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ISSN 2318-8014
1 INTRODUÇÃO
O presente texto aborda o lugar do brincar na clínica psicanalítica com crianças em sua
articulação com a da formação sintomática manifesta do sujeito. A reflexão sobre as
manifestações sintomáticas da criança relacionada ao modo como ela se coloca no brincar
possibilita investigar a dinâmica do jogo em um viés de constituição e criação do sujeito para
além daquilo que se mostra como sintoma. Nessa perspectiva, pretende-se analisar a
possibilidade da criança falar através da dinâmica do brincar, daquilo que não está dito, mas
presente no sintoma.
2 REFERENCIAL TEÓRICO
Uma falha ou falta expressa patologicamente no Real do corpo da criança, na sua fala
ou em outras funções está atravessada por um enunciado daquele(s) que personifica(m) o
Outro, assegurado pela cadeia significante ou preso a um significante. Constrói-se a
problematização sobre o sintoma, uma vez que ele não pertence somente à criança, porém, é
parte da constituição do Outro, está na alienação simbólica da ordem familiar (LERUDE-
FLÉCHET, 1989).
A autora supracitada explica que esta manifestação sintomática serve como laço do
Real do corpo da criança com o Imaginário e Simbólico de seus pais, construindo uma
resposta à neurose parental. Ou seja, um texto que se formula num enolamento que
plausivelmente advém no formato da neurose infantil.
Por isso, uma manifestação sintomática de algum modo faz surgir uma verdade do
contexto familiar. O texto sintomático tem sua forma identificatória para àquela criança em
sua constituição subjetiva (MELMAN, 1987).
Sendo o Sintoma uma verdade não falada, surge como é o que há de mais Real para o
sujeito. Por isso, formula-se – a partir da concepção lacaniana do nó borromeu - como um
quarto anel afim de amarrar os outros três, Real, Simbólico e Imaginário, para que assim
possa ser envolvido por uma estrutura linguística. Significa um nó daquilo que estava à
deriva, enolar o Simbólico e cingir o Sintoma pela língua, já que ele fala de algo que é de sua
verdade subjetiva (LERUDE-FLÉCHET, 1989).
Jerusalisnky (2009) discorre sobre a cena do brincar da criança em sua vida e também
na clínica, como constituinte do sujeito na infância. O faz-de-conta presente nas brincadeiras
infere um possível desdobramento significante, um desenrolar metafórico daquilo que poderia
estar incorporado ao real do corpo. Significa a possibilidade dos desdobramentos e a
construção e expansão imaginária.
Durante o brincar a criança joga com os conteúdos inconscientes característicos de
suas relações parentais. Implicando a construção imaginária do Outro sobre a posição da
criança de eu-ideal, para poder lançar-se ao ideal-de-eu de uma concepção social. Para tanto, a
criança se identifica ao desejo do Outro no lugar de objeto (JERUSALINKY, 2009).
No princípio da constituição psíquica escreve-se no texto do inconsciente e no real do
corpo do bebê um traçado que faz borda inscrito por significantes (ibid). O jogo com a mãe e
o bebê, que começa com o primeiro tempo pulsional de libidinizar o corpo do pequeno ser,
evocar pela pulsão oral e escópica um encontro do Outro com o bebê. Nesse momento ele
busca, tenta agarrar àquilo que está em jogo e começa a tecer uma borda em torno do buraco,
que o bebê confere com sua mão que coloca dentro da boca da mãe (TAVARES, 2013).
Para o segundo tempo pulsional fica em evidência sua competência auto-erótica, em
que o bebê se satisfaz alucinatoriamente com seu corpo ou um outro objeto diante da ausência
do corpo materno. Enquanto o terceiro tempo pulsional fecha o circuito no assujeitamento ao
Outro, para que o bebê se faça objeto de desejo do desejo da mãe. O bebê coloca seu corpo
em jogo para a mãe deliciar-se com ele, e assim fisga a voz, o olhar, o júbilo e
primordialmente o gozo da mãe (ibid).
Portanto desperta o jogo e um delinear de gozo e saber nessa relação primordial com o
Outro. Ou seja, isto dispõem-se no laço mãe-bebê na medida que um convoca ao outro, que o
bebê goza do gozo da mãe e a mãe transita a ele um saber sobre o suscitar desse gozo
(JERUSALINKY, 2009).
