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DEUS NA FILOSOFIA

1. Os Pré-Socráticos

Os primeiros filósofos, que surgiram na Grécia, por volta do século VII a.C.,
embora continuassem pagãos, tiveram como principal característica a fuga das
explicações divinas, que consideravam míticas. Eles buscavam explicar o
mundo e toda a existência através da razão e da natureza (Physis). Buscavam
algo que explicasse o princípio (não no sentido apenas de origem, mas
também de fundamento) de tudo, até mesmo dos deuses.

Xenófanes foi um dos primeiros grandes críticos da religião tradicional grega.


Ele criticava o antropomorfismo grego, isto é, a crença de que os deuses
tinham feições, atitudes, sentimentos e pensamentos humanos. Dizia
Xenófanes que, se um cavalo pudesse pensar, ele pensaria que Deus é um
cavalo, e se os pássaros pudessem esculpir, esculpiriam um deus com asas.
Criticava as crenças dos gregos de que os deuses tinham uma relação muito
próxima com os mortais. Para eles, os deuses odiavam, perdoavam e até se
apaixonavam por humanos. Além de manterem uma relação ainda mais
humana entre eles mesmos. Essa crítica serviu de base para o filósofo
moderno Spinoza e para o contemporâneo Feuerbach.

Anaxágoras, outro filósofo também dessa época, acreditava em algo que ele
chamava de “inteligência” (nous), que seria o princípio ordenador de todas as
coisas do cosmos. Por conta de sua ideia revolucionária, foi condenado por
impiedade e teve que fugir da Grécia.

2. Sofistas e Era Socrática

Se para os pré-socráticos os deuses não eram tão importantes (embora eles


acreditassem), para os sofistas eram menos ainda. Os sofistas eram os
mestres da oratória e para eles não era relevante se os deuses existem ou não.
Para eles só importava saber defender uma tese ou outra. “O homem é a
medida de todas as coisas”, disse Protágoras. Até hoje não se sabe se
Protágoras acreditava nos deuses ou não. Outro sofista, ainda mais radical,
Górgias, diz-se com quase certeza que era ateu.

Sócrates, no entanto, sempre acreditou nos deuses, mas estes não tiveram um
papel central em sua filosofia. Mesmo assim, também foi condenado por
impiedade, assim como Anaxágoras, e obrigado a tomar veneno. Sócrates
acreditava que falava com um daimonion (Não confundir com “demônio”. Os
gregos não acreditavam em demônios como os cristãos), o que foi interpretado
pelos seus contemporâneos como um novo deus. Mesmo Sócrates o negando,
foi condenado por impiedade, alegando que estaria inventando novos deuses.

Platão, discípulo de Sócrates, acreditava que o mundo visível é cópia de um


outro mundo, o mundo inteligível, onde as essências perfeitas das coisas
habitavam. Este mundo em que vivemos, material e visível, teria sido moldado
à imagem e semelhança do mundo Inteligível por uma espécie de deus que ele
chamou de “Demiurgo”. No entanto, por ser feito de matéria, que é uma
substância tosca e imperfeita, o Demiurgo não poderia molda-lo exatamente
como no mundo inteligível. Por isso, as coisas teriam apenas uma certa
semelhança com suas essências.

Para Aristóteles, discípulo de Platão, Deus, que ele chamava de “Primeiro


Motor”, era a explicação de toda a realidade. A razão de as coisas mudarem é
porque elas tentam conseguir a perfeição do Primeiro Motor, que, por sua vez,
é imutável, uma vez que já é perfeito. No entanto, Aristóteles ainda admita a
existência de outros “motores”, ou seja, de outros deuses. Embora tivesse sido
de grande importância para a teologia cristã medieval, como veremos,
Aristóteles jamais deixou de ser politeísta.

