rosa, 2ª. ed.,
Porto Alegre: Artes Médicas, 2000. p.77-96
LIBÂNEO, José Carlos. Organização e gestão da escola: teoria e prática. 5 ed. Goiânia: Alternativa,
2004.
SALES, José Albio Moreira de. Será que temos a arquitetura escolar que merecemos? É possível des-
construir e re-construir a concepção e as práticas vigestes da arquitetura escolar? In. AEC Revista de
Educação. Ano 34, n. 135, abr./jun., 2005. p. 80-85
SAVIANI, Dermeval. Pedagogia histórico-crítica: primeiras aproximações. 8 ed. Campinas, SP:
Autores Associados, 2003. (Coleção educação contemporânea)
SILVA, Itamar. É possível desconstruir e reconstruir a concepção e a prática vigentes da participação
na escola? In. AEC Revista de Educação. Ano 34, n. 135, abr./jun., 2005. p. 32-40
YOUNG, Michael. Para que servem as escolas? In. EDUCAÇÃO E SOCIEDADE. Vol. 28, n. 101,
set./dez., 2007. p. 1287-1301

Você também pode gostar