Adiante na constituição do sujeito com o brincar, é indispensável discorrer sobre a
tentativa da criança de suprimir um desprazer e ocasionar o prazer com a posição ativa
possível no brincar (FREUD, 1920). Distante do olhar e do controle dos Outros reais a criança
brinca podendo se expressar sem inibição. Sendo o jogo particularmente inventivo e repetitivo
deveria se afastar da lógica de produção, do sempre novo o tempo todo, a qual é permeada
pelo imperativo de ocupação total do sujeito debaixo da vigilância dos seus cuidadores. Um
olhar que não viabiliza um afastamento e é sustentado pelo temor de que a criança não seja
cuidada e passe pela via do desprazer, não dá lugar ao brincar estruturante. É o que se
encontra com bastante frequência atualmente; trata-se do tecido social que amarra no brincar
novos sintomas (MEIRA, 2013).
Na brincadeira a criança repete inúmeras vezes a criação do jogo, ou uma história, que
de alguma forma se opõem ao princípio do prazer. A repetição idêntica aparece como saída
para assegurar sua supremacia diante de um malgrado e para colocar-se numa posição ativa
daquilo que talvez viva passivamente. Assim como no for-da em que criança insiste em fazer
sumir o seu carretel – desagradada por manter-se longe da mãe, para enfim, fazê-la ressurgir e
também um prazer com a volta do objeto (FREUD, 1920).
Para a criança na brincadeira tudo é possível e a ficção ocupa a cena com valor
primordial para os desdobramentos metafóricos daquilo que é vivido no real. Essas
articulações significantes empurram à expansão imaginária em que se materializa num faz-de-
conta as inscrições do simbólico. Neste teatro é sustentável para a criança sair do lugar de
passividade na relação com o desejo da mãe e engatilhar um vir a ser (JERUSALINKY,
2009).
Nesta perspectiva, a criança constrói um movimento no brincar de jogo de posições
com aquilo que lhe é inscrito no imaginário e simbólico dos pais e efervescente no real. Logo
o desejo está em cena para que se formule o trabalho psíquico de posicionar-se como sujeito
em relação a este desejo em jogo. Trata-se da “articulação entre o “agora”, o “eu era” e o “vir
a ser” (ibid, p. 232).
No setting analítico a criança está privada do olhar do Outro que poderia impossibilitá-
lo de encenar a separação simbólica ou articular conteúdos que seria censurado. Para isso o
analista se dispõe de corpo com o brincar, implicando-se num jogo que possibilita falar
daquilo que seria insuportável para os pais escutar. Conteúdos primordiais na clínica que
investem num saber para a criança lhe permitindo sair do lugar de objeto no fantasma dos pais
(JERUSALINSKY, 2009).
Para tanto, se o psicanalista explicita em palavras, desvendando aquilo que a criança
tenta trabalhosamente metaforizar através de sua repetição, acaba por definir o lugar de objeto
da criança diante do jogo simbólico. O analista integra-se a brincadeira não para interpretar a
formação inconsciente ou simplesmente descobrir aquilo que não está sendo dito sobre o laço
parental, mas, dispor um outro espaço para que a criança “opere uma passagem do gozo ao
saber-fazer” (ibid, p. 237).
As bordas do corpo se constituem pela forma que o Outro prevê no endereçamento de
significantes e no jogo de presença e ausência. Delineando um corpo real que antes estava a
mercê da descontinuidade do Real, portanto, essas bordas do corpo que se formam ecoam a
alternância simbólica constitutiva da letra e linguagem. Movimento plausível dessa relação,
ainda dual, de equivocar os lugares de objeto de gozo e sujeito de saber (JERUSALINSKY,
2009).
O banho de linguagem que perpassa a constituição da criança, a sua criação repleta de
oposições significantes, articulações do Real, Simbólico e Imaginário em relação ao Outro,
formula a sua verdade sintomática e criativa. Convocando o pequeno ser falado a recriar,
inovar o traçado de seu gozo com uma saída criada por ele como senhor do jogo (ibid).
O papel ativo no brincar relança o desejo e o modo de se colocar nele. Faz uma brecha
na descontinuidade, mesmo que pela via pulsional a criança ainda precise repetir
incessantemente o jogo, em dado momento àquilo que é abarcado pelo simbólico e articulado
no imaginário abrevia o conteúdo fixado no real. Instaura-se uma fissura, um novo espaço
ocupado pela criatividade e a plausível liberdade das amarrações do laço com Outro e seu
fantasma, “passar assim do chafurdar no gozo a um saber fazer ali com isso” (ibid, p. 238).