3. Era Helenística

Quatro escolas filosóficas se destacaram no período helenístico, que vai desde


as conquistas de Alexandre, o Grande, até o começo da Era Cristã: cinismo,
ceticismo, epicurismo e estoicismo. Os filósofos cínicos pregavam uma vida
simples, apenas vivendo com o mínimo possível, e pouco ou nada falaram
sobre os deuses. Os céticos, por sua vez, é bem provável que fossem
agnósticos, não crendo que há deuses, nem que não os há. Já os epicuristas
eram declaradamente indiferentes aos deuses. Acreditavam que tudo poderia
ser explicado sem recorrer aos deuses, apenas pelos movimentos dos átomos.
Os deuses, se existissem, não fariam a menor diferença para nós, segundo os
epicuristas, pois eles seriam tão perfeitos e tão superiores que nós nada
seríamos para eles. Portanto, tanto faz acreditar ou não acreditar nos deuses.
Os estoicos, por sua vez, eram declaradamente panteístas, isto é, acreditavam
que Deus é tudo e tudo é Deus.

4. Era Cristã

No começo do cristianismo, os primeiros cristãos tiveram reações diversas em


relação à filosofia. Enquanto alguns a viam como aliada, outros a viam como
inimiga. No livro de Atos é famosa a disputa que o apóstolo Paulo teve com os
filósofos epicuristas (que, segundo alguns, na verdade não eram epicuristas,
mas estoicos), no qual teria convertido Dionísio, o Areopagita. O mesmo Paulo,
outras vezes, mostrou-se avesso à filosofia, como quando disse que viria para
“destruir a sabedoria dos sábios” e que a palavra de Deus era “loucura para os
sábios”. No entanto, sua aprovação ou desaprovação à filosofia permanece
confusa. O que se sabe é que ele era um bom conhecedor de filosofia.
Todavia, é certo que nesse período, Deus tornou-se central nos problemas
filosóficos, embora houvessem outros dos mais ele não participava.

4.1. Os Padres da Igreja

Desde o início os cristãos sentiram a necessidade de defender a sua fé, quer


seja se usando da filosofia clássica, quer seja a atacando. Tertuliano, seguindo
os ensinamentos de Paulo de que a fé cristã era uma “loucura” para a razão,
dizia “creio porque é absurdo”. Outro feroz adversário da filosofia foi Lactâncio,
que defendia uma interpretação absolutamente literal da Bíblia, chegando até a
negar que a Terra é redonda (os filósofos gregos já sabiam que a Terra não é
plana). No entanto, outros como Justino Mártir e Orígenes eram simpatizantes
da filosofia, encontrando nela um forte aliado. Esta fase foi chamada de
“apologética”, pois tinha o objetivo de defender a fé cristã contra os “ataques da
razão”.

4.2. Patrística

Depois te estabelecida a fé cristã, fez-se necessário defendê-la contra as


heresias. Nessa fase a filosofia foi utilizada, sobretudo, para separar as
doutrinas consideradas corretas das erradas, ou heréticas. Platão e Plotino
foram largamente utilizados aqui para explicar a natureza divina, a
consubstancialidade do Pai e do Filho, a criação, entre outras coisas. A
interpretação dos textos bíblicos teve um papel fundamental nessa fase.
Destaca-se aqui Santo Agostinho que, ao contrário de Tertuliano, dizia “creio
para entender”. Os dogmas não eram questionados e disso nota-se a
prioridade da fé em relação à filosofia.

4.3. Escolástica

Os hereges já haviam sido “derrotados” nos acalorados debates dos concílios


católicos. Já não havia mais necessidade de defender a fé contra os hereges
ou contra os gregos pagãos. A filosofia agora girava em torno da relação entre
fé e razão e problemas mais periféricos com relação ao cristianismo. São
famosos, nessa época, os argumentos de Santo Tomás de Aquino a favor da
existência de Deus, conhecidos como “as cinco vias”. Também nessa época
ocorreu o chamado “problemas dos Universais”, que não tinham ligação direta
com a fé em Deus e até hoje é bastante debatido, tratando sobre a existência
ou não de entidades abstratas.

5. Idade Moderna

No começo da Idade Moderna, Deus ainda tinha um papel central na filosofia,


mas não tanto quanto na Idade Média. Ainda muito pios, os filósofos desse
tempo descambavam para o lado místico da magia, alquimia e astrologia, sem
por a fé cristã em questão. Giornado Bruno, mago e filósofo moderno,
condenado à morte por heresia, via Deus de forma parecida com os panteístas
estoicos e cosmo com uma espécie de grande animal vivo. Descartes,
considerado o precursor da filosofia moderna, rompeu com o academicismo
escolástico na sua forma de escrever. Fundou a “dúvida metódica”, onde
questionava tudo. No entanto, apelou para Deus para resolver os problemas
por ele mesmo levantados.

Descartes deixou outro problema em aberto, a saber, o dualismo mente-corpo.


Esta teoria alegava que o mundo era composto de duas substâncias, uma
extensa, a matéria, e uma pensante, a mente. O homem seria composto por
essas duas substâncias. No entanto, Descartes teve o problema de explicar
como a substância pensante poderia interagir com a extensa, ou seja, como o
pensamento pode fazer com que uma pessoa se mova voluntariamente.
Spinosa tentou responder essa questão alegando que tudo era, na verdade,
derivado de apenas uma única substância, que é Deus. A matéria e a
substância pensante são apenas “modos” como a substância primeira se
apresenta. As ideias de Spinosa pareciam o panteísmo dos estoicos. Não
demorou para que fossem vistas como potencialmente perigosas e heréticas e
seu criador foi perseguido, tanto por católicos quanto por judeus, que era sua
religião.

Próximo disso, Leibniz criou a chamada “teoria das mônadas”. Uma teoria que
buscava encontrar o fundamento de todas as coisas e que negava o
materialismo. Para Leibniz, tudo era feito de “mônadas”, entidades de força
não-materiais submetidas às suas próprias leis. Todas as mônadas teriam sido
criadas ao mesmo tempo por Deus, e este as teria organizado da melhor
maneira possível. Disso, Leibniz concluiu que vivemos no “melhor dos mundos
possíveis”, o que foi motivo de chacota por parte de Voltaire em seu famoso
romance intitulado “Cândido”.

Até aqui todos os filósofos eram perfeitamente pios, quer seja no catolicismo ou
no protestantismo. Foi somente no Iluminismo que surgiram filósofos
declaradamente não-cristãos e ateus. Os iluministas criticavam as religiões
tradicionais, que consideravam superstições, e a substituíam pelo que
chamavam de “religião natural”, a crença de que há um deus, mas este não
pune, não recompensa, não ouve orações, não faz milagres e não escreve
livros. Deus, para os iluministas, teria criado o mundo e o abandonado. Adorar
a Deus é adorar a sua criação, a natureza, sendo a ciência a mais perfeita
forma de adorar a Deus.

O deísmo iluminista evoluiu para o ateísmo declarado. Talvez, pela primeira


vez na história, houveram filósofos confessadamente ateus. Extravasando o
pensamento iluminista, esses alegavam que não há Deus, que tudo que existe
é tão-somente a matéria e as leis da física. Os materialistas ateus tornaram-se
ferozes adversários tanto de cristãos quanto de deístas, a ponto de o filósofo
Berkeley criar uma teoria de mundo idealista, onde a matéria não existe, e
Voltaire declarar que “Se Deus não existe, seria preciso inventa-lo”.

Ainda no Iluminismo, David Hume, filósofo inglês, colocou sérias dúvidas sobre
a eficácia de modelos metafísicos (além de ter refutado grande parte dos
argumentos utilizados para sustentar a existência divina). Para ele, embora não
de possa negar a existência de Deus, pelo menos não era possível saber se
ele existe. Immanuel Kant, protestante declarado, tentou em vão responder as
críticas de Hume à metafísica, chegando à conclusão de que a metafísica de
fato é impossível, e refutando os tradicionais argumentos a favor da existência
de Deus, como as famosas cinco vias de Santo Tomás de Aquino. Da
impossibilidade da metafísica, segue-se a impossibilidade de conhece a
existência de Deus. Os alicerces da fé cristã ficaram seriamente abalados no
final da Idade Moderna e desde então Deus não teve mais um papel tão central
na história da filosofia.

6. A Era Contemporânea
Kant declara a “morte da metafísica” e o filósofo dinamarquês Kierkegaard
admite o fracasso do “racionalismo cristão”. No entanto, assim como Kant,
Kierkegaard jamais deixou de ser um cristão fiel. Para ele, a crença em Deus é
um “salto de fé”, uma escolha, que não deve e não pode ser sustentada por
argumentos racionais.