Enquanto a criança ainda não fala somente por ela, está situada pelo fantasma parental
e fisgada no gozo do Outro; em análise e a primazia do brincar, ela pode não somente
conhecer a sua realidade, porém, constituir algo novo. Um novo tecer que não cessa de se
inscrever e que trata de saber-fazer um inusitado e criativo com seu sintoma, sendo esse o
objetivo da brincadeira com uma criança em análise. Assim, a criança decide criar um novo
lugar e situar-se na relação com o Outro em identificação e senhora do desejo dela
(JERUSALINSKY, 2009).
Portanto, na transferência a possibilidade de criar e fundar o advir do falasser, o
sujeito inconsciente falante, transpassado pela criação da linguagem. Convocado a passar pelo
eu-ideal e a lançar-se ao ideal-de-eu na cultura, convocado a sustentar outros espaços criativos
e relacionais no desdobrar do saber-fazer (ibid).
3 METODOLOGIA
Antes mesmo do nascimento real do bebê de algum modo ele já está presente no
imaginário dos pais. Ao nascer, seu corpo ainda anseia pela necessidade da sobrevivência,
então, na relação primordial com o Outro lhe é inscrito significantes e no corpo libidinizado
se instaura o desejo, articulando assim o devir do orgânico e psíquico junto. Dessa relação
primeira reconhece-se a inevitável dependência do bebê com esse Outro simbólico e os
Outros reais que inscrevem no pequeno ser os seus conteúdos inconscientes e fantasmáticos
da relação, formulando o lugar dele no fantasma dos pais e de objeto de gozo do Outro.
Então, compreende-se que a constituição do corpo orgânico é permeada pela
linguagem do psíquico, ou seja, a descontinuidade do real do corpo começa a ser traçada desta
relação constituinte que faz bordas e inscreve a letra. Esses significantes traçados nas bordas
do corpo na relação com a mãe, significa o primeiro jogo de posições, do bebê como objeto
do objeto de desejo do Outro e do vir a ser sujeito do seu desejo. Trata-se do jogo constituinte.
A brincadeira como constituinte não se esgota tão facilmente, sendo que a criança
continua o seu brincar especialmente na ausência do Outro real; e, enquanto suas
manifestações sintomáticas ainda falarem por ela, o brincar estará sujeito a esta estrutura
sintomática . Ainda assim, haverá manifestações que não cessam de se expressar no real do
corpo e que se apresentam num comprometimento na fala, cognitivo, orgânico, motor e por
outras vias.
Considera-se o sintoma da criança, a sua verdade psíquica e intrínseca a sua realidade
contextual, do laço parental ou lugar de objeto no desejo do Outro. E o brincar é parte dessa
constituição que surge e, por estar diretamente relacionado ao sintoma, mostra-o nas suas
diferentes formas. Por isso, a brincadeira proporciona a criança se haver com seu lugar e
lançar-se como senhora do seu desejo num papel ativo. Podendo falar daquilo que não está
posto em palavras, metaforizar e inventar.
Em suma, o sintoma que pela concepção lacaniana do nó borromeu faz o quarto nó,
unindo a articulação entre Real, Imaginário e Simbólico, também pode ser equivocado pelas
possibilidades do brincar para a criança. Com o faz-de-conta uma coisa pode ser tomada por
outra na expansão do imaginário e o real que estava sem palavras pode ser bordejado pelo
simbólico. Neste jogo a criança pode criar e recriar-se, construir uma via para o gozo e fazer
nesse momento um saber sobre si e seu sintoma, algo de novo se produz.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
6 REFERÊNCIAS
FREUD, Sigmund. Além do princípio de prazer. In: FREUD, Sigmund. Além do princípio de
prazer, Psicologia de Grupos e outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago, 1920, p. 11-75
GIL, Antonio Carlos. Como elaborar projetos de pesquisa. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2010.
TAVARES, Luís Alberto. Por uma teoria lacaniana das pulsões. In:LAZNIK, Marie-Cristine.
A voz da sereia – O autismo e impasses na constituição do sujeito. Salvador: Ágalma,
2013, p. 88-106.
MEIRA, Ana Marta. Pequenos brinquedos, jogos sem fim – Os sintomas no brincar da criança
contemporânea. In: MEIRA, Ana Marta (Org.). Novos sintomas. Salvador: Ágalma, 2013, p.
41-54.
MELMAN, Charles. Sobre a infância do sintoma. Revista Che vuoi? Ano dois n 3 e 4.
Psicanálise e Cultura. Inverno 1987.