Todavia, o filósofo alemão Feuerbach considera a religião um mal, algo que


diminui a dignidade do homem. Para ele, teologia é antropologia, no sentido
que o homem faz de Deus a sua imagem e semelhança. Feuerbach apura as
críticas já feitas por Xenócrates no período pré-socrático e acrescenta outras
ideias, como a de que, à medida que o homem projeta em Deus aquilo que ele
é, menos o homem se reconhece como homem, e passa a se ver como um ser
inferior e submisso. O homem não se reconhece como criador de Deus, e a
isso Feuerbach chamou e “alienação” (no sentido de que o homem não se vê
como Deus, mas como um “outro”, um “alien”).

Discípulo indireto de Feuerbach, Karl Marx também via a religião como


alienação, porém não a única forma de alienação. A religião seria fruto de um
processo econômico, que faz com que os homens não se vejam como
criadores da sociedade, das relações sociais, da religião, de Deus, e acabe
achando que tais coisas tem existência própria e são mais poderosas do que o
homem. É dele a famosa frase “A religião é o ópio do povo”. No entanto, para
Marx, é inútil combater a religião com argumentos. Ela só será extinta quando
mudarem as relações sociais e acabar a alienação.

Nietzsche foi talvez o mas feroz crítico da religião. No seu famosos livro “A
Gaia Ciência” soltou a bombástica frase pela qual seria mundialmente
conhecido: “Deus está morto”. Para Nietzsche, a religião não apenas tirava a
dignidade do homem e o alienava. Ela o privava da felicidade e do sentido da
vida. Ao colocar o bem supremo em outro mundo, a religião tornava este
mundo vazio e pobre, fazendo com que as pessoas deixassem de vive-lo em
troca de uma vida no além (que, para ele, obviamente não existia). A religião
era um fator que esvaziava a vida neste mundo, mas que dava uma ilusória
resposta para o sofrimento. Além do mais, a religião servia para inverter os
valores, transformando o bom em mau.

O existencialismo, corrente filosófica que defende que o homem não tem uma
essência pré-determinada, sendo, portanto, livre para definir-se como quiser,
foi também no princípio um feroz crítico da religião e da ideia de Deus. Para
eles, se há um Deus que sabe de tudo, e sabe tudo que faremos desde tempos
infinitos, então não somos livres. Além do mais, teríamos que seguir os planos
pré-determinados por eles, não podendo escolher que rumos dar à nossa
própria existência. Não obstante, foi também no existencialismo que floresceu
novamente uma gama de grandes pensadores cristãos, como Jasper e
Unamuno. Inspirados pelo tema da liberdade existencialista e pelo pensamento
de Kierkegaard, colocavam a fé em Deus como o ato supremo de liberdade.

7. Conclusão
Poucos são os filósofos contemporâneos que se preocuparam com questões
sobre Deus e a religião. A maioria deles simplesmente ignora esses problemas.
Aparentemente, concordaram com Kant que essas são questões sem solução.
Mesmo que as mais ferrenhas críticas a ideia de Deus tenham sido tecidas na
contemporaneidade, elas foram feitas por uma minoria. Mesmo havendo ainda
muitos filósofos cristãos, a maioria simplesmente não falava sobre o assunto,
bem como a maioria dos filósofos ateus. Deus deixou de ter o protagonismo
que tinha na Idade Média e na Idade Moderna (que, embora mais fraco que no
medievo, ainda era bem forte). O problema de Deus tornou-se, para a filosofia,
até menos importante que durante a Idade Antiga. Todavia, a filosofia
contemporânea é muito recente comparada à sua longa tradição, e não há
dúvidas de que o papel desempenhado por Deus ao longo desses séculos e
milênios de filosofia foi bastante importante. Ainda restam alguns bons filósofos
que tentam resgatar o “racionalismo cristão”, como Swinburne e Plantinga,
reformulando os argumentos que já foram refutados por Hume e Kant, e
tentando declarar que Deus ainda não está morto.

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